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A aprendizagem ao longo da vida e a infinita reinvenção profissional 1 1 Editor responsável: Antônio Carlos Rodrigues de Amorim https://orcid.org/0000-0002-0323-9207 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Sara Pereira (Tikinet) revisao@tikinet.com.br

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar como os sujeitos trabalhadores são direcionados para a adaptação e renovação por meio da aprendizagem ao longo da vida. A empiria é constituída por matérias do jornal Valor Econômico e quatro entrevistas. Já a análise apresenta três mecanismos: direcionamento dos sujeitos para uma busca permanente por atualizações; necessidade de adaptações intermináveis; e encaminhamento dos sujeitos para uma competição e individualização desenfreada. As considerações finais apontam que, por estarem em guerra consigo mesmos e com os outros, tais sujeitos sentem que precisam, de alguma forma, estar sempre atrás de uma nova habilidade que lhes proporcione algum diferencial e produza trabalhabilidade.

Palavras-chave
aprendizagem ao longo da vida; governamentalidade; adaptabilidade

Abstract

The objective of the article is to analyze how working subjects are directed toward adaptation and renewal through lifelong learning. The empirical material consists of articles from the newspaper Valor Econômico and four interviews. The analysis presents three mechanisms: directing the subjects to a permanent search for updates; the need for endless adaptations; and directing the subjects to an unrestrained competition and individualization. The final considerations point out that, for being at war with themselves and with others, these subjects feel that they need, somehow, to be always after a new ability that will give them some differential and produce workability.

Keywords
lifelong learning; governmentality; adaptability

Introdução

A educação e o trabalho passam por diversas e rápidas mudanças, que se desdobram em efeitos sobre as subjetividades. Variadas discursividades recriam realidades e consolidam verdades, sendo uma dessas a necessidade de uma aprendizagem flexível, ininterrupta e individualizada como estratégia para a manutenção das condições de trabalhabilidade. A aprendizagem ao longo da vida passou a ser de grande importância e aceitação no decorrer do século XXI nos países-membros da União Europeia e em diversas organizações, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (Nicoll & Fejes, 2008Nicoll, K., & Fejes, A. (2008). Mobilizing Foucault in studies of lifelong learning. In A. Fejes, & K. Nicoll (orgs.), Foucault and lifelong learning: governing the subject (pp. 22-39). Routledge.) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) (Ireland, 2013Ireland, T. D. (2013). Revisitando a Confintea: Sessenta anos de defesa e promoção da educação de adultos. Revista Brasileira de Educação de Jovens e Adultos, 1(1), 14-28. https://www.revistas.uneb.br/index.php/educajovenseadultos/article/view/241
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).

No Brasil, a concepção de aprendizagem ao longo da vida tem sido disseminada desde o fim da década de 1990 e início dos anos 2000 (D’Avila, 2012D’Avila, G. S. (2012). Do berço ao túmulo: A estratégia de educação ao longo da vida na educação de jovens e adultos para a sociabilidade capitalista [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina]. Repositório Institucional da UFSC. ,https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/122566
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), tornando-se um direito constitucional em 2020. O objetivo deste artigo é analisar como os trabalhadores são direcionados para a adaptação e a reinvenção, por meio dessa aprendizagem inacabável. Mais especificamente, pretendemos analisar as táticas mobilizadas em um periódico comercial para convencer os leitores a se engajarem nesses processos e a articulação com o que sujeitos trabalhadores enunciam sobre sua própria trajetória formativa.

A análise será desenvolvida a partir de dois conjuntos de materiais empíricos. O primeiro é composto por matérias em formato digital da seção Carreira do Jornal Valor Econômico, uma publicação de ampla circulação entre os gestores de empresas brasileiras, dos anos de 2018 até 2022. Essa escolha foi feita com base em Camozzato (2014)Camozzato, V. C. (2014). Pedagogias do presente. Educação & Realidade, 39(2), 573-593. http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/34268/28870
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, assumindo-se que os prognósticos do jornalismo econômico fabricam contextos que funcionam como verdades, provocando mudanças no mercado, em setores da economia e no posicionamento dos sujeitos. O segundo consiste em quatro entrevistas, realizadas a partir do registro na Comissão Nacional de Ética em Pesquisas, sob o número 5.207.233 (20/01/2022). Para elas, foram selecionados dois homens e duas mulheres, com no mínimo graduação, atuantes no mercado de trabalho e engajados em programas de formação continuada. Em relação à atuação profissional, o grupo é constituído por: 1. Jaílson3 3 Os nomes utilizados foram escolhidos pelos entrevistados, podendo ou não corresponder com seus nomes verdadeiros. : um ex-funcionário de uma companhia de petróleo e gás, que hoje atua como pastor; 2. Daenerys: uma professora de Educação Infantil; 3. Hélkia: uma empresária da área de marketing; e 3. Fernando: um ex-profissional de Tecnologia da Informação (TI), que hoje é advogado.

Na próxima seção, desenvolvemos algumas problematizações sobre aprendizagem ao longo da vida. Em seguida, analisamos as matérias do jornal Valor Econômico e as entrevistas, mostrando a convergência das concepções aí presentes. Devido à extensa quantidade de matérias produzidas pelo jornal, as análises somente apresentarão elementos de algumas dessas. As considerações finais encerram o artigo.

Aprendizagem ao longo da vida

De acordo com Simons e Masschelein (2011)Simons, M., & Masschelein, J. (2011). Sociedade da aprendizagem e governamentalidade: Uma introdução. Currículo sem Fronteiras, 11(1), 121-136. Recuperado de https://www.curriculosemfronteiras.org/vol11iss1articles/simons-masschelein.pdf
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, vivemos em uma sociedade da aprendizagem. Esse contexto tem levado os sujeitos ao entendimento de que seu futuro depende do seu percurso de aprendizagem. Na sociedade de aprendizagem, cada um é individualmente responsável por se manter aprendendo. O termo utilizado por autores como Olsson e Petersson (2008)Olsson, U., & Petersson, K. (2008). The operation of knowledge and construction of the lifelong learning subject. In A. Fejes, & K. Nicoll (orgs.), Foucault and lifelong learning: Governing the subject (pp. 61-73). Routledge., bem como pela OCDE e Unesco, é lifelong learning, que costuma ser traduzido como “aprendizagem ao longo da vida”. De acordo com Olssen (2008)Olssen, M. (2008). Understanding the mechanisms of neoliberal control: Lifelong learning, flexibility and knowledge capitalism. In A. Fejes, & K. Nicoll (orgs.), Foucault and lifelong learning: Governing the subject(pp. 34-47). Routledge., “conhecimento” vem sendo substituído por “aprendizagem”, ou seja, um objetivo por um processo. Nesse sentido, entendemos que a aprendizagem ao longo da vida está mais orientada para a transformação das subjetividades do que para a aquisição de novos conhecimentos.

Nicoll e Fejes (2008)Fejes, A. (2008). Historicizing the lifelong learner: Governmentality and neoliberal rule. In A. Fejes, & K. Nicoll (Orgs.), Foucault and lifelong learning: Governing the subject (pp. 87-99). Routledge. indicam que o tema da aprendizagem ao longo da vida vem sendo tomado como uma forma de superação dos desafios individuais do mundo contemporâneo em relação à geração de trabalho e renda. Entidades como a União Europeia e a OCDE a defendem como “uma política importante que permite a competitividade econômica e empreendedora, a (auto)empregabilidade, a realização individual e o autodesenvolvimento” (Formicuzzi et al. 2016Formicuzzi, M., Oliveira, J. G., Favretto, G., Cubico, S, Ardolino, P., & Ferrari, A. (2016). Gênese e gestão de um processo formativo ao empreendedorismo: Desenvolvimento, avaliação e validação. Revista Pedagógica, 18(38), 52-70. https://doi.org/10.22196/rp.v18i38.3386
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, p. 52). A aprendizagem ao longo da vida tem sido inserida dentro das políticas nacionais e internacionais como “uma verdade, como uma resposta necessária a um ritmo crescente de mudanças, às pressões econômicas e sociais da globalização e à incerteza sobre o futuro” (Nicoll & Fejes, 2008Fejes, A. (2008). Historicizing the lifelong learner: Governmentality and neoliberal rule. In A. Fejes, & K. Nicoll (Orgs.), Foucault and lifelong learning: Governing the subject (pp. 87-99). Routledge., p. 1, tradução nossa).

Para Fejes (2008)Fejes, A. (2008). Historicizing the lifelong learner: Governmentality and neoliberal rule. In A. Fejes, & K. Nicoll (Orgs.), Foucault and lifelong learning: Governing the subject (pp. 87-99). Routledge., os discursos sobre a aprendizagem ao longo da vida se constituem como uma maneira dos indivíduos alcançarem seus objetivos. O autor utiliza o conceito foucaultiano de governamentalidade como lente teórico-metodológica para analisar a aprendizagem ao longo da vida, ou, mais precisamente, o conceito de governamentalidade neoliberal. No curso Nascimento da Biopolítica, ministrado em 1979, Foucault (2010, p. 92) trata a governamentalidade como uma arte de governar, analisando “a maneira como se estabeleceu o domínio da prática de governação, os seus diferentes objetivos, as suas regras gerais e os seus objetivos de conjunto a fim de governar da melhor forma possível” (Foucault, 2010Foucault, M. (2010). Nascimento da biopolítica. Edições 70., p. 26). Com isso, Foucault avança em suas investigações, identificando uma nova razão governamental moderna autolimitada, ou seja, regulada pela economia política, que irá funcionar a partir do século XVIII, à medida que se consolida o liberalismo.

O autor ainda discute uma inflexão da governamentalidade liberal do século XX em direção de uma governamentalidade neoliberal, que tem como princípio de inteligibilidade a concorrência e está voltada para a produção de sujeitos empresários de si. Esse deve ser o protagonista de seu futuro, fazendo crescer seu capital humano, e, para isso, torna-se responsável por assumir os riscos que daí possam advir, adequando-se à concepção neoliberal de individualização como política social. “Em suma, não se trata de assegurar aos indivíduos uma cobertura social dos riscos, mas de lhes dar uma espécie de espaço econômico no interior do qual podem assumir e enfrentar riscos” (Foucault, 2010Foucault, M. (2010). Nascimento da biopolítica. Edições 70., p. 188). Entendemos que se a produção de capital humano, constituído por destrezas individuais que permitem o sujeito auferir renda do trabalho, está estreitamente ligada com a educação, a aprendizagem ao longo da vida deve ser tomada pelos sujeitos como uma espécie de investimento contínuo, tornando a si mesmo um ativo valioso e de alto retorno.

Olssen (2008)Olssen, M. (2008). Understanding the mechanisms of neoliberal control: Lifelong learning, flexibility and knowledge capitalism. In A. Fejes, & K. Nicoll (orgs.), Foucault and lifelong learning: Governing the subject(pp. 34-47). Routledge. destaca que, na linha dos estudos foucaultianos, a aprendizagem ao longo da vida se constitui como uma nova tecnologia de poder, sendo componente dos múltiplos mecanismos de controle que operam na sociedade neoliberal. “Nesse sentido, a aprendizagem ao longo da vida é um discurso de mercado que orienta a educação para a sociedade empresarial, na qual o aprendiz se torna um empreendedor de si mesmo” (Olssen, 2008Olssen, M. (2008). Understanding the mechanisms of neoliberal control: Lifelong learning, flexibility and knowledge capitalism. In A. Fejes, & K. Nicoll (orgs.), Foucault and lifelong learning: Governing the subject(pp. 34-47). Routledge., p. 41, tradução nossa). Trata-se de um projeto de sociedade no qual a aprendizagem ocupa um papel central, posicionando os indivíduos de tal modo que eles não possam passar pela vida sem participar da escolarização de uma maneira ou de outra. Zackrisson e Assarsson (2008)Zackrisson, K. S., & Assarsson, L. (2008). Adult learner identities under construction. In A. Fejes, & K. Nicoll (Orgs.), Foucault and lifelong learning: Governing the subject (pp. 114-125). Routledge. afirmam que se torna cada vez mais improvável não aderir a esse imperativo de processo de aprendizagem infindável. As grandes vantagens e benefícios retratados nos discursos e políticas tornam difíceis as críticas e problematizações sobre o que está sendo oferecido ou que tipo de aprendizagem é essa. “Em outras palavras, quem pode dizer ‘não, obrigado’ para participar da aprendizagem ao longo da vida?” (Zackrisson & Assarsson, 2008Zackrisson, K. S., & Assarsson, L. (2008). Adult learner identities under construction. In A. Fejes, & K. Nicoll (Orgs.), Foucault and lifelong learning: Governing the subject (pp. 114-125). Routledge., p. 115, tradução nossa).

Nessa perspectiva, assume-se que o futuro do indivíduo dependerá das escolhas de aprendizagem que ele fará e que sua emancipação dependerá dele próprio, não podendo culpar ninguém a não ser a si mesmo pelos percalços nesse processo. Trata-se do ideal de um sujeito com autonomia, flexível, empreendedor e independente, construtor voluntário de sua carreira e responsável pela atualização de suas competências e aquisição de habilidades para ter o seu lugar na sociedade. Um sujeito que não depende de políticas públicas, repudiando todo tipo de ação estatal, pois a justiça social é substituída por meritocracia. Tal ideal parece ser o propagado pelas matérias do jornal Valor Econômico e constituir os sujeitos pesquisados, conforme as análises que apresentaremos na próxima seção.

Você precisa se reinventar continuamente

Na atualidade, a sensação de responsabilidade por sua situação persegue muitas pessoas sem trabalho ou com baixa renda, que não percebem as causas estruturais dos seus problemas. A saída estaria em centros de treinamentos que, supostamente, proporcionam uma formação rápida, ou em uma “reciclagem profissional”. Isso tem se tornado cada vez mais comum, uma vez que existe a promessa de que, com essas formações, elas terão uma chance de encontrar luz no fim do túnel. Dessa forma, a adaptação e a renovação exigida dessas pessoas estão relacionadas com as possibilidades de sua inclusão no jogo do mercado. Isto é, “ser cidadão da sociedade da aprendizagem significa não apenas ser criativo e querer participar, mas, de modo geral, demanda algo mais, uma disposição para investir com vistas a um retorno futuro, i.e., subjugar-se a um permanente tribunal econômico” (Simons & Masschelein, 2011Simons, M., & Masschelein, J. (2011). Sociedade da aprendizagem e governamentalidade: Uma introdução. Currículo sem Fronteiras, 11(1), 121-136. Recuperado de https://www.curriculosemfronteiras.org/vol11iss1articles/simons-masschelein.pdf
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, p. 130).

As análises que apresentamos nas próximas seções mostram três mecanismos no processo de produção de subjetividades, que resultaram em três focos de análise: o primeiro se refere ao imperativo de uma busca desenfreada por atualizações; o segundo destaca a necessidade de adaptações intermináveis; e, por fim, o terceiro mostra o encaminhamento dos sujeitos para uma competição e individualização desenfreada.

Busca desenfreada de atualizações

As matérias do Jornal Valor Econômico operam uma estratégia de governamento que direciona os sujeitos para uma incessante busca de opções formativas ou certificações. Os argumentos atuam no sentido de que “aprender constantemente é primordial hoje em dia” (Barros, 2021Barros, F. (2021, 28 de novembro). As profissões mais demandadas para 2022. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2021/11/28/as-profissoes-mais-demandadas-para-2022.ghtml
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), “a reflexão e o autoconhecimento são fundamentais para qualquer processo relacionado à carreira” (Esteves, 2022Esteves, S. (2022, 26 de janeiro). Quando vale a pena conciliar trabalho com uma nova graduação?. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/diva-executivo/post/2022/01/quando-vale-a-pena-conciliar-trabalho-com-uma-nova-graduacao-sembarreira.ghtml
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), “não dá mais para encerrar os estudos na faculdade”, “o conhecimento precisa ser adquirido ao longo de toda a carreira”, “não é preciso fazer cursos de longa duração” (Barros, 2021Barros, F. (2021, 28 de novembro). As profissões mais demandadas para 2022. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2021/11/28/as-profissoes-mais-demandadas-para-2022.ghtml
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), “quanto mais você se esforça, mais aprende” (Garcia, 2021aGarcia, C. (2021a, 10 de dezembro). Para avançar na carreira, você precisa se transformar com frequência. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/coluna/para-avancar-na-carreira-voce-precisa-se-transformar-com-frequencia.ghtml.
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) e “aprender é parte do próprio trabalho atualmente” (Bloch, 2021Bloch, V. (2021, 11 de novembro). Aprenda todos os dias com quem está ao seu lado. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/coluna/aprenda-todos-os-dias-com-quem-esta-ao-seu-lado.ghtml
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). Para isso, deve-se “aprender de forma acelerada” (Campos, 2021aCampos, S. (2021a, 9 de setembro). Chefe de inovação do Google: “Todos nos tornamos mais criativos com a pandemia”. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2021/09/09/todos-nos-tornamos-mais-criativos-com-a-pandemia.ghtml
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) e ter “disposição para o aprendizado contínuo” (Saraiva, 2022Saraiva, J. (2022, 17 de janeiro). ‘Hackers do bem’: Habilidades necessárias vão além do conhecimento técnico. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2022/01/17/habilidades-necessarias-vao-alem-do-conhecimento-tecnico.ghtml
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) e “autodesenvolvimento permanente” (Bernhoeft, 2020Bernhoeft, R. (2020, 4 de dezembro). Escola da vida não tem diploma ou férias. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/coluna/escola-da-vida-nao-tem-diploma-ou-ferias.ghtml
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).

A análise das matérias selecionadas também permite observar que várias delas investem na ideia de que o trabalhador deve buscar, por conta própria e de maneira ininterrupta, experiências que lhe permitam algum tipo de aprendizagem. Destacamos alguns termos e expressões que vêm sendo empregados nas matérias analisadas: “estudos, cursos, palestras e workshops”; “microlearning” (Barros, 2021Barros, F. (2021, 28 de novembro). As profissões mais demandadas para 2022. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2021/11/28/as-profissoes-mais-demandadas-para-2022.ghtml
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); “reaprender e rever conceitos” (Campos, 2021bCampos, S. (2021b, 22 de novembro). O que pensa um dos maiores gurus da gestão sobre home office e trabalho híbrido. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2021/11/22/retorno-ao-escritorio-nao-garante-o-sucesso-no-modelo-hibrido.ghtml
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); “desenvolver habilidades” (Esteves, 2022Esteves, S. (2022, 26 de janeiro). Quando vale a pena conciliar trabalho com uma nova graduação?. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/diva-executivo/post/2022/01/quando-vale-a-pena-conciliar-trabalho-com-uma-nova-graduacao-sembarreira.ghtml
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); “qualificações e atualizações” (Oliveira, 2021Oliveira, F. (2021, 4 de dezembro). As profissões que devem pagar os melhores salários em 2022. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2021/12/04/as-profissoes-que-devem-pagar-os-melhores-salarios-em-2022.ghtml.
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); “recapacitação profissional” (Bernhoeft, 2019Bernhoeft, R. (2019, 19 de novembro). Não podemos delegar nosso desenvolvimento profissional. Valor Econômico. de https://valor.globo.com/carreira/coluna/nao-podemos-delegar-nosso-desenvolvimento-profissional.ghtml
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); “e-learning” (Saraiva, 2021aSaraiva, J. (2021a, 16 de junho). “70% do aprendizado vem da troca de experiências”, diz diretora de RH da Siemens Gamesa. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2021/06/16/70percent-do-aprendizado-vem-da-troca-de-experiencias-diz-diretora-de-rh-da-siemens-gamesa.ghtml
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); “retreinar” (Saraiva, 2021cSaraiva, J. (2021c, 26 de maio). Mais da metade dos brasileiros treinaria para uma nova carreira. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2021/05/26/mais-da-metade-dos-brasileiros-treinaria-para-uma-nova-carreira.ghtml
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); “revisões permanentes” (Bernhoeft, 2021Bernhoeft, R. (2021, 3 de julho). A pandemia também permite aprendizado. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/coluna/a-pandemia-tambem-permite-aprendizado.ghtml
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); “reciclagem total” (Bigarelli, 2019aBigarelli, B. (2019a, 19 de dezembro). No futuro, a aposta será na pessoa e não no diploma. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2019/12/19/no-futuro-a-aposta-sera-na-pessoa-e-nao-no-diploma.ghtml
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); “upskilling” (Bigarelli, 2019bBigarelli, B. (2019b, 7 de outubro). Profissional sabe que é preciso se requalificar. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2019/10/07/profissional-sabe-que-e-preciso-se-requalificar.ghtml
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); e “nanodegrees” (Arcoverde, 2019Arcoverde, L. (2019, 29 de julho). Aprender a aprender: uma lição para todos. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2019/07/29/aprender-a-aprender-uma-licao-para-todos.ghtml
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). Essa última expressão, que pode ser traduzida como nanograduações4 4 O uso do prefixo nano indica formações extremamente curtas. Enquanto o prefixo micro refere-se a 10-6, nano se refere a 10-9. , foi introduzida pela plataforma Udacity e se refere a cursos de curta duração, com conteúdo elaborado de acordo com as demandas de grandes organizações do mercado de tecnologia, como Google ou Amazon, e dividido em projetos ou credenciais a serem executados pelos estudantes. O termo aparece na matéria “Aprender a aprender: uma lição para todos”, assinada por Letícia Arcoverde e publicada em 29 de julho de 2019.

A matéria busca responder à seguinte questão: como podemos nos planejar para o futuro, considerando o ritmo acelerado de mudanças? A resposta foi construída por vozes autorizadas do mundo empresarial, indicando que “pensar a carreira nesse contexto vai exigir buscar novos meios de aprender e, acima de tudo, a disposição para se atualizar sempre” (Arcoverde, 2019Arcoverde, L. (2019, 29 de julho). Aprender a aprender: uma lição para todos. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2019/07/29/aprender-a-aprender-uma-licao-para-todos.ghtml
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). Para Samantha Mazzero, vice-coordenadora do Master of Business Administration (MBA) internacional da Fundação Instituto de Administração, a educação formal não consegue formar profissionais com a velocidade que o mercado requer, por isso a aposta no crescimento dos nanodegrees, oferecidos online e com um foco prático para certificação em habilidades pontuais. “O profissional do futuro é aquele com capacidade de adaptação e pré-disposição de aprendizado” (Mazzero cf. Arcoverde, 2019Arcoverde, L. (2019, 29 de julho). Aprender a aprender: uma lição para todos. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2019/07/29/aprender-a-aprender-uma-licao-para-todos.ghtml
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).

Para a professora do Insper Leni Hidalgo (cf. Arcoverde, 2019Arcoverde, L. (2019, 29 de julho). Aprender a aprender: uma lição para todos. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2019/07/29/aprender-a-aprender-uma-licao-para-todos.ghtml
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), “é preciso se informar constantemente de movimentos de mercado e da sociedade e ter capacidade crítica para filtrar o que será importante na sua construção de carreira”. Outra recomendação dela para profissionais de diferentes áreas é que eles busquem se tornar “um expert que circula”. Em um comentário adequado e ajustado à racionalidade neoliberal, ela finaliza direcionando sujeitos rumo ao autogoverno, advertindo que “esse não é mais um mundo em que uma pessoa consegue se fixar com uma expertise individual” (Hidalgo cf. Arcoverde, 2019Arcoverde, L. (2019, 29 de julho). Aprender a aprender: uma lição para todos. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2019/07/29/aprender-a-aprender-uma-licao-para-todos.ghtml
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). Segundo Foucault (2010a, p. 97), “não há liberalismo sem a cultura do medo”. Insegurança, incerteza e instabilidade conduzem sujeitos a uma busca desenfreada.

Chama a atenção duas professoras com doutorado e vinculadas a instituições de ensino superior opinarem que os processos formativos devem se voltar a cursos ligeiros, pouco aprofundados e focados em demandas imediatas do mercado. Esses cursos, em geral, não estão vinculados a instituições acadêmicas, mas a plataformas. Na matéria, não percebemos nenhuma preocupação das entrevistadas em destacar a importância de formações mais sólidas e aprofundadas, relacionadas com o ensino formal.

Outro termo que destacamos é microlearning, expressão inglesa que, traduzida para o português, seria algo como “microaprendizado”, referindo-se a uma estratégia de aprendizagem por meio da utilização de conteúdos fragmentados em módulos para fins de uma assimilação rápida. O termo aparece na matéria “As profissões mais demandadas para 2022”, assinada por Fabiana Barros (2021)Barros, F. (2021, 28 de novembro). As profissões mais demandadas para 2022. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2021/11/28/as-profissoes-mais-demandadas-para-2022.ghtml
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e publicada em 28 de novembro de 2021, que fornece algumas dicas de como se destacar no mercado de trabalho. Pedro Moxotó, gerente sênior da Hays, avalia que “mais do que nunca, a capacidade de se adaptar a novos contextos é essencial para os profissionais em geral. Além disso, a inovação está em alta, tornando essencial a lógica da interação com tudo o que está acontecendo” (Moxotó cf. Barros, 2021Barros, F. (2021, 28 de novembro). As profissões mais demandadas para 2022. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2021/11/28/as-profissoes-mais-demandadas-para-2022.ghtml
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). Ele continua afirmando que a busca constante por desenvolvimento de qualificações e domínio de novos idiomas é uma necessidade que sempre existirá. A declaração de Moxotó sinaliza uma ideia de obsolescência dos especialistas, sendo necessário interagir com tudo agora. A adaptabilidade não é desenvolvida por meio de formações sólidas em cursos de longa duração, mas na volatilidade das nanograduações e dos microaprendizados, em que não apenas se aprende algo para o futuro, mas também se esquece do aprendizado passado.

A matéria prossegue com os argumentos de Carla Esteves, vice-presidente de pessoas e estratégias de negócios do grupo Cia. de Talentos, e de Alexandre Benedetti, diretor da Talenses. Esteves indica o microlearning como uma opção de aprendizagem que dá à pessoa a possibilidade de explorar vários assuntos em um curto período. Já para Benedetti, “as empresas buscam pessoas com boas habilidades comportamentais, que se conheçam e estejam dispostas a evoluir” (Benedetti cf. Barros, 2021Barros, F. (2021, 28 de novembro). As profissões mais demandadas para 2022. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2021/11/28/as-profissoes-mais-demandadas-para-2022.ghtml
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). Portanto, a aprendizagem ao longo da vida não está relacionada apenas a conhecimentos, mas a questões comportamentais, a aprender a se conduzir de outro modo. É importante salientar a demanda, por parte da OCDE (2021)Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. (2021). Beyond academic learning: – First results from the survey of social and emotional skills. OCDE., de que o desenvolvimento de competências socioemocionais seja inserido nos currículos escolares. No Brasil, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) coloca as competências socioemocionais entre as dez a serem desenvolvidas na educação básica.

Evolução (Barros, 2021Barros, F. (2021, 28 de novembro). As profissões mais demandadas para 2022. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2021/11/28/as-profissoes-mais-demandadas-para-2022.ghtml
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), circulação e pré-disposição (Arcoverde, 2019Arcoverde, L. (2019, 29 de julho). Aprender a aprender: uma lição para todos. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2019/07/29/aprender-a-aprender-uma-licao-para-todos.ghtml
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) são termos que remetem a um esforço, para que os profissionais jamais se sintam seguros ou estáveis. A mobilidade é incentivada por meio de enunciações que conduzem os sujeitos a uma busca desenfreada por opções de aprendizagem como forma de “se reinventarem” profissionalmente. As matérias “Não podemos delegar nosso desenvolvimento profissional”, publicada em 19 de novembro de 2019, e “Pandemia também permite aprendizado”, de 3 de julho de 2021, ambas de autoria de Renato Bernhoeft, vão no mesmo sentido.

Na matéria “Não podemos delegar nosso desenvolvimento profissional”, Bernhoeft (2019)Bernhoeft, R. (2019, 19 de novembro). Não podemos delegar nosso desenvolvimento profissional. Valor Econômico. de https://valor.globo.com/carreira/coluna/nao-podemos-delegar-nosso-desenvolvimento-profissional.ghtml
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afirma que “mudanças tecnológicas exigem que o indivíduo, cada vez mais, tome para si a responsabilidade de se qualificar e desenvolver”. Ele ainda explica que as mudanças constantes trazem uma necessidade de o ser humano, cada vez mais e de forma individual, apropriar-se do seu processo educativo de forma ampla e permanente. O colunista destaca que “vamos precisar nos reinventar indefinidamente ao longo de nossas vidas” (Bernhoeft, 2019Bernhoeft, R. (2019, 19 de novembro). Não podemos delegar nosso desenvolvimento profissional. Valor Econômico. de https://valor.globo.com/carreira/coluna/nao-podemos-delegar-nosso-desenvolvimento-profissional.ghtml
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). Já na matéria “Pandemia também permite aprendizado”, Bernhoeft (2021)Bernhoeft, R. (2021, 3 de julho). A pandemia também permite aprendizado. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/coluna/a-pandemia-tambem-permite-aprendizado.ghtml
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afirma que “não existem mais profissões ou carreiras para a vida toda” e que “é nossa responsabilidade estar atento às novas demandas de maneira permanente e assumindo o autodesenvolvimento como responsabilidade própria”.

Finalizamos esta seção mostrando o alinhamento entre as enunciações das matérias do Valor Econômico e as falas dos sujeitos pesquisados. Destacamos, nesse momento, as falas de Jailson. Ele, que trabalha desde os 16 anos, conta que foi funcionário durante 21 anos de uma distribuidora de petróleo, sendo que nos últimos sete atuou como gestor. Relata que, ao longo da vida profissional, suas promoções estavam relacionadas com os múltiplos cursos que realizou. Porém, considera que os benefícios transcendem a carreira:

Jaílson: A gente não pode parar. A gente não pode ficar travado no tempo. Eu vejo que o nosso ser por completo se beneficia quando você não fica parado… de alguma forma você tem que buscar conhecimento. Entendo que precisamos melhorar em todos os aspectos.

Ele percebe estar em movimento como forma de evitar a obsolescência, conferindo um sentido de perfomatividade para a vida ao indicar uma necessidade de melhoria contínua. Para Ball (2005, p. 543)Ball, S. J. (2005). Profissionalismo, gerencialismo e performatividade. Cadernos de Pesquisa, 35(126), 539-564. https://www.scielo.br/j/cp/a/sHk4rDpr4CQ7gb3XhR4mDwL/?format=pdf⟨=pt
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, a “performatividade é uma tecnologia, uma cultura e um método de regulamentação que emprega julgamentos, comparações e demonstrações como meios de controle, atrito e mudança”. A entrevista prossegue:

Jaíslon: Em cada curso que eu fazia existiam coisas que eu havia aprendido em cursos anteriores que eles diziam assim… olha, não é mais desse jeito, mudou a forma, mudou o entendimento… então não tem jeito… a gente precisa sempre estar em busca desse conhecimento. Eu estudo constantemente para não parar.

Com a expressão “não tem jeito”, Jaílson reafirma a percepção de não haver alternativa à aprendizagem inacabável, naturalizando o entendimento de que tais atualizações são obrigatórias para continuar no mercado. Responsáveis por um aprendizado que se deslocou de um direito para um imperativo (Biesta, 2021Biesta, G. (2021). Reclaiming a future that has not yet been: The Faure report, UNESCO’s humanism and the need for the emancipation of education. International Review of Education, 68, 655-672. https://doi.org/10.1007/s11159-021-09921-x.
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) a fim de acompanhar as aceleradas mudanças do mercado de trabalho, cabe aos sujeitos, como empresários de si mesmos e por meio de uma busca inacabável de aprendizagem, adaptarem-se desenfreadamente em suas trajetórias profissionais.

Adaptação desenfreada

Discutiremos, a seguir, alguns recortes das entrevistas realizadas na pesquisa, selecionados a partir da ocorrência das menções a essa necessidade de adaptações como tarefa a ser empreendida por meio da aprendizagem. As afirmações que trazemos estão vinculadas a narrativas de reinício, de mudança ou de descontinuidade na vida profissional. Retomemos os argumentos de Jaílson:

Jaílson: Eu entendo que o ser humano não é cem por cento em nenhum aspecto e nunca chegará, e precisa estar em constante aperfeiçoamento e … embora ele faça algo que dê certo, sempre haverá lacunas, aspectos que precisam ser melhorados, que sempre precisam ser revisados.

Após a perda do emprego na distribuidora de petróleo, Ele se dedica atualmente ao ministério pastoral, profissão não regulamentada no Brasil. De acordo com Silva (2020)Silva, N. (2020). Pastor é uma profissão reconhecida pelo direito?. JusBrasil. https://www.jusbrasil.com.br/artigos/pastor-e-uma-profissao-reconhecida-pelo-direito/850610208#:~:text=O%20cargo%20eclesi%C3%A1stico%20de%20pastor,de%20trabalho%20no%20nosso%20pais.
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, o ramo do direito considera que se trata de uma atividade relacionada com vocação religiosa, e não uma atividade profissional. Apesar disso, Jaílson mostra grande apreço pela apropriação de técnicas e valores corporativos, como a busca pela máxima eficiência em sua atuação. Visando à excelência em sua nova atividade, ele prossegue na busca por melhoria contínua.

Jaílson: Eu me reinvento, assim, eu busco sempre conhecimento, sempre busco fazer um curso, por exemplo, exatamente agora eu estou fazendo um novo curso em teologia, eu já tenho um curso de teologia, mas estou fazendo outro novamente, estou fazendo um novo para eu não parar no tempo.

Outro entrevistado, Fernando, profissional com 14 anos de experiência na área de informática, conta que abandonou seu último emprego formal como professor após observar a dinâmica dentro da faculdade em que trabalhava, na qual não percebia perspectiva de crescimento. Observando a desvalorização da educação superior, decidiu fazer uma nova graduação em Direito, área em que hoje atua como advogado criminalista por conta própria. Para ele, toda essa mudança “talvez não seja uma reinvenção, mas algumas mudanças de estratégias… algumas um pouco mais significativas e outras nem tanto” (Fernando). Todavia, alguns momentos depois, ele volta atrás ao comentar novamente sobre suas estratégias para se manter no mercado, refletindo que “talvez se trate exatamente de uma reinvenção, porque, na verdade, tenho cada vez mais me especializado dentro da área criminal e eu atuo também em outras áreas mais”.

Hoje, ele conta que é muito bem remunerado, trabalha pouco e consegue auferir uma renda razoável. Contudo, em conformidade com a máxima empresarial da adaptação sem fim, ele relata que:

Fernando: Eu me considero satisfeito, mas eu estou pronto para largar a profissão … por que em que pese eu admirar a carreira, gostar da carreira, eu costumo dizer que eu não tenho amor por praticamente nada, o que me interessa é o que me convém … então assim… eu estou extremamente satisfeito com o que a profissão me proporcionou, mas eu digo que estou pronto para largar porque se porventura… se porventura… o negócio da advocacia furar… aí sim eu teria que me reinventar novamente, mas isso para mim não será um sofrimento porque eu já venho psicologicamente me preparando para isso há muito tempo e como durante a vida eu sempre estive migrando de profissão, migrando de atividade formal e informal, então para mim isso não será sofrimento nenhum… assim, não vai ser novidade … também eu vejo que a advocacia tem mudado a cada dia, mas se eu me sentir desconfortável para continuar atuando, eu estou pronto para largar.

Ele comenta que, se a determinação de fazer o curso de Direito fosse hoje, tomaria uma decisão diferente, pois procuraria algo que lhe permitisse maior autonomia.

Fernando: Se fosse hoje, provavelmente eu não teria passado pelo sofrimento que eu passei durante esses cinco anos fora da sede do município. Provavelmente, poderia ter força ainda maior para me manter no mercado, mesmo que informal, mas no mercado no ramo de comércio para empresariar, para eu ter uma autonomia, para eu ter uma liberdade e buscar o menor vínculo de hierarquia, de subordinação, de formalidade, hoje eu penso dessa forma.

Para Chamayou (2020, p. 389)Chamayou, G. (2020). A sociedade ingovernável: Uma genealogia do liberalismo autoritário. Ubu., a sedução que o neoliberalismo impôs se relaciona, entre outros aspectos, à promessa de autonomia individual, visto que a razão neoliberal oferece uma imagem de um sujeito emancipado, com domínio de sua vida e totalmente responsável por isso.

Por fim, nos argumentos de Hélkia, percebemos uma continuidade dos sentidos de performatividade, pois, para ela, “é sempre aquela questão: por melhor que a gente seja em uma área, a gente sempre pode melhorar um pouco mais”. Em suas falas, ela também reproduz a máxima do aperfeiçoamento inacabável, com destaque para os termos “reinventar”, “adaptar” e “transformar”: “Você tem que se reinventar todos os dias. E eu tenho que estar me adaptando o tempo todo. Eu sou aquela pessoa que estou em constante evolução, transformação”.

Para os sujeitos da pesquisa, o engajamento na aprendizagem ao longo da vida implicaria na assunção de características como a autorresponsabilidade, a predisposição para a mudança, o movimento, a transformação e a adaptabilidade. São todas focadas em si, sem uma percepção de interdependência do outro. Kampff (2018)Kampff, A. J. C. (2018). Engagement estudantil e percursos formativos no ensino superior. In M. B. Zabalza, M. Mentges, & M. I. Côrte Vitória (orgs.), Engagement na educação superior: Conceitos, significados e contribuições para a universidade contemporânea (pp. 85-98). EDIPUCRS. utiliza o termo engagement para definir algo que está relacionado com o envolvimento dos sujeitos em causas, atividades ou projetos, mantendo o foco de atuação e persistindo em alcançar os objetivos relacionados. Em decorrência de uma perspectiva concorrencial, Martins e Machado escrevem que (2018, p. 105)Martins, P. C. P., & Machado, P. G. B. (2018). Engajamento no contexto de instituições de ensino. In R. M. Rigo, J. A. Moreira, & M. I. Côrte Vitória (orgs.), Promovendo o engagement estudantil na educação superior: Reflexões rumo a experiências significativas e integradoras na universidade (pp. 105-124). EDIPUCRS. “pessoas engajadas tendem a apresentar maior probabilidade de sucesso”. O engajamento do aprendiz estaria em não desistir, em lutar e em buscar incessantemente (e por conta própria) a superação de si por meio da aprendizagem, como forma de ter uma vida melhor.

A incansável transformação dos sujeitos que têm como propósito converter o sonho de uma vida melhor em realidade permite-nos identificar esse engajamento do aprendiz ao longo da vida como um engajamento empreendedor, em vista da grande energia e dos inúmeros desafios que isso requerer dos sujeitos. Em uma lógica na qual não há terceiros a quem atribuir fracassos ou sucessos, não se tem a quem recorrer a não ser a si mesmo, por meio de uma perfomatividade que deve ser aprimorada incessantemente. Para Ball (2005)Ball, S. J. (2005). Profissionalismo, gerencialismo e performatividade. Cadernos de Pesquisa, 35(126), 539-564. https://www.scielo.br/j/cp/a/sHk4rDpr4CQ7gb3XhR4mDwL/?format=pdf⟨=pt
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, a cultura da performatividade carrega consigo um fluxo de novas necessidades, expectativas e indicadores, que nos traz a sensação de prestação de contas e de avaliação contínua. Isso resulta

. . . numa busca constante de aperfeiçoamento, de ser melhor, ser excelente, de uma outra maneira de tornar-se ou de esforçar-se para ser o melhor – a infindável procura da perfeição numa busca constante de aperfeiçoamento, de ser melhor, ser excelente, de uma outra maneira de tornar-se ou de esforçar-se para ser o melhor – a infindável procura da perfeição.

(Ball, 2005Ball, S. J. (2005). Profissionalismo, gerencialismo e performatividade. Cadernos de Pesquisa, 35(126), 539-564. https://www.scielo.br/j/cp/a/sHk4rDpr4CQ7gb3XhR4mDwL/?format=pdf⟨=pt
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, p. 549)

Na procura do máximo desempenho, indivíduos e organizações farão o que estiver ao seu alcance para se distinguirem ou sobreviverem. A performatividade possui grande poder de subjetivação e de condução de condutas, relacionando-se a uma dimensão emocional, apesar da aparência de racionalidade e objetividade. “Assim, nossas respostas ao fluxo de informações a respeito do desempenho podem engendrar nos indivíduos sentimentos de orgulho, culpa, vergonha e inveja” (Ball, 2005Ball, S. J. (2005). Profissionalismo, gerencialismo e performatividade. Cadernos de Pesquisa, 35(126), 539-564. https://www.scielo.br/j/cp/a/sHk4rDpr4CQ7gb3XhR4mDwL/?format=pdf⟨=pt
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, p. 550).

Em relação às matérias selecionadas para esta pesquisa, observamos que várias investem na ideia de que a mudança e a adaptação rápidas e imediatas são elementos positivos para o trabalhador, que deve se preparar para elas e até mesmo desejá-las. Segundo os textos, o próprio deve ser o agente dessa mudança, visto que tem que aprender a ter capacidade de adaptação, o que lhe permitirá aproveitar as oportunidades.

Na matéria “Aprenda todos os dias com quem está ao seu lado”, publicada em 11 de novembro de 2021, Vicky Bloch (2021)Bloch, V. (2021, 11 de novembro). Aprenda todos os dias com quem está ao seu lado. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/coluna/aprenda-todos-os-dias-com-quem-esta-ao-seu-lado.ghtml
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destaca que “no mundo em que vivemos atualmente, em que a velocidade de mudança é tão alta e ficamos defasados em um piscar de olhos, temos de aprender, desaprender e nos reinventar o tempo todo” Ela também ressalta que não devemos cair na “armadilha” de que está tudo dominado. Segundo Olssen (2008, p. 40, tradução nossa)Olssen, M. (2008). Understanding the mechanisms of neoliberal control: Lifelong learning, flexibility and knowledge capitalism. In A. Fejes, & K. Nicoll (orgs.), Foucault and lifelong learning: Governing the subject(pp. 34-47). Routledge., “a aprendizagem, neste sentido, é um processo de permanente adição de competências e habilidades, adaptadas continuamente às reais necessidades externas”.

Rafael Souto, na matéria “Paternalismo gera danos irreparáveis na carreira”, publicada em 3 de dezembro de 2020, também adverte que “em um mundo em rápida transformação, a capacidade de inovar e se adaptar são fundamentais”. O autor utiliza a pesquisa publicada num artigo dos consultores Ronald Heifetz e Donald Laurie, em que eles defendem que os gestores contemporâneos devem lançar um desafio adaptativo em suas organizações. Esse desafio tem como objetivo “gerar desconforto, estimular as mudanças e dar segurança psicológica para que sua equipe possa arriscar, questionar processos e buscar inovação” (Souto, 2020Souto, R. (2020, 3 de dezembro). Paternalismo gera danos irreparáveis à carreira. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/coluna/paternalismo-gera-danos-irreparaveis-a-carreira.ghtml
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).

A necessidade de adaptabilidade e mobilidade da força de trabalho e dos trabalhadores, mediante a aquisição de habilidades e competências de curto prazo, é retomada por Lyndsey Jones (2020)Jones, L. (2020, 9 de janeiro). Habilidades profissionais essenciais a partir de 2020. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2020/01/09/habilidades-profissionais-essenciais-a-partir-de-2020.ghtml
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na matéria “Habilidades profissionais essenciais a partir de 2020”. Para ela:

Com o crescimento da economia sob demanda (gig economy, na sigla em inglês), mais organizações vão se proteger contratando trabalhadores por prazos determinados. Esses terceirizados terão que se adaptar rapidamente às culturas das empresas e serem flexíveis e adaptáveis.

Essas enunciações produzem “uma nova tecnologia de adaptação flexível que garante que a responsabilidade pela conquista do emprego esteja a cargo dos próprios indivíduos” (Olssen, 2008Olssen, M. (2008). Understanding the mechanisms of neoliberal control: Lifelong learning, flexibility and knowledge capitalism. In A. Fejes, & K. Nicoll (orgs.), Foucault and lifelong learning: Governing the subject(pp. 34-47). Routledge., p. 39, tradução nossa). Em suma, os trabalhadores devem aprender a viver precariamente. Jones ainda aponta uma suposta facilidade que a geração nascida entre os anos 1981 e 1999 tem em relação à mudança, destacando que “os millennials não veem a mudança como uma provação, e sim como uma oportunidade” (Jones, 2020Jones, L. (2020, 9 de janeiro). Habilidades profissionais essenciais a partir de 2020. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2020/01/09/habilidades-profissionais-essenciais-a-partir-de-2020.ghtml
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). Ou seja, a autora pensa uma juventude idealizada e homogênea, para a qual os riscos da precarização não assustam. A matéria ainda deixa uma “grande” esperança para as gerações mais velhas: a solução seria apenas se aperfeiçoar.

Claudio Garcia, na matéria “Para ser adaptável não defina o que é talento”, publicada em 23 de setembro de 2021, também compartilha da ideia de que as antigas competências estão obsoletas. Ele comenta que profissionais muito eficientes em suas tarefas correm o risco de abdicarem da sua capacidade de adaptação. Para ele, uma organização que preza pela adaptação “aceita conscientemente ineficiências em determinados cenários em prol da adaptabilidade” (Garcia, 2021bGarcia, C. (2021b, 23 de setembro). Para ser adaptável não defina o que é talento. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/coluna/para-ser-adaptavel-nao-defina-o-que-e-talento.ghtml
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). Isso significa um “adeus” à especialização e um “bem-vindo” à fragmentação. Até mesmo a eficiência, qualidade inquestionável até pouco tempo atrás, é sacrificada no altar da flexibilização.

Enquanto adaptação e renovação são considerados elementos necessários diante das mudanças na economia global e no mundo do trabalho, o mercado, por sua vez, torna-se “um processo de aprendizagem contínua e adaptação permanente” (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal. Boitempo., p. 135). E não somente isso, o mercado também se define “precisamente por seu caráter intrinsecamente concorrencial” (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal. Boitempo., p. 136). Dessa forma, resta aos sujeitos se lançarem, de forma individualizada, em uma competição desenfreada na busca de aprendizagens como forma de se destacarem no mercado. É isso que discutiremos no próximo foco de análise.

Competição e individualidade desenfreada

A principal preocupação de grande parcela da população que não dispõe de estabilidade no mercado de trabalho é tentar manter a sua trabalhabilidade em níveis competitivos (Possebon, 2020Possebon, R. O. (2020). Pedagogias da dívida, gestão de si e (re)configurações contemporâneas do trabalho [Tese de doutorado, Universidade Luterana do Brasil]. ULBRA Canoas. https://servicos.ulbra.br/BIBLIO/PPGEDUM220.pdf
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). Envoltos em uma razão governamental cujo princípio regulador são os mecanismos de concorrência (Foucault, 2010aFoucault, M. (2010). Nascimento da biopolítica. Edições 70.), esses sujeitos se entendem como gestores de suas próprias vidas em um campo de batalha com os outros, e muitas vezes consigo mesmos, buscando formas de sobrevivência.

Nos excertos de entrevistas de Fernando, Hélkia e Jaílson apresentados a seguir, percebem-se elementos constitutivos de sujeitos concorrenciais ou, dito de outro modo, empresários de si mesmos (Foucault, 2010Foucault, M. (2010). Nascimento da biopolítica. Edições 70.). Não apenas concorrem com outros, mas, sobretudo, concorrem consigo mesmos, em perene guerra interna.

Hélkia: Eu me cobro muito… sou uma pessoa que eu me cobro muito… sempre estou dizendo que, pela minha concepção, minha competição não é com os outros, é comigo mesma. Por muito tempo eu competi com as pessoas e hoje eu penso que isso ocorre quando tenho a mente fechada. Quando tenho a mente muito fechada… aumenta… é maior a minha competição com você. Sou eu mesmo… eu sempre… eu tenho isso, o eu é importante em minha análise.

Fernando: Eu acredito que existe uma concorrência, mas essa concorrência que não é a concorrência escancarada, descarada, ela existe por parte dos colegas que são menos preparados, porque muitas vezes o cidadão, por falta de conhecimento e por falta de dinheiro, vai buscar o menor preço. Isso também existe na área de Direito. Enquanto profissional, particularmente, eu não concorro com ninguém a não ser comigo mesmo, penso muito nessa parte.

Jailson: Eu não entendo que no mundo evangélico, no ministério pastoral, exista concorrência, eu não entendo assim. Eu entendo que você, exercendo qualquer profissão, você precisa estar se aperfeiçoando constantemente. Então eu entendo que é nesse processo que você se declara concorrente de você mesmo… então você é concorrente consigo mesmo, então você precisa estar em constante busca de conhecimento nesse aspecto.

Han (2015, p. 16) entende isso como uma guerra interna. O autor problematiza que o sujeito do desempenho possui o desejo de maximizar sua produtividade continuamente. Ele se entende em competição consigo mesmo e, em vez de obrigações disciplinares, obedece aos seus interesses e a sua própria pressão por melhoria, levando a explorarem a si próprios. Assim, o mundo da aprendizagem ao longo da vida se torna composto por aprendizes sozinhos e solitários. “Isso quer dizer um mundo desprovido de comunidade e compromisso no qual, crescentemente, as relações sociais são valorizadas somente por seu valor extrínseco” (Ball, 2013Ball, S. J. (2013, 27 de junho). Aprendizagem ao longo da vida, subjetividade e a sociedade totalmente pedagogizada. Educação, 36(2), 144-155. Recuperado de https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/faced/article/view/12886
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, p. 151). Indo ao encontro dessas problematizações, Corbanezi (2018)Corbanezi, E. (2018). Sociedade do cansaço. Tempo Social, 30(3), 335-342. https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2018.141124
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comenta que “o sujeito atual não tem mais como máximas a obediência ao outro, o cumprimento da lei e do dever, mas o sentimento de ‘liberdade’ e de ‘autonomia’”.

Sozinho, resta ao empresário de si mesmo manter as condições necessárias para competir, para vencer a concorrência. Articulado a tal argumento, trazemos um recorte da entrevista de Daenerys, quando ela responde a uma pergunta sobre como se prepara para se manter ativa no mercado.

Daenerys: Estudar… infelizmente… mesmo que na real a gente chegue à conclusão que isso não serve para nada, mas é estudando, aprendendo que você faz isso.

Pesquisador: Você diz que não serve para nada mais, ainda assim você continua apostando nisso?

Daenerys: Quando a gente sabe que não serve para nada mais, a gente procura buscar ela do mesmo jeito. Precisamos de conhecimento para não ficar para trás, porque você sabe que o mercado de trabalho está cada vez mais concorrido, mesmo estando difícil, pode ficar pior a situação. Por isso, a gente acaba procurando aprender cada vez mais… aperfeiçoar… eu quero estudar para sobreviver… é uma sobrevivência… eu sobrevivo assim, para mim sempre foi sobrevivência… desde o início eu estudo para ter um prato de comida na mesa. Eu acho que se eu não estivesse estudando, consequentemente, a minha situação seria bem mais precária.

A entrevistada afirma continuar sua busca por aprendizagem, mesmo não acreditando mais em seus efeitos. Laval (2019, p. 74)Laval, C. (2019). A escola não é uma empresa: O neoliberalismo em ataque ao ensino público. Boitempo. defende que “mais que uma resposta à necessidade de autonomia e desenvolvimento pessoal, é a obrigação de sobreviver no mercado de trabalho que comanda essa pedagogização da vida”. Os sujeitos apelam para a aprendizagem, não por vontade, curiosidade ou prazer de aprender, mas como forma de prevenção contra os riscos que o mercado apresenta. E de acordo com Daenerys, os benefícios dessa aprendizagem inacabável nem são tão certos assim.

Em relação às matérias selecionadas para esta pesquisa, observamos que elas operam uma estratégia de governamento que mobiliza argumentos para orientar os sujeitos a uma permanente competição, apoiada no isolamento. Os argumentos atuam no sentido de que “pensar sozinho (ao invés de grupo) traz mais ideias e ideias melhores” (Esteves, 2022Esteves, S. (2022, 26 de janeiro). Quando vale a pena conciliar trabalho com uma nova graduação?. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/diva-executivo/post/2022/01/quando-vale-a-pena-conciliar-trabalho-com-uma-nova-graduacao-sembarreira.ghtml
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), “profissionais precisam ser protagonistas de sua própria construção de carreira” (Bigarelli, 2021Bigarelli, B. (2021, 21 de setembro). Confira o que é um plano de carreira e aprenda a montar um. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2021/09/21/plano-de-carreira-o-que-e-e-como-montar-uma-trajetoria-de-sucesso.ghtml
valor.globo.com/carreira...
), “é preciso perceber seus pontos fortes e fracos” (Bigarelli, 2022bBigarelli, B. (2022b, 1 de janeiro). O que são as soft skills e como desenvolvê-las? Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2022/01/01/o-que-sao-as-soft-skills-e-como-desenvolve-las.ghtml
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), “aprender sozinho . . . habilidade em alta” (Saraiva, 2021bSaraiva, J. (2021b, 21 de janeiro). “Soft skills” ganham ainda mais importância. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2021/01/21/soft-skills-ganham-ainda-mais-importancia.ghtml
https://valor.globo.com/carreira/noticia...
), “é possível se preparar para ser mais competitivo no futuro do trabalho mesmo que esse futuro não esteja ainda muito claro” (Bigarelli, 2021Bigarelli, B. (2021, 21 de setembro). Confira o que é um plano de carreira e aprenda a montar um. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2021/09/21/plano-de-carreira-o-que-e-e-como-montar-uma-trajetoria-de-sucesso.ghtml
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) e “individualização do projeto de carreira” (Souto, 2021aSouto, R. (2021a, 8 de julho). A nova era da customização do trabalho. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/coluna/a-nova-era-da-customizacao-do-trabalho.ghtml
https://valor.globo.com/carreira/coluna/...
).

Detivemos nossa atenção na expressão “trabalhabilidade”, utilizada por Paulo Vasconcellos na matéria “‘Trabalhabilidade’ é a palavra da hora”, publicada em 27 de junho de 2018. O texto inicia com o argumento de que o aprendizado para a vida toda é apenas um reflexo das mudanças da sociedade e resulta de recorrentes demandas corporativas e pessoais. “Algumas profissões tendem a desaparecer e mais do que nunca é preciso se reinventar” (Vasconcellos, 2018Vasconcellos, P. (2018, 27 de junho). ‘“Trabalhabilidade’” é a palavra da hora. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/ensino-executivo/noticia/2018/06/27/trabalhabilidade-e-a-palavra-da-hora.ghtml
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). A matéria prossegue utilizando a voz autorizada de Irene Azevedo, diretora de transição de carreira e gestão de mudança da consultoria Lee Hecht Harrison (LHH). Ela afirma que o conceito de empregabilidade perdeu espaço para o termo trabalhabilidade, e cabe ao aprendiz acompanhar tais evoluções ao longo da vida.

O aprendizado, independentemente da idade ou do nível de formação, juntamente com autoconhecimento, disposição, dedicação, comprometimento, experiência e até saúde, são elementos que precisam ser autogerenciados pelos próprios sujeitos para que eles tenham vantagem competitiva. Nessa racionalidade, “é necessário produzir indivíduos que saibam tomar conta de sua vida, que sejam capazes de se responsabilizarem pelo seu próprio bem-estar e pela sua produtividade” (Saraiva, 2013Saraiva, K. (2013). Educando para viver sem riscos. Educação, 36(2), 168-179. Recuperado de https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/12894
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, p. 170).

O termo trabalhabilidade também é utilizado por Rafael Souto na matéria “O futuro do trabalho chegou mais cedo”, publicada em 11 de fevereiro de 2022. Em tom intimidatório, o texto adverte que os profissionais que não se adaptarem às novas exigências estão fadados ao declínio. Souto (2021b)Souto, R. (2021b, 11 de fevereiro). O futuro do trabalho chegou mais cedo. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/coluna/o-futuro-do-trabalho-chegou-mais-cedo.ghtml
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destaca que “estamos na era da trabalhabilidade, na qual cada indivíduo precisa cuidar de sua capacidade de gerar trabalho e renda”. O colunista encerra a matéria alertando sobre a possibilidade de desemprego para quem não acompanhar as mudanças em curso. A matéria isenta a economia e outras questões sociais por possíveis demissões em massa, colocando a razão para tais dispensas na desatualização dos sujeitos, que não conseguem mais satisfazer as necessidades das empresas.

Outro tema encontrado em diversas matérias foi o apelo ao empreendedorismo, usado como estratégia para promover oportunidades de trabalho. Lyndsey Jones (2020)Jones, L. (2020, 9 de janeiro). Habilidades profissionais essenciais a partir de 2020. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2020/01/09/habilidades-profissionais-essenciais-a-partir-de-2020.ghtml
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traz que, para Sue Llewellyn, uma consultora de mídia social do Reino Unido, somente podermos enxergar a mudança como oportunidade, e não como provação, se tivermos uma mentalidade de crescimento pessoal e de empreendedor. Ela aconselha: “pense no que você quer da sua vida e faça uma pequena mudança. Logo você verá que fez uma grande mudança. As pessoas não percebem que a única constante na vida é a mudança e que nada permanece o mesmo” (Llewellyn cf. Jones, 2020Jones, L. (2020, 9 de janeiro). Habilidades profissionais essenciais a partir de 2020. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/noticia/2020/01/09/habilidades-profissionais-essenciais-a-partir-de-2020.ghtml
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). De acordo com a matéria, somente o sujeito empreendedor teria as qualidades necessárias para se adaptar às rápidas transformações do mundo do trabalho.

A matéria “Que exaustão! Onde você está, empreendedor?” de Betânia Tanure, publicada em 13 de maio de 2021, apontou a competência empreendedora como uma possível solução de enfrentamento do cenário pandêmico daquele momento, pois, segundo a colunista, quem possui essa competência teria a habilidade de constatar o problema, sem se ater a reclamações. Ainda, segundo ela, em situações em que os problemas imperam:

Não há cenário melhor para que os empreendedores, alguns escondidos nos corredores do mundo corporativo típico, apareçam, floresçam, façam acontecer. Agora é a hora dos que são capazes de “sentir o cheiro” das oportunidades, perceber os riscos e agir para mudar a realidade.

(Tanure, 2021Tanure, B. (2021, 13 de maio). Que exaustão! Onde você está, empreendedor?. Valor Econômico. https://valor.globo.com/carreira/coluna/que-exaustao-onde-voce-esta-empreendedor.ghtml
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)

Para a colunista, são as pessoas empreendedoras que têm as condições de “sair da casca”. Nessa concepção, o empreendedor seria aquele que pensa diferente, que produz ideias, que sonha, que descobre oportunidades e que tem a habilidade de resolver problemas e tomar decisões, tornando-se, assim, um indivíduo requisitado e adaptado para o cenário de alta competição.

Todavia, para Dardot e Laval (2020, p. 134)Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal. Boitempo., o empreendedor não é um produtor ou inovador, ele “é um ser dotado de espírito comercial, à procura de qualquer oportunidade de lucro que se apresente e ele possa aproveitar, graças às informações que ele tem e os outros não”. Esse sujeito é governado pelo jogo do mercado, que, por sua vez, trata-se de um processo de aprendizagem contínua e de adaptação permanente, caracterizado pela concorrência inacabável. Para Simons e Masschelein (2008)Simons, M., & Masschelein, J. (2008). Our ‘will to learn’ and the assemblage of a learning apparatus. In A. Fejes, & K. Nicoll (orgs.), Foucault and lifelong learning: Governing the subject (pp. 48-60). Routledge., a ênfase no cidadão social foi deslocada para o cidadão empreendedor, que foi tomado como aprendiz permanente, sendo essa a nova forma de autogoverno promovida e estimulada pelo regime neoliberal.

Esse sujeito empreendedor não vê mais o risco como algo a ser evitado, ao contrário, ele convive bem com ele. Os riscos são entendidos como oportunidades, sendo o estímulo para possíveis conquistas, o que incita sua ação. As pessoas devem se entender como componentes de um ambiente em constante mudança e permanente incerteza, no qual as necessidades podem ser satisfeitas mediante habilidades criativas e aprendizagem inacabável. Espera-se desse sujeito que ele “invista em capital humano, aprenda ou agregue valor à sociedade e encontre formas de inclusão produtiva” (Simons & Masschelein, 2008Simons, M., & Masschelein, J. (2008). Our ‘will to learn’ and the assemblage of a learning apparatus. In A. Fejes, & K. Nicoll (orgs.), Foucault and lifelong learning: Governing the subject (pp. 48-60). Routledge. p. 54, tradução nossa).

Simons e Masschelein (2008)Simons, M., & Masschelein, J. (2008). Our ‘will to learn’ and the assemblage of a learning apparatus. In A. Fejes, & K. Nicoll (orgs.), Foucault and lifelong learning: Governing the subject (pp. 48-60). Routledge. entendem que a vida empreendedora exige dos sujeitos uma série de deslocamentos, nos quais são mobilizados habilidades, competências e conhecimentos, de forma a se manterem ativos no mercado e dando para a própria vida um valor econômico. Para os autores, “viver uma vida empreendedora não é ter uma posição em uma estrutura socializada normal, mas se movimentar em diferentes ambientes ou redes e permanecer empregado no ‘negócio contínuo de viver’” (Simons & Masschelein, 2008Simons, M., & Masschelein, J. (2008). Our ‘will to learn’ and the assemblage of a learning apparatus. In A. Fejes, & K. Nicoll (orgs.), Foucault and lifelong learning: Governing the subject (pp. 48-60). Routledge., p. 55, tradução nossa).

Cabe aos indivíduos avaliar, ponderar e superar continuamente os limites de sua aprendizagem, de forma a terem condições competitivas para vencer os concorrentes. A trabalhabilidade pode ser considerada uma responsabilidade do próprio sujeito, sendo resultado de competências adquiridas por ele para galgar seu lugar no mundo do trabalho, enquanto a aprendizagem se torna uma atividade que cada um deve realizar incessantemente em sua trajetória de vida.

Considerações finais

… através de uma abordagem foucaultiana, é possível fazer outras perguntas além daquelas oferecidas pelo positivismo ou por perspectivas interpretativas alternativas. Em vez de focar, por exemplo, na aprendizagem ao longo da vida como algo bom ou ruim, ou como algo com uma essência ou algo que pode libertar as pessoas de restrições, podemos fazer perguntas sobre o significado e os efeitos da aprendizagem ao longo da vida em outros termos.

(Fejes, 2008Fejes, A. (2008). Historicizing the lifelong learner: Governmentality and neoliberal rule. In A. Fejes, & K. Nicoll (Orgs.), Foucault and lifelong learning: Governing the subject (pp. 87-99). Routledge., p. 16)

Este estudo tentou mostrar como opera uma estratégia de governamento que direciona os sujeitos para uma aprendizagem inacabável ao longo da vida. Por meio dela, os indivíduos são direcionados à busca desenfreada por atualizações, à necessidade de reinvenções e de adaptações intermináveis, e à competição e individualização desenfreada. Tal estratégia de governamento opera na constituição de regimes de verdades que, ao se naturalizarem, procuram persuadir cada um da necessidade de investimento permanente em si mesmos, tornando-se aprendizes ao longo da vida. Essas pessoas, mediante uma busca infinita de adaptabilidade, sonham em continuar atrativos para o mercado de trabalho e alcançar felicidade e prosperidade em um contexto de rápidas mudanças.

O perfil esperado para os trabalhadores é o de sujeitos ativos, responsáveis, independentes e que resolvem problemas (Zackrisson & Assarsson, 2008Zackrisson, K. S., & Assarsson, L. (2008). Adult learner identities under construction. In A. Fejes, & K. Nicoll (Orgs.), Foucault and lifelong learning: Governing the subject (pp. 114-125). Routledge.). Também carregam a necessidade de autodesenvolvimento e tomada de decisão contínua por meio de atitudes individualizadas, gerando sensação de autonomia e sendo preparados para uma vida de incertezas orientada por um autoaperfeiçoamento constante (Popkewitz, 2008Popkewitz, T. S. (2008). The reason of reason: Cosmopolitanism, social exclusion and lifelong learning. In A. Fejes & K. Nicoll (orgs.), Foucault and lifelong learning: Governing the subject (pp. 74-86). Routledge.). Em guerra consigo mesmos, tais sujeitos sentem que precisam, de alguma forma, estar sempre atrás de uma nova habilidade que lhes proporcione algum diferencial.

É importante destacar que a investigação sinaliza que a formação desejável para os trabalhadores privilegiaria uma sequência de cursos curtos e rápidos, com pouco aprofundamento, em detrimento a formações acadêmicas mais longas e sólidas. Tanto o periódico quanto os entrevistados convergiram no entendimento de que a formação continuada seria mais eficaz se realizada fora das instituições de ensino superior, consideradas pouco capazes de se adaptarem à alta volatilidade do mercado e de acompanharem o ritmo acelerado das mudanças. As formações necessárias para se aprimorar a “performance” profissional deveriam priorizar conhecimentos prontos para consumo imediato, sem a necessidade de investir um grande esforço reflexivo.

Assim, parece-nos que a aprendizagem ao longo da vida vem redesenhando o regime de veridicção, que consagrava as instituições universitárias como locus privilegiado para a formação profissional ao conceder a outras possibilidades formativas um maior valor em termos de utilidade e eficácia.

Conforme a epígrafe que inicia essas considerações, a perspectiva dessa investigação não teve a intenção de posicionar a aprendizagem ao longo da vida como algo certo ou errado, bom ou ruim, mas discutir como ela funciona e se constitui (Veiga-Neto, 2017Veiga-Neto, A. (2017). Foucault & a educação (3a ed.). Autêntica.). Longe de pretendermos estabelecer novas verdades, finalizamos com a expectativa de que esta pesquisa ofereça uma perspectiva para problematizarmos os regimes de veridicção de nosso tempo.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Sara Pereira (Tikinet) revisao@tikinet.com.br
  • 3
    Os nomes utilizados foram escolhidos pelos entrevistados, podendo ou não corresponder com seus nomes verdadeiros.
  • 4
    O uso do prefixo nano indica formações extremamente curtas. Enquanto o prefixo micro refere-se a 10-6, nano se refere a 10-9.

Referências

1
Editor responsável: Antônio Carlos Rodrigues de Amorim https://orcid.org/0000-0002-0323-9207

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    26 Maio 2023
  • Revisado
    07 Ago 2023
  • Aceito
    30 Set 2023
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