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Circulação do livro escolar na imprensa local (1840-1940): O Paiz, Publicador Maranhense e Pacotilha 1 1 Editor responsável: Heloísa Helena Pimenta Rocha https://orcid.org/0000-0001-7965-4100 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Vera Bonilha verah.bonilha@gmail.com

Resumo

Neste artigo, analisam-se os registros sobre livros escolares nos jornais Publicador Maranhense (1842-1885), O Paiz (1863-1889) e Pacotilha (1880-1939), objetivando-se compreender a influência que tiveram na instrução maranhense via imprensa. Identificam-se as obras escolares e sua materialidade, os sujeitos envolvidos no controle da produção e as camuflagens em uso como táticas de apropriação, para além das diferentes concepções, conteúdos e variações, conforme as condições contextuais à luz dos pressupostos teórico-metodológicos da história cultural. Conclui-se que os livros escolares no período ocuparam lugar de destaque na imprensa, divulgando-se a produção local que foi adotada em nível nacional, seja pela qualidade exigida, seja pela influência de seus autores na província.

Palavras-chave
didático; instrução maranhense; cultura material escolar

Abstract

This article analyzes the records of schoolbooks in the newspapers Publicador Maranhense (1842-1885), O Paiz (1863-1889), and Pacotilha (1880-1939), aiming to understand their influence in Maranhão education through the press. Cultural History theoretical- methodological assumptions are used to identify the school works and their materiality, the subjects involved in production control, the camouflages used as appropriation tactics, and the different conceptions, contents, and variations according to the contextual conditions. We conclude that schoolbooks had a prominent place in the press at the time, publicizing the local productions adopted nationally due to their quality or the authors' influence in the province.

Keywords
schoolbook; Maranhão education; school material culture

Introdução

O livro escolar não é apenas um suporte em que se registram saberes e práticas, é também um objeto cultural que carrega em si valores, costumes e o discurso autorizado de um determinado grupo num tempo/espaço, sendo alvo de intensas discussões, diferentes concepções e opiniões, largamente anunciado nos jornais durante o Império e a República. Neste sentido, a imprensa periódica maranhense se faz importante não só como meio de comunicação, mas também pela sua extensa produção3 3 Foram publicados no Maranhão ao longo do século XIX cerca de 300 jornais (Velázquez Castellanos, 2017, p. 397) , já que nos auxilia a compreender o papel desse artefato da cultura material escolar na instrução via anúncios e matérias, se levamos em consideração a forma escolar de socialização e a autonomização gradativa da relação pedagógica ocorrida no decorrer do século XIX. Mudança na forma de interação entre professor e alunos, provocada pela passagem do método de ensino individual para o simultâneo, para a qual novos objetos foram exigidos, entre eles, o livro escolar. Desse modo, é possível percebermos o enredo construído sobre os materiais encontrados, segundo as intencionalidades dos discursos registrados n’O Paiz (1863-1889), no Publicador Maranhense (1842-1885) e no Pacotilha (1880-1939).

O livro escolar, como primo pobre da literatura ou produção de pouco prestígio cultural, nem aparecia nas biografias dos escritores, nem era muito referenciado na primeira metade dos oitocentos por ser considerado uma obra menor, embora de ascendência nobre (Batista & Galvão, 2009Batista, A. A. G., & Galão, A. M. de O. (2009). Livros Escolares de Leitura no Brasil: elementos para uma história. Mercado de Letras.; Bittencourt, 2008Bittencourt, C. M. F. (2008). Livro didático e saber escolar: 1810-1910. Autêntica.; Corrêa, 2006Corrêa, C. H. A. (2006). Circuito do livro escolar: elementos para a compreensão de seu funcionamento no contexto educacional amazonense (1852 – 1910). [Tese de Doutorado]. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP.; Lajolo & Zilberman, 1996Lajolo, M., & Zilberman, R. (1996). Os livros que vinham de longe. Os livros que aqui gorgeiam. A formação da leitura no Brasil. Ática.). A partir do gradual crescimento das vagas no ensino público, com o projeto brasileiro de nacionalização e depois da criação da Inspetoria Geral da Instrução Pública no Maranhão em 1841, o livro de classes aos poucos foi se transformando no cerne da produção livresca (Bittencourt, 2008Bittencourt, C. M. F. (2008). Livro didático e saber escolar: 1810-1910. Autêntica.) e toma lugar de destaque no mercado escolar, aumentando sua produção, circulação e uso. Canal de divulgação para autores anônimos e renomados que transformaram seus estilos, conceberam novas formas de interagir com um público específico e galgaram reconhecimento nos espaços locais de ensino e na imprensa local (Velázquez Castellanos, 2017Velázquez Castellanos, S. L. (2017). O livro escolar no Maranhão Império (1822-1889). EDUFMA.; Costa, 2013Costa, O. A. d. (2013). O Livro do Povo na expansão do ensino primário no Maranhão (1861-1881). 210 p. [Tese de Doutorado]. Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-24042013-134450/pt-br.php.
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; Soares, 2017Soares, W. d. J. B. (2017). Uma história da matemática escolar na cidade de São Luís do século XIX: livros, autores e instituições. [Tese de Doutorado]. Universidade Estadual de Campinas, SP. http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/322675.
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), o que justifica a temporalidade das fontes garimpadas, em função do cômputo de registros de livros de classes no Império e na passagem à República. Por outro lado, essas estratégias mercadológicas podem explicar “em parte, porque autores eruditos, em número significativo, utilizaram a literatura escolar para divulgar os [seus] trabalhos” (Bittencourt, 2008Bittencourt, C. M. F. (2008). Livro didático e saber escolar: 1810-1910. Autêntica., p. 83). Lógica que auxilia compreender a prevalência dos livros de classes estrangeiros na primeira metade do século XIX e a coexistência gradativa com textos pátrios e locais, que, aos poucos, instituíam o sentido de ser brasileiro e maranhense. Sem embargo, mesmo que a literatura não pátria pudesse servir de modelo à produção brasileira e regional até a década de 1860, o abrasileiramento posterior e crescente dos livros escolares fez com que a produção nacional e local assumisse seus contornos específicos, expusesse sua singularidade/diversidade e deixasse de ser uma produção modelada (Velázquez Castellanos, 2023Velázquez Castellanos, S. L. , Castro, C. A., & Souza, M. de A. (2023). Os livros escolares no Liceu Maranhense pela imprensa local (1844-1876). Revista Educação em Questão, 61(67). DOI: 10.21680/1981-1802.2023v61n67ID31816. https://periodicos.ufrn.br/educacaoemquestao/article/view/31816.
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; Lajolo & Zilberman, 1996Lajolo, M., & Zilberman, R. (1996). Os livros que vinham de longe. Os livros que aqui gorgeiam. A formação da leitura no Brasil. Ática.).

Nessa perspectiva, fizemos uso dos pressupostos teórico-metodológicos da história cultural a partir de seus três eixos indissociáveis, para analisarmos os registros nos jornais sobre livros escolares, as dinâmicas estabelecidas e as finalidades propostas. Na história do objeto na sua materialidade (como primeiro eixo de análise), se faz imprescindível examinar a forma em que aparecem os registros para compreender sob quais finalidades os livros eram abordados n’O Paiz (de viés comercial), no Publicador Maranhense (relacionado com a administração provincial) e no Pacotilha (de oposição ao governo), como também a estrutura das mensagens para identificar semelhanças/diferenças, segundo a natureza dos artefatos escolares, para além da frequência em que aparecem os escritos que apontam para o movimento dos livros de classes, haja vista a circulação, a adoção e/ou veto, assim como o dispositivo em uso: o próprio jornal como suporte material que viabiliza formas de divulgação/apontamentos. Inquirir sobre estes aspectos em função dos registros em pauta, seja pela localização na topografia do suporte, seja pelo modo e teor de ser transmitido, sinaliza permanências, intermitências e silêncios observados na imprensa que induzem a descortinar não só reedições, como também desaparecimentos de títulos, obras e autores.

Na história das práticas nas suas diferenças (como segundo eixo), questionarmos sobre o que fazem os diferentes sujeitos com o mesmo objeto que lhes é imposto (Bourdieu, 2007Bourdieu, P. (2007). A distinção: crítica social do julgamento. Zouk, 2007.), nesse caso o livro de classes, como artefato da escola, remete-nos à singularidade das práticas; livro escolar que tem como pano de fundo as relações de poder consideradas aqui, segundo o modelo polemológico de De Certeau (2012)De Certeau, M. (2012). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Vozes.. Estratégias de imposição de quem detém o poder de criar as normas ao respeito, constituindo-se em um “cálculo (ou manipulação) das relações de força” (p. 3) e, as táticas de apropriação daqueles que tentam burlar tais imposições numa invenção criativa que altera as prescrições e marca a diferenciação das práticas no uso do artefato. Jogo de concorrências e disputas que, segundo a forma escolar de socialização, é uma “unidade de uma configuração histórica particular, surgida em determinadas formações sociais, em certa época [conjuntamente a] outras transformações” (Vincent; Lahire & Thin, 2001Vicente, G., Lahire, B., & Thin, D. (2001). Sobre a história e teoria da forma escolar. Educação em revista, 33, 7-47., p.10) que se impuseram mediante reformas de diversos tipos e magnitudes.

O terceiro eixo de análise que incorpora os dois anteriores se faz necessário para escrutarmos três aspectos cruciais: 1) as formações ou configurações sociais/culturais estabelecidas num equilíbrio de tensões entre autores, tipógrafos e redatores dos jornais na produção e circulação dos livros escolares com respeito aos legisladores e suas normas, e, mesmo, em função dos próprios consumidores para os quais se direcionaram anúncios, críticas e notícias; 2) as mudanças nas estruturas psíquicas ou nas formas de se pensar o livro escolar que refletem diferentes concepções/abordagens, segundo os conteúdos propostos, para sondarmos as modificações e as inovações em função dos programas de ensino e dos dispositivos legais via reformas ao longo do Império e na passagem para a República; e por fim, 3) as armaduras conceituais instauradas na época que apontam para o que seria ou não lícito às obras, para discutirmos as diversas percepções em vista da produção, formas e organização dos livros de classes, segundo critérios e vias de aprovação, analisadas aqui nas suas variações históricas.

Assim, o artigo se organiza em três momentos. No primeiro, tratamos sobre os livros escolares que aparecem na imprensa maranhense e discutimos como cada jornal os aborda, a relevância deste suporte e o destaque dado de acordo com as diferentes propostas editorias. No segundo, focamos nos títulos/autores, tendo em conta as edições e as recomendações de utilização, as avaliações e as críticas. No terceiro, centramo-nos nas características específicas que configuraram as obras adequadas ou não para o ensino, analisando até que ponto cada livro/produção se distanciou/aproximou dos critérios exigidos. Destarte, acreditamos contribuir com estudos nacionais e locais referentes à história da Educação no Brasil e no Maranhão, como também à história do livro escolar, na medida em que as análises apontam para uma significativa produção de livros de classe maranhenses e uma estreita relação entre professores/autores com a imprensa local, além da adoção/circulação de novas obras, segundo a imprensa, em outras províncias ou fora do País, e novos títulos, autores e edições identificados, ainda não registrados nos estudos locais4 4 Ver Costa (2013); Soares (2017); Velázquez Castellanos (2017); Velázquez Castellanos, Castro, Souza (2023a); Velázquez Castellanos, (2023b) .

Os livros escolares na imprensa maranhense

No Brasil, o aparecimento e o progressivo uso de textos produzidos para o ambiente escolar tiveram início a partir do século XIX, impulsionados pelo impacto cultural causado com a chegada da família real e se ramificou por meio da imprensa. Neste período, as discussões sobre a instrução se intensificaram e mobilizaram várias esferas sociais. A escola assumia a responsabilidade de implementar a ordem e o disciplinamento social, visto que a instrução era o caminho para moldar a unidade do País (Teixeira, 2008Teixeira, G. B. (2008). O Grande Mestre da Escola: os livros de leitura para a Escola Primária da Capital do Império Brasileiro. 2008. 224 f. [Dissertação de Mestrado]. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. http://www.proped.pro.br/teses/teses_pdf/2006_1-188-ME.pdf.
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). Os jornais, por outro lado, segundo a finalidades da divulgação em uso, publicavam uma série de textos referentes a livros, leituras e à instrução pública/privada nas mais diversas formas. Identificar ditas formas, segundo o primeiro eixo da história cultural nas fontes, resulta em diferentes registros: a) críticas; b) mensagens de difusão; c) anúncios e d) pareceres e opiniões. Nessa direção, as formas como esses textos foram publicados na imprensa apontam para as intencionalidades na sua produção e para as estratégias de venda, para além da aceitabilidade, da circulação e da adoção das obras nos espaços de ensino, pois este artefato está “inscrito em uma lógica mercantil de produção e de circulação, portador de saberes considerados legítimos ao serem ensinados na escola que expressa uma relação de poder” (Peres & Ramil, 2018Peres, E. T., & Ramil, C. de A. (2018). Cartilhas, pré-livros, livros de alfabetização, livros para o ensino inicial da leitura e da escrita: guardá-los e estudá-los, para quê?. Revista Linhas, 19(41), 34-64., p. 36).

A forma empregada nos anúncios, por exemplo, era predominantemente para difundir nos jornais os livros escolares maranhenses publicados, tendo como principal função propagar, expor ou ofertar serviços e produtos dos mais diversos. Já com respeito à frequência de divulgação das obras, concebida também no primeiro eixo de análise, notamos haver um destaque para disciplinas como a matemática com 146 referências e a gramática com 53; para 49 referentes à leitura, 22 com respeito à geografia e, em menor grau, para as de moral e história: 10 na primeira, para 2 da segunda. A quantidade de publicações por disciplina pode ser consequência de maiores tiragens de exemplares, ou pelo fato de serem obras dos autores maranhenses mais conhecidos e renomados, bem como terem sido impressas em tipografias locais de grande relevância ou ainda em função dos saberes fundamentais para serem adquiridos no ensino público primário e secundário.

A estrutura dos anúncios, outro aspecto do primeiro eixo da história cultural, era bastante flexível, podendo ocupar apenas o espaço de uma linha ou até mesmo a metade de uma folha, dependendo do destaque pretendido. Em sua maioria, eram redigidos em textos pequenos de poucas linhas e de forma objetiva, para que todos os leitores, independentemente do nível de leitura, não encontrassem dificuldades de entendimento do que estava sendo divulgado. Em alguns casos, as informações mais importantes eram ressaltadas em negrito, itálico ou ampliando-se o tamanho da fonte. Por estas razões, as informações nessas mensagens tratavam do que está sendo ofertado, o valor exigido, os lugares de venda e/ou a forma que tais livros poderiam ser adquiridos. Nessa dinâmica, o livro Metrologia do Povo (1882/2.ª edição), de João Miguel da Cruz, chegou a ser difundido 92 vezes, ao longo de 1882 no Publicador Maranhense e cerca de 45 vezes em 1895 no Pacotilha, configurando-se como o livro mais anunciado nos periódicos aqui analisados. Essa frequência de publicações talvez possa se justificar pelas relações que o autor estabeleceu, sendo umas das principais autoridades na instrução em São Bento e de reconhecimento nacional, ou como uma forma de se fazer notar na capital, uma vez que a Metrologia Moderna ou Exposição Circunstanciada do Sistema Métrico Decimal (1863/1.ª edição), de Antonio Coqueiro, era uma concorrente já consolidada, mostrando-se como alternativa mais acessível em termos de custo aos alunos, especialmente do ensino primário.

Ao referirmos ao dispositivo, como outro componente em análise a termos em conta, identificamos, por exemplo, que as publicações n’O Paiz (1863-1889) sobre livros escolares, tanto em forma de anúncios como de notícias, foram mais frequentes no primeiro biênio do jornal, aparentemente por interesses particulares do impressor Belarmino de Mattos da tipografia Progresso e do próprio proprietário Themistocles Aranha (professor do Liceu Maranhense e diretor/fundador do Colégio São João Batista), pois a presença de ambos foi fundamental para discutir-se e propagar a produção maranhense de livros escolares ou de classes, especialmente a de autores liceístas; recorrência que teve significativo declínio com a saída do redator.

Já a estrutura dos anúncios dos livros usada pela tipografia Progresso, como outro elemento a ser observado, era diferente em comparação aos demais em tamanho do espaço ocupado nas páginas, no uso de destaques tipográficos e na própria frequência das publicações. Nesses termos, se os jornais davam visibilidade a várias obras; por outro lado, privilegiavam aquelas que eram de interesse de quem detinha o dispositivo cultural para sua propagação, pois havia uma diferença significativa entre uma referência a um título/autor situados ao final de uma página, contrastando com inúmeros anúncios e/ou publicações, daquela que ocupava parte significativa do jornal, já que, além dos vários elementos e informações que a conformavam, conduzia o leitor a uma interpretação sobre o objeto representado. Como bem pontua Pesavento (2012)Pesavento, S. J. (2012). História & história cultural (3. ed.). Autêntica. ,

[...] tem o poder simbólico de dizer e fazer crer sobre o mundo, tem o controle da vida social [...] esse grupo vai impor a sua maneira de dar a ver o mundo, de estabelecer classificações, e divisões, de propor valores e normas, que orientam o gosto e a percepção, que definem limites e autorizam os comportamentos e os papeis sociais. (p. 42)

A força da representação incidia na credibilidade e na adesão social. Por isso, não bastava anunciar. Era preciso colocar em um lugar de destaque, trazer elementos para além da obra que ajudassem a convencer o leitor e, frequentemente, lembrá-lo da existência do objeto representado, por meio das repetições consecutivas dessas mensagens. Isso nos dá a entender que toda representação dos livros escolares nestes anos iniciais de funcionamento d´O Paiz (1863-1889) pode ter sido pautada na relação comercial entre tipografia e jornal, visto que, em nenhum outro momento e nos outros dois jornais, esta situação se repete no que se refere à estrutura dos anúncios e à sua recorrência na folha.

Estas mensagens de divulgação apresentavam indicações para usos nas escolas, destacando-se a intelectualidade do autor, os conteúdos abordados e os benefícios para o ensino: “recommendamos, pois, o Livro dos Meninos a todos os paes da família e instituidores, e oxalá ques estes, comprehendendo a sua utilidade, caprichem em executal-o com dedicação e conforme os preceitos de seu inteligente e ilustrado author” (O Paiz, 1864, p. 2). Contudo, alguns livros ultrapassaram o ambiente escolar, sendo recomendados a toda a população, tendo em vista os valores morais e religiosos que se pretendiam hegemonizar, uma vez que “[paralelamente ao trabalho com as crianças, é frequentemente examinada a necessidade de [se] atuar junto aos pais ‘para educá-los’” [ênfase dos autores] (Vincent et al., 2001, p. 42).

No Publicador Maranhense (1842-1885), por outro lado, propunha-se, dentre outras coisas, propagar os atos do governo. Sobre os livros escolares, as matérias tratavam dos conteúdos exigidos, segundo os pareceres de aprovação ou reprovação emitidos pelos órgãos do poder provincial, que ficaram a cargo da Congregação dos Professores do Liceu Maranhense, segundo os seus Estatutos (1838), artefatos da cultura material escolar que seriam controlados pelo Inspetor da Instrução Pública após a sua criação em 1841, embora só se institucionalizassem a partir de 1844. Inspetor que no cerne de suas atribuições lhe corresponderia a revisão e a correção dos livros escolares do ensino primário até sua necessária substituição; controle do processo de aprovação ou veto que, mais tarde com a elaboração do novo Regulamento da Instrução Pública em 1874, ficaria a cargo do Conselho da Instrução Pública (Castro, 2009Castro, C. A. (Org.). (2009). Leis e regulamentos da instrução pública no Maranhão Império: 1835- 1889. Edufma.).

Estes pareceres pontuavam aspectos positivos e negativos de cada obra, entre eles: os erros de impressão; as discordâncias entre conceitos e abordagens empregados; as desfasagens de conteúdo, segundo as reformas dos programas via dispositivos legais; as limitações nas explicativas e na prescrita aplicação; até os excessos e/ou lacunas aparentemente deixados pelos autores e editores como acontece na avaliação dos Rudimentos de Geografia (1863/1.ª edição), de Antonio Rego, quando “na terceira parte o autor aglomer[ara] muitos nomes de ilhas, penínsulas, cabos etc, que, podião ser redusidas, com vantagem do ensino e aproveitamento dos alunos” (Publicador Maranhense, 1862Publicador maranhense. (1842 - 1885). São Luís: I.J. Ferreira. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=720089&pagfis=4.
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, p. 2).

No entanto, registros de avaliações da mesma obra, um ano depois na contramão, consideraram que as “pequenas faltas [foram] inevitáveis em trabalhos desta naturesa, sobretudo em suas primeiras edições, publicadas as mais duas vezes [às] pressas pelo reclamo de uma necessidade urgente” (Publicador Maranhense, 1863Publicador maranhense. (1842 - 1885). São Luís: I.J. Ferreira. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=720089&pagfis=4.
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, p. 2). Erros que não comprometiam a compreensão, uma vez que até a data de publicação não havia obra similar que abordasse, de forma tão eficaz, aspectos da geografia e história, especificamente do Maranhão, sendo essa uma das principais vantagens ressaltadas: pois “quando trata do Brasil e principalmente do Maranhão, o Sr. Dr. Rego mostra[ra] o esmero e cuidado que teve com o verdadeiro alvo que tinha em vista” (Publicador Maranhense, 1863Publicador maranhense. (1842 - 1885). São Luís: I.J. Ferreira. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=720089&pagfis=4.
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, p. 2). Práticas de avaliação desencontradas que dependiam não só do conteúdo proposto e das formas de exposição/divisão dos assuntos, segundo o nível de compreensão, como também da posição do autor nos espaços de sociabilidade, marcada pelo viés político, ideológico, religioso, social e cultural de sua trajetória, definem aparentemente a diferenciação dessas práticas.

No Publicador Maranhense se ressaltava ainda a importância de algumas temáticas, a exemplo do livro de Metrologia moderna ou exposição circunstanciada do sistema métrico decimal (1863/1.ª edição), de João Antonio Coqueiro, especialmente, por duas questões – a utilidade e a finalidade: a adoção de tal sistema como oficial no Brasil, a fim de padronizar os pesos e as medidas utilizados em todas as províncias e, por se constituir um dos preparatórios necessários para matricular-se em algumas das academias do Império. Neste caso, o parecer avaliador foi uma recomendação, já que “a sua adopção torna-se[-ia] desde já necessária nas aulas de geometria e escripturação mercantil do Lyceo desta cidade; e bem assim nas escolas p[ú]blicas do 2º grau” (Publicador Maranhense, 1863Publicador maranhense. (1842 - 1885). São Luís: I.J. Ferreira. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=720089&pagfis=4.
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, p. 2).

Aqui o livro escolar ou de classe se relaciona com um conceito fundamental, as práticas pedagógicas que se “realizam para organizar/potencializar/interpretar as intencionalidades de um projeto educativo” (Franco, 2016Franco, M. A. d. R. S. (2016). Prática pedagógica e docência: um olhar a partir da epistemologia do conceito. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 97(247), 534-551., p. 536). Ações dos lentes que se realizam de maneira consciente e participativa no ambiente da sala de aula, associadas aos processos pedagógicos. Por exemplo, no caso dos livros utilizados para o nível primário e secundário, ficaria “ao critério dos professores a tractar do que estive[sse] ao alcance da intelligencia dos alumnos, como o desenvolvimento que exigi[sse] a matéria” (Publicador Maranhense, 1863Publicador maranhense. (1842 - 1885). São Luís: I.J. Ferreira. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=720089&pagfis=4.
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, p. 1), servindo como manual orientador na transmissão dos conteúdos.

Já o Pacotilha (1880-1939), dentre os jornais em análise, é o que apresenta uma menor frequência em quantidade de referências a títulos de livros escolares. As matérias não abordavam o livro de classe propriamente dito. Esses artefatos apareciam em notícias sobre objetos escolares e em função dos currículos das escolas em que eram adotados, destacando-se as inovações metodológicas propostas pelos autores, tendo em conta a originalidade e a respectiva contribuição com o progresso da nação ou discordando completamente do prospecto.

A divulgação e as indicações ao consumo dos livros escolares, aparentemente, não só se deram apenas pela qualidade do material como conteúdo, procedimentos metodológicos inovadores e/ou impressão; mas também, pelas funções ocupadas pelos autores no tecido societal ou pelas relações de poder estabelecidas (Velázquez Castellanos, 2012Velázquez Castellanos, S. L. (2012). Os livros escolares nos jornais maranhenses no período imperial. In C. A. Castro, S. L. V. Castellanos, & M. L. Felgeiras (Org.), Escritos da História da Educação: Brasil e Portugal (pp. 63-82). Café & Lápis). Como personalidades envolvidas no universo da instrução que assumiram cargos de diferentes naturezas, eles propiciaram não apenas a introdução no ensino público de produções escolares, mas ainda se utilizaram destes espaços para promover seus escritos, a exemplo de Antônio Marques Rodrigues, pois “o lugar social ocupado pelo autor foi decisivo no processo de distribuição do livro[;] sobretudo[,] quando da sua atuação como inspetor da Instrução Pública” (Costa, 2013Costa, O. A. d. (2013). O Livro do Povo na expansão do ensino primário no Maranhão (1861-1881). 210 p. [Tese de Doutorado]. Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-24042013-134450/pt-br.php.
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/4...
, p. 10). Produções como Postillas de Grammatica geral Applicada á lingua portugueza pela analyse dos clássicos (1863/1.ª edição) e a Grammatica Portugueza acomodada aos princípios gerais das palavras (1878/3.ª edição), de Sotero dos Reis, sempre figuraram em lugares de destaque nos jornais, com uma frequência de publicações superior a qualquer outro título divulgado, bem como a Metrologia moderna ou exposição circunstanciada do sistema métrico decimal (1863/1.ª edição), de João Antonio Coqueiro.

Durante o período imperial, não houve um projeto educativo na extensão do termo (Velázquez Castellanos, 2022aVelázquez Castellanos, S. L. (2020). A cultura material escolar na instrução primária no Maranhão oitocentista. Educar em Revista, 36(1).). O livro escolar deveria estar em consonância com a proposta instituída pelas instâncias de poder em função do que se entendia por instrução pública, no intuito de apoiar a prática pedagógica e a transmissão de saberes objetivados, segundo uma finalidade, que, mediante a submissão a regras impessoais, o controle do tempo, a divisão do programa em matérias e a autonomização da relação pedagógica, via método simultâneo em oposição ao método individual, se iam materializando pela forma escolar de socialização que se instaurava (Vincent et al., 2001Vicente, G., Lahire, B., & Thin, D. (2001). Sobre a história e teoria da forma escolar. Educação em revista, 33, 7-47.). Para tanto se fez necessário uma série de objetos escolares que possibilitassem tal ação, como o quadro negro, os livros de classe para o ensino e os cartazes, entre outros artefatos concebidos como cultura material escolar (Velázquez Castellanos, 2020Velázquez Castellanos, S. L. (2020). A cultura material escolar na instrução primária no Maranhão oitocentista. Educar em Revista, 36(1).; Faria Filho, 2007Faria Filho, L. M. d. (2007). Instrução elementar no século XIX. In E.M. Lopes, L.M. Faria Filho, & C. G. Veiga (Org.), 500 anos de educação no Brasil (pp. 135-150). Autêntica.). Em sendo assim, evidenciou-se uma crescente produção de livros escolares para atender aos interesses das agências de poder, identificando-se diversos títulos que foram propagados nas páginas da imprensa local5 5 Foram identificadas 32 obras produzidas por autores maranhenses e destinadas ao ensino no período de 1860 à 1920 que podem ser consultadas na dissertação de Santos (2022) e 37 em Velázquez Castellanos (2017). . Portanto, seria interessante pensarmos: como se construíram essas representações nos diferentes jornais a partir das relações estabelecidas e das práticas evidenciadas entre e pelos sujeitos? Como a posição social dos autores afetaria a profusão das obras? E por quais razões ganhavam maior ou menor destaque na imprensa e na instrução?

O jornal como mensageiro perspicaz: veículos de circulação dos livros escolares

A imprensa maranhense foi um dos principais veículos no século XIX e XX de vulgarização do escrito impresso. Segundo O Paiz (1883), “o jornal, como o mensageiro mais perspicaz e rápido que é das manifestações do pensamento, e que [se pôs a] frente de uma ideia de utilidade pública” (p.1), dava a conhecer à sociedade, a produção, a distribuição e circulação dos livros literários, escolares, religiosos e outros diversos tipos de textos que divulgavam. No processo de identificação dos livros escolares de autores maranhenses, foi possível perceber a pluralidade e a significativa quantidade de textos impressos que foram ali anunciados, conforme ilustra o seguinte quadro

Quadro 1
Livros escolares que circularam no Maranhão6 6 A escolha dos livros escolares está em concordância com as permanências, as intermitências, os silêncios e os reaparecimentos nas fontes, que apontam para seu uso, tendo em conta diversas periodicidades e níveis de adaptabilidade na instrução, segundo as mudanças nos programas de ensino via reformas e dispositivos legais. A data das produções/edições não foi fator determinante. (Publicador maranhense (1842-1995), O Paiz (1863-1889) e Pacotilha (1980-1939)

Embora fosse de fundamental importância para o ensino obras como a Metrologia moderna ou exposição circunstanciada do systema métrico decimal (1863/1ª edição), de João Antonio Coqueiro, o conteúdo apresentava alguns erros, segundo a comissão avaliadora, por exemplo, nos números decimais que “deix[ara] o auctor de ocupar-se das dizimas periodicas a que [davam] nascimento as conversões em decimaes, de algumas fracções ordinárias” (Publicador Maranhense, 1863, p. 2), como também erros de impressão, quando se trocam alguns números que pouco comprometiam o trabalho, segundo os pareceristas. A mesma situação ocorreu com os Rudimentos de Geografia (1862/1.ª edição), de Antonio Rego, já que geografia política e protestantismo eram conceitos questionados. Tal erro seria bastante significativo, uma vez que a religião oficial a ser propagada era o Catolicismo (Publicador Maranhense, 1862Publicador maranhense. (1842 - 1885). São Luís: I.J. Ferreira. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=720089&pagfis=4.
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). Assim, a reedição era a oportunidade de os autores/editores corrigirem equívocos e/ou realizarem atualizações de conteúdo ou de impressão sinalizados pelos pareceres oficiais. Táticas que manipulavam e alteravam de diversos modos as imposições (Certeau, 2012), inventividades de autores/editores por alternativas em relação às prescrições e normas instituídas que garantiriam nova produção.

Um livro bastante divulgado nos jornais foi a Metrologia do povo (1882/2.ª edição), do professor João Miguel da Cruz do município de São Bento, visto que, somente no ano de 1882, saíram 92 anúncios no Publicador Maranhense (1842-1885) e, em 1898, após 17 anos de sua publicação, continuava sendo noticiado no Pacotilha (1880-1939). Livro escolar bem avaliado precisamente pela linguagem e pelos métodos utilizados que permitiu, ao comparar medidas antigas com as modernas, a compreensão dos que não tivessem conhecimentos prévios de aritmética; “methodo pratico de reduzir todas as medidas do systema decimal [às] do antigo systema, e o modo de fazer a redução dos preços dos gêneros medidos por um e outro” (O Paiz, 1881, p. 3). N’O Paiz (1863-1889) e no Publicador Maranhense (1842-1885), um dos livros que figuraram entre os mais noticiados foi Postillas de grammatica geral applicada á lingua portugueza pela analyse dos clássicos (1863/1.ª edição), de Sotero dos Reis. Dita divulgação, provavelmente se deve em função da sua notoriedade no âmbito da instrução/imprensa, e ditas “postillas" foram resultados de suas anotações nas aulas de Gramática Latina (Mello, 2009), “onde as difficuldades, idiotismos e bellezaz da língua [foram] explorados, delineados e expostos [à] luz da sciencia, com aquella clareza e agudez de vista, que se admiram n’uma razão superior” (O Paiz, 1883, p.1).

Na contramão, uma obra que apareceu apenas numa pequena nota no Publicador Maranhense em 1886, não ganhando mais destaque, foi o Resumo de Álgebra (1886/1.ª edição), do professor José Augusto Correia8 8 José Augusto Corrêa (1854 - 1919) foi filólogo e escritor que trabalhou no Pacotilha a partir de 1915 e professor examinador no Colégio União de Nossa Senhora do Rosário em 1874 (Soares, 2017). , embora fosse bem avaliada com respeito ao conteúdo e à qualidade de impressão. A Nova cartilha Portuguesa (1918/1.ª, edição), de Odolfo Aires de Medeiros, igualmente foi um livro que teve pouco realce na imprensa, fato que pode estar relacionado às propostas inovadoras dessa obra para a alfabetização dos alunos. Prática que nos impede afirmar que seu uso tenha sido tão discreto no ensino quanto o foi no jornal, uma vez que punha em jogo diversas questões, entre elas: a) os recursos financeiros disponíveis para custear os anúncios; b) as relações entre autores, editores e imprensa que pudessem de alguma forma favorecer a divulgação de um título, uma obra e/ou um autor; c) a posição social de quem escreve e sua atuação nos espaços de sociabilidade, como no caso do professor João Miguel da Cruz e Sotero dos Reis (conhecidos nacionalmente), o que pode justificar em certa medida a notoriedade das obras.

Destarte, tenta-se descortinar tais relações, fazendo uso do segundo eixo da história cultural, que visa diferenciar as práticas. Desigualdades projetadas na tensão entre estratégias de imposição via dispositivos legais e as táticas de apropriação de autores que geram inventividades por transgredir ditas regras; portanto, as “admissões e adoções dos livros escolares dependiam ... dos lugares que ocupavam os sujeitos no tecido societal (político, econômico, cultural e institucional) e das relações estabelecidas por eles nos espaços de poder" (Velázquez Castellanos, 2017Velázquez Castellanos, S. L. (2017). O livro escolar no Maranhão Império (1822-1889). EDUFMA.).

Os livros escritos pelo Dr. Antonio Rego, o Livro dos Meninos (1864/1.ª edição) e os Rudimentos de Geografia (1863/1.ª edição), faziam parte de um curso elementar elaborado por ele para a instrução primária, conjuntamente com o Dr. Pedro Nunes Leal, os quais seriam adotados no Instituto de Humanidades. O primeiro, publicado apenas em uma edição; e o segundo, com maior número de edições, já que até a data da sua publicação não havia obra similar que abordasse, de forma tão eficaz, os aspectos da geografia e história, especificamente do Maranhão (Publicador Maranhense, 1863, p. 2). Os livros Metrologia do povo (1882/ 2.ª edição.), de João Miguel da Cruz, e o Livro do Povo (1863/ 2.ª edição), de Antonio Marques Rodrigues, foram igualmente bem avaliados e fizeram parte do programa de ensino de diversas escolas, afirmando-se sobre este último que “pód[eria] lê-lo a infancia, a juventude, a virilidade e a propria velhice” (Publicador Maranhense 1863, p. 2). Tanto a escola quanto a igreja tinham, dentre suas funções, atuar como propagadoras dos valores morais e dos costumes; lugares de desenvolvimento de um corpo, seja ele individual ou coletivo (Certeau, 1982). Assim, a relação entre estas instituições no oitocentos se estabelecia dentre outros objetivos, para formar as novas gerações, segundo os preceitos da fé católica. Portanto a escola seria um espaço fundamental pela sua capacidade modeladora; e o livro de classes, um artefato da cultura material escolar concebido, editado e dado a ler, tendo em vista esta teia de relações, especialmente, quando se trata da instrução primária.

Para Velázquez Castellanos (2022b), o Livro dos Meninos (1864) foi aprovado para uso nas escolas de ensino primário e foi direcionado para o ensino inicial da leitura, alcançando aproximadamente seis mil exemplares. Não entanto, segundo a divulgação dos jornais e os estudos referentes, tratava-se pretensamente de uma simples imitação do Livro do Povo (1863/2.ª edição), de Antonio Marques Rodrigues, considerado, este último, o primeiro livro maranhense para o ensino da leitura (Bittencourt, 2008Bittencourt, C. M. F. (2008). Livro didático e saber escolar: 1810-1910. Autêntica.; Costa, 2013Costa, O. A. d. (2013). O Livro do Povo na expansão do ensino primário no Maranhão (1861-1881). 210 p. [Tese de Doutorado]. Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-24042013-134450/pt-br.php.
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; Hallewell, 2012Hallewell, L. (2012). O livro no Brasil: sua história. Editora da Universidade de São Paulo.). Mero engano! Consideramos aqui O Livro dos Meninos do conterrâneo Antonio Rego, como o primeiro livro maranhense pensado, escrito e posto a circular em função da alfabetização, haja vista a estrutura da obra e dos conteúdos: 1) aborda o alfabeto em diversos caracteres; 2) expõe as sílabas em letras romana e manuscrita; 3) registra em vez de cartas de nomes próprios, um vocabulário completo de palavras da língua, desde as monossílabas até as nove silabas. Dividido em “II volumens”, foi idealizado e concebido não só para que os meninos fossem familiarizando-se com a “pronuncia y a ortografia” dos termos da língua materna, mas ainda, “com os significados de parte deles, que os mestres, repetidas vezes deve[ria]m-lhes explicar; [para além dos] exercícios de leitura e de memória” (O Paiz, 1864, Ano II, n. 34, p. 3).

Por outro lado, o Livro do Povo (1863/2.ª edição), de Antonio Marques Rodrigues, embora tenha sido uma das obras de maior destaque durante a segunda metade do oitocentos e fosse concebida, produzida e adotada nas escolas para o ensino da leitura na instrução primária, o público para o qual foi destinada, segundo a natureza e teor dos registros, parece atender leitores em formação com habilidades rudimentares do ler, do escrever e do contar e, não propriamente dito, para alunos analfabetos que necessitavam do ensino inicial da leitura e da escrita. Abílio Cesar Borges (o Barão de Macaúbas), ao descrever as características necessárias para uma obra considerar-se um livro propriamente de leitura, já apontara para vários critérios que a produção de Marques Rodrigues cumpria, mesmo que não fosse para alfabetizar: o estilo apresentado; a exigência de parágrafos curtos que facilitassem a leitura e a apreensão de leitores em formação; a linguagem com palavras conhecidas pelas crianças e com assuntos apropriados de acordo à maturidade cognitiva e à inteligências dos pupilos na contramão do uso fábulas e escritos com sentidos figurados, que confundissem o raciocínio dos pequenos; assim como, o uso das imagens que ajudassem no entendimento dos escritos (Velázquez Castellanos, 2017Velázquez Castellanos, S. L. (2017). O livro escolar no Maranhão Império (1822-1889). EDUFMA.).

Outras iniciativas referentes ao ensino inicial da leitura podem ser identificadas em Alfabeto Fonético-Auricular (1881/1.ª edição), do professor primário Roberto A. Moreira e em Nova qartilha portugueza (1918/1.ª edição), do professor Odolfo Aires de Medeiros. Outras duas propostas de alfabetização materializadas em livro escolar, uma vez que novos caminhos referentes ao ensino inicial da leitura começaram a ser desbravados. Na primeira obra, Moreira lança um plano de alfabetização rápido e eficiente, organizado por um método eclético, dividido em cinco partes, que continha 33 lições (Pacotilha, 1881), visto que os alunos consumiam anos de formação para aprender a ler; na segunda, Medeiros opta entre algumas inovações, por banir “do abecedário ... os intrusos – k , w, [e] y, que nunca foram letras da nossa língua” (Pacotilha, 1918Pacotilha. (1880 - 1938). São Luís: tipografia da Pacotilha. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=168319_01&pagfis=1
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, p. 2). Nessa lógica, o jornal defende sua proposição por ser uma obra necessária que desafiara os padrões, indo na contramão daquilo que já estava estabelecido nas regras até então impostas. Enfim, as tensões entre o ensino inicial da leitura pela silabação ou pela palavração estavam sendo colocadas em cena. Nessa última, segundo Moreira, o aluno iniciaria “lendo palavras e phrases desde a primeira lição; próprio também para corrigir certos vícios de pronúncia e leitura” (Pacotilha, 1876Pacotilha. (1880 - 1938). São Luís: tipografia da Pacotilha. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=168319_01&pagfis=1
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, p. 4).

No entanto, mesmo que as diferenças entre o Livro dos Meninos (1864), de Antonio Rego e o Livro do Povo, de Marques Rodrigues, sejam evidentes como concepção e finalidade, seleção e divisão de conteúdos, e considerando-se o estágio de leitura e o perfil de leitores para os quais foram escritos e produzidos, mesmo assim, as matérias publicadas nos jornais, constantemente, buscavam equipará-los, ao anunciarem que “mais um livro util - Como o Livro do Povo tão util para o ensino primario, acaba[ra] o Sr. Dr. A. Rego de publicar um livro para as primeiras leituras de infância” (O Paiz, 1864, p. 2). Tal situação poderia se justificar, em parte, se levarmos em consideração que a obra do Dr. Marques Rodrigues já era reconhecida, adotada e distribuída em diversas escolas no Maranhão e em outras províncias tais como Pará, Piauí, Ceará, Pernambuco, Município Neutro e Portugal (Velázquez Castellanos, 2017Velázquez Castellanos, S. L. (2017). O livro escolar no Maranhão Império (1822-1889). EDUFMA.), constituindo-se esta equiparação, aparentemente, numa tática da imprensa local para que esta nova obra fosse aprovada, indicada, distribuída e consumida no meio escolar.

Contudo, se equiparar parecia uma tática prioritária da imprensa visando à aprovação, à indicação e ao uso desta última produção; por outro lado, a diferenciação das práticas em divulgar os anúncios coloca em pauta questões de preferências, de status e poder. No que o Livro do Povo era publicado em um pequeno espaço, sem destaque tipográfico, confundindo-se nas páginas a outros tantos produtos e serviços, mesmo que já fosse familiar ao público escolar e não escolar; para o Livro dos Meninos, lhe foi reservada toda a metade superior da 4.ª página do jornal dedicada aos anúncios, sobressaindo-se em tamanho, tipos de letras e ornamentos. Ou seja, lógica comercial para privilegiar o livro da Tipografia Progresso e vendê-lo, já que o Livro do Povo (1863/2ª edição) era impresso na oficina do Sr. Frias, sua concorrente.

Sobre a Gramatica Portuguesa acomodada aos princípios gerais das palavras (1871/1.ª edição), de Ribeiro Guimarães, em 1878, a sua terceira edição passou a ser impressa por Magalhaes e Cia. Nesta ocasião, a obra foi cuidadosamente revista e corrigida. Os exemplares foram impressos com percalina dourada como forma de diferenciá-la das impressões anteriores, sendo adotada em várias províncias como Pernambuco, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro, além do Maranhão, uma vez que sua primeira edição estava esgotada (Publicador Maranhense, 1871Publicador maranhense. (1842 - 1885). São Luís: I.J. Ferreira. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=720089&pagfis=4.
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). Já o Compêndio da Gramática Philosophica da Língua Portuguesa (1853/3.ª edição), do Padre Antonio da Costa Duarte (professor do Liceu Maranhense), teve como impressor responsável Ramos de Almeida, e é considerada por Velázquez Castellanos (2017, p. 314)Velázquez Castellanos, S. L. (2017). O livro escolar no Maranhão Império (1822-1889). EDUFMA., como “a primeira Gramática Brasileira da Língua Portuguesa publicada no país, e não a Gramática do gaúcho Antônio Pereira Coruja”, publicada em 1835, pois sua primeira edição remonta a 1828. A 5.ª edição lançada em 1863 foi tida pela Congregação do Liceu como “uma das melhores, porque a sua revisão fo[ra] feita por pessoa competente, que muito se esmer[ara], expurg[ando-a] de muitos graves erros” (Publicador Maranhense, 1863, p. 4), sendo escolhida para uso na própria instituição e nas aulas de 2.° grau das escolas de primeiras letras da província.

A Grammatica elementar da Língua Portugueza (1866/9.ª edição), de Condurú, destinava-se à infância e fora aprovada para uso nas escolas da província, “torna[ndo]-se recomendável pela nitidez, impressão e correção de algumas regras” (Publicador Maranhense, 1866Publicador maranhense. (1842 - 1885). São Luís: I.J. Ferreira. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=720089&pagfis=4.
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, p. 3). O Resumo de gramatica da língua portugueza (1865/1.ª edição), de Pedro Souza Guimarães (professor da língua francesa do Liceu Maranhense), por outro lado, fora aprovado pelo presidente de província Ambrozio Leitão da Cunha (1865), para uso nas escolas das primeiras letras desta capital, mesmo que as respetivas referências a este livro avaliado e aprovado fossem pouco frequentes na imprensa local. Se a primeira, impressa pela tipografia Progresso de Belarmino de Matos9 9 Reconhecido pela qualidade de seus materiais. , fora lançada sua 10.ª edição em 1868, salientando-se nos anúncios a larga aceitação dos professores não apenas no Maranhão, como também na província do Pará, tendo em conta sua utilidade e recomendação; a segunda, ao contrário, fora duramente criticada, pois em

[...] nada adianta[va] ao que [se tinha] nos ...compêndios já admitidos [, considerando-se], porém, se com o ensino atrasado e rotineiro que [se tinha], poder[ia] este resumo preencher o fim a que o autor [tinha destinado; mas]. Em todo caso o compendio merec[ia] ser recebido.

(Publicador Maranhense, 1865Publicador maranhense. (1842 - 1885). São Luís: I.J. Ferreira. http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=720089&pagfis=4.
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, p. 2)

Uma carência sinalizada pelas fontes era um livro que contemplasse a história da província do Maranhão e do Brasil “resumido por tal forma que, abrangendo todos os factos, desde seu desenvolvimento, até o fim da guerra do Paraguay, se prestasse [à] compreensão da infância” (O Paiz, 1879, p. 4). No âmbito da disciplina de História, esta situação começou a ser sanada, a partir da publicação do Resumo de História do Brasil (1879/1.ª edição), de João Antonio Tinoco de Saandes Junior, professor público da capital. Obra que fora aprovada pelo Conselho da Instrução Pública e adotada nas escolas, já que suas principais qualidades estavam “em linguagem clara e simples ao alcance da intelligencia da infância, [tendo] a vantagem de ser mais barato que outras obras deste gênero até hoje usadas” (O Paiz, 1879, p. 4).

Durante os anos iniciais da Primeira República, a questão da língua e a história nacional, desde o descobrimento ao Império, também foram temas sensíveis e objetos de divergências, tendo em vista que nem todos apoiaram as ideias republicanas e continuavam a defender a monarquia. Assim o ambiente intelectual em 1910 era marcado por duas posições diferentes: os defensores da soberania republicana, que concebiam o Império como responsável pelo atraso do Brasil; e aqueles que advogavam pelo regime imperial, almejando preservar a língua e a herança portuguesa (Oliveira, 1990Oliveira, L.L. (1990). A questão nacional na primeira República. Brasiliense. ). Essas armaduras conceituais do mesmo modo se refletiam nos livros escolares, pois, para escrevê-los, os autores assumiram posições neste enredo; período de transição política e social, em que mudanças nas próprias formas de pensar na passagem do Império para a República se centravam em valorizar a cultura nacional e superar o legado português. Críticas à Nova quartilha, de Odolfo de Medeiros (1918/1.ª edição), que tiveram como pano de fundo disputas ideológicas, para além do âmbito didático-metodológico.

A produção escolar maranhense nos jornais: indicações e uso

Os jornais foram responsáveis por registrar e dar a conhecer diversos elementos e apreciações exibidos sobre os livros escolares de autores maranhenses ou daqueles produzidos na província, que se concretizaram em opiniões, críticas e avaliações expostas e registradas por diferentes sujeitos, como jornalistas, agentes da instrução, presidentes de província, inspetores e professores, clientes-leitores e inclusive anônimos. Sendo assim, foi possível perceber as armaduras conceituais que nortearam as características que um livro deveria ter, os conceitos, os valores e os ideais que se apregoavam na época da impressão para serem considerados adequados ao ensino. Critérios como moralidade, linguagem adequada ao público-alvo e a utilidade dos conteúdos foram destacados. Especialmente, para o ensino primário que compreendia as disciplinas de instrução moral e religiosa, a leitura e escrita, as noções essenciais da gramática e o sistema de pesos e medidas da província (Castro, 2009Castro, C. A. (Org.). (2009). Leis e regulamentos da instrução pública no Maranhão Império: 1835- 1889. Edufma.), já que o livro deveria ser “um manancial de religião, moralidade, respeito, utilidade e ao lucrativo ensino” (Publicador Maranhense, 1862, p 2).

A primeira armadura conceitual percebida nos jornais trata da moralidade, intimamente ligada a questões pertinentes à economia moral do ensino, relacionando-se com a classificação dos alunos, o que prescindiu a reelaboração dos critérios éticos de como organizar os vários ambientes que formaram o espaço escolar e manter tais valores preservados, bem como dos econômicos, uma vez que tal classificação necessitaria de investimentos para atender a tal dinâmica. Nos livros para o ensino primário, o principal elemento valorizado pelos jornais era a moralização da infância, cujo intuito era inserir na criança os valores morais para a vida social, assim:

[...] é necessário que as escolas sejão, antes de tudo, os centros reaes do Christianismo; não basta que o mestre seja ilustrado, e que ensine: é preciso tambem que saiba innocular em seus alunnos as mysteriosas doçuras da Religião, - esta pedra angular, em que devem assentar os primeiros alicerces da sociedade.

(O Paiz, 1887, p. 1)

Livros que não abordassem os valores morais vigentes no cerne das armaduras conceituais da época condenariam a formação moral das novas gerações. A concepção da Igreja sobre o que seria permitido ler “é forjada em torno da leitura dos textos sagrados, leitura de meditação espiritual que procura pacientemente tirar da palavra divina algo que esclareça sua inteligência, fortifique sua vontade, alargue seu coração” (Chartier, 2003Chartier, A. M. (2003). Os modelos contraditórios da leitura entre formação e consumo da alfabetização a cultura de massa. Revista história da educação, 7(13), 35-49. https://seer.ufrgs.br/index.php/asphe/article/view/30532/pdf.
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, p. 39). É neste sentido que, especialmente os livros de leituras de autores maranhenses eram inspirados. As publicações sempre ressaltavam os textos e as lições bíblicas que os compunham. Assim, das 256 páginas do Livro do Povo (1863/2.ª edição), 134 eram dedicadas aos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João (Costa, 2013Costa, O. A. d. (2013). O Livro do Povo na expansão do ensino primário no Maranhão (1861-1881). 210 p. [Tese de Doutorado]. Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-24042013-134450/pt-br.php.
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).

Outra armadura conceitual refere-se à linguagem como critério exigido, registros que deveriam estar “sempre ao alcance da intelligencia dos meninos, que é o mais necessario em livros que se destinão ao fim deste” (Publicador Maranhense, 1862, p. 2). A objetividade e a simplicidade, visando facilitar a compreensão dos conteúdos e exercícios propostos, eram os principais pontos tratados, pois a criança era possuidora de uma suposta inteligência fraca. O método empregado pelo autor, como outro elemento fundamental, deveria ser claro, correto, prático e instrutivo, uma vez que a sua utilidade dependia dessa questão, por estar relacionado à organização do livro, na forma como os conteúdos foram dispostos e trabalhados, abordando-se geralmente em um nível crescente de complexidade.

Neste sentido, alguns dos livros que se destacaram pelo método de exposição dos conteúdos empregado pelo autor foram: a Metrologia moderna ou exposição circunstanciada do systema métrico decimal (1863/1.ª edição), de João Antonio Coqueiro; as Postillas de Grammatica geral Applicada á lingua portugueza pela analyse dos clássicos (1863/1.ª edição), de Francisco Sotero dos Reis; a Metrologia do povo (1882/2.ª edição), de João Miguel da Cruz e o Alphabeto phonético-auricular (1918/1.ª edição), de Roberto Moreira. Destacaram-se pela linguagem utilizada o Livro do Povo (1863/2.ª edição), de Antonio Marques Rodrigues, e o Livro dos Meninos (1862/1.ª edição), de Antonio Rego, enquanto os Rudimentos de Geografia (1862/1.ª edição) apresentava singularidade mais complexa, pois mesmo que “[...] a linguagem [fosse] pura, nem sempre [estaria] ao alcance da intelligencia dos meninos” (Publicador Maranhense, 1862, p. 2); no entanto, foi recomendado para o ensino. Essa decisão pode estar relacionada com a necessidade de textos que tratassem sobre a realidade local e nacional.

Com respeito à utilidade dos conteúdos, a escolha dos assuntos trabalhados em cada livro igualmente era um elemento importante para a aquisição de conhecimentos práticos que pudessem ser aplicados no trabalho, como é possível perceber na Metrologia moderna ou exposição circunstanciada do systema métrico decimal (1863/1.ª edição), que, entre outras coisas, apresentava tabelas com pesos e medidas “necessárias para uso da vida, e de muitas applicações interessantes ao commercio e à indústria” (O Paiz, 1863, p. 3). A leitura, a escrita, o fazer contas e as noções de aritmética eram elementos essenciais para o exercício do trabalho, como afirma o Inspetor da Instrução Pública Luiz Antonio Vieira da Silva (1853), no relatório que enviou ao presidente da província, Eduardo Olímpio Machado (1852-1854): “as ocupações do homem, excelentíssimo senhor, nas sociedades bem organizadas dividem-se em três ramos principais, e são: os trabalhos manuais; os industriais, e os científicos” (Maranhão,1853, não paginado).

Nas escolas de primeiras letras, pretendia-se generalizar o acesso aos conhecimentos elementares, especialmente às camadas mais populares, uma vez que a instrução “aparece como um vasto empreendimento que se poderia chamar de ordem pública, ... trata-se de obter a submissão, a obediência, ou uma nova forma de sujeição [através de] regras que são constitutivas da ordem escolar” (Vincent et al., 2001, p. 14). Da população economicamente desfavorecida não se esperava e nem se pretendia que ingressasse no ensino secundário e superior, uma vez que “a escola para o pobre, mesmo [...] se tratando de brancos e livres, não deveria ultrapassar o aprendizado das primeiras letras” (Faria Filho, 2007, p. 136). Para eles(as) estava resguardado o trabalho manual, para o qual não se necessitaria aprofundamento dos conhecimentos escolares, excluindo-se desta instrução elementar os negros livres, libertos ou escravos, pelo menos até o regulamento da instrução de 1874 (Velázquez Castellanos, 2017Velázquez Castellanos, S. L. (2017). O livro escolar no Maranhão Império (1822-1889). EDUFMA.).

A qualidade da impressão dos livros escolares era algo frequentemente destacado pelos jornais, servindo também como um argumento para a indicação de uso nas escolas, como por exemplo, a Grammatica elementar (1868/1.ª edição), de Conduru, que foi “impress[a] na officina typographyca do Sr.° B. de Mattos. Esta 9ª edição torna[va]-se recomendável pela nitidez, impressão e correção de algumas regras” (Publicador Maranhense, 1868, p. 3). Além disso, a aprovação de um livro também era um elemento comumente destacado nas matérias e nos anúncios para as recomendações de adoção e uso como forma de demonstrar aos leitores que o conteúdo estava de acordo com os ideais da época, com as prescrições instituídas em lei e atendiam às imposições do governo provincial e da igreja que se revezavam e/ou colidiam numa relação constante de força e de poder. Para Velázquez Castellanos (2017)Velázquez Castellanos, S. L. (2017). O livro escolar no Maranhão Império (1822-1889). EDUFMA., questões como o nível e o tipo de relação de autores, tipógrafos e editores com as instâncias de poder, os pressupostos teórico-metodológicos nos quais se pautam os livros, as afinidades com os programas de ensino e os interesses políticos e ideológicos também interferiram na aceitação de obras escolares, tal como as divergências e convergências entre as concepções dos autores e as do júri.

Portanto, aquelas matérias que divulgavam e indicaram uma nova obra ou uma nova edição nos jornais podem ser entendidas como táticas dos autores, editores e tipógrafos diante das estratégias impostas pelos órgãos regulamentadores, pois são falas recheadas de mensagens que intencionavam convencer os interessados da sua eficiência para o ensino, apelando para o detalhamento do conteúdo, dos exercícios e de como eram adequados de acordo com a linguagem e a inteligência do público-alvo. Mensagens com saberes essências que apontavam para uma boa formação e indicavam ainda as escolas nas quais estavam sendo utilizadas ditas obras.

Conclusão

Podemos inferir que as intencionalidades dos sujeitos envolvidos nas publicações dos jornais determinavam a forma como a mensagem seria propagada visando a aceitabilidade dessas matérias e as melhores estratégias de vendas. Os títulos mais frequentemente difundidos eram de autores influentes que ocupavam cargos privilegiados na administração provincial, seja pela trajetória profissional e acadêmica que impactara na circulação e consumo dos artefatos dentro e fora da província, seja pelas relações instauradas, segundo o lugar que residiram. Aqueles que tinham relações mais estreitas usufruíam de ter maior destaque de seus livros nas páginas dos jornais.

Os grupos de poder, por meio da imprensa, buscaram impor seus interesses, ditando como esses artefatos seriam difundidos para a sociedade, apontando o livro como resultado da dinâmica social, das concepções de ensino e das visões de mundo, segundo a ótica deles. Para seus produtores, significava contribuir com a sociedade local e com outras províncias, conferindo-lhes reconhecimento e prestígio, seja almejando atender a estas expectativas, seja se contrapondo a elas de alguma forma.

As imposições, as normas e as avaliações às quais os autores e os impressores eram submetidos para produzir o livro escolar, percebidas nas mensagens dos jornais, revelam a tensão entre aquilo que era imposto e o que se pretendia comunicar na elaboração do material; resultado das divergências entre as armaduras conceituais pautadas nas concepções de ensino e na produção dos livros escolares que nem sempre eram compartilhadas pelos autores. Por tanto, levando-se em consideração que tais concepções iam se transformando, a partir das mudanças nas estruturas psíquicas dos indivíduos envolvidos ou nas formas de se pensar ao respeito que se refletem nos conteúdos dos livros escolares, observamos um embate entre estes grupos sociais que tentavam fazer valer seu conjunto de ideias e valores, propagando-os para as novas gerações por meio de um objeto caro à instrução, como o livro escolar, tendo em vista seu alcance.

A matemática e a gramática foram as disciplinas escolares mais privilegiadas em número de títulos e exemplares impressos, segundo a frequência, enquanto para a geografia e a história, o quantitativo de artefatos cai significativamente. As fontes apontam ter havido uma carência de materiais, voltados ao respeito, que contemplassem as temáticas relacionadas à realidade nacional e local, já que as produções pouco destacavam os aspectos brasileiros e maranhenses, por conta da influência europeia nos espaços de ensino advinda de livros escolares importados e/ou traduzidos.

No caso dos livros de leitura, fica evidente a necessidade da moralização da infância por meio de conteúdos sobre moral, religião e civilidade impostos pela(o) Igreja/poder provincial. A divisão entre livros para o ensino inicial da leitura e da escrita e obras para o ensino da leitura em leitores com habilidades mínimas é evidente, desmitificando-se o lugar do Livro do Povo, de Antonio Marques Rodrigues, como o único livro de leitura maranhense na época, ao colocar-se em pauta o Livro dos Meninos de Antonio Rego, enquanto proposta de alfabetização. Por outro lado, a mudança na relação pedagógica em função do método de ensino simultâneo na contramão do método individual, transformou a interação professor/aluno e demandou a sua automatização. Nesse sentido, o livro escolar passava a se tornar não só elemento indispensável, por permitir a transmissão do mesmo conteúdo a diversos alunos ao uníssono de forma indireta, como também por auxiliar a consolidação de dita relação e das respectivas práticas nas bases da forma escolar de socialização.

Enfim, os livros aqui abordados fizeram parte do programa de ensino de várias instituições dentro e fora da província, configurando-se como elemento fundamental na gramática escolar que contribuiu com a forma de organização da escola; conteúdos sistematizados e objetivados, produzidos e destinados para disciplinas e níveis específicos de ensino, que funcionavam como guia para a prática pedagógica do professor de maneira consciente e participativa no ambiente da sala de aula e de acordo com o grau de entendimento dos alunos, segundo a maturidade infantil.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Vera Bonilha verah.bonilha@gmail.com
  • 3
    Foram publicados no Maranhão ao longo do século XIX cerca de 300 jornais (Velázquez Castellanos, 2017Velázquez Castellanos, S. L. (2017). O livro escolar no Maranhão Império (1822-1889). EDUFMA., p. 397)
  • 4
    Ver Costa (2013)Costa, O. A. d. (2013). O Livro do Povo na expansão do ensino primário no Maranhão (1861-1881). 210 p. [Tese de Doutorado]. Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-24042013-134450/pt-br.php.
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    ; Soares (2017)Soares, W. d. J. B. (2017). Uma história da matemática escolar na cidade de São Luís do século XIX: livros, autores e instituições. [Tese de Doutorado]. Universidade Estadual de Campinas, SP. http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/322675.
    http://www.repositorio.unicamp.br/handle...
    ; Velázquez Castellanos (2017)Velázquez Castellanos, S. L. (2017). O livro escolar no Maranhão Império (1822-1889). EDUFMA.; Velázquez Castellanos, Castro, Souza (2023a)Velázquez Castellanos, S. L. , Castro, C. A., & Souza, M. de A. (2023). Os livros escolares no Liceu Maranhense pela imprensa local (1844-1876). Revista Educação em Questão, 61(67). DOI: 10.21680/1981-1802.2023v61n67ID31816. https://periodicos.ufrn.br/educacaoemquestao/article/view/31816.
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    ; Velázquez Castellanos, (2023b)Velázquez Castellanos, S. L. , Castro, C. A., & Souza, M. de A. (2023). Os livros escolares no Liceu Maranhense pela imprensa local (1844-1876). Revista Educação em Questão, 61(67). DOI: 10.21680/1981-1802.2023v61n67ID31816. https://periodicos.ufrn.br/educacaoemquestao/article/view/31816.
    https://periodicos.ufrn.br/educacaoemque...
  • 5
    Foram identificadas 32 obras produzidas por autores maranhenses e destinadas ao ensino no período de 1860 à 1920 que podem ser consultadas na dissertação de Santos (2022)Santos, J. S. (2022). Os livros escolares de autores maranhenses na imprensa local (1860 - 1920). 2022. 182 f. [Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Educação/CCSO]. Universidade Federal do Maranhão, São Luís. https://tede2.ufma.br/jspui/handle/tede/3672.
    https://tede2.ufma.br/jspui/handle/tede/...
    e 37 em Velázquez Castellanos (2017)Velázquez Castellanos, S. L. (2017). O livro escolar no Maranhão Império (1822-1889). EDUFMA..
  • 6
    A escolha dos livros escolares está em concordância com as permanências, as intermitências, os silêncios e os reaparecimentos nas fontes, que apontam para seu uso, tendo em conta diversas periodicidades e níveis de adaptabilidade na instrução, segundo as mudanças nos programas de ensino via reformas e dispositivos legais. A data das produções/edições não foi fator determinante.
  • 7
    Sem informações até o momento.
  • 8
    José Augusto Corrêa (1854 - 1919) foi filólogo e escritor que trabalhou no Pacotilha a partir de 1915 e professor examinador no Colégio União de Nossa Senhora do Rosário em 1874 (Soares, 2017Soares, W. d. J. B. (2017). Uma história da matemática escolar na cidade de São Luís do século XIX: livros, autores e instituições. [Tese de Doutorado]. Universidade Estadual de Campinas, SP. http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/322675.
    http://www.repositorio.unicamp.br/handle...
    ).
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    Reconhecido pela qualidade de seus materiais.

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Editor responsável: Heloísa Helena Pimenta Rocha https://orcid.org/0000-0001-7965-4100

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Ago 2021
  • Revisado
    21 Dez 2023
  • Aceito
    22 Fev 2024
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