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A dimensão metodológica da aula: revisitando a organização pedagógica do trabalho docente 1 1 Editor responsável: Adriana Varani. https://orcid.org/0000-0002-7480-4998 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Leda Maria de Souza Freitas Farah - leda.farah@terra.com.br

Resumo

O presente ensaio propõe uma reflexão sobre a dimensão metodológica na organização do trabalho pedagógico, retomando o debate sobre a constituição da aula e do lugar da tríade professor-aluno-conhecimento no processo. Mobilizado pelo relato de uma professora do 4.º ano do ensino fundamental, indaga o lugar e o papel das escolhas metodológicas na organização do trabalho pedagógico docente, assumindo-as como constitutivas do par dialético conteúdo-forma. Distante de apresentar propostas ou enaltecer a experiência relatada, o texto busca problematizar os contornos que dão forma às decisões metodológicas da aula como reflexão necessária para delimitar a ação docente, dentro da potencialidade do que, inspirado em Freire (1996), convencionou-se chamar de “inacabamento criativo professoral”. Defende-se que, ao assumir concepções críticas, o professor é convidado a protagonizar, com seus estudantes, um processo de construção que exige a abertura para o inesperado possível, porém, desconhecendo o caminho, deve ter clareza do destino e abrir-se, pela dinâmica do acontecimento, a aprendizagens múltiplas na vivência constante de novos modos de caminhar, firmemente alicerçados em princípios e conteúdos.

Palavras-chave
organização do trabalho pedagógico; metodologia de ensino; aula

Abstract

This article proposes a reflection on the methodological dimension in the organization of pedagogical work, resuming the debate on the constitution of the class and the place of the teacher-student-knowledge triad in the process. Mobilized by the report of a 4th grade teacher, it seeks about the place and role of methodological choices in the organization of teaching pedagogical work, assuming them as constitutive of the dialectic pair content/form. Far from presenting proposals or extolling the reported experience, the text seeks to problematize the contours that shape the methodological decisions of the class as a necessary reflection for the delimitation of teaching action, within the potentiality of what is conventionally called the creative unfinished teacher, inspired by Freire (1996). It is argued that by assuming critical conceptions, the teacher is invited to lead, with his students, a construction process that requires the opening to the unexpected possible which, unaware of the way, must be clear of destiny, opening up by the dynamics of the event. the multiple learning in the constant experience of new ways of walking, firmly grounded in principles and contents.

Keywords
pedagogical work organization; teaching methodology; class

Para que serve o protetor solar?

Era uma segunda-feira após o feriado de Páscoa, em meu planejamento faríamos a roda inicial que provavelmente seria animada pelos relatos do feriado. Planejei a organização do dia com a roda, produção de um texto coletivo em que trabalhássemos os sinais de pontuação, que muitas crianças não conseguiam utilizar adequadamente, e uma atividade de matemática voltada ao desenvolvimento da compreensão de estimativa. A roda começou. Realmente eram muitas histórias. Quase ao final da roda, Joakim3 3 Nome fictício inspirado no personagem do livro infantojuvenil Ei! Tem alguém aí?, de Jostein Gaarder, o qual nos ajuda a compreender a potencialidade das perguntas. - estudante que ainda não tinha chegado – entrou na sala, colocou a mochila na carteira e se sentou na roda. Como estava com o rosto todo vermelho de sol perguntei o porquê, ele respondeu que viajou com sua avó - ele não mora com os pais - e onde foram tinha uma piscina, onde brincou o dia todo. Preocupada, disse a ele que era necessário usar protetor solar. Imediatamente ele questionou “Para que serve o protetor solar?”. De prática inspirada por Freinet, devolvi a pergunta à roda, a partir do que as hipóteses foram sendo formuladas e registradas no livro da vida, por mim. Em seguida, e por não encontrarmos um consenso, decidimos fazer uma pesquisa. As hipóteses não refutadas foram elencadas e os elementos necessários a serem pesquisados, listados. Após divisão da turma entre as diferentes possibilidades de investigação, iniciava-se uma pesquisa. Além da resposta sobre o uso de protetor solar em si, surgiu a curiosidade sobre o sol. Sabia que teria que trabalhar o sistema solar, estava no planejamento anual do 4.º ano, adiantamos o conteúdo. O surpreendente foi, todavia, todos os desdobramentos que esse acolhimento teve... A partir da confecção do sistema solar, e enquanto apreciávamos o trabalho coletivo produzido, outra questão surgiu: “Os planetas ficam exatamente assim no céu?!?”, a conversa sobre a indagação nos levou a novas hipóteses e outras indagações... De repente, estávamos envoltos em noções de cartografia, conteúdo também previsto para o 4.º ano, e porque o corpo humano para eles também poderia ser mapeado, ...ao estudo da localização dos principais órgãos no corpo humano... Investigação permeada pelas sistematizações ...por mim e textos produzidos coletivamente e em grupos para a elaboração dos “álbuns” de nossa pesquisa. Foram meses de trabalho com muito conteúdo de ciências, geografia, português, matemática e arte... Porque, mesmo havendo professora especialista para este conteúdo na rede estadual, esta é uma dimensão da expressão humana que não pode faltar em uma prática inspirada por Freinet.

Figura 1
Coleção de imagens e relato escrito para oficina sobre a prática pedagógica – Turma do 4.º ano do Ensino Fundamental, Escola Estadual em Campinas-SP, 2009.

O que significa organizar pedagogicamente a aula? Quais fatores estão envolvidos nas delimitações assumidas? Quais condicionantes constituem o processo de construção do trabalho docente? O que está em jogo quando optamos por um ou outro caminho?

A reflexão sobre a organização do trabalho pedagógico é essencial para pensarmos sobre a aula e sua implicação na formação dos estudantes e, por consequência, na nossa constituição docente. Os caminhos escolhidos, todavia, não deveriam estar descolados dos objetivos almejados, dos conteúdos e das habilidades a serem desenvolvidos e do constante revisitar avaliativo da ação.

Perante uma pergunta posta pelo estudante, o que fazer? Responder a partir de um conhecido lugar professoral, dando fim à indagação, ou abrir espaço para outras possibilidades, assumindo o aluno como parceiro no protagonismo do processo e a nós mesmos como incansáveis revisitadores de nossas ações e planejamento? O que determina uma ou outra opção? O que nos leva a escolher um ou outro modo de caminhar?

A situação narrada explicita muito mais que uma experiência vivida: ela indicia concepções que sustentam a ação docente. Desde a interação inicial com os estudantes, o carinho com que se olha e aconselha, até o acolhimento à questão colocada e a organização instrumental da aula, o que vai se configurando é um cenário em que não há espaço para os planejamentos fixos e as respostas prontas. A construção da ação se faz em processo e se abre para diferentes possibilidades. Porém, seria suficientemente potente para a formação dos estudantes?

A crença na potencialidade do acontecimento é o que permite o desenrolar da ação, sustentada por um domínio do currículo esperado para o período escolar e pela convicção na relação horizontal e dialógica entre professor e aluno. A competência docente e sua profissionalidade não são negociáveis.

O protagonismo assumido pelos estudantes, capazes de pesquisar e entender por meio de indagações e pela mediação do professor os conteúdos já esperados para seu ano escolar, além de outros, não acontece em detrimento do papel docente. O professor tem como função primordial organizar o trabalho pedagógico em sala de aula rumo aos objetivos almejados. Essa ação docente, de forma geral e particularmente relatada na experiência tomada como disparadora da reflexão neste artigo, só se realiza de uma ou outra forma porque sustentada por concepções específicas de homem, educação e sociedade – nem sempre, todavia, claramente delimitadas.

Longe da defesa de uma ação espontaneísta, procuramos afirmar a potencialidade de se ter espaço, na organização do trabalho pedagógico, para uma improvisação segura, a qual só ocorre com o domínio do planejado e das bases de sustentação do trabalho, sem perder de vista seus elementos constituintes: Objetivo/Avaliação e Metodologia/Conteúdo. Uma improvisação que, portanto, não significa “dançar conforme a música”, mas perceber nas notas musicais que surgem a possibilidade de novos passos, unindo o previsto com o possibilitado pelo imprevisto, pelo acontecimento, sem sair do compasso.

A aula, pensada como processo não necessariamente de um dia, mas de uma construção almejada de conhecimentos que tem tempo variável e variante, não é um acontecimento sem raízes, e sua manifestação, ainda que de desdobramento não completamente planejado, deve ter clara perspectiva de objetivo. Assim como os caminhos que levaram a turma do 4.º ano a estudar cartografia ou o corpo humano, conteúdos já objetivados pelo currículo, os percursos metodológicos que nos levam a alcançar um determinado objetivo pedagógico são variados. Desde que não percamos de vista aonde pretendemos ir e quais elementos são essenciais nessa construção (objetivos e conteúdos), sob risco de nunca conseguirmos chegar, as possibilidades de percurso (metodologia/forma) são incontáveis, sendo a definição do caminho delimitada e marcada pelas concepções que sustentam a ação.

Nesse sentido, longe de apresentar propostas ou enaltecer experiências vividas, o presente artigo busca problematizar os contornos que dão forma às decisões metodológicas da aula como reflexão necessária para delimitar a ação docente. Dentro da potencialidade do que convencionamos chamar de inacabamento criativo professoral, inspirados em Freire (1996)Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa (23ª ed.). Paz e Terra., defendemos a necessidade de a organização do trabalho pedagógico ser analisada a partir dos elementos e das concepções que lhe dão contorno e amplitude, em um fazer docente que se (re)constrói constantemente.

Retomando o debate sobre a constituição da aula e do lugar da tríade professor-aluno-conhecimento no processo, esperamos indagar o lugar e o papel das escolhas metodológicas na organização do trabalho pedagógico docente, as quais devem ter relação direta com os conteúdos que lhe conferem significado, sob risco de esvaziamento. Defendemos que, ao assumir concepções críticas, o docente é convidado a protagonizar, com os alunos, um processo de construção que exige a abertura para o inesperado possível. Porém, embora desconheça o caminho, deve ter clareza do destino e dos insumos que precisa buscar, abrindo-se, pela dinâmica do acontecimento, a aprendizagens múltiplas na vivência constante de novos modos de caminhar.

1. Pensando a constituição do processo de “aula”: concepções que revelam e potencializam delineamentos

Ainda que espaço de múltiplas relações, a escola de forma geral e a sala de aula de forma específica carregam a marca inegável de serem espaços onde se ensina e se aprende, tendo o professor um papel essencial na dinâmica da aula. Como no relato inicialmente registrado, cabe ao professor escolher a forma como conduzirá o processo e, por conseguinte, o papel que, na dinâmica da aula, estudantes e ele próprio assumirão frente ao conhecimento.

Quando a professora conversa com os estudantes e acolhe a indagação: “Para que serve o protetor solar?”, ocorre o encaminhamento dinâmico de diversos acontecimentos em aula: mais que exemplificar uma possibilidade de vivência da relação professor-aluno-conhecimento, ela explicita, em suas escolhas, algumas concepções que sustentam sua ação. Nesse sentido, indagar acerca do lugar ocupado pelos diferentes elementos partícipes do processo de ensino e aprendizagem, do modo como as diferentes concepções influenciam a relação estabelecida entre eles e da forma como tal processo se desenrola em aula, seus condicionantes e facilitadores, é essencial para refletir sobre a organização do trabalho pedagógico na escola.

Ensinar e aprender, tomados como a essência do que seria a aula, não acontece de forma isolada ou sem seus elementos constitutivos. Pensá-los demanda refletir sobre o papel do professor, do aluno e do conhecimento, indagando, como retoma Smolka (2008)Smolka, A. L. B. (2008). A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo (12.ª ed.). Cortez., tanto os sujeitos da ação quanto os meios e as condições objetivas que têm para desenvolver o processo de ensino-aprendizagem. Como bem argumenta a referida autora, questionar “Quem /Ensina /O quê /Para quem /Como /Onde” e, em contrapartida, “Quem /Aprende /O quê /Para quê /Como /Onde” é tarefa essencial para entender e intervir no processo de ensino-aprendizagem, na organização do trabalho pedagógico em sala de aula.

Como já examinado em outro momento (Almeida, 2017Almeida, L. C. (2017). A Didática na formação de professores: espaço e contribuição. In S. A. Siquelli, J. L. Sanfelice, & L. C. Almeida (Orgs.), Fundamentos da educação: compreensões e contribuições (vol. 1, pp. 177-194). Navegando Publicações.), a análise do lugar ocupado por Professor, Aluno e Conhecimento no processo de ensinar e de aprender na escola nos aproxima das questões colocadas por Smolka (2008)Smolka, A. L. B. (2008). A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo (12.ª ed.). Cortez., na medida em que, dependendo das concepções que alicerçam a ação, a natureza do processo e a dos papéis desempenhados serão muito diferentes. Partindo das esquematizações propostas por Pino (2004)Pino, A. (2004, set./dez.). Ensinar-aprender em situação escolar: Perspectiva histórico-cultural. Contrapontos, 4(3), 439-460. para se pensar o ensino e utilizando-nos da tipologia construída por Saviani (2009)Saviani, D. (2009). Escola e democracia: teorias da educação; curvatura da vara, onze teses sobre a educação política (41ª ed.). Editores Associados., em relação às teorias pedagógicas, inferimos que, mesmo constante nas diferentes perspectivas, a referida tríade se posiciona e se relaciona de forma diversa, a depender das concepções que embasam o processo. Se pautada em uma concepção não crítica de educação, estaria a professora da turma do 4.º ano aberta às indagações e às hipóteses dos alunos, preocupada com a retomada e a construção de sínteses? Seria o conteúdo a ser trabalhado proposto a partir do processo de investigação dos estudantes, mas alicerçado por aquilo que é definido curricularmente como importante? Estaria a professora aberta a modificações no programa escolar, adiantando assuntos e postergando temáticas?

Nas teorias não críticas, em geral, professor e aluno não estabelecem uma relação de parceria na construção do conhecimento. Mesmo diferenciada, também na propositura da Pedagogia Nova a parceria é limitada, ainda que pela tentativa de possibilitar a autonomia dos estudantes. Abreviadamente, poderíamos dizer: na Pedagogia Tradicional o Professor assume o papel de transmissor de conteúdos, na Pedagogia Tecnicista ele o transmite, mas tendo como foco a organização racional dos meios, e na Pedagogia Nova é coadjuvante no acesso aos conhecimentos pelos Alunos.

Embora as concepções que embasam as Pedagogias Tradicional, Tecnicista e Nova apresentem distinções fundamentais nos papéis do Professor (P), do Aluno (A) e do Conhecimento (C) no processo de ensino-aprendizagem em sala de aula, conforme ilustrado na Figura 2, poderíamos dizer que têm em comum o foco no interno à escola. Não consideram as influências e as relações externas, e, muitas vezes, tampouco a sala de aula, para pensar sua organização.

Figura 2
Relação Professor-Aluno-Conhecimento nas Pedagogias Não-Críticas.

Nas Teorias Críticas, diferentemente das não críticas, a relação entre Professor, Aluno e Conhecimento ganha nova configuração e remete a um olhar relacional, conforme ilustrado na Figura 2. O professor passa a ser parceiro do aluno na construção de determinado conhecimento e busca entender e agir para além do contexto específico da sala de aula e da escola, o que, infelizmente, não fica evidente no relato descrito. Mesmo a professora estando preocupada com a construção de sínteses e a observação dos objetivos postos, não é evidente se sua ação permite a reflexão crítica sobre as relações escola-sociedade, possibilitada pelos temas estudados: Estaria o protetor solar acessível a todos os cidadãos? Quais foram os dilemas e os embates que delimitaram o processo de definição cartográfica dos territórios? Estariam os povos indígenas brasileiros satisfeitos com a delimitação proposta para a nação? Como as relações políticas e comerciais influenciaram e influenciam a delimitação dos territórios? Etc.

A indagação das relações e a problematização do que aparentemente é natural e sem conflitos fazem parte de uma formação mais autônoma e crítica. Mesmo com diferenças importantes nas proposições elaboradas por diferentes autores, em dependência da abordagem teórica e da proposição metodológica admitidas, as tendências críticas assumem a importância da mediação do Professor (P) no processo de construção do Conhecimento (C) pelo Aluno (A), considerando a relação entre escola e sociedade, como ilustrado na Figura 3.

Figura 3
Relação Professor-Aluno-Conhecimento nas Pedagogias Críticas

A relação estabelecida nas diferentes concepções tem reflexo direto na ação do professor, já que este organizará seu trabalho em dependência de como vê seu papel e o significado de aprender e ensinar. Pensar a ação pedagógica vislumbrando o processo de ensino-aprendizagem implica, portanto, em mobilizar concepções que vão dando os limites e as possibilidades da ação, abarcando em si as concepções de sociedade, homem, escola e mundo, que nem sempre estão claramente postas, mas impactam as decisões tomadas, especialmente a forma como o professor planejará sua ação.

Limitados pelo relato e sem a possibilidade de compreender mais e melhor os temas e as abordagens dadas a eles pela professora e por seus alunos, fato é que nos parece inegável a beleza do desenrolar de acontecimentos narrados, mesmo que eles suscitem de forma justa a problematização de seus limites. Pensar sobre a organização do trabalho pedagógico revelado pela docente em seu relato permite trazer à tona sua potencialidade e, ao mesmo tempo, indagar sobre seus limites, indiciados no silenciamento do narrado.

Repensar a forma de abordagem dos conteúdos, assim como a dinâmica proposta em aula nos parece essencial. Evidencia-se no relato a compreensão da necessidade de horizontalidade na relação, assim como de protagonismo discente nas ações, ao mesmo tempo em que podemos inferir a necessidade de uma maior abertura à problemática social e à reflexão dos conteúdos. Não é qualquer tema ou assunto que leva de imediato à formação educativa crítica e ampla do ser humano. Não basta ser interessante e motivadora, a proposta didática precisa ter vínculo com a vida presente e futura de quem frequenta a escola, sob risco de não permitir uma aprendizagem duradoura e potencializadora de seres humanos com atuação social em seu meio. Não basta dar ao estudante espaço em aula, é preciso acompanhá-lo no protagonismo dos caminhos do conhecimento.

Claro que não sendo passível de isolamento, o trabalho docente é condicionado, ainda que não determinado – como lindamente desvela Paulo Freire (1996)Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa (23ª ed.). Paz e Terra. – pelos fatores externos e pelas condições objetivas em que se desenvolve. A reflexão na ação se faz aspecto essencial para o desenvolvimento de novos movimentos e a abertura a novas ações. O domínio dos conteúdos e das discussões político-pedagógicas pelos professores é aspecto imprescindível.

Todavia, seja pelas condições de profissionalização, pela organização e estrutura das escolas e dos sistemas ou pelas questões históricas, sociais, econômicas e culturais da sociedade e da população atendida pela escola, o trabalho docente é atividade de alto grau de complexidade, exigindo planejamento minucioso para ser coerente e potente. O que não deve ser confundido com o engessamento da ação, já que a predisposição ao acontecimento não se dá em detrimento do planejado e do domínio de conhecimentos historicamente produzidos, mas é possível de forma segura e produtiva exatamente por causa deles.

Freitas (1995)Freitas, L. C. (1995). Crítica da organização do trabalho pedagógico e da Didática (7ª ed.). Papirus., ao analisar a organização do trabalho docente e considerando toda a complexidade que a conforma, propõe analiticamente pensar sobre os componentes constituintes do processo a partir de uma visão mais dinâmica. O autor destaca os pares dialéticos “objetivo-avaliação” e “conteúdo-forma”, propondo-os como ligados de maneira inseparável, em que se influenciam e determinam mutuamente. É no todo constituído no planejamento posto em ação que se pode ter, potencialmente, uma organização de aula mais produtiva.

Nessa perspectiva, as decisões metodológicas dentro do planejamento são constituintes do processo de ensino-aprendizagem e estão intimamente ligadas aos objetivos e aos conteúdos, assim como inevitavelmente às formas de avaliação, presentes na ação docente. Orientada pelas concepções que a embasam, ainda que nem sempre se tenha consciência disso, sua proposição terá os contornos definidos a partir dessas e das condições objetivas de desenvolvimento do trabalho (Smolka & Laplane, 1993Smolka, A. L. B., & Laplane, A. L. F. (1993). O trabalho em sala de aula: Teorias para quê? Cadernos ESSE, 1(1), 79-82.). Daí a necessidade crucial de os professores refletirem e elucidarem sua visão de mundo, homem, sociedade, escola e ensino-aprendizagem e de conhecerem a realidade e as condições objetivas de seu trabalho, de forma a serem protagonistas na ação, conhecendo e definindo aonde desejam chegar.

Não cabe aqui o retorno à denúncia da ênfase dada, nas pedagogias Tecnicista e Nova, à dimensão metodológica do planejamento, em nome da adoção de instrumentos metodológicos, respectivamente, racionalmente eficientes ou mais atrativos e potencializadores de autonomia dos alunos, mas é importante destacar que nossa reflexão toma a perspectiva crítica na abordagem da questão. Nessa, ainda que a dimensão metodológica seja essencial à organização do trabalho pedagógico e vejamos com muito bons olhos o desenvolvimento de aula narrado pela professora do 4.º ano, tal dimensão só faz sentido relacionada aos objetivos educacionais, à eleição dos conteúdos e à retroalimentação dos processos de avaliação, dentro de uma ação voltada e comprometida com a realidade social e a formação de sujeitos críticos, de pensamento próprio.

A metodologia do trabalho docente, sem que descuidemos de seu par dialético constitutivo “conteúdo”, é dimensão estratégica para se pensar a forma de abordar os conteúdos dentro do processo de ensino-aprendizagem na busca por uma escola pública mais justa, com compromisso social de assumir a formação educativa de todos e cada um, em suas diferentes características e personalidades. Estariam expostos e predispostos da mesma forma à construção de conhecimentos importantes para sua formação os estudantes da turma de 4.º ano que vivenciaram a sequência de acontecimentos relatada pela docente e uma outra turma que seguiu o livro didático e como tarefa primordial cumpria exercícios sobre os temas tratados pelo livro? Por outro lado, os conteúdos tratados pela docente foram adequadamente propostos e abordados de forma a permitir aos alunos a apropriação do conhecimento historicamente produzido e essencial para sua instrumentalização enquanto sujeitos críticos de pensamento próprio? Pensamos que como parte, e não fim da organização do trabalho pedagógico, a metodologia ocupa lugar importante na reflexão sobre a aula. Sua delimitação coerente e pensada na especificidade da infância, sem se descuidar dos conteúdos que lhe conferem forma e limite, nos parece dimensão essencial para a garantia de melhores processos escolares.

Paro (2007, p. 14)Paro, V. (2007). Qualidade do ensino: a contribuição dos pais (3.ª ed.). Xamã. defende que aprender é resultado de um ato de vontade que só o sujeito pode ter. “Se o aluno não quiser, o aprendizado não se dará. Ora, o ‘querer aprender’ [ênfase no original] é também um valor cultivado historicamente pelo homem e, portanto, um conteúdo cultural que precisa ser apropriado pelas novas gerações, por meio do processo educativo”. Não avançaremos em nossas metodologias de ensino sem considerar esta premissa: “o aluno só aprende se quiser”, e o “querer” é valor cultivado. Cabe aos professores, portanto, também se preocuparem com formas que fomentem nos estudantes essa disposição por aprender, pensando e propondo ações que os levem a querer aprender ou, no que tange às crianças, que os levem a continuar querendo aprender.

O “querer aprender” tem uma relação direta com “o que se aprende”, e não só com “o como se aprende”, como bem postula Snyders (1996)Snyders, G. (1996). Alunos felizes: reflexões sobre a alegria na escola a partir de textos iterários (2.ª ed.). Paz e Terra. , ao defender a alegria na escola, assumindo a centralidade dos conhecimentos historicamente produzidos como essencial. O que se quer aprender necessariamente estará ligado à abrangência e à instrumentalização de atuação para a vida. Assim, conteúdos e metodologia, como partes indissociáveis na organização do trabalho pedagógico, têm papel importante. E, como conteúdo, não limitamos nosso olhar apenas aos chamados conhecimentos disciplinares, mas também às habilidades para o aprender, aos valores e às problemáticas que interessam, ao iniciar e finalizar cada processo de aprendizagem e os elementos importantes à formação crítica dos estudantes.

As escolhas de quais conteúdos podem despertar o “querer aprender”, assim como a forma como eles serão propostos e encaminhados, precisarão ser bem delimitadas e ajudarão o professor em sua própria constituição como profissional... Se o currículo tiver essa abertura e a metodologia favorecer o trabalho com essas “diferenças na abordagem”, potencializamos a constituição de um docente que produz o “querer aprender” de seus alunos.

Shulman (2005)Shulman, L. (2005). Conocimiento y enseñanza: fundamentos de la nueva reforma. Revista de Currículum y Formacíon del Profesorado, 9(2), 1-30. http://www.ugr.es/local/recfpro/Rev92ART1.pdf.
http://www.ugr.es/local/recfpro/Rev92ART...
defende que o trabalho docente implica um campo de conhecimentos que possa ser sistematizado e comunicado a outros. Para ele, o professor deve ter domínio do conteúdo em três níveis: conhecimento do conteúdo em si, conhecimento curricular do conteúdo e conhecimento pedagógico do conteúdo. Esses diferentes níveis implicam em decisões não somente acerca do que comporá o planejamento em termos de conteúdos para um determinado fim (objetivo), como também acerca das melhores formas de abordá-los. Ao assumir os diferentes conteúdos, haverá estratégias diversificadas e apropriadas à função que desempenham na cultura e na vida dos estudantes, e as decisões metodológicas são essenciais para que sua apropriação seja efetivada.

Partindo do pressuposto de que as concepções que informam a ação docente estão elucidadas, o objetivo claramente demarcado e os conteúdos relativos àquele objetivo seriamente elegidos, faz-se necessário desenhar metodologicamente um plano de ação para que se efetive o processo de ensino-aprendizagem, tendo como vislumbre as formas mais adequadas ao favorecimento da aprendizagem pelos alunos, considerando o que propõe Paro (2007)Paro, V. (2007). Qualidade do ensino: a contribuição dos pais (3.ª ed.). Xamã. – que é tarefa do professor levar o aluno a querer aprender. Como não existe um único caminho para se chegar a um mesmo objetivo e tampouco uma única forma de caminhar, é essencial analisar as condições concretas que se tem, em relação tanto ao reconhecimento do grupo de estudantes com que se trabalha quanto aos recursos materiais e de tempo e espaço que estão disponíveis ou passíveis de operacionalização. Muitas vezes se peca nas escolhas das trajetórias metodológicas, por não se levarem em conta as características do grupo ou a disponibilidade de recursos que se têm para efetivação do planejado.

Crianças urbanas da classe alta e média estarão mais predispostas a alguns conhecimentos e terão algumas habilidades diferentes de crianças de periferia das cidades e, assim também, serão diferentes, se viverem em zonas mais rurais, de uma ou de outra classe social. Essas diferenças constitutivas, observadas em um grupo e em outro, não serão menos importantes no processo de ensino-aprendizagem.

As crianças, necessariamente, precisam ser avaliadas a priori em cada ano escolar, para que o professor conheça com quem trabalha e como estão seus alunos no desenvolvimento de sua aprendizagem. Não educamos quem não conhecemos. Nessa grande complexidade do ser humano e de suas relações sociais, para fazer os elos possíveis e as escolhas desejáveis, é essencial conhecermos o grupo com o qual trabalhamos.

As classes sociais imprimem habilidades e predisposições às aprendizagens escolares diferentes, nem mais nem menos importantes uma em relação às outras, mas que, se assumidas como iguais, torna-se impossível empreender o “querer aprender” e a aprendizagem efetiva para todos. Os docentes se frustram em sua busca constante de instrumentos poderosos que sirvam para quaisquer alunos e em quaisquer situações: a famigerada “receita do bolo”. Muitas vezes, equivocadamente e vencidos pelo desânimo dos insucessos do trabalho padronizado e voltado para um modelo específico de aluno, acabam se convencendo de que as crianças das classes populares aprendem menos e com maior dificuldade do que aquelas das classes média e alta.

Assumir toda essa complexidade ao se pensar a organização do trabalho pedagógico é essencial. Como destaca Veiga (2008, p. 269)Veiga, I. P. A. (2008). Organização didática da aula: um projeto colaborativo de ação imediata. In I. P. A. Veiga, Aula: gênese, dimensões, princípios e práticas. Papirus., “a aula é constituída de um sistema complexo de significados, de relações e intercâmbios que ocorrem num cenário social que define demandas da aprendizagem”. Objetivo, conteúdo, metodologia e avaliação, perpassados pelo anunciado por Veiga (2008)Veiga, I. P. A. (2008). Organização didática da aula: um projeto colaborativo de ação imediata. In I. P. A. Veiga, Aula: gênese, dimensões, princípios e práticas. Papirus., devem ser pensados articuladamente e, preferencialmente, de forma coletiva.

Imbernón (2011)Imbernón, F. (2011). Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza (9.ª ed.). Cortez. destaca que, embora ensinar sempre tenha sido complexo, considerando as mudanças sociais, econômicas e tecnológicas nos dias de hoje, essa tarefa passou a ser ainda mais difícil. Isso é verdade, principalmente se incluirmos, na equação proposta pelo autor, o drama vivido pelo professor que se divide entre planejar seu trabalho a partir do reconhecimento dos avanços na discussão educacional ou a partir da necessidade de garantir o aumento nos índices das avaliações externas em larga escala.

De um lado, está a análise consolidada no campo pedagógico de que as peculiaridades do desenvolvimento infantil e o reconhecimento da escola como espaço das diversas dimensões do humano exigem uma organização do trabalho docente que contemple mais que o desenvolvimento cognitivo dos estudantes e abarque outras formas de trabalho, sendo a expressão artística aspecto recorrentemente citado como essencial. De outro, está a cobrança por resultados medidos sobretudo via testes padronizados que se voltam a uma matriz de competências e habilidades específica e minimizadora em relação à matriz curricular da escola.

Tomar decisões e, se for a opção do professor, fazer frente à lógica imposta pela perspectiva gerencialista, assumida atualmente pelo Estado, exige coragem e concepções firmes. Como cada escola tem um jeito especial e específico de conduzir o seu cotidiano e sua organização, assim como de se posicionar e responder às questões e aos desafios apresentados, é essencial que o professor se fortaleça nesse coletivo para que suas decisões e ações não estejam isoladas e, consequentemente, tenham maior abrangência no processo de formação do estudante. Entretanto, isso exige também a busca pela parceria no coletivo da escola. Não consta do relato, mas provavelmente a escola na qual o narrado se desenvolve é aberta à forma como a professora organiza sua aula e, quiçá, pudesse ser parceira na construção desse trabalho.

Metodologicamente, propostas que se ancoram em uma linha pedagógica assumida pela escola têm como vantagem a partilha de decisões, concepções e ações, o que favorece sobremaneira o trabalho desenvolvido. Dentre outras e com fundamentação muito diversa, poderíamos citar as chamadas escolas construtivistas, freineitianas, montessorianas, de perspectiva histórico-crítica etc. Aspecto, todavia, que não inviabiliza o trabalho coletivo em escolas sem uma perspectiva claramente defendida, mas com projeto político-pedagógico negociado, construído e assumido pelo coletivo da escola.

Tal projeto político-pedagógico, a ser construído coletivamente, deve ter relação de coerência entre todos que trabalham, e é compromisso de cada professor manter a relação dialógica e de confiança entre seus pares, para que haja formação do coletivo, o que influirá de modo decisivo no planejamento das aulas e na formação de seus estudantes. Não basta fecharmos a porta de nossas salas de aula e trabalharmos, é essencial que a formação seja pensada em suas diferentes dimensões e assumida pela escola como um todo.

Mesmo que muitas vezes seja inevitável, o trabalho isolado do professor na sala de aula traz maior complexidade à ação e inviabiliza vários processos. Não permite trocas ou organizações coletivas de instrumentos e materiais, nem tampouco mecanismos que facilitem a organização do trabalho, como espaços, ações fora da sala de aula e horários. Não permite processos de reflexão partilhada, essenciais no cotidiano do trabalho docente, e não favorece uma formação mais integral dos envolvidos.

2. Pensando a constituição do processo de “aula”: a dimensão metodológica da aula

Presente no imaginário popular, pensar em aula leva à imagem do espaço da sala de aula com professor, alunos e recursos didáticos para o trabalho com conteúdos disciplinares (Sanfelice, 2014Sanfelice, J. L. (2014). Sala de aula: intervenção no real. In R. Moraes (Org.), Sala de aula: que espaço é esse? (22.ª ed.). Papirus.). Todavia, ela poderia ser melhor representada, se incluíssemos movimento nessa imagem mental e diversificássemos as possibilidades de ocupação do espaço. Compreendida como o desenrolar de acontecimentos envolvendo esses sujeitos, recursos e conteúdos, mas manifestando-se em formas organizativas múltiplas, a aula não comporta apenas um formato.

Para além da observação do relato da professora do 4.º ano que trouxemos para disparar nossa reflexão, ao analisarmos os relatos de estagiários do curso de Pedagogia de uma universidade pública paulista nos anos de 2015 e 2016 em duas disciplinas de estágio, observamos diversas formas organizativas de aula. Mesmo frequente, a famigerada aula expositiva com cópia e resolução de atividades, sem indícios de um planejamento contextual que considere os sujeitos e a realidade, abriu espaço para outros relatos.

Foi recorrente a descrição, pelos professores em formação, de diversificadas manifestações metodológicas nas aulas que acompanharam como estagiários. Às vezes mais focadas na forma, outras demasiadamente preocupadas com o conteúdo disciplinar hierárquico; algumas visivelmente comprometidas com o grupo e a realidade específica, outras reproduzindo modelos retirados de manuais e/ou sites – verdade é que já não podemos tão uniformemente rotular a aula a partir de uma única forma organizativa.

Seja pela diversificação dos espaços e tempos, seja pela adoção de recursos didáticos diferenciados e múltiplos, a dimensão metodológica da aula, aspecto mais visível aos observadores externos, tem se apresentado em diferentes configurações e permitido aos estagiários refletirem sobre as potencialidades e os limites que carrega. As diversas atividades, os diferentes conteúdos mobilizados, a organização espaço-temporal na sala de aula e em outros espaços da escola, e a forma de se relacionar com os estudantes, vão permitindo captar modos diferentes de organização do trabalho pedagógico para a efetivação dos processos de ensino-aprendizagem.

Ao procurarmos eleger algumas das manifestações relatadas pelos estagiários como animadoras, vimos surgir traços gerais na postura dos professores anfitriões que, exceto pela ausência de relato de tentativa de parceria, interessantemente também estão presentes no relato da professora do 4.º ano:

  • Faziam referência ao planejamento (seja em comentários com o estagiário, seja nas ligações feitas com outras atividades e com os conteúdos planejados ou previstos).

  • Demonstravam preocupação com os estudantes, o que pensavam, como se sentiam e o que sabiam sobre o assunto tratado (incluindo, para alguns relatos, a visível mediação do professor em momentos de trabalho dos alunos e feedbacks acerca de seu processo de aprendizagem).

  • Buscavam fazer com que os estudantes fossem ativos (proposição de atividades com atuação dos alunos).

  • Abriam espaço ao diálogo, permitindo trocas entre eles e os alunos, mas também entre os próprios alunos.

  • Relacionavam as disciplinas de forma interdisciplinar (ainda que algumas vezes apenas justapondo os conteúdos).

  • Procuravam parceria com outros profissionais da escola (recorrentemente da disciplina de arte ou docente do mesmo ano escolar).

  • Propunham diversas formas de organização espacial: dentro da própria sala, com mudança na disposição das carteiras, ou fora dela, especialmente pátio, biblioteca e laboratório de informática.

Reconhecendo a ligação entre a dimensão metodológica do trabalho pedagógico e a definição dos fins em articulação direta com as concepções do professor, um planejamento potente não pode se descuidar dos meios de efetivação do objetivado e dos conteúdos que lhe dão organicidade. As características observadas nos relatos dos estagiários permitem inferir que a dimensão metodológica deve contemplar, para além da postura dialógica e da relação horizontal entre professores e alunos, um tratamento sério dos conteúdos e a proposição de atividades, ponderando a pertinência de certa sequência didática, que utilize recursos e espaços diversificados, tendo como foco o processo de desenvolvimento dos estudantes.

Forma e conteúdo são partes de uma mesma dimensão, sem a qual não haverá a formação do ser humano crítico de pensamento próprio. Os conhecimentos imediatos e cotidianos não devem ser desprezados, mas são essenciais os conhecimentos historicamente construídos como constituintes do planejamento pedagógico do professor. O conhecimento cotidiano pode ser o ponto de partida para o trabalho e deve constituir as escolhas metodológicas da aula, mas nunca deve ser visto como ponto de chegada. Devemos partir do particular, por ser concreto, sem simplificá-lo, de forma a descortinar a realidade e entendê-la por diversos ângulos, indo além das relações imediatamente apreendidas.

O entusiasmo de propostas que encantam as crianças e a professora, mas que não levam ao encontro efetivo com o conhecimento historicamente construído deve abrir espaço a propostas capazes de encantar, ao mesmo tempo que formar efetivamente, abarcando conteúdos potentes e essenciais à formação humana. Mais que uma forma bonita e prazerosa de utilizarmos o tempo da aula, faz-se necessário que sejamos capazes de profissionalmente organizar nosso trabalho de forma bonita, prazerosa e formativamente potente.

Nos relatos e nas reflexões das turmas de estágio, as experiências de quatro estudantes em salas de aula em que os professores desenvolveram projetos que abarcavam diversas atividades, em diferentes momentos e espaços, foram as mais elogiadas e positivamente avaliadas, um deles incluindo uma visita ao zoológico para observação e classificação dos animais, segundo a taxionomia estudada em sala. Porém, as experiências com diferentes propostas de trabalho, como a produção de texto coletivo, a utilização e a construção de jogos, especialmente envolvendo a matemática e a linguagem, e a elaboração de “livro” com os textos produzidos pelos estudantes no processo de reconto de uma história infantil, também mereceram destaque.

Nas diferentes estratégias assumidas pelos professores a partir do lugar que ocupam em sala de aula, parecem emergir modos outros de se fazer a aula e de permitir que os acontecimentos contaminem o planejamento, sem perder de vista os conteúdos e a organicidade curricular. Oxalá todos fossem dentro de um planejamento bem construído e com intencionalidade demarcada pela reflexão informada da prática, tomando a realidade na construção de conexões com as questões político-sociais e tendo clareza acerca das concepções que os sustentam.

Não sejamos ingênuos quanto a isso, porém importa que possamos alimentar um pouco nosso otimismo pedagógico, pensando não apenas que há manifestações potentes nas escolas, mas também que a formação inicial que buscamos construir com nossos futuros professores permitirá multiplicar tais experiências. Mesmo em tempos difíceis como o que vivemos hoje, de gerencialismo na educação e guinada conservadora na sociedade, sejamos criativos na construção pedagógica de nossa ação e firmes na formação teórico-política dos professores.

E aqui é inevitável pensarmos na potencialidade de nosso inacabamento professoral criativo. Pautados pela compreensão do inacabamento humano posta por Freire (1996)Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa (23ª ed.). Paz e Terra., reconhecemos o professor como profissional inacabado que, dialeticamente, tem em seu inacabamento seu maior potencial criativo para se tornar verdadeiramente professor. Ser professor só se realiza, e sempre provisoriamente, na relação com os estudantes e na vivência dos caminhos da aula.

Como registrado na frase atribuída a Bertolt Brecht, “perante um obstáculo, a linha mais curta entre dois pontos pode ser a curva”. É a partir dos “obstáculos” do caminho que vamos construindo criativamente novas formas de caminhar, as quais muitas vezes exigem que façamos curvas. É no potencial criativo do professor na escola, dos professores em formação e nosso como formadores de professores que podemos alimentar esse otimismo pedagógico de que fazer curvas é possível.

Ao falar do inacabamento humano, Paulo Freire (1996)Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa (23ª ed.). Paz e Terra. permite que pensemos no inacabamento professoral como o maior potencial que temos de nos tornarmos inteiramente professores. Em nosso inacabamento professoral, buscando o utópico “acabamento” para nos tornarmos inteiramente professores, vamos construindo criativamente novas formas de ser, estar e nos relacionar na escola e com os estudantes, criando novas curvas para desviar-nos dos obstáculos que não sejam possíveis de derrubar imediatamente.

Na relação com os estudantes a partir das condições objetivas que temos e tendo claro aonde queremos chegar, vamos construindo teórico-metodologicamente nossa ação. A dimensão metodológica da aula não finaliza em si sua constituição, pois ao seu lado e de forma inseparável está o conteúdo que a conforma. Pensar essa dimensão exige vê-la como constitutiva da organização do trabalho pedagógico como um todo, o qual, por sua vez, deve sempre ser pensado em sua relação com a escola e com a sociedade.

Últimas palavras

“Não, não tenho caminho novo. O que tenho de novo é o jeito de caminhar”. Aprendi (o caminho me ensinou) a caminhar cantando como convém a mim e aos que vão comigo. Pois já não vou mais sozinho.

(Thiago de Mello, 2009Mello, T. (2009) A vida verdadeira. In T. Mello, Melhores poemas de Thiago de Mello (Marcos Frederico Krüger, Sel.). Global.)

A professora do 4.º ano não é um exemplo de como fazer a aula – é, por outro lado, um exemplo de como se abrir para o inesperado, sem perder de vista aonde se pretende chegar. É um exemplo de beleza inacabada e imperfeita, mas criativamente constitutiva da tentativa de acabamento professoral. A epígrafe nos lembra que o essencial é caminhar de forma diferente. No inacabamento professoral criativo, podemos ressignificar formas e reeditar caminhos, desde que com clareza fundamental de aonde pretendemos chegar, a partir de quais princípios, junto com quem, com quais instrumentais disponíveis e visando desenvolver quais conteúdos historicamente produzidos.

O jeito?!? Esse tem mesmo que ser construído durante o percurso e a partir da definição do que é necessário construir. Não há planejamento comprometido realmente com a realidade e com os sujeitos participantes do processo que não reserve espaço para o acontecimento, o imprevisível, o inesperado, o incontornável... Temos vários instrumentos que nos ajudam, já criados e utilizados de diferentes maneiras por tantos outros antes de nós. Conhecer e partilhar as experiências e as propostas é essencial, não como modelo, mas como ferramental.

Por outro lado, também não é possível pensar na forma sem delimitar seu conteúdo constitutivo. É na segurança de quem improvisa, sem cair no espontaneísmo, que podemos tornar nosso planejamento vivo e utilizar produtivamente as ferramentas que temos. Saber aonde se deseja chegar e ter segurança a partir de um conhecimento competente dos conhecimentos curriculares e pedagógicos envolvidos na ação permite essa improvisação. Como o dançarino que improvisa porque domina os passos e pode ousar com eles, tendo os conhecimentos necessários para não sair do compasso, o professor será capaz de aproveitar o inesperado, o acontecimento, para construir um jeito próprio de caminhar e partilhado com seus estudantes.

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    Nome fictício inspirado no personagem do livro infantojuvenil Ei! Tem alguém aí?, de Jostein Gaarder, o qual nos ajuda a compreender a potencialidade das perguntas.

Referências

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Editado por

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Editor responsável: Adriana Varani. https://orcid.org/0000-0002-7480-4998

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Jan 2020
  • Aceito
    28 Maio 2020
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