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Dissecação de lesões cariosas: nova técnica de estudo histopatológico tridimensional

Dissection of carious lesions: a new technique for three-dimensional histopathological study

Resumos

As análises bidimensionais no estudo histopatológico de lesões cariosas apresentam vieses que podem comprometer o valor científico dos estudos. Neste artigo, os autores apresentam uma nova técnica de análise tridimensional de lesões cariosas, sem perda de partes da lesão, que consiste na dissecação das áreas afetadas pela lesão com brocas odontológicas de desgaste, sob refrigeração, realizada com auxílio de um estereomicroscópio. Três casos de lesões cariosas oclusais em primeiros e segundos molares permanentes são apresentados, nos quais foi possível observar as reações internas de esmalte e dentina em relação às características macroscópicas das lesões. Alguns aspectos comparativos entre a técnica da dissecação e as técnicas bidimensionais são discutidos.

Cárie dentária; Patologia; Traumatismos dentários


Two-dimensional analyses of the histopathological aspect of carious lesions present bias that may compromise the scientific value of studies. In this paper, the authors present a new three-dimensional technique for the histopathological analysis of carious lesions. It consists in the dissection of the affected areas under the stereomicroscope, utilizing refrigerated dental burs, without any loss of carious tissue. The dissection of three occlusal lesions located on first and second permanent molars is presented. It was possible to observe the internal reactions of enamel and dentin, and correlate the results to the macroscopic features of the occlusal surface. Some comparative aspects between the dissecting and two-dimensional techniques are discussed.

Dental caries; Pathology; Tooth injuries


Patologia

Dissecação de lesões cariosas: nova técnica de estudo histopatológico tridimensional

Dissection of carious lesions: a new technique for three-dimensional histopathological study

Tiago Batista Pereira* * Aluno do Curso de Graduação em Odontologia; ** Professor Assistente (Mestre) de Histologia Humana do Departamento de Morfologia – Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba.

Frederico Barbosa de Sousa** * Aluno do Curso de Graduação em Odontologia; ** Professor Assistente (Mestre) de Histologia Humana do Departamento de Morfologia – Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba.

RESUMO: As análises bidimensionais no estudo histopatológico de lesões cariosas apresentam vieses que podem comprometer o valor científico dos estudos. Neste artigo, os autores apresentam uma nova técnica de análise tridimensional de lesões cariosas, sem perda de partes da lesão, que consiste na dissecação das áreas afetadas pela lesão com brocas odontológicas de desgaste, sob refrigeração, realizada com auxílio de um estereomicroscópio. Três casos de lesões cariosas oclusais em primeiros e segundos molares permanentes são apresentados, nos quais foi possível observar as reações internas de esmalte e dentina em relação às características macroscópicas das lesões. Alguns aspectos comparativos entre a técnica da dissecação e as técnicas bidimensionais são discutidos.

UNITERMOS: Cárie dentária/diagnóstico; Patologia; Traumatismos dentários.

ABSTRACT: Two-dimensional analyses of the histopathological aspect of carious lesions present bias that may compromise the scientific value of studies. In this paper, the authors present a new three-dimensional technique for the histopathological analysis of carious lesions. It consists in the dissection of the affected areas under the stereomicroscope, utilizing refrigerated dental burs, without any loss of carious tissue. The dissection of three occlusal lesions located on first and second permanent molars is presented. It was possible to observe the internal reactions of enamel and dentin, and correlate the results to the macroscopic features of the occlusal surface. Some comparative aspects between the dissecting and two-dimensional techniques are discussed.

UNITERMS: Dental caries/diagnosis; Pathology; Tooth injuries.

INTRODUÇÃO

As reações histológicas internas dos tecidos dentais duros em lesões cariosas têm sido, até então, estudadas através de hemi-secções (cortes grossos) ou fatias finas de elementos dentais4,6,8, que permitem apenas um estudo bidimensional de alterações morfológicas tridimensionais, havendo, dessa forma, uma perda de informação. Apesar dessa desvantagem, a quase totalidade do conhecimento científico atual relativo à histopatologia das lesões cariosas está baseada em estudos bidimensionais. Recentemente, a análise tridimensional da histopatologia das lesões cariosas foi o foco de alguns estudos, que empregaram a técnica da reconstrução tridimensional computadorizada (RTC) para construir imagens tridimensionais de lesões cariosas a partir da coleta da imagem bidimensional de vários cortes seriados de uma mesma lesão1,2. Porém, o uso de cortes seriados de uma mesma lesão causa uma perda de estrutura, que pode ser maior do que a extensão da lesão (como pode ser evidenciado na metodologia de Arnold et al.1, 1998), criando uma fonte de viés. Dois estudos recentes sobre a histopatologia de lesões cariosas proximais – Björndal, Thylstrup3 (1995) e Arnold et al.1 (1998) – um feito com cortes finos e outro com RTC de cortes seriados, apresentaram resultados conflitantes com relação à correlação da extensão da área de desmineralização de esmalte e dentina no limite amelo-dentinário, sendo que ambos apresentam problemas metodológicos relativos à perda de áreas da lesão durante os cortes.

O método mais fiel para analisar as reações internas de esmalte e dentina em lesões cariosas seria aquele que não provocasse perda de partes daquelas e fosse tecnicamente viável. O uso das reações ópticas dos tecidos dentais duros, em estado de higidez, fluorose e/ou de reação ao processo carioso – que é empregado quando são analisados hemi-secções ou cortes finos – pode ser empregado para orientar a remoção de todo o esmalte e toda a dentina que envolve uma lesão cariosa, evitando a perda de suas partes. A translucidez do esmalte hígido e da dentina esclerótica, que envolvem as lesões cariosas, permite visualizar as partes afetadas a uma certa distância da lesão, possibilitando a dissecação da mesma. Neste artigo, apresentaremos uma nova técnica de estudo tridimensional das reações internas de esmalte e dentina em lesões cariosas, que consiste na dissecação da lesão com base nas propriedades ópticas de esmalte e dentina. Três casos de lesões cariosas oclusais serão apresentados.

MATERIAL E MÉTODOS

Cada lesão cariosa foi classificada de acordo com o sistema de classificação proposto por Ekstrand et al.4 (1995). A amostra (um segundo e dois primeiros molares superiores permanentes) foi selecionada ao acaso de um grupo de dentes extraídos com lesões naturais. O desgaste das estruturas não envolvidas na lesão foi realizado com instrumentos de desgaste rotatórios em baixa e alta rotação (peça-de-mão, contra-ângulo, peça de alta rotação e brocas cilíndricas), sob refrigeração com água e com o auxílio de um estereomicroscópio (Olympus, EUA), utilizando-se aumentos de até 40 X. Todas as análises morfológicas foram realizadas sob hidratação a fim de otimizar a identificação óptica das alterações internas de esmalte e dentina. As fotomicrografias foram realizadas em um estereomicroscópio trinocular Leica MZ12 (Suíça), em aumentos de até 60 X.

RESULTADOS

Caso 1 - lesão cariosa oclusal inativa: esmalte brilhoso com descoloração amarronzada e sem cavitação

As Figuras 1A-1D ilustram o primeiro caso. Após remoção da quantidade suficiente de esmalte e dentina para visualizar as reações internas desses tecidos através da passagem da luz pelo esmalte hígido e pela dentina esclerosada, uma porção muito reduzida da coroa dental foi isolada (Figura 1B). Na dentina, só foi evidenciada esclerose dentinária e sua distribuição mostrou uma forte convergência dos túbulos dentinários desde o limite amelo-dentinário até a polpa (Figura 1C). No esmalte, foram observadas cinco fissuras preenchidas por material escuro, sendo que em uma delas foi possível evidenciar a distribuição tridimensional das áreas de desmineralização (Figura 1D). Após a remoção de uma parede da fissura mais profunda, foi possível remover todo o material escurecido, que representava um depósito calcificado (Figura 1E).




Caso 2 - lesão cariosa oclusal inativa: esmalte brilhoso com descoloração amarronzada e sem cavitação

Outra lesão com a mesma classificação da anterior foi escolhida para ilustrar a influência da ocorrência dos depósitos calcificados no aspecto da superfície da lesão e da profundidade esperada da mesma (Figura 2A). Durante a remoção das partes não envolvidas, foi possível detectar, através da análise em estereoscópio de alta resolução, uma microcavitação na parte mais profunda de uma das fissuras. A dissecação dessa fissura mostrou áreas de desmineralização amarronzada e esclerose na dentina e desmineralização no esmalte (Figura 2B). Não foi encontrado espalhamento lateral da desmineralização dentinária no limite amelo-dentinário, isto é, havia uma estreita correlação entre as áreas de desmineralização de esmalte e dentina naquela área. A remoção cuidadosa de uma parede da lesão evidenciou a comunicação da dentina com o ambiente oral (microcavitação – Figura 2C). O formato de dois cones superpostos base contra base, classicamente relatado na literatura, foi evidenciado neste caso.




A descoloração escura que transparece no esmalte dental se revelou, mais uma vez, como sendo um depósito calcificado, que pode ser removido com instrumentos manuais pontiagudos. Na dentina, lateralmente à área marrom de desmineralização, pôde-se notar a translucidez na dentina esclerosada.

Caso 3 - lesão cariosa inativa: esmalte opaco/escurecido e brilhoso com cavidade expondo dentina amarelada e mole

Este terceiro caso ilustra uma situação em que o esmalte apresenta características de lesão inativa (Figura 3A), porém, na dentina, encontram-se características que, segundo a literatura pertinente, seriam de lesão ativa4. A cavidade retentiva apresentada estimula a pesquisa do espalhamento lateral da desmineralização dentinária no limite amelo-dentinário, que seria o padrão mais provável neste tipo de lesão6. Entretanto, durante a dissecação, a remoção do esmalte que não apresentava opacidade revelou uma área desmineralizada abaixo do esmalte não afetado nas cúspides socavadas (Figura 3B). A desmineralização mostrou se iniciar no esmalte da parede cavitária, tomando uma direção bastante oblíqua, e não no esmalte localizado logo acima. Este desvio da direção da desmineralização no esmalte revela a direção dos prismas de esmalte, uma vez que foi comprovado que este é o trajeto natural do ácido proveniente da placa cariogênica3,4,6,7. A espessura da faixa de esmalte desmineralizado exclui um possível efeito superficial de uma placa que tivesse se formado dentro da cavidade cariosa e abaixo da parede de esmalte sem suporte dentinário. Além disso, havia dentina desmineralizada logo abaixo do esmalte, de modo que a placa não podia ter se depositado abaixo do esmalte.



A desmineralização dentinária apresentou, mais uma vez, coloração marrom e penetrou na dentina numa morfologia cônica bastante convergente para a polpa, que leva à formação de dentina terciária numa área bastante limitada.

DISCUSSÃO

A técnica da dissecação permitiu visualizar aspectos morfológicos bastante interessantes das lesões cariosas. No caso 1, temos uma situação em que a sonda exploradora é retida e onde há sulcos escurecidos. Na literatura científica, este estágio – pertencente a uma escala de escores – é colocado como um grau de dissolução mineral mais avançado do que as lesões de mancha branca inativa. Estas últimas lesões (que são visíveis a olho nu na superfície dental), devido às propriedades ópticas do esmalte dental, penetram mais que a metade da espessura desse tecido e, assim, nas fissuras muito profundas, a desmineralização em dentina seria um achado bastante provável. Entretanto, a lesão do caso 1 teve uma penetração muito pequena no esmalte e não houve desmineralização dentinária. O escurecimento dos sulcos e fissuras representava, na verdade, depósitos calcificados, que mascaram a superfície do esmalte.

A formação de depósitos calcificados deixa a lesão do caso 2 com aspecto clínico similar àquele do caso 1, sendo ambas inativas e não requerendo tratamento restaurador. No caso 2, a microcavitação do esmalte e a desmineralização dentinária não puderam ser detectadas pelo exame macroscópico. Porém, após dissecação, foi identificada uma área de desmineralização dentinária atingindo cerca de metade da distância entre o limite amelo-dentinário e a câmara pulpar, sendo, assim, passível de ser detectada pelo exame radiográfico. Mesmo assim, a decisão de tratamento seria a não restauradora, devido às condições favoráveis para a remoção da placa espessa na superfície da lesão.

Na literatura científica, os estudos mais relevantes sobre histopatologia das lesões cariosas oclusais foram feitos com terceiros molares2,4,5,6, que foram indicados para extração após pouco tempo de exposição ao ambiente oral, tendo, assim, também pouco tempo para formar depósitos calcificados. Neste contexto, é fácil para o cirurgião-dentista deparar-se com situações clínicas incompatíveis com alguns relatos científicos.

No caso 3, temos uma lesão cujas paredes de esmalte apresentam características de lesão inativa e a dentina exposta (no centro da cavidade) apresenta características de lesão ativa. De acordo com a literatura atual, é indicado tratamento restaurador para esta lesão, mas esta indicação não é necessariamente pela presença de cavitação clínica e sim pela ocorrência de espalhamento lateral da desmineralização na dentina logo abaixo do limite amelo-dentinário6. Durante a dissecação, foi possível constatar que toda a área de dentina desmineralizada estava relacionada com a lesão do esmalte, isto é, não houve espalhamento lateral em dentina (Figura 3B). Parte da lesão mostrada na Figura 3B foi removida para ilustrar a relação das lesões de esmalte e dentina em áreas retentivas. Embora Ekstrand et al.6 (1998) tenham relatado que o espalhamento lateral em dentina ocorre na maioria dos casos – não em todos – de lesão cariosa cavitária, o padrão de espalhamento lateral, ilustrado pelos autores na Figura 1F de seu artigo, é idêntico ao nosso no sentido de que em ambos havia, sobre a área de suposto espalhamento lateral da lesão dentinária, uma faixa de desmineralização do esmalte que não se iniciava na superfície da face oclusal. A dissecação do caso 3 mostrou que essa faixa de lesão do esmalte se inicia na superfície das paredes cavitárias e leva a desmineralização em sentido oblíquo, atingindo uma área maior de dentina. Estes achados indicam que as porções laterais da lesão dentinária podem ser inativadas pela escovação das paredes cavitárias e a porção central da lesão pode ser inativada pela escovação da dentina exposta. A análise bidimensional (após hemi-secção), provavelmente daria outra impressão.

Em razão das análises comparativas, podemos constatar que o uso de amostras de terceiros molares e o emprego de análises bidimensionais podem produzir resultados que divergem da realidade vivenciada na clínica com pré-molares e primeiros e segundos molares. O estudo das variações anatômicas em poucos órgãos não pode extrapolar seus resultados para toda a população. Entretanto, estes representam ocorrências reais com as quais o clínico pode se deparar e que requerem explicação científica. A morfologia dos casos aqui apresentados aponta falhas na análise bidimensional de lesões cariosas oclusais e sugerem que os estudos histopatológicos dessas lesões sejam refeitos com análises tridimensionais que não demandem perda de suas partes principais.

CONCLUSÕES

Podemos concluir que a dissecação permite uma análise histopatológica tridimensional das lesões cariosas sem perda de suas partes principais; entretanto, ainda necessita ter sua reprodutibilidade determinada.

Recebido para publicação em 06/02/2001

Enviado para reformulação em 01/10/2001

Aceito para publicação em 12/12/2001

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  • *
    Aluno do Curso de Graduação em Odontologia;
    **
    Professor Assistente (Mestre) de Histologia Humana do Departamento de Morfologia – Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jul 2002
    • Data do Fascículo
      Jun 2002

    Histórico

    • Recebido
      06 Fev 2001
    • Aceito
      12 Dez 2001
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