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O conceito de formagir na perspectiva de Paulo Freire 1 1 Editor responsável: Alexandre Fernandez Vaz https://orcid.org/0000-0003-4194-3876 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Cia das Traduções projetos@ciadastraducoes.com.br 3 3 Apoio: Universidade Estadual de Londrina, PPEdu e CAPES.

Resumo

Este trabalho busca desenvolver o conceito de formagir amparado no conceito de diálogo como base para a ética e a política da libertação na perspectiva de Freire. O objetivo é conceituar o formagir, para pensar uma educação dialógica, problematizadora, democrática e libertadora, recriando o conceito de quefazer de Freire. A metodologia é de caráter bibliográfico, numa perspectiva filosófica de análise dos conceitos, reconstruindo-os com base nas obras de Freire. Como resultado, o conceito de formagir conota a práxis libertadora, como processo de ser mais na busca do que não se é, rompendo com o ser opressor. O formagir dialógico permite pensar a ética e a política da educação como libertação e crescimento do modo de vida democrático.

Palavras-chave
Formagir; Diálogo; Educação problematizadora; Ética; Política

Abstract

This work seeks to develop the concept of formacting supported by the concept of dialogue as a basis for the ethics and politics of liberation from Freire's perspective. The objective is to conceptualize formacting to think a dialogical, problematizing, democratic, and liberating education, recreating the concept of whattodo by Freire. The methodology is bibliographic, based on a philosophical perspective of analyzing and reconstructing concepts based on Freire's works. As a result, formacting connotes liberating praxis as a process of being more in search of what one is not, breaking with the oppressive being. The dialogical formacting allows us to think of the ethics and politics of education as liberation and growth of the democratic way of life.

Keywords
Formacting; Dialogue; Problematizing education; Ethics; Policy

Introdução

Este trabalho tem por desafio desenvolver o conceito de formagir iluminado e amparado no conceito de diálogo problematizador de Paulo Freire. O próprio autor concebe o diálogo como uma matriz criadora e recriadora de conceitos, como forma de romper com a violência opressora do colonialismo, que impera em nossa cultura e na estrutura de classes.

Com apoio na análise de Romão (2002, pp. 13-14), buscamos compreender a forma como Freire elabora sua obra: “Paulo Freire sempre re-escreveu o que havia escrito antes, numa incansável re-elaboração e re-escrita dialética da mesma obra, atualizando-a permanentemente, de acordo com os novos contextos em que procurava inserir-se criticamente”. Romão (2002)Romão, J. E. (2002). Contextualização: Paulo Freire e o pacto populista. In P. Freire, Educação e atualidade brasileira (2a ed., pp. 13-48). Cortez; Instituto Paulo Freire. destaca a importância da permanente atualização intelectual de Freire que alimenta a sua criatividade gnosiológica e a maneira original de recriar teorias, concepções e categorias. Para exemplificar, basta citar conceitos como “boniteza”, “dodiscência”, “palavra-mundo”, “quefazer” e muitos outros. Assim, do ponto de vista teórico-metodológica, Freire4 4 Para aprofundar essa discussão indicam-se as seguintes fontes: Beisiegel (2010) e Muraro (2012). faz uma significativa síntese crítica e criativa das fontes filosóficas do pragmatismo, do existencialismo, do pensamento cristão, da fenomenologia e do marxismo, tendo em vista pensar a realidade opressora e buscar perspectivas de transformação. A obra de Freire tem uma marca original e distinta do ponto de vista filosófico-político: ler a realidade sob a perspectiva histórica dos oprimidos, o que implica uma crítica radical à herança colonialista, à exploração capitalista, ao sistema de classes, às elites opressoras e à educação bancária corolário da opressão. Nessa perspectiva, os oprimidos são a força educacional-libertadora de transformação radical do mundo. Essa práxis é continuamente alimentada pelo diálogo como matriz geradora da experiência de ser mais transformando a condição de ser oprimido.

Paulo Freire analisou as raízes da negação do diálogo em nossa formação histórico-cultural-educacional. Seguindo sua leitura, a causa primeira dessa negação é o processo de colonização, que se fez e se faz, por meio da cultura do silêncio, do mutismo, da privação da palavra pela opressão política e a exploração econômica da classe trabalhadora. Essas condições favoreceram a inexperiência de ser humano e da democracia.

A análise de Levitsky e Ziblatt (2018)Levitsky, S., & Ziblatt, D. (2018). Como as democracias morrem. (R. Aguiar, Trad.). Zahar. mostra que a crise da democracia está relacionada ao avanço do autoritarismo. No livro Como as democracias morrem, os autores analisam a crise da democracia, num país que se honra de se proclamar democrático, mas que elegeu Donald Trump, em 2016, um homem extremamente autoritário. Este estudo corrobora o entendimento de que a crise da democracia ou a dificuldade de seu desenvolvimento em nosso país se deve à cultura autoritária.

A crise da democracia é uma crise da própria sociedade de classes em meio à expansão do neoliberalismo5 5 Para saber mais sobre as formas como o neoliberalismo vem atuando no contexto brasileiro, indicamos as seguintes fontes: Andrade et al. (2021), Frigotto e Ferreira (2019), Mascaro (2018), Miguel (2019) e Souza (2016). . Por causa disso, a crise é, na esfera do discurso, o que compromete a relação de diálogo. Neste contexto, o fenômeno da transformação da comunicação em mercadoria, produzida com as mais sofisticadas técnicas jornalísticas e de propaganda, associa-se com o desenvolvimento e acessibilidade tecnológica que criou o consumidor da comunicação, enredado no fetiche da mercadoria da notícia ou prisioneiro das fake News6 6 Para uma visão crítica desse fenômeno, indicamos a obra de Santaella (2018), A pós-verdade é verdadeira ou falsa? especialmente o capítulo I intitulado “O que as bolhas ocultam”. . A tendência do usuário das mídias sociais está longe de se preocupar, em desvendar criticamente uma notícia ou uma fake News, mas usá-la conforme suas crenças, as quais também formadas geralmente sem criticidade. Desse modo, o colonialismo midiático compromete o diálogo transformador e ameaça a democracia.

Neste trabalho, propomos desenvolver o conceito de formagir ancorado no diálogo, como uma forma de agir ético e político, apoiados no pensamento de Paulo. A proposição hipotética a ser investigada compreende o diálogo como um formagir político, sendo esse um dos temas principais na obra deste filósofo da educação brasileira. Por isso, o problema fica delineado nesta questão: que é o formagir dialógico político na perspectiva de Freire?

A pesquisa de caráter filosófico segue a metodologia de análise de conceitos, reconstruindo-os a partir da leitura das obras de Freire. A hipótese que se propõe desenvolver, nesse itinerário de construção conceitual, toma o formagir dialógico criador das formas democráticas como formas éticas e políticas. Por sua vez, a pesquisa busca creditar ao formagir a noção de prática libertadora, como processo do “ser mais”, como ser que ainda não se é e que se cria no devir da libertação, plasmando dialética e praxiologicamente modos de se humanizar pelo diálogo. A proposição do formagir dialógico entende a educação como libertação ética, política e estética, dimensões do crescimento humano. Assim, nosso objetivo é analisar o diálogo, articulando três dimensões que se complementam: o formagir político, o formagir libertador e o formagir educacional. Consideramos que essas três dimensões do formagir dialógico são centrais, para contribuir com os estudos de enfrentamento crítico do colonialismo, no mundo atual, que vem se agravando pela imposição de condições opressoras pelo neoliberalismo, que se serve de mecanismos como o autoritarismo conservador, o negacionismo e o revisionismo histórico e reformas que privilegiam o mercado. Nessa perspectiva, o colonialismo neoliberal ameaça a democracia, os direitos humanos, a educação libertadora e a possibilidade de humanização pelo processo de dialogar pensando crítica e criativamente o mundo comum.

Para o trabalho de análise do conceito de diálogo e educação, tomaremos como referência as obras de Freire que tratam com mais intensidade esses conceitos: Educação e Atualidade Brasileira (2001); Educação como prática da liberdade (1989b); Extensão ou comunicação? (1980 / 1983); Pedagogia do oprimido (1988); Por uma pedagogia da pergunta (1985); Pedagogia da autonomia (1996) e artigos do autor que tratam dessa problemática.

Na primeira parte do estudo, analisamos a relação entre política e educação, fazendo crítica à ideia de neutralidade docente e à necessidade de perceber a politicidade presente no formagir educador. Em continuidade, abordaremos a educação problematizadora, por meio do diálogo crítico e criativo, compondo o formagir epistêmico, ético e político. Essa discussão nos leva necessariamente a compreender o conceito de opressão, do qual se depreende a vocação libertadora dos oprimidos. Nesse sentido, aportamos a libertação como condição do formagir. Na última parte, discutimos a relação do diálogo com a democracia, como possibilidade de esperançar mudanças que efetivem na história o ser mais, rompendo com a inexperiência e barbárie da opressão. Formagir democrático é a tarefa urgente da educação como possibilidade de enfrentamento do processo de regressão à barbárie colonialista autoritária e criação de uma vida comunitária, compartilhada, humanizada.

Origens do Formagir

Iniciamos nossa análise com um breve ensaio acerca do termo formagir que, sob nossa perspectiva, implica a diferenciação entre dois termos: fazer e agir. Essa diferenciação necessita de uma licença compreensiva do leitor, porque ela resulta de um esforço reflexivo, a partir das obras de Freire. Nesse sentido, reconhecemos a diferenciação é bastante problemática, porque Freire elaborou o conceito de “quefazer” que usa os dois termos: fazer e agir. Entretanto o que estamos postulando é uma diferenciação que pode aprimorar a perspectiva de Freire.

A exigência da leitura de Freire impõe primeiramente compreender o conceito de quefazer. A junção das duas palavras, “que” e “fazer”, pode ser escrita de duas formas: “que fazer?” e “que fazer!” A primeira, uma atitude de busca, que se liga à ideia de “ad-mirar” e transformar, amplamente usada por Freire; a segunda, uma atitude de acomodação à realidade opressora, criticada pelo autor. Buscamos apoio na explicação do termo quefazer, em dois estudiosos de Freire, Zitkoski e Streck (2010)Zitkoski, J. J., & Streck, D. R. (2010). Que fazer. In D. R. Streck, E. Redin, & J. J. Zitkoski (Orgs.). Dicionário Paulo Freire (2a ed., pp. 671-674). Autêntica., apontando uma aproximação à primeira forma exposta anteriormente: “No caso, o ‘que’ designa a busca de uma direção e conteúdo para a ação e o ‘fazer’ diz de forma direta que se trata de um agir no sentido de produzir algo” (p. 671).

Freire (1988)Freire, P. (1988). Pedagogia do oprimido(18a ed.). Paz e Terra. se dedica a desenvolver o conceito de “quefazer” de forma mais intensa na obra Pedagogia do oprimido. Ele usa a termo para diferenciar o ser humano do animal. Assim, é próprio do homem o quefazer, enquanto é próprio do animal o fazer:

Os homens são seres da práxis. São seres do quefazer, diferentes, por isso mesmo, dos animais, seres do puro fazer. Os animais não “ad-miram” o mundo. Imergem nele. Os homens, pelo contrário, como seres do quefazer, “emergem” dele e, objetivando-o, podem conhecê-la e transformá-la com seu trabalho

(Freire, 1988Freire, P. (1988). Pedagogia do oprimido(18a ed.). Paz e Terra., p. 121).

Freire usa o conceito de “quefazer” para designar o fazer que é orientado por uma teoria ou ciência. Assim, esse conceito pode compreender, por um lado, um fazer não humanista próprio do opressor e do oprimido que hospeda em si o opressor e, por outro lado, o fazer humanista do oprimido, no seu processo de libertação, envolvendo também o fazer do trabalhador social ou educador comprometido com o processo de transformação do mundo. Em suas palavras: “Esta é a razão pela qual o quefazer opressor não pode ser humanista, enquanto o revolucionário necessariamente o é. Tanto quanto o desumanismo dos opressores, o humanismo revolucionário implica na ciência” (Freire, 1988Freire, P. (1988). Pedagogia do oprimido(18a ed.). Paz e Terra., p. 130). Essa compreensão de quefazer é assumida também por Zitkoski e Streck (2010)Zitkoski, J. J., & Streck, D. R. (2010). Que fazer. In D. R. Streck, E. Redin, & J. J. Zitkoski (Orgs.). Dicionário Paulo Freire (2a ed., pp. 671-674). Autêntica.:

Que Fazer da posição cômoda do discurso fatalista neoliberal, que quer nos convencer de que não há outra saída, deve ser rechaçado com o Que Fazer da práxis transformadora, fundado na postura ética humanizadora, que nos remete para a necessária intervenção no mundo no âmbito de nossa ação enquanto educadores ou cidadãos inseridos em um contexto social concreto (pp. 673-674).

Freire se dedica a qualificar o “quefazer”, na perspectiva da pedagogia dos oprimidos com as seguintes conotações: práxis, ação-reflexão, problematização, transformação, ação libertadora, criticidade7 7 Para aprofundar esse conceito em Freire, indicamos a seguinte referência: Muraro (2015). , ser mais. Entretanto consideramos problemático, senão contraditório, o “quefazer” designar também o modo de proceder do opressor caracterizado como desumano, transgressor da ética, quefazer mecânico, ser menos e ter mais, pragmático.

Dessa forma, para superar esse impasse, propomos o termo formagir, para explicitar o sentido freiriano de quefazer histórico, ético e político da libertação, conforme síntese de Zitkoski e Streck (2010)Zitkoski, J. J., & Streck, D. R. (2010). Que fazer. In D. R. Streck, E. Redin, & J. J. Zitkoski (Orgs.). Dicionário Paulo Freire (2a ed., pp. 671-674). Autêntica.: “Que Fazer está ali colocada na busca de explicitar sua posição ético-política, bem como sua visão de mundo e de ser humano enquanto presença histórica” (p. 673).

A partir desse entendimento de formagir, consideramos necessário explicitar a diferença entre fazer e agir. Nesse sentido, vamos partir de alguns usos do termo fazer que, ao nosso entendimento, implicam a produção material do mundo pela execução de uma tarefa previamente delineada, com um fim externo a ela: fazer a lição, fazer um artefato (na fábrica, indústria etc), fazer um serviço, fazer uma casa, fazer uma peça, fazer uma jogada etc. Tem, portanto um caráter de materialização de algo previamente delineado por outrem que não o sujeito que faz a coisa. Nessa ótica, o termo fazer implica uma dicotomia entre teoria e prática, entre os que pensam o fazer e os que faz executam.

Sendo assim, o fazer implica uma relação de dominação, à medida que o fazer dos trabalhadores significa seguir regras do ofício, um fazer determinado pela fábrica, indústria, comércio, serviços. O fazer é reprodução de esquemas, modelos, métodos, carregando o sentido de rotina, de execução de algum algoritmo. O fazer é prescritivo, ordenado e hierarquizado. Fazer é próprio da massa, como trabalho mecânico e controlado. O fazer evita tudo que é problemático porque inibe a eficiência da produção ou desvio de comportamento. Ele não possibilita a experiência, mas apenas a repetição do mesmo experimento em busca do mesmo resultado. A consciência se reduz à atenção e ao pensamento instrumental e atua como conferencista do processo para regular possíveis desvios que comprometeriam o produto. O resultado é quantidade e a qualidade que se auferem em vista do planejamento da produção. Nessa perspectiva, o fazer não desencadeia a historicidade, uma vez que prima pela repetição do mesmo padrão ou modelo.

O filosofar se contrapõe ao fazer, pois este é mecânico, reprodutor, passivo e espectador, por receber o fazer pensado, controlado e disciplinado por outro. Dessa forma, o filosofar faz a crítica aos fazeres, aos seus métodos e às suas consequências na vida pessoal e social.

Os usos mencionados anteriormente não cabem para o termo agir. Agir é criatividade e invenção. O agir é a fonte do pensamento: refletir, criar, deliberar, escolher, decidir, qualidades da moralidade e da politicidade. Agir é o princípio, meio e fim da atividade. O agir põe em movimento o uso da liberdade, possibilitando a experiência. É oposto à receptividade passiva, à rotina, à mecanização do fazer.

O agir pensando ou o pensar agindo modifica um saber, um conceito, uma ideia ampliando os significados. Agir é exercer o poder no meio social e cultural em que se vive. É conduzir-se, portanto é autonomia e autogoverno.

O agir gera o aprender que não acaba com um saber provisório, podendo se alimentar dele para novo saber. O agir instaura a novidade no mundo. É o que permite ao ser humano ser o que não é, construtor de novos modos de vida na interação social.

Agir está para aprender, para lidar com o problemático de cujo processo não se sabe previamente a solução. Os problemas são a matriz do formagir. E o problema central do formagir é o próprio ser humano que ainda não se é, o ser inacabado, o ser mais.

Formagir é o trabalho dialogado (com o outro), percebendo-se como sujeito histórico, social, inacabado e projetado, condicionado por um contexto experiencial, mas não determinado.

Nesse sentido, formagir constitui o campo de criação do humano, portanto da subjetividade na relação intersubjetiva.

A pedagogia bancária, centrada no depósito ou transmissão de conhecimentos, é uma pedagogia do fazer: fazer-se disciplinado, fazer tarefas, fazer atividades, fazer a lição, fazer a prova. Prevalece a relação de mandar e obedecer, aprender e reproduzir.

Formagir ou educagir é conduzir-se pelo pensamento crítico e criativo no enfrentamento dos problemas comuns por meio do diálogo. Este enfrentamento é posicionamento crítico diante das forças do fazer8 8 Utilizaremos o termo “fazer” em itálico, para indicar o sentido explicitado anteriormente, exceto quando estiver em citações. para que o agir criativo alimente a libertação e transforme o mundo.

O formagir político e a pergunta

A reflexão de Freire (1982)Freire, P. (1982). Educação: o sonho possível.In C. R. Brandão (Org.), O Educador: Vida e morte(pp. 89-102). Graal. acerca da relação entre conhecer e poder é valorosa para entender o conceito formagir aqui em construção. Em um texto escrito quatro meses, após seu retorno do exílio intitulado “Educação: o sonho possível”, Freire analisa a relação entre o conhecer, o poder, a política e a educação. O argumento central é que a relação que se estabelece entre o conhecimento e a educação tem natureza política.

Para o autor, essa relação do poder com o conhecer se evidencia, quando perguntamos o que conhecer? para que conhecer? e como conhecer? Perguntas levam a pensar o método de conhecer (Freire, 1982Freire, P. (1982). Educação: o sonho possível.In C. R. Brandão (Org.), O Educador: Vida e morte(pp. 89-102). Graal.). Esse método9 9 Acerca da relação de método e existência, destacamos a contribuição de Simone Weil (1978, p. 73): "Quando realmente utilizamos método, é que realmente começamos a existir [...] Nas ações que têm método, nós agimos...nós realmente agimos." Emprestamos esse sentido, para conotar o formagir, ressalvando que o próprio método é criado no processo de formagir e não externo a ele como ocorre com o fazer. Neste sentido, na perspectiva de Freire, o conceito de “pensar certo” representa a rigorosidade metódica alimentada pela curiosidade epistemológica crítica. de conhecer é o método de perguntar como forma de problematizar a experiência existencial historicamente situada. Por sua vez, essa pergunta colocada por Freire tem caráter político também, quando acompanhada da pergunta acerca de quem faz tais perguntas e em que contexto as faz: “E quem é que deve fazer a pergunta em torno do que conhecer, e qual é a legitimidade que eu, como educador, tenho de fazer essa pergunta antes de estar com os educandos?” (Freire, 1982Freire, P. (1982). Educação: o sonho possível.In C. R. Brandão (Org.), O Educador: Vida e morte(pp. 89-102). Graal., p. 96). Essa pergunta leva a refletir sobre o autoritarismo, “quase natural”, diz o autor, implícito no ato de a definição do conteúdo programático ditado de cima para baixo, para todo o país e, hoje, em escala mundial, sem distinção das especificidades de cada realidade regional ou cultural e, com exclusão completa dos educandos, afrontando o seu direito de escolher, em função de sua idade, de sua prática, de suas necessidades, de seus interesses. Nesse caso, poderíamos acrescentar que os educandos são impedidos de se conhecer exatamente nas dimensões citadas e, por sua vez, perpetuam o ciclo vicioso da aprendizagem. Dessa forma, essa prática de cunho político autoritário adquire a conotação de um fazer educação num processo verticalizado próprio do colonialismo.

Freire insiste neste caminho de perguntar sobre o conhecer acrescentando ainda outras perguntas: “[...] em favor de que conhecer e, portanto contra que conhecer; em favor de quem conhecer e contra quem conhecer” (Freire, 1982Freire, P. (1982). Educação: o sonho possível.In C. R. Brandão (Org.), O Educador: Vida e morte(pp. 89-102). Graal., p. 97). Perguntar é parte do método que Freire está advogando, a problematização do mundo. As perguntas problematizadoras do trabalho do professor levam, necessariamente, a compreender que a educação não é um trabalho neutro que se presta a uma abstração chamada de humanidade. Nesse contexto, o autor denuncia a aversão dos educadores ao poder e à politicidade de sua prática, que corresponde à radical necessidade do método de perguntar: “Aí, então, necessariamente entra na reflexão sobre educação a questão do poder, de que nós os educadores quase sempre nos distanciamos tanto. É como se tivéssemos assim uma espécie de vergonha do poder, nojo do poder, nojo de ser políticos” (Freire, 1982Freire, P. (1982). Educação: o sonho possível.In C. R. Brandão (Org.), O Educador: Vida e morte(pp. 89-102). Graal., p. 96). O próprio autor fez a autocrítica, ao reconhecer que parte da sua produção teórica, como a obra Educação como prática da liberdade, reflete uma prática política, mas ele não se assume explicitamente dessa forma. Reconhece, assim, a relação entre poder, política e educação: “Daí a sua politicidade, qualidade que tem a prática educativa de ser política, de não poder ser neutra” (Freire, 2007Freire, P. (2007). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa (35a ed.). Paz e Terra., pp. 69-70, grifo do autor). Não sendo neutra, a prática impõe ao educador crítico escolhas, sobretudo, escolhas em que ele possa continuar exercendo a liberdade de escolha, a sua autonomia pedagógica (Freire, 2007Freire, P. (2007). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa (35a ed.). Paz e Terra.). Por isso, essa relação intrínseca entre educação e poder constitui o formagir: a relação dialógica que se estabelece numa comunidade de professores, estudantes, famílias – formagentes; relação dialógica na escolha de conteúdos, métodos, técnicas, espaços e temporalidades; relação dialógica crítica na relação com os saberes e práticas na sua historicidade; relação dialógica com o projeto de humanização da comunidade.

Em outra obra, construída em forma de diálogo, Medo e Ousadia, Freire e Shor (2003)Freire, P., & Shor, I. (2003). Medo e ousadia: O cotidiano do professor.Paz e Terra. afirmam insistentemente a compreensão da relação mútua entre a educação e a política: “Agora eu digo que, para mim, a educação é política. Hoje, digo que a educação tem a qualidade de ser política, o que modela o processo de aprendizagem. A educação é política e a política tem educabilidade” (Freire & Shor, 2003Freire, P., & Shor, I. (2003). Medo e ousadia: O cotidiano do professor.Paz e Terra., pp. 76-77). A politicidade da educação e a educabilidade da política exigem criticidade, para compreender o mundo da opressão e compromisso com uma práxis de transformação das relações de poder pela autonomia, autodeterminação e empoderamento democrático. A criticidade permite desvelar o mito da neutralidade científica da educação e da própria pedagogia como ciência. Uma educação na e para a democracia, que se constrói no processo de libertação, no devir da práxis, não pode resultar de previsão rigorosamente científica, pois se transformaria num fazer. Mais do que científica, sem prescindir da ciência, a educação democrática depende de uma educação filosófica10 10 Para aprofundar essa relação indicamos a seguinte referência: Muraro (2015). . Na perspectiva de Freire (1987Freire, P. (1987). Educação como prática da liberdade(19a ed.). Paz e Terra., 1988Freire, P. (1988). Pedagogia do oprimido(18a ed.). Paz e Terra., 1997Freire, P. (1997). Professora sim, tia não: Cartas a quem ousa ensinar. Olho Dágua., 2007)Freire, P. (2007). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa (35a ed.). Paz e Terra., a prática democrática produz sabedoria, um conotativo da filosofia. E sabedoria diz respeito às diferentes dimensões da prática social que envolve a moral, a política, a estética, a epistemologia. Como observado no início deste trabalho, o próprio autor apoiou-se em diferentes filosofias para criar sua paideia de educação problematizadora. A dimensão filosófica do formagir é o questionamento, a criticidade e criatividade do inédito viável na história (Freire, 1988Freire, P. (1988). Pedagogia do oprimido(18a ed.). Paz e Terra.), que requer capacidade de pensar dialogando, que envolve as dimensões filosóficas da experiência em comunidade que acabamos de citar. Portanto Freire (1997, p. 81)Freire, P. (1997). Professora sim, tia não: Cartas a quem ousa ensinar. Olho Dágua. estabelece uma relação necessária entre sabedoria e crescimento: “Não é possível saber sem uma certa forma de crescimento. Não é possível crescer sem uma certa forma de sabedoria”. Creditamos ao formagir essa especificidade do ser humano de tomar o próprio crescimento, como objeto de seu saber podendo historicizar-se criticamente, como sujeito social no mundo.

O autor ressalta que a prática do educador não é de ordem técnica nem rigorosamente científica, mas artística11 11 A dimensão artística é central na concepção de pedagogia de Freire entendida como arte de ensinar e aprender, processo constituinte do ser humano que é compreendido como um ser inacabado e vocacionado para ser mais. Nesse sentido, é importante destacar as obras Pedagogia do oprimido (1988) e Pedagogia da autonomia (2007), em que a arte de ensinar e aprender é amplamente discutida. Por um lado, a arte funciona como um antídoto ao fazer burocrático, domesticador e reprodutor dos métodos, receitas e tecnologias usadas, para transferir conhecimento do professor para o aluno, como acontece na educação bancária. Por outro lado, a arte refere-se ao ato de conhecer como ato criativo dos sujeitos que se humanizam, transformam e se libertam. Dessa forma, a dimensão artística é condição para apreender crítica e criativamente o inédito viável que permite ao ser humano se tornar sujeito de sua história. A arte subentende a dimensão estética expressada também pelo termo "boniteza". É importante ressaltar a articulação que Freire (2007) faz entre a ética e a estética, expressada da seguinte forma: "Decência e boniteza de mãos dadas" (p. 32). Arte e Boniteza expressam um modo de agir que perpassa inteiramente a prática docente, no processo de acolher o estudante, dialogar, problematizar e de criar o conhecimento, a partir da experiência existencial, transformando-a. e política. A condição é a criatividade, deliberação e escolha (Freire, 1983aFreire, P. (1983a). Educação e mudança. Paz e Terra.). O poder coloca para o educador o problema de clareza política que requer assumir o compromisso com a não neutralidade da prática político-educativo. Nesse sentido, ao assumir esse compromisso, não pode silenciar diante dos educandos, e o mesmo princípio o leva a respeitar os outros. Respeitar é ato ético-político-epistêmico porque implica em ouvir o outro, acolher o seu “saber de experiência feito” Freire (1987Freire, P. (1987). Educação como prática da liberdade(19a ed.). Paz e Terra., 1988Freire, P. (1988). Pedagogia do oprimido(18a ed.). Paz e Terra., 2007)Freire, P. (2007). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa (35a ed.). Paz e Terra., mas também perguntar como forma distanciamento crítico (ad-mirar), como prática do “pensar certo” de desvelamento da realidade e criação de uma prática transformadora, humanizada e democrática. O formagir do educador é a arte e a política do perguntar, a partir de um determinado chão compartilhado com os oprimidos. Neste sentido, o formagir incorpora os “saberes necessários ao professor” explicitados na Pedagogia da autonomia (Freire, 2007Freire, P. (2007). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa (35a ed.). Paz e Terra.).

Outro aspecto destacado pelo autor é a necessidade de coerência entre um discurso progressista, democrático, revolucionário, como discurso político e a coerência prática: “Será exatamente esta coerência que autentica a opção política e a clareza política” (Freire, 1982Freire, P. (1982). Educação: o sonho possível.In C. R. Brandão (Org.), O Educador: Vida e morte(pp. 89-102). Graal., p. 98). O autor revela que esse é o caráter de seus escritos que vinculam o discurso com a prática. Daí o caráter dialógico do trabalho intelectual-social imprimido em suas obras e em suas ideias. Ressalta que é fundamental selar consistente e coerentemente prática e discurso político. Assim, o formagir do educador é artístico e político, no processo de eleição dos problemas educativos, contrapondo-se às educações bancárias do fazer pedagógico que se ocupam com a transmissão de saberes, habilidades e competências.

Como mencionado em citação anterior, o autor coloca o problema do método. Ele critica o modelo lógico-formal que acaba por dicotomizar e, dessa forma, separa os processos de aprendizagem como método e conteúdo, objetivos e prática etc. Um método estático, mecânico, esquemático de pensar que, baseado em especialidades técnicas, separa práticas e sujeitos, o que pensa e o que executa (Freire, 1983bFreire, P. (1983b). Extensão ou comunicação?(7a ed.). Paz e Terra.). Isto põe em evidência a necessidade de romper com esse padrão metodológico do fazer dicotômico.

Freire percebeu a necessidade de romper com o modo de pensar colonizado e buscou forma dinâmica e dialética de pensar. O método dialético de Freire é método perguntador que explora e desnuda as contradições da realidade. O desafio é, como esclarece o autor, pensar a complexidade do óbvio da experiência, desconfiar de sua aparência, tomá-la na mão, encontrar rachadura na obviedade para entrar e poder vê-la de, desde e por dentro e de dentro para fora. Assim, o método dialético problematiza visando investigar as contradições do real. Essa é a matriz da educação problematizadora preconizada pelo autor. Problematizar faz parte da experiência existencial autêntica que, resistente, não se deixa tutorar pela ideologia alienadora. Por sua vez, o método dialético é operacionalizado pelo diálogo em torno da experiência comum compartilhada. Nesse sentido, um trabalho significativo do autor é a obra Por uma pedagogia da pergunta (1985), em que Freire dialoga com o Filósofo chileno Antonio Faundez sobre a experiência do exílio que marcou a vida de ambos. Freire explicita o sentido desse livro dialógico: “E, ao fazê-lo, estamos aceitando, responsavelmente, expor-nos a uma experiência significativa: a de um trabalho em comunhão’ (Freire & Faundez, 1985Freire, P., & Faundez, A. (1985). Por uma pedagogia da pergunta.Paz e Terra., pp. 10-11). É importante destacar o relato de Faundez acerca de sua visão dialógico-político do trabalho com a filosofia: “A filosofia para nós constituía um meio de análise da situação política, de nossa vida no mundo concreto, em nosso país [...] estudávamos filosofia para resolver problemas e não para aprender sistemas” (Freire & Faundez, 1985Freire, P., & Faundez, A. (1985). Por uma pedagogia da pergunta.Paz e Terra., p. 15). O estudo da filosofia se justifica como processo de apropriação de conceitos, da capacidade crítica para compreender a realidade e, como diz o filósofo, a exigência é de pensar como “[...] as ideias se concretizam nas ações diárias, políticas, pessoais etc.” (Freire & Faundez, 1985Freire, P., & Faundez, A. (1985). Por uma pedagogia da pergunta.Paz e Terra., p. 34).

Freire analisa sua experiência de exílio que o obrigou a interagir com outras formas culturais e destaca um princípio importante para o método dialógico: “O diálogo só existe quando aceitamos que o outro é diferente e pode nos dizer algo que não conhecemos” (Freire & Faundez, 1985Freire, P., & Faundez, A. (1985). Por uma pedagogia da pergunta.Paz e Terra., p. 36). O diálogo pressupõe a escuta do outro e a pensar o conhecimento novo no confronto com o conhecimento de “experiência feito”. O diálogo confronta as “leituras de mundo”, questiona as crenças e suas possíveis contradições. O autoritarismo é a negação do diálogo, pois impõe ao outro o conhecimento como verdade absoluta. O autoritarismo nega a pedagogia da pergunta, pois se acha imune ao questionamento. Assim, a pedagogia da pergunta é uma pedagogia política, pois é uma forma de enfrentamento ao autoritarismo e, ao mesmo tempo, é um compromisso com o diálogo na construção do conhecimento. Como resultado desse entendimento, o diálogo é uma prática revolucionária que busca romper com uma sociedade autoritária denunciando-a pela coisificação desumanizadora das pessoas. Desta forma, formagir é uma política de enfrentamento do autoritarismo, por meio da problematização desse fazer doutrinador e desumanizante e engajamento criativo em novo projeto de mundo compartilhado solidariamente.

Nesse diálogo entre Paulo e Antônio, Faundez coloca a questão central da relação da pedagogia da pergunta proposta por Freire com a prática política. Por um lado, a autêntica problematização está ligada à curiosidade e é capaz de desvendar as contradições da realidade pelo processo dialógico. Por outro lado, o sistema da educação bancária faz das perguntas e respostas um conteúdo a ser ensinado, comunicado aos estudantes e sob tutela do professor. A identificação dessas duas alternativas indica que não é possível neutralidade; elas determinam as posições políticas no campo educacional com base na relação poder e saber. Assim, na sociedade autoritária, de matriz colonialista, quem detém o poder detém o saber, a educação reproduz essa relação ao atribuir poder e saber ao professor. Nesse caso, perguntas e respostas padronizadas estão sob o controle do professor, para transmitir aos alunos, para aprovação em provas, exames, avaliações, vestibulares etc. Nesse modelo, as perguntas induzem a esquemas de interpretação, programam e tutelam a reflexão do professor e do aluno, além de implicar numa dicotomia entre teoria e prática, uma vez que o que aprende está em função do sistema escolar e não da experiência existencial. A educação gira em torno de um domínio mecânico e rotineiro de fazer perguntas prontas. O professor sequer se pergunta, ou pergunta sobre a própria pergunta e a resposta dada. Perdendo-se a capacidade de perguntar, para administrar perguntas técnicas, o professor perde a capacidade de investigar. Daí a necessidade de rompimento político com essa prática de poder autoritário, democratizando o aprender a perguntar como ato primeiro da curiosidade, do pensar e do conhecer (Freire & Faundez, 1985Freire, P., & Faundez, A. (1985). Por uma pedagogia da pergunta.Paz e Terra.).

Para o autor, o caminho é ensinar a perguntar, ensinar pelo início do próprio conhecimento e não o tomar como objeto pronto, sem suas perguntas originantes nem as perguntas criticizantes do saber. À reflexão de seu amigo Freire destaca o problema do autoritarismo que interfere na experiência educativa inibindo, reprimindo e castrando a curiosidade e a pergunta, vistas como provocação à autoridade. Existe, assim, uma pedagogia que inibe o poder revolucionário da capacidade de perguntar, de problematizar que pode desvelar o mundo.

Perguntar é incômodo, porque é prática de pensamento, irrupção de um poder que não aceita o mundo como está estabelecido. O autoritarismo que reprime a pergunta, que silencia a indagação, reprime a curiosidade e a possibilidade de um conhecimento diferente e até contraposto ao saber hegemônico, muitas vezes apresentado como “saber científico” ou “saberes da tradição da humanidade”, que teria o poder de humanizar os novos, a ser ministrados num fazer técnico de transmissão aos estudantes e em um fazer mnemônico desses que servem como critério para seu sucesso ou não nesse sistema que lhe promete um certificado ao final do processo. Nesse sentido, Freire alerta para a gravidade da repressão à pergunta, porque ela “[...] é uma dimensão apenas da repressão maior – a repressão ao ser inteiro, à sua expressividade em suas relações no mundo e com o mundo” (Freire & Faundez, 1985Freire, P., & Faundez, A. (1985). Por uma pedagogia da pergunta.Paz e Terra., p. 47). Formagir é libertação dessa repressão pela criatividade da pergunta (Muraro, 2020Muraro, D. N. (2020). Importância da pergunta na educação filosófica da criança. Interfaces da Educação, 10(30), 414-438. https://doi.org/10.26514/inter.v10i30.4135
https://doi.org/10.26514/inter.v10i30.41...
).

Freire critica este processo de dominação adaptadora do estudante, por meio do fazer burocrático da pergunta na educação bancária, que nega o assombro, o risco da invenção e reinvenção, a criatividade e a possibilidade de aprender com o erro. Nega-se, assim, a própria existência humana (Freire & Faundez, 1985Freire, P., & Faundez, A. (1985). Por uma pedagogia da pergunta.Paz e Terra.). Para Freire, a educação sucumbiu a uma racionalidade técnica e produtiva. Dessa forma nega o que vimos insistindo que é seu caráter político. Diz o autor: “Sem essa aventura, não é possível criar. Toda prática educativa que se funda no estandardizado, no pré-estabelecido, na rotina em que todas as coisas estão pré-ditas, é burocratizante e, por isso mesmo, antidemocrática” (Freire & Faundez, 1985Freire, P., & Faundez, A. (1985). Por uma pedagogia da pergunta.Paz e Terra., p. 52).

Nesta obra, em forma de diálogo, os autores constatam que a racionalização dos procedimentos ancorados no desenvolvimento da ciência visa tornar eficiente o trabalho e atender à exigência de maior produtividade que é a natureza do modo de produção capitalista. A escola passou a reproduzir este modelo, embrutecendo a capacidade criativa e inventiva dos educandos, disciplinando-os e adaptando-os a tal procedimento, em função de uma educação produtiva para esse sistema. A crítica se faz pertinente ao modelo de fazer o ensino da educação digital que vem ganhando espaço em nossos tempos.

Os autores argumentam que a racionalização burocratizante da pedagogia da resposta, ao reproduzir o autoritarismo da ideologia dominante da produção capitalista, contradiz a educabilidade humana que se baseia no assombro, criatividade, curiosidade, pergunta existencial e resistência às formas de dominação.

Freire insiste na necessidade de tomar posicionamento esclarecido sobre a radicalidade da pedagogia da pergunta, porque ela é a força educacional da democracia, a ser praticada em todos os âmbitos da vida como forma de crítica ao sistema capitalista. A crítica à escola tradicional é crítica às questões técnicas e metodológicas, às relações educador-educando, ao próprio sistema capitalistas (Freire & Faundez, 1985Freire, P., & Faundez, A. (1985). Por uma pedagogia da pergunta.Paz e Terra.).

A pedagogia da pergunta dialogada pretende criar uma pedagogia descolonizadora. Ela implica romper com a moldura opressora sustentada pela classe dominante. Freire compreende que é necessário cunhar a fundo a obviedade do perguntar. As práticas escolares oscilam entre recusar e burocratizar o perguntar e não tem clareza sobre o seu caráter existencial: “A existência humana é, porque se fez perguntando, à raiz da transformação do mundo. Há uma radicalidade na existência, que é a radicalidade do ato de perguntar” (Freire & Faundez, 1985Freire, P., & Faundez, A. (1985). Por uma pedagogia da pergunta.Paz e Terra., p. 51). Essa radicalidade da pergunta se funda na capacidade de se assombrar com o mundo, de compreender a existência como risco, por isso problemática e que exige criatividade na busca de respostas, gerando, assim, ação e transformação. A pergunta tem o poder de gerar o processo dialógico, questionando o mundo da experiência em que estamos imersos, promovendo o movimento da emersão reflexiva e inserção transformadora. Na obra Extensão ou comunicação?, Freire (1983b)Freire, P. (1983b). Extensão ou comunicação?(7a ed.). Paz e Terra. analisa a articulação necessária entre pergunta e diálogo:

[...] põe-se diante de si mesmo. Indaga, pergunta a si mesmo. E, quanto mais se pergunta, tanto mais sente que sua curiosidade em torno do objeto do conhecimento não se esgota. Daí a necessidade de ampliar o diálogo – como uma fundamental estrutura do conhecimento – a outros sujeitos cognoscentes (p. 67).

Freire (1983b)Freire, P. (1983b). Extensão ou comunicação?(7a ed.). Paz e Terra. destaca a importância de uma educação que promove a curiosidade epistemológica que vai apurando a criticidade no processo de conhecer. Para ele, essa curiosidade se alimenta da relação pergunta e diálogo, no processo de construção do conhecimento existencial e da prática socializada e socializante à medida que o outro faz parte desta busca:

O sujeito pensante não pode pensar sozinho; não pode pensar sem a co-participação de outros sujeitos no ato de pensar sobre o objeto. [...] Esta co-participação dos sujeitos no ato de pensar se dá na comunicação. [...] O que caracteriza a comunicação enquanto esse comunicar comunicando-se, é que ela é diálogo, assim como o diálogo é comunicativo (p. 66).

O diálogo é atividade de pensamento em função dos problemas da existência. Dialogamos quando os problemas comuns nos fazem pensar a realidade para transformar, para humanizá-la. Por isso, o diálogo é a forma que permite aos humanos se construírem como seres se criando social e historicamente:

[...] o diálogo deve ser entendido como algo que faz parte da própria natureza histórica dos seres humanos. É parte de nosso progresso histórico de caminho para nos tornarmos seres humanos. [...] isto é, o diálogo é uma espécie de postura necessária, na medida em que os seres humanos se transformam cada vez mais em seres criticamente comunicativos

(Freire, & Shor, 2003Freire, P., & Shor, I. (2003). Medo e ousadia: O cotidiano do professor.Paz e Terra., pp. 122-123).

O diálogo é a possibilidade de realização da vocação ontológica que está no seu direito primordial de pronunciar a palavra no encontro com o outro. A relação dialógica e problematizadora conscientiza e permite a inserção crítica na transformação do mundo. Esse sentido humanizador do diálogo tem centralidade no conceito de formagir.

O formagir político da libertação

Outro fator importante neste diálogo é que o saber popular vem sendo gestado historicamente, mas devemos atentar para o processo de colonização das mentes e corpos. Nessa ótica, alerta Freire que o saber autoritário está perpassado pela “ideologia colonizadora introjetada pelo colonizador” (Freire & Faundez, 1985Freire, P., & Faundez, A. (1985). Por uma pedagogia da pergunta.Paz e Terra., p. 111). O colonizador é introjetado como “sombra” e a sua expulsão exige que o vazio seja ocupado à prática da liberdade na participação e reinvenção criativa de uma nova sociedade.

Compreender criticamente a força da ideologia colonizadora é condição para pensar a ação pedagógica de luta pela libertação que não é apenas mental ou intelectual, mas cultural, física, corporal, comportamental e econômica (Freire, 2002Freire, P. (2002). Educação e atualidade brasileira (2a ed.). Cortez; Instituto Paulo Freire.). Por sua vez, essa educação radical, revolucionária não é um fazer de transmissão do saber para as classes populares, mas processo pedagógico a ser feito de modo dialógico e problematizador com elas. Essa compreensão perpassou a vida de Freire e é essência da sua produção intelectual.

Um dos principais conceitos políticos de Freire é a opressão. Como já mencionado, esse conceito foi apresentado anteriormente pela metáfora da sombra, na sessão introdutória da obra Educação como Prática da Liberdade. Sombra simboliza o poder opressivo que se traduz numa variedade de práticas violentas, como a física, psicológica, econômica, cultural e educacional. Característica desse poder é o centralismo, verbalismo, antidialogação, autoritarismo, assistencialismo que impõem o mutismo, o quietismo e a passividade, resultando na inexperiência democrática, conforme já fora analisado na obra anterior Educação e atualidade brasileira (Freire, 2002Freire, P. (2002). Educação e atualidade brasileira (2a ed.). Cortez; Instituto Paulo Freire.) e que é aprofundado em Pedagogia do Oprimido e escritos posteriores. A opressão afronta o ser humano na sua dignidade e liberdade, proibindo-o de “ser mais” como pessoa e cidadão. Reduz o ser humano à coisa, consciência para o outro. Nessa última obra citada, Freire entende que a opressão é desumanização nos aspectos axiológico, ontológico e histórico.

Os termos que Freire (1988)Freire, P. (1988). Pedagogia do oprimido(18a ed.). Paz e Terra. usa, para conceituar a opressão, são fortes: sombra, aderência, prescrição, temor, incapacidade, sem consciência de si e de classe, gregarização, negação de si. O oprimido aliena seu poder de estar sendo para assumir uma sombra que o projeta para um mundo alheio. A sombra é a metáfora do oprimido que hospeda o opressor em si. A sombra é a cegueira de si. Venda os olhos impedindo de perceber a condição de classe oprimida a que está relegado. Ela expressa a manipulação das emoções, dos desejos e do pensar dos oprimidos de sorte a fazê-los aceitar a opressão como algo normatizado, inclusive prazeroso. Eles são levados a se conformar e aspirar os padrões que os dominam e que lhes servem de ideal de superioridade e honra. A alienação do oprimido se dá pela incorporação acrítica da ideologia do opressor, dificultando a emancipação. Para Freire (1988)Freire, P. (1988). Pedagogia do oprimido(18a ed.). Paz e Terra., os oprimidos, como seres em dualidade, são castrados da existência autêntica: Essa dualidade é uma proibição de ser, o que caracteriza a condição de violência existencial. A relação opressora inaugura a violência na história, porque nega a vocação ontológica, histórica e educativa dos homens que é a de ser mais. É importante destacar que o oprimido é vítima dessa opressão, entretanto o opressor, para assegurar seus privilégios, vitimiza a vítima, culpando-a como responsável pela sua condição de miséria na qual pratica o assistencialismo. Por sua vez, o oprimido, interditado de si, continua a admirar o opressor e a desprezar sua condição ontológica e histórica de etnia (origens, cor, genética, cultura), classe social (renda, patrimônio, família), gênero (identidades, sexualidades), origem geográfica ou qualquer outra diferença social que, à sombra do pensar opressor, o oprimido classifica como inferior. Além disso, a sombra induz ao sentimento de inferioridade intelectual, idolatrando o saber do opressor e aceitando passivamente sua narrativa, interditando também sua capacidade cognitiva de compreensão da realidade e elaboração de discurso interpretativo do mundo.

A Pedagogia do oprimido é uma denúncia da opressão, por meio da metáfora da sombra e aderência, o fazer do opressor hospedado no oprimido. Essa obra é também anúncio da libertação dos oprimidos (que inclui o opressor) por meio da metáfora do “parto doloroso” do homem novo libertando-se (Freire, 1988Freire, P. (1988). Pedagogia do oprimido(18a ed.). Paz e Terra.).

Essa dialética pedagógica da libertação é a matriz de pensamento de Freire. Portanto vemos que a pedagogia é essencialmente um fazer político: “A ação política junto aos oprimidos tem de ser, no fundo, "ação cultural” para a liberdade, por isto mesmo, ação com eles” (Freire, 1988Freire, P. (1988). Pedagogia do oprimido(18a ed.). Paz e Terra., p. 53). O formagir é essa ação política do diálogo, reflexão, criticidade, comunicação, que não se deixa cair em slogans, comunicados, depósitos e dirigismo, submete-os à crítica e dá vasão à força criadora que parteja a nova realidade existencial. Mais uma vez, o processo dialético é constituído pelo movimento de aproximação do objeto para conhecê-lo e do distanciamento do mundo para pensá-lo diferentemente do que está dado para historicizá-lo como sujeito de práxis (Freire, 1983aFreire, P. (1983a). Educação e mudança. Paz e Terra.). A reflexão e ação consequente constitui a práxis libertadora, um contínuo parir-se, um nascer de si mesmo, um crer em si mesmo, não como indivíduo isolado, uma vez que o processo de libertação é práxis solidária, dialógica, crítica. O termo práxis agora ganha sentido de libertação, por meio da reflexão e ação: “A práxis, porém é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimidos” (Freire, 1988Freire, P. (1988). Pedagogia do oprimido(18a ed.). Paz e Terra., p. 38). A práxis reflexiva libertadora leva à inserção crítica dos oprimidos nessa realidade opressora. É necessário pensá-la para objetivá-la e para agir sobre ela, para transformá-la. Freire coloca o oprimido no centro do processo dialético-pedagógico-político: “A pedagogia do oprimido que, no fundo, é a pedagogia dos homens empenhando-se na luta por sua libertação, tem suas raízes aí. E tem que ter, nos próprios oprimidos que se saibam ou comecem criticamente a saber-se oprimidos, um dos seus sujeitos” (Freire, 1988Freire, P. (1988). Pedagogia do oprimido(18a ed.). Paz e Terra., pp. 40-41). Freire (1988)Freire, P. (1988). Pedagogia do oprimido(18a ed.). Paz e Terra. entende que a liberdade não pode ser vista como uma concessão do opressor ao oprimido, nem mito que idealiza um ideal fora da existência humana ou uma propriedade pessoal e individualista. Ela não é doação. Ela resulta da luta pela superação da relação opressora feita por uma práxis solidária. Ela é condição da busca permanente de seres que se sabem inconclusos que necessitam superar a situação opressão que os desumaniza. Ela é conquista de transformação de uma realidade por outra que possibilite ser mais.

O desenvolvimento da práxis libertadora é também práxis democrática, é o formagir do diálogo com o outro na construção do espaço público comum, em comunhão: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão” (Freire, 1988Freire, P. (1988). Pedagogia do oprimido(18a ed.). Paz e Terra., p. 52). Assim, a práxis libertadora é sempre práxis democrática, condição de possibilidade, para a realização da vocação ontológica de “ser mais”, ser o que não se é, ser em devir. Libertar-se dos padrões da opressão, então admirados, impõe a tarefa de pensar outro mundo sem aqueles grilhões físicos, psicológicos, morais, sociais, econômicos. A práxis libertadora, democrática, dialógica pressupõe desenvolver o poder de distanciamento da perspectiva do opressor para um formagir que crie as condições de uma existência de dignidade e liberdade. Mas como alimentar essa luta? Na obra Educação como prática da liberdade Freire (1987)Freire, P. (1987). Educação como prática da liberdade(19a ed.). Paz e Terra. ressalta a importância do compromisso político da educação na mudança de atitude, de criação de disposições democráticas, da criação de hábitos de participação e criatividade ante os de passividade e aderência da inexperiência de diálogo, investigação e pesquisa: “E é precisamente a criticidade a nota fundamental da mentalidade democrática” (Freire, 1987Freire, P. (1987). Educação como prática da liberdade(19a ed.). Paz e Terra., pp. 123-126).

Os hábitos de criticidade e permeabilidade estão articulados com o aspecto do inacabamento e incompletude humana e, nesse sentido, atributos também da liberdade e democracia. Estes conceitos da práxis conotam a necessária condição constitutiva do ser mais, de abrir-se para outrem, da disposição de escutar os outros e a se reconhecer como ser falível e autocorrigível para não reproduzir a opressão. O agir democrático cultiva a “transitividade crítica”, a disposição de rever as regras que assumimos como diretrizes norteadoras da vida em comunhão. A democracia para Freire (1987)Freire, P. (1987). Educação como prática da liberdade(19a ed.). Paz e Terra. não se reduz à forma de governo, mas requer construir “formas de vida” transitivas, “plásticas”, crítica, comunicativas. Por isso, a democracia é um regime histórico inacabado, que se nutre da mudança: “A própria essência da democracia envolve uma nota fundamental, que lhe é intrínseca – a mudança. [...] São flexíveis, inquietos e, devido a isso mesmo deve corresponder ao homem desses regimes maior flexibilidade de consciência” (Freire, 1987Freire, P. (1987). Educação como prática da liberdade(19a ed.). Paz e Terra., p. 97). No formagir democrático, a mudança é pelo diálogo que transforma a realidade a qual vai transformando o próprio ser humano aberto, inconcluso, inacabado. Freire cria o conceito de boniteza para expressar sua admiração ao agir do homem no mundo. Ele analisa, a partir desse conceito, a dimensão estética dessa intervenção humana no mundo do qual participa o próprio processo de conhecer: “[...] uma das bonitezas de nossa maneira de estar no mundo e com o mundo, como seres históricos, é a capacidade de, intervindo no mundo, conhecer o mundo” (Freire, 2007Freire, P. (2007). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa (35a ed.). Paz e Terra., p. 19).

A análise de Freire é radicalmente crítica ao modelo de educação preponderante no Brasil desde o período colonial. A metáfora da sombra serve para compreender a educação nacional. As reformas educacionais não conseguiram romper com a educação bancária, que é autoritária e tem poder apassivador da curiosidade (Freire, 2007Freire, P. (2007). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa (35a ed.). Paz e Terra.). Essa educação mistifica a realidade, oculta as razões do estar sendo dos homens; a educação problematizadora é dialógica, problematizadora e desveladora da realidade (Freire, 1983bFreire, P. (1983b). Extensão ou comunicação?(7a ed.). Paz e Terra., 1988). Pensar numa sociedade democrática exige um posicionamento ético-político em relação ao formagir educativo.

O processo de desvelamento ocorre pela problematização da realidade, como já discutimos e é constituinte do formagir. Na obra Pedagogia da autonomia (1996), Freire dá destaque para o ciclo gnosiológico como forma de conhecer para transformar o conhecido. Uma educação problematizadora se faz pelo desenvolvimento da capacidade de discernimento dos diversos aspectos dessa realidade existencial, ao mesmo tempo que intencionaliza o agir como forma de assumir seu compromisso com a sua historicidade. Essa prática reflexiva existencial envolve “A questão da decisão, da opção, da valoração, da ética, da estética. Evidentemente a questão da opção, da decisão implica uma realidade concreta que mulheres e homens sonham, escolhem, valoram e lutam por seus sonhos” (Freire, 1992Freire, P. (1992). Pedagogia da esperança(17a ed.). Paz e Terra., p. 143). A negação do discernimento crítico e criativo é a principal causa da opressão.

O formagir ético-político da democracia

Na perspectiva de Freire (1987)Freire, P. (1987). Educação como prática da liberdade(19a ed.). Paz e Terra., a condição central da democracia é que ela seja construída com as mãos do povo. Entretanto Freire reconhece a fragilidade histórica da democracia pela inexperiência democrática do processo colonizador, o que se traduz numa inexperiência de ser povo por ele ser colocado à margem, alheio aos acontecimentos, silenciado, sem conhecimento e participação na coisa pública e tratado de forma assistencializada (Freire, 1987Freire, P. (1987). Educação como prática da liberdade(19a ed.). Paz e Terra., 2002). Assim, Freire considera necessário criar algumas qualidades democráticas, por meio de experiências que desenvolvam hábitos, crenças, atitudes formadoras da disposição mental, características do modo de vida democrático, como o debate público, exame de problemas comuns numa ação cultural que permita a transitividade da consciência.

A democracia12 12 Dalaqua (2021) analisa a relação entre liberdade e democracia. Para ele, a democracia é “regime político no qual os grupos oprimidos conseguem resistir à injustiça epistêmica e à opressão que se lhes acomete. Ao dar vazão à resistência, à injustiça epistêmica e à opressão, em geral, a democracia permite que os cidadãos e cidadãs desenvolvam capacidades cognitivas e estéticas” (p. 215). se apresenta como possibilidade de criação do espaço público da reflexão sobre problemas comuns e ação consequente, criação de “um mundo comum” que torna possível a realização da vocação ontológica do ser mais na luta transformadora da situação de opressão. Na democracia participativa, as pessoas poderiam encontrar condições favoráveis ao desenvolvimento de suas capacidades que contribuiriam para o crescimento comum. Como forma de vida é uma práxis política que valoriza a manifestação da diversidade, dissenso e conflito, que torna possível a cada pessoa conhecer a perspectiva individual, parcial, mas necessária, para a constituição de um mundo comum, no encontro do “eu” com o “outro” constituindo um “nós” do povo. O político se dá no processo de pensar compartilhado ou numa “comunhão de pensares” sobre o mundo comum. Dessa forma, Freire (1988)Freire, P. (1988). Pedagogia do oprimido(18a ed.). Paz e Terra. entende ser necessária a ação cultural de base dialógica, a partir dos oprimidos, que permita o enfrentamento crítico da contradição antagônica em que se encontram, superem a cultura alienada e criativamente se comprometam com um projeto de libertação como sujeitos históricos.

Mas há forças hegemônicas que dominam o poder e que não querem o mundo comum, espaço público da liberdade e dignidade, porque ele ameaça o mundo do privilégio.

A criação de um modo de vida democrático somente pode ser sustentada pela ética do diálogo. O pressuposto da ética é a liberdade. A ética só é possível pela consciência que o ser humano desenvolve de si na relação com o outro. A ética diz respeito à dialógica constituição da subjetividade na relação com outras subjetividades. Dessa relação dialógica se constitui a consciência do mundo, capacidade de pensar-se a si mesmo, permitindo a intencionalidade da ação numa perspectiva social, cultural e histórica. Conforme Freire (1988)Freire, P. (1988). Pedagogia do oprimido(18a ed.). Paz e Terra.:

O eu dialógico, pelo contrário, sabe que é exatamente o tu que o constitui. Sabe também que, constituído por um tu – um não eu –, esse tu que o constitui se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um tu. Desta forma, o eu e o tu passam a ser, na dialética destas relações constitutivas, dois tu que se fazem dois eu (pp. 165-166).

O processo de constituição do eu está relacionado à consciência de si como ser inacabado, inconcluso, seres históricos que estão sendo em e com uma realidade em devenir e que sua vocação ontológica é a de ser mais. Para ser mais, é necessário pensar escolhas criativas, a partir do conhecimento e problematização das condições históricas e sociais e que rompam com a visão mistificada do opressor. Escolhas que inevitavelmente envolvem o outro numa busca comum. Por isso, o diálogo implica uma interação falante-pensante do processo de compartilhamento do estar sendo no mundo. Freire (1987)Freire, P. (1987). Educação como prática da liberdade(19a ed.). Paz e Terra. explicita um conjunto de valores implicados neste agir ético democrático:

E que é o diálogo? É uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade. Nutre-se do amor, da humildade da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo comunica. E quando os dois polos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé no outro, se fazem críticos na busca de algo. Instala-se, então, uma relação de simpatia entre ambos (p. 115).

A ética do diálogo envolve relações horizontais de quem se coloca criticamente na busca do ser mais com o outro e que permite o crescimento. Freire destaca nessa citação sentimentos do agir ético que tornam o mundo comum valoroso. Freire aponta um novo caminho ético para a democracia, contrapondo ao que ele chama de ética farisaica, ética do mercado que submete as relações ao primado do lucro. Podemos resgatar a crítica da inexperiência democrática e da inexperiência dialógica com a inexperiência ética da moldura colonialista. Nessa ética, não é possível diálogo, mas moralismo, imposição de normas que oprimem pelo castigo, pela culpa, pelo medo. Essa ética que adquire formato fascista, farisaico, puritana é antidialógica. Nesse sentido, não é possível diálogo entre opressor e oprimido, apenas comunicados, mandonismo e seu silenciamento. Essa ética não visa ao crescimento humano, mas adaptação passiva ao sistema do fazer do opressor, criado para o acúmulo de riquezas para o opressor e mais pobreza, menos condições de ser mais para o oprimido.

Nessa ótica, Freire entende que a ética implica sempre um engajamento filosófico, como práxis libertadora, apoiado na criticidade histórica da opressão colonizadora. A ética se desdobra em várias formas de pedagogia: pedagogia do oprimido, pedagogia da pergunta, pedagogia da indignação, pedagogia da esperança, pedagogia do diálogo, pedagogia da autonomia. Pedagogia do formagir. Essas pedagogias ou formagires têm como pressuposto ético o que vimos insistindo: a vocação ontológica de ser mais. Vocação é a própria liberdade. Somente assim é possível o formagir da experiência ética que é “[...] a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos [...]” (Freire, 1992Freire, P. (1992). Pedagogia da esperança(17a ed.). Paz e Terra., p. 41). A vocação para a liberdade, a vocação ética é também a vocação democrática, como forma de vida dialógica, em busca da vida humana e digna com o outro, que implica a criação de outro mundo possível, um mundo de diálogo, de comunhão, de cooperação e compartilhamento, rompendo com competição, exploração, concentração da renda, alienação e exclusão, fazeres próprios do capitalismo.

Considerações finais

A filosofia pode ser caracterizada, na esteira de Freire (1997)Freire, P. (1997). Professora sim, tia não: Cartas a quem ousa ensinar. Olho Dágua., como a “inteligência radical do conceito”. Neste sentido, o conceito de formagir constitui uma possibilidade de aprimorar o conceito de quefazer, apoiado na noção antropológica, ética, política, epistêmica e estética de conceber o ser humano como ser que se constitui e age no mundo, a partir do diálogo, da curiosidade e do pensar-saber. Como seres históricos, o formagir foi rompido, e mulheres e homens reduzidos a seres do fazer oprimidos no mundo da produtividade capitalista neoliberal colonialista. A pergunta do estudante, numa aula de matemática ou filosofia, “que vou fazer com isto?” ou do professor “o que fazer para o conteúdo ser interessante para o estudante?” são sinais de como essa lógica força a conformação do ser com o fazer e desse com o ter informações. As perguntas mudam quando o centro gravitacional é a construção da experiência histórica comum. Assim, o formagir se constitui como esforço de aprimorar as “armas da crítica”, no dizer de Marx, na perspectiva da filosofia da práxis libertadora de Freire.

O diálogo, como conceito central da pedagogia crítica e criativa, não é uma prática espontaneísta, licenciosa, atributos que denunciam a própria inexperiência de diálogo. O diálogo, assim como a liberdade e criatividade, não tem fórmula pré-estabelecida, mas também não acontece sem rigorosidade metódica. Diálogo se realiza no devir da reflexão e ação em que os sujeitos aprendem e crescem na diferença constituindo a cultura democrática. Dialogar, perguntar, refletir, criticizar não são práticas fáceis, ou um automatismo do fazer. É muito difícil incorporar pela práxis esse processo, sobretudo, num mundo que vive na sombra, mentes e corpos docilmente colonizados pelo encantamento anestésico da ideologia neoliberal. Vivemos tempos difíceis, em que a intolerância do fascismo, como força autoritária do neoliberalismo, em suas diversas frentes de atuação, como o negacionismo, fake news e movimentos como “Escola sem Partido”, querem fazer prevalecer uma visão de mundo que resguarda o privilégio das elites (Souza, 2017Souza, J. (2017). A elite do atraso: Da escravidão à lava jato. LeYa.) e cala a diferença. O diálogo se transforma numa luta política pela dignidade e liberdade humana.

Por fim, um formagir político tem que se conceber como um formagir educativo que se orienta pela pergunta e diálogo como devir, realizando a vocação ontológica e ética do ser mais no seu processo de libertação como prática autônoma, autogovernada democraticamente. Formagir de educador e educando como sujeitos e arquitetos de conhecimento transformador. Ser mais! Mais, e sempre mais pergunta, diálogo, democracia e humanização.

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    Normalização, preparação e revisão textual: Cia das Traduções projetos@ciadastraducoes.com.br
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    Apoio: Universidade Estadual de Londrina, PPEdu e CAPES.
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    Para aprofundar essa discussão indicam-se as seguintes fontes: Beisiegel (2010)Beisiegel, C. de R. (2010). Paulo Freire. Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana. e Muraro (2012)Muraro, D. N. (2012). Democracia e educação: aproximações entre as ideias de John Dewey e Paulo Freire. Cognitio-Estudos, 9(2), 205-226..
  • 5
    Para saber mais sobre as formas como o neoliberalismo vem atuando no contexto brasileiro, indicamos as seguintes fontes: Andrade et al. (2021)Andrade, D. P., Côrtes, M., & Almeida, S. (2021). Neoliberalismo autoritário no Brasil. Caderno CRH, 34. https://doi.org/10.9771/ccrh.v34i0.44695
    https://doi.org/10.9771/ccrh.v34i0.44695...
    , Frigotto e Ferreira (2019)Frigotto, G., & Ferreira, S. M. (2019). Cultura autoritária, ultraconservadorismo, fundamentalismo religioso e o controle ideológico da educação básica pública. Revista Trabalho Necessário, 17(32), 88-113. https://doi.org/10.22409/tn.17i32.p28304
    https://doi.org/10.22409/tn.17i32.p28304...
    , Mascaro (2018)Mascaro, A. L. (2018). Crise e golpe. Boitempo., Miguel (2019)Miguel, L. F. (2019). O colapso da democracia no Brasil: Da constituição ao golpe de 2016. Fundação Rosa Luxemburgo; Expressão Popular. e Souza (2016)Souza, J. (2016). A radiografia do golpe: Entenda como e por que você foi enganado. LeYa..
  • 6
    Para uma visão crítica desse fenômeno, indicamos a obra de Santaella (2018)Santaella, L. (2018). A pós-verdade é verdadeira ou falsa? Estação das Letras e Cores., A pós-verdade é verdadeira ou falsa? especialmente o capítulo I intitulado “O que as bolhas ocultam”.
  • 7
    Para aprofundar esse conceito em Freire, indicamos a seguinte referência: Muraro (2015)Muraro, D. N. (2015). Criticidade e educação filosófica: A formação humana pelo diálogo e problematização. EccoS - Revista Científica, 38, 59-73. https://doi.org/10.5585/eccos.n38.6032
    https://doi.org/10.5585/eccos.n38.6032...
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    Utilizaremos o termo “fazer” em itálico, para indicar o sentido explicitado anteriormente, exceto quando estiver em citações.
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    Acerca da relação de método e existência, destacamos a contribuição de Simone Weil (1978, p. 73)Weil, S. (1978). Lectures on philosophy (H. Price Trad.). Cambridge University Press.: "Quando realmente utilizamos método, é que realmente começamos a existir [...] Nas ações que têm método, nós agimos...nós realmente agimos." Emprestamos esse sentido, para conotar o formagir, ressalvando que o próprio método é criado no processo de formagir e não externo a ele como ocorre com o fazer. Neste sentido, na perspectiva de Freire, o conceito de “pensar certo” representa a rigorosidade metódica alimentada pela curiosidade epistemológica crítica.
  • 10
    Para aprofundar essa relação indicamos a seguinte referência: Muraro (2015)Muraro, D. N. (2015). Criticidade e educação filosófica: A formação humana pelo diálogo e problematização. EccoS - Revista Científica, 38, 59-73. https://doi.org/10.5585/eccos.n38.6032
    https://doi.org/10.5585/eccos.n38.6032...
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    A dimensão artística é central na concepção de pedagogia de Freire entendida como arte de ensinar e aprender, processo constituinte do ser humano que é compreendido como um ser inacabado e vocacionado para ser mais. Nesse sentido, é importante destacar as obras Pedagogia do oprimido (1988) e Pedagogia da autonomia (2007), em que a arte de ensinar e aprender é amplamente discutida. Por um lado, a arte funciona como um antídoto ao fazer burocrático, domesticador e reprodutor dos métodos, receitas e tecnologias usadas, para transferir conhecimento do professor para o aluno, como acontece na educação bancária. Por outro lado, a arte refere-se ao ato de conhecer como ato criativo dos sujeitos que se humanizam, transformam e se libertam. Dessa forma, a dimensão artística é condição para apreender crítica e criativamente o inédito viável que permite ao ser humano se tornar sujeito de sua história. A arte subentende a dimensão estética expressada também pelo termo "boniteza". É importante ressaltar a articulação que Freire (2007)Freire, P. (2007). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa (35a ed.). Paz e Terra. faz entre a ética e a estética, expressada da seguinte forma: "Decência e boniteza de mãos dadas" (p. 32). Arte e Boniteza expressam um modo de agir que perpassa inteiramente a prática docente, no processo de acolher o estudante, dialogar, problematizar e de criar o conhecimento, a partir da experiência existencial, transformando-a.
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    Dalaqua (2021)Dalaqua, G. H. (2021). Liberdade democrática como desenvolvimento de si, resistência à opressão e à injustiça epistêmica. TRANS/FORM/AÇÃO: Revista de Filosofia, 43(3), 213-234. https://doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v43n3.14.p213
    https://doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v...
    analisa a relação entre liberdade e democracia. Para ele, a democracia é “regime político no qual os grupos oprimidos conseguem resistir à injustiça epistêmica e à opressão que se lhes acomete. Ao dar vazão à resistência, à injustiça epistêmica e à opressão, em geral, a democracia permite que os cidadãos e cidadãs desenvolvam capacidades cognitivas e estéticas” (p. 215).

Referências

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Editor responsável: Alexandre Fernandez Vaz https://orcid.org/0000-0003-4194-3876

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2022
  • Revisado
    19 Out 2022
  • Aceito
    14 Dez 2023
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