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Burocracia escolar e reprodução de estigmas sobre os estudantes e suas famílias 1 1 Editora responsável: Chantal Victória Medaets https://orcid.org/0000-0002-7834-3834 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha verah.bonilha@gmail.com 3 3 Apoio: CNPq, processos 420596/2018-6 e 309632/2020-0; CAPES/ PROEX, processo 0446/2021

Resumo

O artigo analisa os dados de uma pesquisa realizada com 23 gestores de escolas municipais do Rio de Janeiro, com o objetivo de investigar a relação da burocracia educacional com as famílias no decorrer dos processos de matrícula dos filhos. Mapearam-se, nas entrevistas em profundidade, as percepções dos gestores com relação aos estudantes e suas famílias, em parte orientadas por estigmas individuais e coletivos. Serão apresentados a tipologia proposta para interpretar esse conjunto de estigmas; a aplicação da tipologia na análise das entrevistas; e os argumentos quanto às ações dos burocratas, motivadas por tais estigmas. Os dados indicam que tais ações tendem a reproduzir desigualdades sociais de origem e a produzir novas formas de desigualdade no interior das escolas.

Palavras-chave
escola; estigma; implementação de políticas educacionais; sistemas educacionais; reprodução de desigualdades

Abstract

This article analyzes data from research with 23 managers of municipal schools in Rio de Janeiro that investigated the relationship between educational bureaucracy and families during their children's enrollment processes. In the in-depth interviews, we mapped managers’ perceptions of students and their families, partly oriented by individual and collective stigmas. We will describe the typology we proposed to interpret this set of stigmas, the application of the typology in the analysis of the interviews, and argue about the bureaucrats’ actions guided by these stigmas. Our results show that the bureaucratic actions tend to reproduce social inequalities of origin and produce new forms of inequality within schools.

Keywords
school; stigma; educational policies implementation; educational systems; reproduction of inequalities

1 - Introdução

O debate clássico sobre equalização de oportunidades educacionais é estruturado com (e contra) James Coleman (1966). A tese geral do autor e colaboradores, de que haveria uma correlação direta entre perfil socioeconômico e desempenho escolar, nunca foi totalmente superada. Outras pesquisas realizadas em países ocidentais4 4 Para um debate sobre a trajetória de recepção e crítica à investigação coordenada por Coleman, ver Gamoran e Long (2006). desde então indicam que essa relação é significativa, o que permite afirmar que, de fato, crianças oriundas de famílias com maior nível socioeconômico e cultural tendem a ter melhor desempenho escolar.

Nas décadas de 1960 e 70, esta tese acabou por reduzir as expectativas positivas relacionadas à equalização de bens e serviços sociais, que viam na escola uma das principais instituições responsáveis por promover a mobilidade social. Os dados apontavam que a escola não era significativa para explicar as diferenças de desempenho escolar causadas pelo background familiar dos estudantes.

Parece-nos importante salientar a presença de outras abordagens que trazem resultados convergentes, mais especificamente os trabalhos de Pierre Bourdieu, na França, e dos teóricos reprodutivistas. Embora guardem diferenças teóricas com Coleman, em termos gerais, os teóricos associados a essas abordagens argumentam que as crianças com menor background familiar teriam menor desempenho e probabilidade de construírem trajetórias educacionais longevas devido à ausência de capitais necessários à escolarização (Bourdieu & 2001Bourdieu, P. (2001). Escritos de Educação. Vozes.; Bourdieu & Passeron, 1992Bourdieu, P., & Passeron, J.-C. (1992). A reprodução (3.ed.). Francisco Alves.; Coleman, 1966Coleman, J. (1996). Report on equality of educational opportunity. U.S. Government Printing Office for Department of Health, Education and Welfare.), ou pelas ações reprodutivistas presentes no interior das escolas5 5 A ideia de “teorias reprodutivistas” funciona como uma categoria englobante para autores inseridos em tradições relativamente diferentes, mas que partem do princípio de que a escola, ao invés de combater as desigualdades sociais de origem, tende a reproduzi-las. Para uma compreensão geral sobre os autores classificados como integrantes das teses “teórico-reprodutivistas”, ver Camargo et al. (2017). .

O fatalismo sociológico trazido pelas leituras dos trabalhos de Coleman e Bourdieu foi relativizado por pesquisas que podem ser agregadas em uma classificação englobante: as “pesquisas em eficácia escolar”6 6 Ver Brooke e Soares (2008). . Em síntese, esse conjunto de investigações dialoga com a tese de Coleman, mas afirma que as escolas, ao reconhecerem as disparidades socioeconômicas e culturais presentes entre os alunos, podem agir, no sentido pedagógico do termo, considerando tais disparidades e buscando caminhos para reduzir as diferenças de desempenho dos estudantes.

Tais pesquisas argumentam que os fatores intraescolares permitem às escolas promover maior aprendizado para todas as crianças. Dentre esses fatores estão: clima escolar; liderança profissional; objetivos e visões compartilhados; concentração no ensino e na aprendizagem; altas expectativas; monitoramento do progresso; ensino e objetivos claros; direitos e responsabilidades do aluno; parceria casa-escola e organização orientada para a aprendizagem7 7 Ver Brooke e Soares (2008) e Sammons (2008). . Interessa-nos, para esse artigo, o debate acerca das altas expectativas sobre o aprendizado dos alunos. Trata-se de uma discussão central, porque é possível afirmar que expectativas orientam ações; e, se elas são baixas, tenderão a produzir ações menos eficazes para a construção cotidiana do aprendizado dos alunos nas escolas8 8 Essa tese já está presente em Merton (1968) e Rosenthal e Jacobson (1968). .

No caso específico do Brasil, conforme demonstramos em Rosistolato et al. (2018)Rosistolato, R. P. R., Pires do Prado, A. P., & Martins, L. R. (2018). A realidade- de cada escola e a recepção de políticas educacionais. Ensaio, 26, 112-132., leituras contextuais das diferenças socioeconômicas e culturais entre as crianças que frequentam as escolas públicas tendem a orientar as ações de docentes e gestores em unidades escolares. A noção de “realidade da escola” é recorrente nas falas dos profissionais da educação e orienta as ações pedagógicas de adequação entre o que deveria ser ensinado e o que, de fato, é oferecido para os estudantes.

Em nosso estudo, percebemos que a implementação das políticas de matrícula nas escolas na cidade do Rio de Janeiro é organizada com base em uma série de visões sobre as crianças e suas famílias, incluindo estigmas relacionados às questões escolares e/ou sociais. Há estigmas associados ao lugar social ocupado pelos estudantes e aos seus desempenhos durante os processos de escolarização (Rosistolato et al. , 2019Rosistolato, R., Pires Do Prado, A. P., Muanis, M. C., &; Cerdeira, D. G.da S. (2019). N. 43 - Burocracia educacional em interação com as famílias nos processos de matrícula escolar na cidade do Rio de Janeiro. Jornal de Políticas Educacionais, 13(43), 01-28.). A identificação desses estigmas fez-nos pensar em uma discussão mais específica, que visa contribuir com os debates já consolidados nas abordagens de Coleman, de Bourdieu, dos teóricos reprodutivistas e da discussão sobre eficácia escolar.

Nossa contribuição está articulada ao interacionismo simbólico, um conjunto de teorias sociológicas que tencionam analisar as relações face to face; e buscamos, principalmente em Goffman (1975)Goffman, E. (1975). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. (Trad. M. B. de M. L. Nunes). LTC., as ferramentas necessárias para entender as interações estabelecidas entre os gestores das escolas, as famílias e os estudantes9 9 Há um conjunto de pesquisas inspiradas na obra de Goffman e ou a discutindo que também compõem nosso arcabouço teórico. Não cabe aqui, para os limites deste artigo, descrevê-las exaustivamente. Elas podem ser vistas em: Marsh e Noguera (2018), Lafleur e Srivastava (2019), Scherer (2016). Ver também a obra organizada por Jacobsen (2010) e o livro de Smith (2006) totalmente dedicado às especificidades da obra de Goffman. . De acordo com o autor, estigma é a condição experimentada por indivíduos (ou conjuntos de indivíduos) que são classificados como inaptos para aceitação social plena. Neste caso, apontamos que a aceitação escolar plena seria a matrícula na escola e o entendimento de que todos os estudantes – independentemente de sua origem social e familiar – seriam capazes de aprender todos os conteúdos escolares definidos pelo currículo. Durante as entrevistas com gestores de escolas municipais, as falas mencionavam as “crianças que ninguém quer” e as “escolas que ninguém quer”. Foi o primeiro insight sobre a existência de estigmas individuais e institucionais no âmbito da implementação da política de matrícula do município do Rio de Janeiro.

Nosso argumento é que crianças individualmente e/ou em grupos podem vir a ser condenadas a não aprender antes mesmo de terem iniciado seus estudos. Os gestores trazem percepções sobre o corpo discente de suas escolas com base em um conjunto de “identidades sociais virtuais”, para usar os termos de Goffman (1975)Goffman, E. (1975). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. (Trad. M. B. de M. L. Nunes). LTC..

Essas identidades, no âmbito dos processos educacionais, incorporam a um determinado perfil de estudante ou de família a impossibilidade de aprendizado. Esse veredicto ocorre antes mesmo de as crianças entrarem na escola. As entrevistas tinham como foco a matrícula escolar e, nesse momento, já havia reflexões sobre a impossibilidade de estudantes individualmente e/ou em grupo aprenderem ou concluírem sua escolarização. As identidades sociais virtuais consolidam-se como elementos orientadores das ações e das interações face to face que serão estabelecidas entre os gestores, os professores, as famílias e as crianças10 10 Costa (2020) corrobora nossos argumentos, ao mapear processos de rotulação e estigmatização experimentados por crianças na educação infantil. A autora realiza observações etnográficas e entrevistas e sublinha as representações e as ações das professoras com relação às crianças de diferentes perfis socioeconômicos e culturais. No plano das crenças sociais presentes na escola analisada, acredita-se que nem todas as crianças terão trajetórias escolares lineares e consolidarão a sua escolarização. Tais percepções produzem, no plano das interações, estigmas e rótulos que fazem com que as ações pedagógicas contemplem de forma não equitativa as crianças inseridas nas turmas de educação infantil. . Tal argumento segue pari passu ao conhecimento acumulado no debate sobre as relações família-escola na sociologia da educação. Assim, nossa contribuição mais direta está na descrição e na interpretação dos jogos de palco e bastidores – no sentido proposto por Goffman (1975)Goffman, E. (1975). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. (Trad. M. B. de M. L. Nunes). LTC. – desenvolvidos no decorrer de um procedimento burocrático como a matrícula escolar11 11 Para um debate sobre a contemporaneidade dos estudos de Goffman, ver também Jacobsen (2010). .

Há, conforme demonstraremos, configurações específicas nas quais rótulos, estigmas e percepções gerais sobre os alunos e as suas famílias são postos em cena e correlacionam-se com as ações diretas dos burocratas. Todo o cenário foi descrito pelos burocratas, no decorrer de entrevistas em profundidade, e depois observado no âmbito de investigações mais pontuais, orientadas pelas hipóteses gerais que propusemos com base na análise do material produzido nesta pesquisa12 12 Ver, especialmente, Costa (2020) e Almeida (2019). .

Nas próximas seções, apresentaremos a política de matrícula da cidade do Rio de Janeiro, a discussão sobre a discricionaridade da gestão e a estigmatização de alunos e suas famílias, a metodologia e a taxonomia dos estigmas, construída a partir da análise das entrevistas com gestores escolares.

Em síntese, os gestores começam a se relacionar com as crianças antes mesmo de as conhecerem, conduzindo a reproduzir, no plano das ações pedagógicas,13 13 Entendemos os procedimentos de matrícula escolar como ações pedagógicas que envolvem decisões relacionadas à rede de ensino e a cada unidade escolar. as expectativas construídas no âmbito das representações sociais e dos estigmas. A demonstração dos dados permitirá que reconheçamos os estigmas e o ambiente conservador em que eles são reificados, bem como notar que as falas dos gestores são pautadas pelo reconhecimento do lugar social ocupado pelas unidades escolares que administram.

2 – A política de matrícula e as ações dos burocratas

De acordo com a legislação vigente entre os anos de 2015 e 2017, quando foram feitas as entrevistas14 14 Portaria E/SUBG/CP n.º 21, de 5 de novembro de 2009; Resolução SME n.º 1363, de 19 de outubro de 2015; Resolução SME n.º 1428, de 24 de outubro de 2016; Resolução SME n.º 25, de 24 de outubro de 2017 (Rio de Janeiro, 2017). , as famílias que desejavam matricular seus filhos pela primeira vez na rede municipal deveriam solicitar a vaga pela internet, no sistema online chamado Matrícula Digital. Aqueles que já eram matriculados, mas desejavam mudar de escola, deviam pedir transferência interna, pelo mesmo sistema durante o período de matrícula.

Na rede municipal investigada, há escolas que atendem ao ensino fundamental completo, aquelas que atendem somente ao primeiro segmento (1.º ao 5.º ano) e ainda as que atendem somente ao segundo segmento (6.º ao 9.º ano)15 15 Das 1543 escolas da rede, 103 são unidades exclusivas de Ensino Fundamental I; 130 são unidades exclusivas de Ensino Fundamental II e; 768 unidades possuem mais de uma modalidade/segmento. Dados obtidos no site da SME: http://www.rio.rj.gov.br/web/sme/educacao-em-numeros. Acesso em 21 de setembro de 2021. . Nesses casos, existe o procedimento de remanejamento para que o aluno passe de um segmento para o outro, trocando de escola. Formalmente, as escolas de primeiro segmento se articulam com escolas de segundo segmento, da mesma Coordenadoria Regional de Educação - CRE, para remanejarem seus alunos em blocos. Os pais que não concordarem em remanejar seus filhos para a escola de segundo segmento indicada, podem solicitar vaga em outra escola, durante o período da matrícula online ou direto na escola almejada, após o fim do período.

As escolas da rede municipal apresentam reputações e desempenhos variados, o que pode influenciar a escolha das famílias. Assim, algumas escolas tendem a ter maior procura, enquanto em outras “sobram” vagas. Há pesquisas que identificaram algumas estratégias adotadas pelas famílias para a escolha e o acesso às escolas desejadas, o que não garante o acesso à escola escolhida inicialmente (Costa & Koslinski, 2011Costa, M., & Koslinski, M. (2011). Quase-mercado oculto: disputa por escolas “comuns” no Rio de Janeiro. Cad. Pesqui. [online], 41(142), 246-266. ISSN 0100-1574.; Rosistolato et al., 2016Rosistolato, R. P. R., Pires do Prado, A. P., Koslinski, M. C., Carvalho, J. T., & Moreira, A. M. (2016). Dinâmicas de matrícula em escolas públicas na cidade do Rio de Janeiro. Pro-Posições, 27(3), 237-261. https://doi.org/10.1590/1980-6248-2015-0108.
https://doi.org/10.1590/1980-6248-2015-0...
). A fim de entender esse fenômeno, é necessário compreender as diretrizes oficiais da Secretaria Municipal de Educação - SME para os processos de matrícula e identificar as ações da burocracia educacional16 16 A definição de “burocracia educacional” tem por base a conceituação realizada por Weber (1999). O autor afirma que a burocracia moderna está balizada em princípios norteadores. Em síntese, há divisão fixa de atividades, os poderes de mando são distribuídos, e o cumprimento regular dos deveres burocráticos depende da contratação de um corpo técnico. Gestores escolares e funcionários das escolas são burocratas nesse sentido. Eles são funcionários permanentes das escolas, concursados e depois eleitos para realizar um mandato por tempo determinado. Todas as regras deste mandato são fixadas em Lei, inclusive seus prazos e as suas ações possíveis. A literatura contemporânea aponta a existência de níveis de ações discricionárias em todo e qualquer processo burocrático (Lipsky, 1980). Conforme apontaremos no decorrer do artigo, tais brechas para ações discricionárias estão presentes na regulamentação das ações da burocracia educacional no Rio de Janeiro. Observe-se que “burocracia educacional” é utilizada como uma categoria englobante, que inclui professores que são gestores e funcionários técnicos que, por vezes, assumem funções burocráticas relacionadas à gestão. responsável pelos procedimentos, sobretudo nas interações com as famílias dos estudantes.

A legislação não especifica como devem ser os procedimentos de matrícula, transferência e remanejamento nos casos em que a demanda é maior que o número de vagas. Também não há especificação quanto à organização da transferência dos alunos em bloco, no caso do remanejamento, nem como as escolas devem se articular para transferir e receber os alunos remanejados. Os documentos oficiais determinam que as CRE e a gestão das escolas devem garantir a permanência dos alunos na etapa subsequente de ensino em outra escola, definindo o prazo para que o remanejamento seja efetuado. No entanto, não há diretrizes ou determinações sobre os critérios de organização entre as escolas para a execução do processo. É na ausência da regulamentação que os gestores encontram “brechas” para tomarem decisões, a partir de critérios próprios, avaliando caso a caso (Almeida, 2019Almeida, D. M. O. (2019). Ações dos gestores escolares no processo de matrícula em uma escola municipal do Rio de Janeiro. 2019. [Dissertação de Mestrado]. Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.).

Para Lipsky (1980)Lipsky, M. (1980). Street-Level bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. Russell Sage Foundation., quanto menor a regulamentação de uma política, maior é o poder discricionário da burocracia que lida diretamente com o público atendido. A discricionariedade consiste no grau de liberdade e autonomia para interpretar e adaptar as regras, bem como para tomar decisão. Quanto maior o poder de ação, maior é a tendência de agirem influenciados por percepções, critérios e interesses pessoais, conveniência e troca de favores (Maynard-Moody & Musheno, 2003Maynard-Moody, S., & Musheno, M. (2003). Cops, Teachers, counselors - stories from the front lines of public service. The University of Michigan Press Ann Arbor.). Em vista disso, a burocracia educacional, mais especificamente os gestores escolares, tem alto poder discricionário, diante da fraca regulamentação dos processos de matrícula. Suas ações podem favorecer ou desfavorecer as famílias, em função dos interesses relacionados ao perfil do alunado desejado para a escola.

Estudos realizados na rede de ensino investigada apontaram a existência de processos informais de matrícula conduzidos pela burocracia educacional, em interação com as famílias, que acabam orientando as trajetórias escolares dos alunos. Portanto, os gestores atuam diretamente nas decisões que definem a ocupação de vagas. (Bruel, 2014Bruel, A. L. (2014). Distribuição de oportunidades educacionais: o programa de escolha da escola pela família na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro. [Tese de Doutorado em Educação]. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Orientador: Marcio da Costa.; Carvalho, 2014Carvalho, J. T. (2014). Segregação escolar e a burocracia educacional: uma análise da composição do alunado nas escolas municipais do Rio de Janeiro. [Dissertação de Mestrado]. Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.; Rosistolato et al., 2016Rosistolato, R. P. R., Pires do Prado, A. P., Koslinski, M. C., Carvalho, J. T., & Moreira, A. M. (2016). Dinâmicas de matrícula em escolas públicas na cidade do Rio de Janeiro. Pro-Posições, 27(3), 237-261. https://doi.org/10.1590/1980-6248-2015-0108.
https://doi.org/10.1590/1980-6248-2015-0...
). Autores como Costa e Koslinski (2011)Costa, M., & Koslinski, M. (2011). Quase-mercado oculto: disputa por escolas “comuns” no Rio de Janeiro. Cad. Pesqui. [online], 41(142), 246-266. ISSN 0100-1574. evidenciaram a existência de um “quase mercado oculto” na rede municipal do Rio de Janeiro, ao identificarem mecanismos adotados pelas escolas para selecionarem alunos de perfil “desejável”, favorecendo a manutenção ou a melhora de suas reputações.

A pesquisa mais recente de Rosistolato et al. (2019)Rosistolato, R., Pires Do Prado, A. P., Muanis, M. C., &; Cerdeira, D. G.da S. (2019). N. 43 - Burocracia educacional em interação com as famílias nos processos de matrícula escolar na cidade do Rio de Janeiro. Jornal de Políticas Educacionais, 13(43), 01-28. se aprofundou nas ações dos burocratas educacionais durante os processos de matrícula e remanejamento dos estudantes. Observou-se que ocorrem interpretações e implementações variadas da legislação de matrícula. A depender do tempo no cargo, do grau de poder e da legitimidade da gestão, é possível decidir os alunos que serão matriculados, ainda que a legislação e o sistema informatizado não permitam explicitamente essa prática.

Almeida (2019)Almeida, D. M. O. (2019). Ações dos gestores escolares no processo de matrícula em uma escola municipal do Rio de Janeiro. 2019. [Dissertação de Mestrado]. Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. notou diversos critérios que beneficiavam determinadas famílias nos processos de matrícula e remanejamento, concluindo que a burocracia faz julgamentos e constrói identidades para as famílias e seus filhos, que acabam por direcionar suas ações. A estigmatização das famílias ocorre, basicamente, no momento da interação com os gestores, na relação face to face (Goffman, 1981Goffman, E. (1981) Forms of Talk. University of Pennsylvania publications in conduct and communication.). De acordo com Pires et al. (2018)Pires R., Lotta G., & Torres Junior, R. D. (2018). Burocracias implementadoras e a (re)produção de desigualdades sociais: Perspectivas de análise no debate internacional. In R. Pires, G. Lotta, & V. E. Oliveira (Org.), Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas. (pp. 185-206). IPEA, Enap., as categorias morais são construídas e reproduzidas nas interações. É nesse momento que os burocratas categorizam o público em merecedores ou não do serviço, e suas decisões tomam “uma dimensão de classificação identitária, cujo resultado interfere em processos de inclusão e exclusão social dos usuários” (p.257).

As ações discricionárias dos gestores impactam diretamente a estrutura de oportunidades educacionais, pois definem trajetórias de sucesso e fracasso escolar, a depender do perfil das famílias e seus filhos e de como acontece o acesso à rede municipal de ensino, desde a educação infantil. É fundamental compreender as percepções, as concepções e as justificativas que orientam as ações dos agentes da burocracia educacional, trabalhando com a hipótese de que os estigmas associados aos alunos e suas famílias são centrais para entender a atuação desses agentes.

3 – Metodologia

A Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME) tem 11 Coordenadorias Regionais de Educação (CRE)17 17 As CRE fazem parte da burocracia da Rede Municipal de Educação. No organograma, estão abaixo da SME. Elas coordenam números variados de escolas, distribuídas em todos os bairros do Rio de Janeiro. . Realizamos entrevistas em profundidade com as equipes de gestão de 23 escolas de 9 CRE. Não foi possível contemplar todas as CRE por conta de limitações ocorridas no campo; especificamente, recusas por parte dos gestores. Selecionamos as escolas com base em seus desempenhos em avaliações externas de aprendizagem realizadas pelo INEP e pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, além da reputação da escola no contexto no qual estavam localizadas. Inicialmente, trabalharíamos com escolas em pares de oposição por desempenho (alto versus baixo) e reputação (boa versus má). Porém, no decorrer do campo, enfrentamos seguidas recusas, mais por parte das escolas de alto desempenho e boa reputação. Por isso, optamos por entrevistar gestores de escolas que estavam o mais próximas possível do perfil daquelas que foram originalmente definidas para as entrevistas, e que aceitaram participar da pesquisa. É claro que tal procedimento gerou ajustes na amostra qualitativa original, mas por tratar-se de escolas inseridas na mesma rede de ensino e que, por isso, são orientadas pelas mesmas regulamentações relacionadas à matrícula escolar, seria possível fazer as comparações previstas no projeto, levando em conta as especificidades de cada escola e de cada gestora entrevistada.

As entrevistas com os gestores visaram compreender como ocorria o diálogo com as famílias durante os processos de matrícula, transferência e remanejamento e como se davam a regulação e a organização desses processos, sobretudo quando a demanda era maior do que a oferta de vagas. Isso nos permitiu identificar diversas percepções, expectativas e estigmas relacionados às famílias.

As escolas pesquisadas possuem Indicadores de Nível Socioeconômico (INSE) nos níveis III, IV e V, indicando algum nível de equivalência nas características socioeconômicas dos estudantes e suas famílias18 18 O Indicador de Nível Socioeconômico (INSE), elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), trabalha com dados dos questionários dos estudantes no SAEB. As diferenças entre os níveis III, IV e V referem-se a bens de consumo como freezer, computador e carro. As diferenças educacionais dos responsáveis também são explicitadas. A maioria dos estudantes em escolas de nível III e IV possui responsáveis com o ensino fundamental incompleto ou completo e/ou ensino médio completo e das escolas de nível V possui responsáveis com ensino fundamental completo até o ensino superior completo. . Selecionamos gestoras de escolas com perfis relativamente equivalentes, porque, embora consideremos todas as influências dos perfis de NSE nas relações desenvolvidas entre as famílias e as escolas, entendíamos haver outras configurações de rotulagem e estigmatização relativamente independentes do NSE dos estudantes.

Para este artigo, propusemos uma metodologia de análise que envolve procedimentos quantitativos e qualitativos. O primeiro passo foi quantificar e classificar todas as referências às famílias e aos estudantes. Considerando que os gestores estão distribuídos em escolas por todas as regiões da cidade, entendemos que comparar as referências às famílias das crianças e às crianças contribuiria diretamente para a análise comparativa que pretendíamos realizar, sobre as percepções dos gestores – inseridos em diferentes regiões da cidade – acerca dos alunos matriculados nas escolas que dirigem. Além da abordagem quantitativa, qualificamos todas as falas, o que permitiu produzir uma análise taxonômica acerca dos s sentidos e das justificativas associados às percepções dos gestores sobre os alunos e as famílias.

A Tabela 1 apresenta as escolas que fizeram parte da pesquisa, o total de menções dos gestores às famílias e destaca o número de falas que apresentaram classificações positivas ou negativas sobre os grupos familiares. Há falas que não foram classificadas em uma ou outra categoria, por serem entendidas como neutras, ou seja, narrativas sobre as famílias sem conotações positivas ou negativas. Optamos por não apresentá-las nessa tabela, por não serem foco de nossa discussão. Trata-se de referências genéricas, sem caráter valorativo. Portanto, em termos analíticos, não há como compará-las com referências positivas ou negativas.

Tabela 1
Escolas e menções às famílias

Nosso principal argumento é que parte dessas representações – aquelas pautadas em rótulos e estigmas –corrobora a construção de tipos idealizados de alunos e famílias e orienta as ações dos gestores durante os processos de matrícula. Em termos prospectivos, os gestores acreditam que os estudantes terão trajetórias de sucesso ou fracasso escolar, justificando suas crenças com base nesse conjunto de representações.

A análise das citações às famílias dos estudantes trouxe um conjunto de desafios interpretativos. Inicialmente, partimos do teste de uma variável clássica da sociologia da educação: a escolaridade dos pais. Em hipótese, famílias menos escolarizadas seriam menos desejadas pelos professores e gestores. Era plausível supor que nestas escolas os gestores fizessem mais menções negativas às famílias do que naquelas cujos pais fossem mais escolarizados. Isso não ocorreu. Encontramos percentuais equivalentes de citações negativas e positivas com relação às famílias em escolas que atendem famílias com maior e menor escolaridade.

O cenário apresentado pelos dados nos deslocou para uma análise qualitativa das menções às famílias, buscando os sentidos atribuídos pelos gestores a essas menções. Não ignoramos as variáveis de nível socioeconômico das famílias e entendemos que elas têm potencial heurístico para interpretar rótulos e estigmas. Porém, conforme demostraremos, há elementos que, embora por vezes relacionados às variáveis objetivas de nível socioeconômico, são fruto das interações estabelecidas entre os gestores e as famílias. As proximidades e os distanciamentos nessas interações constroem e alimentam estigmas que também podem contribuir para produzir profecias autorrealizadoras relacionadas às trajetórias dos estudantes. Não nos propusemos a realizar uma análise com base na construção de variáveis mutuamente excludentes, tampouco baseamo-nos em um modelo causal. Produzimos as tipologias e buscamos, com base na comparação entre elas, conexões de sentido que articulam percepções, rótulos e estigmas como elementos orientadores das ações das gestoras20 20 Em termos weberianos, nossos dados têm limitações que nos impedem de transitar da interpretação relacionada às conexões de sentido para qualquer explicação causal. Trata-se de um primeiro momento de análise que nos permitiu formular hipóteses para pesquisas futuras. Há, também por isso, reduzidas possibilidades de propor interseções causais diretas entre as tipologias apresentadas. Nossa abordagem hermenêutica, nesse caso, aproxima-se mais de Rickert (1943) do que do próprio Weber (1999). .

A seguir, apresentaremos os resultados dos processos de quantificação, a tipologia proposta para a taxonomia e as análises que realizamos.

4 - Percepções, expectativas e estigmas sobre as famílias e os estudantes

A tipologia é apresentada na Tabela 2 em que descrevemos os tipos de famílias construídos após a análise das entrevistas com os gestores. Os quatro tipos apresentam modelos de família em oposição: alto nível socioeconômico/altas expectativas e baixo nível socioeconômico/baixas expectativas; famílias ativas nos processos de escolarização e nos espaços escolares e famílias inativas.

Tabela 2
Tipologia das percepções, expectativas e estigmas sobre as famílias e os estudantes

É importante observar que três dos tipos analisados são modelos de famílias sobre os quais há consenso entre os gestores. Eles desejam ou não a presença dessas famílias nas escolas. Há, no entanto, um tipo de família, as famílias ativas, em que não houve consenso. Ao mesmo tempo em que alguns gestores as desejam, outros as repudiam e há também aqueles que desejam a presença dessas famílias, mas com limites, de forma que elas são simultaneamente desejadas e indesejadas.

Esse tipo não consensual revela a pluralidade de percepções e de ações no âmbito da burocracia educacional. Ademais, algumas ações aludidas no senso comum e no discurso acadêmico como positivas para as relações entre as famílias e as escolas, por vezes, são lidas de forma controversa pelos gestores.

O primeiro dado a ser destacado na Tabela diz respeito à preferência por famílias com maior nível socioeconômico. Os gestores entendem que as famílias com melhores condições financeiras, que viajam mais e têm níveis mais elevados de escolaridade, têm filhos mais educáveis do que as compostas por pais analfabetos e em situação de vulnerabilidade social.

Por um lado, revela-se aqui algo já pontuado pela sociologia da educação desde Coleman (1966)Coleman, J. (1996). Report on equality of educational opportunity. U.S. Government Printing Office for Department of Health, Education and Welfare.. O desempenho das crianças e as expectativas escolares associam-se ao perfil socioeconômico de suas famílias, mas, por outro lado, conforme argumentamos, as visões dos gestores sobre o nível socioeconômico das famílias podem produzir “profecias autorrealizadoras” com relação aos estudantes (Merton, 1968Merton, R. K. (1968). Social theory and social structure. Free Press.). A seguir, demonstraremos como as diferentes categorias aparecem no discurso dos gestores.

4.1 - Famílias com alto nível socioeconômico e altas expectativas

A gestora Simaria21 21 Todos os nomes são fictícios. , ao descrever o perfil dos alunos da escola, indica a divisão entre os dois tipos familiares. Há famílias de nível socioeconômico e cultural mais elevados e aquelas de menor nível socioeconômico com pais analfabetos e crianças que dependem exclusivamente do que a escola lhes ensina e oferece como refeição. Muitos destes estudantes nunca saíram do local de moradia.

Então, a gente tem uma escola bem dividida. Tem um grupo de alunos...com uma bagagem familiar, cultural, que viajam. Ótima. ... Que os pais são mais esclarecidos, trabalham, né? Muitos pais com Nível Superior. ... E eu também tenho alunos de uma classe totalmente desfavorecida. ... onde a única refeição é a que é servida aqui. ... Que só conhecem essa favela aqui, só esse mundo que tá aqui no entorno deles. E tem pais que nem assinam.

No contexto dessa entrevista e das demais analisadas, percebemos que, nas concepções dos gestores, a situação socioeconômica e cultural da família, em certa medida, direciona a situação educacional da criança. As famílias com menor nível socioeconômico têm crianças mais difíceis de serem educadas pela vulnerabilidade em que vivem. O contrário ocorre com as crianças de famílias com maior nível socioeconômico e cultural. Enquanto os alunos com uma “bagagem familiar, cultural, que viajam” são lidos como aqueles que têm uma base “ótima”. Os outros, que têm “pais que nem assinam” e só conhecem “essa favela” não são sequer valorados. Há sutilezas na fala da gestora que revelam uma escola dividida e conexões diretas entre as leituras relacionadas aos alunos – identidades virtuais no sentido de Goffman (1975)Goffman, E. (1975). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. (Trad. M. B. de M. L. Nunes). LTC. – e a composição social da própria escola. Produz-se desta forma um ciclo de ampliação e aprofundamento das desigualdades, conectando dados objetivos sobre as condições materiais das crianças e as expectativas sobre as suas capacidades de aprender.

A diretora Rafaela também faz uma correlação direta entre o perfil socioeconômico das famílias e a “preocupação familiar com a formação”, marcando fortemente a diferença entre os pais com maior poder aquisitivo e os “pais de comunidade”.

não é uma escola assim localizada dentro de comunidade, isso também é assim, um diferencial ... a gente tem um perfil diferente, então são pais assim que estão mais preocupados com essa questão da formação. ... Não que nessas comunidades não tenham pais com esse perfil, mas a gente percebe que as crianças vem assim ... arrumadinhas com material que a mãe compra.

Os gestores estabelecem ainda uma relação automática entre o nível socioeconômico das famílias e altas expectativas escolares, como revela a fala da gestora Valentine, indicando que, em sua escola, há estudantes, alguns sobrinhos de professores da rede municipal de educação, que têm planejamento para o futuro e que têm potencial para “ir além”.

Eles falam assim “não, a minha mãe tava vendo. Eu tava vendo. Eu quero ir pro Colégio Militar. Eu quero...”. Tem uma perspectiva de futuro. ... Eles já estão planejando assim... qual faculdade eles vão querer seguir. São crianças que veem na educação uma perspectiva de melhora. ... Eu vejo como alunos, assim, com futuro brilhante. Futuros doutores, alguns voltando aqui pra dar aula. Porque eles pensam bem lá na frente. Tem uns até que tem...ali, naquela turma, eu tenho 3 crianças que são sobrinhos de professores da Rede. Então, assim “não...a minha tia fala pra eu estudar porque eu tenho que ser um doutor.” Eles até se cobram demais, às vezes, por isso. Que a perspectiva é sempre de ir além, né?

A seguir, mostraremos como no polo oposto ao das famílias com nível socioeconômico mais alto estão aquelas mais pobres, indesejadas pelos gestores.

4.2 - Famílias com baixo nível socioeconômico e/ou com baixas expectativas

De maneira geral, os estudantes de famílias mais pobres são indesejáveis. As condições de pobreza são diretamente relacionadas, pelos gestores, a trajetórias escolares mais curtas e fragmentadas.

A gestora Regina é enfática, ao conectar as condições de subsistência das famílias e a impossibilidade de aprendizado das crianças. Ela deixa claro que exige dos estudantes, mesmo sabendo que eles não atingirão o que ela está requisitando. Em sua fala, fica evidente a expectativa de trabalho com um modelo de estudante, aquele que está pronto para aprender e dar conta das exigências. Os outros são igualmente cobrados, mas lança-se a profecia de que não irão aprender (Merton, 1968Merton, R. K. (1968). Social theory and social structure. Free Press.; Rosenthal & Jacobson, 1968Rosenthal, R. E., & Jacobson, L. (1968). Pygmalion in the Classroom. Holt, Rinehart e Winston. ).

É difícil. Tem casos aqui que a pessoa não tem banheiro. Por incrível que pareça. Entendeu? Tem gente que mora lá pros cafundó de lá de dentro que são assim... cubículos de madeira, chão batido. Não tem. Entendeu? Então, às vezes, a gente exige determinadas coisas das crianças, mas se você falar na realidade, ele não vai ter como atingir aquilo que você tá pedindo.

A gestora Larissa também relaciona a trajetória educacional dos estudantes com a situação familiar. Para ela, os estudantes com pais menos escolarizados, semianalfabetos ou com famílias “desestruturadas” têm chances reduzidas de finalizar a educação básica.

Mas, sendo realista, infelizmente menos da metade terminam o ensino médio. E a realidade deles é de pais semianalfabetos ou analfabetos. Eu tenho pais que ainda nem conseguem assinar o nome...alguns com digital e, quando são chamados, ainda a gente dá o carimbo pra ele carimbar a digital. Entendeu? O índice de violência e a formação da família também muito...desestruturada. A maioria não tem essa realidade de pai, mãe, filhos e irmãos.

Os indesejados são aqueles portadores de estigmas sociais ou individuais que extrapolam as fronteiras da escola. As famílias pobres, que não conseguem alimentar seus filhos, são estigmatizadas porque prejudicam o desenvolvimento do que seria, na visão das gestoras, o papel primordial da escola. Elas não conseguem educar os estudantes em sentido estrito, porque precisam alimentá-los e conviver com famílias que não participam das rotinas escolares como as gestoras gostariam que participassem.

As famílias com nível socioeconômico mais baixo são associadas também, pelos gestores, a baixas expectativas escolares. A gestora Helena reforça a ideia de que entre 35 alunos de uma turma, apenas 5 têm condições de continuar os estudos. A causa para possíveis evasões e descontinuidades nos estudos está na (des)organização e na baixa escolaridade das famílias.

aqueles adolescentes que vieram pra gente, que já têm histórico de retenção, que foram de projeto, que não têm acompanhamento do responsável, que não são criados pelos pais, são criados pelas avós, pelas tias. Não que isso, assim... Seja rótulo, porque, às vezes, é criado por uma avó ou uma tia e é muito bem-criado. ... eu não percebo essa vontade, esse carinho, querer formar essa criança como se fosse o meu filho. Eu não percebo isso.

A gestora Dorothy afirma que as famílias dos alunos “R” [regulares] são diferentes das famílias dos alunos “MB” [muito bons] e dos alunos “B” [bons]. São as famílias dos “patinhos feios” que alguém precisa pegar. A ideia de obrigação presente em sua fala deixa explícito que não há desejo de receber esses alunos, mas ela os recebe por não haver alternativa.

A gente percebe exatamente que quando você trabalha com a família de alunos “R”, as famílias são muito dispersas da escola, desse valor da escola, sabe? É diferenciado! A família de aluno “MB” é uma família, a família de aluno “B” é a mesma família, mas família de aluno “R” é outra família! ... Mas aí é aquele negócio, alguém tem que pegar os patinhos feios.

Os trechos ressaltam que as famílias são desejadas ou indesejadas em função das expectativas escolares e pela sua configuração familiar e seu lugar na sociedade. Nas entrevistas com os gestores, não aparecem expectativas escolares relacionadas ao trabalho pedagógico realizado com os estudantes pelos professores, pela instituição escolar ou pelo sistema educacional. A literatura sobre eficácia escolar aponta que aumentar as expectativas sobre os estudantes, em conjunto com um planejamento orientado para a aprendizagem, tende a reduzir a manutenção e a produção de desigualdades educacionais entre os estudantes (Brooke & Soares, 2008Brooke, N., & Soares, J. F. (2008). (Orgs). Pesquisa em eficácia escolar: origem e trajetória. UFMG.; Sammons, 2008Sammons, P. (2008). As características-chave das escolas eficazes. In N. E. Brooke, & J. F. Soares (Orgs.), Pesquisa em eficácia escolar: origem e trajetórias. (pp. 335-382). Editora UFMG.).

Na sequência, iremos entender as visões sobre as famílias ativas nos processos de escolarização e nos espaços escolares.

4.3 - Famílias ativas nos processos de escolarização e/ou nos espaços escolares

Essa categoria inclui as famílias mais engajadas na escolarização dos filhos, desde a escolha da escola até a presença no ambiente escolar. Esta é uma das categorias não consensuais nos processos de valoração apresentados pelos gestores. As famílias são citadas simultaneamente como desejadas e indesejadas. Para compreender esse processo, cabe comparar com as famílias classificadas como inativas nos processos de escolarização e/ou nos espaços escolares. Em sentido lógico, essas categorias seriam oposições diametrais, mas não são , porque, por vezes, as famílias ativas e participativas são vistas de forma negativa pelos gestores. Apresentaremos as reflexões sobre as famílias ativas e, em seguida, as falas sobre as famílias inativas a fim de compará-las.

Cecília faz um relato inicial em que valoriza as ações das famílias relacionadas à escolha das escolas; mas na sequência indica outros pontos que desvalorizam ações do mesmo tipo.

E: E quando você tem os dez alunos que querem ir pra mesma escola e tem um número menor de vagas?

C: Quando isso aconteceu foi acordado que todos os alunos que terminassem o 6.º ano na Escola Municipal Cristal seriam remanejados pra uma escola ... que fica nesse mesmo polo. No primeiro ano os pais ficaram satisfeitos, no segundo ano, os pais ficaram satisfeitos, no terceiro ano, que foi ano passado, como alguns pais disseram “Poxa, não era bem pra essa que eu queria, eu gostaria que meu filho fosse...” e eu levei isso pra CRE, pra secretaria. ... “é, eu acho que tem que dar uma opção como vocês dão nas creches”, deles poderem optar por essas escolas mesmo que não sejam do polo, aí foi aceito e foi aberto assim.

A gestora valoriza as ações das famílias relacionadas à busca por escolas desejadas para os seus filhos. Coloca-se, inclusive, como mediadora entre as famílias e a gestão intermediária, realizada no âmbito da CRE, o que pode vir a promover, segundo ela, mudanças nas regras de matrícula. Ao mesmo tempo, Cecília manifesta seu descontentamento com as famílias que querem decidir o turno em que seus filhos estudarão.

Dona Cecília, meu filho está de manhã, mas eu trabalho. Eu quero de tarde.” Aí eu pego o caderno: “Tá bom, eu vou anotar o seu nome, telefone, nome da criança, telefone. ... Olha só mãezinha... eu até posso fazer, mas se eu olhar e o ano de nascimento estiver de acordo ... porque se não estiver isso é prejudicial”. E é mesmo. Prejuízo para a criança é grande. Criança da mesma idade, interesses iguais, crianças com idades diferentes a tendência é os seus interesses serem diferentes. Antigamente, agora elas estão mais, do ano passado para cá, me entendendo melhor, mas elas me xingavam muito”.

Percebe-se que a participação direta da família na construção dos destinos escolares de seus filhos ganha valores diferentes, quando envolve ações direcionadas à gestão intermediária – CRE – e à gestão da escola – direção. Há confronto entre duas lógicas de organização. Por um lado, a gestão pedagógica que entende que as crianças devem ser enturmadas seguindo critérios etários, porque o pertencimento à mesma faixa etária produziria interesses convergentes entre as crianças. Por outro, a perspectiva dos responsáveis que pretendem escolher o turno da criança em acordo com as rotinas familiares. Nesse cenário conflituoso, embora as famílias sejam participativas, esse tipo de participação não é valorizado pela gestora, uma vez que está em dissonância com sua visão pedagógica relacionada à enturmação dos alunos. Ao final, a gestora afirma que têm sido mais bem entendida pelas mães e menos xingada. A entrevista deixa claro que a gestora aceita as demandas trazidas pelas famílias, mas não as valoriza, posto que entende que seu conjunto de valores pedagógicos associados à enturmação deve prevalecer. A situação conflituosa é relativamente apaziguada, quando as famílias começam a entendê-la melhor e reduzem os xingamentos.

A entrevista com Cecília sintetiza as percepções que configuram uma “participação tutelada”. As famílias são bem quistas, quando participam das rotinas escolares e dialogam com os gestores, desde que essa participação seja aquela que eles classificam como ideal. Há visões convergentes com aquelas que foram mapeadas por Burgos (2009)Burgos, M. B. (2009). Escola e projetos sociais: uma análise do "efeito-favela." In A. Randolpho, & M. B. Burgos (Orgs), A escola e a favela (pp. 59-133). Editora PUC-RIO. em reuniões de pais promovidas por uma escola em uma favela do Rio de Janeiro. Ele observou que, ao mesmo tempo em que a gestão exigia a presença das famílias, queria que elas participassem das reuniões no limite do que tinha definido como participação. Esse tipo de “participação tutelada” revela um dos aspectos constituintes das visões dos gestores sobre as famílias e as interações que estabelecem com as escolas.

Valentine é outra gestora que valoriza a “participação tutelada”. Ela salienta a participação das famílias, entendendo-a como positiva. Esse seria um dos diferenciais da sua escola. No entanto, revela conflitos entre a perspectiva da gestão e das famílias com relação às melhores escolas para as crianças. Ela afirma que não envia uma criança para uma escola “só porque ela [mãe] quer”. Transparece, com essa afirmação, que entende que é a gestão que deve, em última instância, definir a escola na qual as crianças serão matriculadas no segundo segmento do ensino fundamental.

Essa posição da gestora está em atrito com a regra estabelecida pela SME, que enfatiza que as famílias devem escolher livremente as escolas de seus filhos. A justificativa da gestora para essa ação é pautada no que ela julga ser melhor para a criança e no apoio pressuposto que a família seria capaz de oferecer. Tais decisões são tomadas com base nas identidades sociais virtuais que os gestores formam a respeito dos alunos e suas famílias (Goffman, 1981Goffman, E. (1981) Forms of Talk. University of Pennsylvania publications in conduct and communication.) e se constituem em ações discricionárias, uma vez que não correspondem às regras estabelecidas pela SME (Lipsky, 1980Lipsky, M. (1980). Street-Level bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. Russell Sage Foundation.).

Nosso olhar é pra criança. Eu não vou “ah, porque essa mãe quer muito...eu vou mandar o filho pra lá só porque ela quer.” De repente, não vai ser bom até pro filho porque a gente sabe qual é o perfil de cobrança da escola de 2.º segmento e, às vezes, não vai ser bom nem pra aquela criança ir pra essa escola [...]. Aí isso quando o pai fala “ah, mas...” ... A gente chama numa conversa... “depois espera a gente um pouquinho pra conversar no final da reunião.” Aí traz aqui pra nossa sala e conversamãezinha, você sabe que nesta escola tem um nível de cobrança maior. Você acha que vai poder tá ajudando o seu filho?" Aí, ela mesma "ah é, né? Ela tá tão devagar. Ela tá tão ruim nisso. É melhor ela não ir pra lá não." .... Os pais até concordam.

Da mesma forma, as famílias ativas que mobilizam terceiros para buscar acesso às vagas nas escolas desejadas, como a CRE, o Conselho tutelar e o Ministério Público são vistas ora como desejáveis e ora como indesejáveis. Famílias que acionam as CRE para conseguir as vagas podem ser vistas de forma positiva, quando buscam escolas que fazem um bom trabalho. A fala da gestora Betina denota a relação entre indicação e o reconhecimento do bom trabalho realizado pela escola. Na sua escola, por exemplo, há estudantes com familiares da rede municipal e da CRE:

E: A CRE já indicou ou enviou alunos aqui para tua escola diretamente?

B: Já, tem filho, ou neto, de funcionário da CRE que vem para cá.

E: E aí mandam do tipo: “Ah, é meu primo, meu sobrinho, vai lá para escola.”

B: É porque indicam. O IDEB aqui é 6.4. “O IDEB lá é bom, a escola lá é boa.” Conhecem também, e me conhecem. Conhecem o meu dia a dia, sabe como a coisa funciona.

Por outro lado, a gestora Dorothy menciona famílias que acionam a CRE para conseguir vaga, em casos de estudantes que saíram da escola “pelo regimento”. Estas famílias são vistas negativamente. Dorothy chama a atenção sobre a possibilidade de negar a vaga, mesmo sendo algo vindo da CRE, pois há margem para negociação.

D: E aí dependendo do aluno que eles falam... Se foi um aluno que já foi meu e que por acaso já sofreu o regimento eu falo: “não manda não!”. Porque às vezes o aluno sai daqui com o regimento... Aí acontece isso. [...]

E: E não tem problema você falar que não quer aquele aluno?

D: Olha, se eu estiver respaldada com o regimento não tem o menor problema.

Os relatos, assim como outros explicitados pelos gestores, indicam dois aspectos da CRE: ela tem entre as suas atribuições a indicação de escolas com vagas para as famílias que a procuram e tem um espaço discricionário ao indicar determinadas escolas para famílias conhecidas ou para seus próprios familiares. Da mesma forma, os gestores também têm uma ação discricionária: aceitam determinadas famílias e negam acesso a outras, a partir de seus próprios interesses (Almeida, 2019Almeida, D. M. O. (2019). Ações dos gestores escolares no processo de matrícula em uma escola municipal do Rio de Janeiro. 2019. [Dissertação de Mestrado]. Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.; Maynard-Moody & Musheno, 2003Maynard-Moody, S., & Musheno, M. (2003). Cops, Teachers, counselors - stories from the front lines of public service. The University of Michigan Press Ann Arbor.;).

Já as famílias que recorrem ao Conselho Tutelar e ao Ministério Público são sempre percebidas de forma negativa. Os motivos dizem respeito à interferência de outras instâncias no âmbito escolar. No caso do Ministério Público pelo “cumpra-se”, no caso do Conselho Tutelar ou da associação de moradores, pela tentativa de ingerência na escola, como aparece nas falas da gestora Valentine:

Ministério Público mandou, a gente tem que matricular. Até além do número de vagas. Eu não tenho mais vagas, mas é cumpra-se.

Lembro dela [da associação de moradores] falar isso comigo batendo ali no balcão “ah, não tem, não? Eu já conheço o caminho das pedras. Vamos ver se essas crianças não vão vir pra cá.” Mas não vieram porque realmente não tinha. Ela mandar a mãe pro Conselho, Conselho mandar um papel pedindo uma vaga aqui, eu só atendo se eu tiver."

Algo recorrente nas falas das gestoras sobre o uso de terceiros na obtenção de vagas pelas famílias é relativo aos políticos. Mesmo com a ressalva de que há um número menor de famílias utilizando os políticos para garantir a vaga, os gestores indicam que isso ainda ocorre, direta ou indiretamente. Segundo Paula:

E: e sem CRE? Diretamente aqui com vocês, políticos...

P: A primeira coisa que eu falo é 'não'. Eu fico indignada. Porque todo mundo tem o mesmo direito, entendeu? E eu fico muito revoltada de eu dizer que eu não tenho vaga e eu ser obrigada a matricular uma criança porque é de um pedido.

P: eu tenho que matricular, eu não posso questionar.

E: e se não tem vaga?

P: mesmo não tendo.

E: como assim?

P: Excesso. Ele não tá na vaga, ele tá excedente. Entendeu? Eu tô com mais alunos do que deveria ter na turma porque houve um pedido acima de mim. ... Os excessos nesse momento a gente tenta acomodar mesmo, ajudar todo mundo.

Nos relatos dos gestores sobre as famílias que buscam a escola utilizando terceiros há menções sobre o limite de vagas como parte do processo para obtenção ou não da vaga. Isso indica que os gestores estão dialogando com as resoluções de matrícula e com as regras para o número de alunos em sala de aula. Mas os relatos também demonstram espaço para ação discricionária dos gestores e da CRE na obtenção ou não da vaga. As famílias desejáveis são aquelas que buscam, via terceiros, uma boa escola, e as indesejáveis são as que buscam privilégios e aquelas estigmatizadas socialmente por sua situação social.

Nesta categoria também estão incluídas as famílias presentes no ambiente escolar, que são citadas simultaneamente como desejadas e indesejadas. Há mais valorações positivas do que negativas, mas, como percebemos nas falas dos gestores, a valoração positiva é daquela família que está presente e segue a tutela da escola, e a negativa faz referência às famílias presentes, mas que questionam o trabalho escolar.

A gestora Rebeca é uma das que analisa positivamente a família presente na escola. Para ela, a família é bem-vinda em reuniões de pais e tem reuniões “lotadas”. Outros momentos precisam ser agendados. Ou seja, podem estar na escola sempre e quando forem chamados pela gestão. Novamente aparece a ideia positiva da presença das famílias na escola, desde que seja tutelada e orientada pela gestão.

No entanto, a presença da família pode ser vista como negativa, quando elas questionam ou fiscalizam o trabalho escolar. A gestora Rebeca enfatiza essa percepção, ao narrar a crítica de uma mãe sobre um filme passado na escola no final do ano letivo.

Em casa é com a mãe, depois se a gente mostrar alguma coisa que não preste: ‘a escola fez isso?!`. E lá está seu filho assistindo sei lá o que às onze da noite, às duas da manhã acordado e você tá lá dormindo. Mas aqui na escola a gente tem que ter esse controle mesmo porque senão o cara viaja. Porque quem escuta sou eu. Uma vez já aconteceu isso! Uma professora minha passou um filme, e a professora muito chata, muito chata, muito criteriosa, mas o filme apresentava umas cenas... Se eu tivesse visto na hora eu teria... Mas as crianças pediram, e nós estávamos no fim do ano, né? Não tinha mais matéria a dar, nenhum! Nada! O professor já estava assim, na última semana. ... Aí, dois dias depois vem uma mãe cobrar a minha postura diante do que aconteceu. ... Eu falei: “se a professora falou comigo e eu liberei, não, não ia ter falta e ele teria uma outra atividade que é ficar na sala de leitura lendo”. O que eu precisava era das notas fechadas. Agora se o seu filho ficou para se torturar, aí é diferente, mas agora acompanhar o pedagógico eu acompanho sim, mas agora eu aconselho a senhora, não deixa ele ver esse filme não, tá?

Os debates educacionais geralmente reforçam a importância da família na escola. Sem negar o processo contemporâneo de redefinição dos papéis da escola e da família no trabalho educativo, a literatura sociológica já tem trabalhos demonstrando como essa relação ocorre, mas que não é isenta de tensões e conflitos (Nogueira, 2005Nogueira, M. A. (2005). A relação família-escola na contemporaneidade: fenômeno social/interrogações sociológicas. Análise Social, 40(176), 563-578.). Dialogamos com esses resultados na medida em que a presença e a ação pedagógica das famílias são criticadas pelos gestores.

Os gestores consideram positivas as famílias que buscam a orientação da escola sobre auxílios do governo ou para ajudar em conflitos familiares. A gestora Betina pontua que essa orientação é parte do trabalho da escola e pode favorecer o aluno.

São vistas negativamente as famílias que trocam informações sobre o que os estudantes fazem na escola, como o uso de palavrões ou conversas sobre sexo, por exemplo. Incluem-se ainda as famílias que reclamam do trabalho escolar. O gestor Jean nos apresenta essas situações:

E as crianças ficam, que eles ficam falando de...sexo, entendeu? Disso, daquilo...e a gestora Leila tá desesperada com isso "gente, eu tenho que separar essas crianças. Isso não vai dar certo." Que a mãe vai reclamar na segunda..."ah, o aluno falou isso, isso e isso na sala de aula." Como se a gente tivesse domínio da boca do aluno. Eu não tenho domínio da boca do aluno. O aluno vai falar o que ele tá acostumado a falar sempre. Ele vai fazer o que ele tá acostumado a fazer. [...] Não é a escola que vai mudar isso no aluno.

A troca de informações é bem-vista e bem-vinda, quando atua positivamente para a vida escolar do estudante e na indicação das suas trajetórias escolares. Essa postura também é avaliada positivamente na medida, se há a tutela da gestão nesse processo. Mas quando as trocas são para questionar o trabalho da escola e sua organização ou atuam influenciando as decisões de matrícula dos gestores, as famílias são indesejadas. Os gestores indicam que as famílias têm – ou deveriam ter - papéis específicos nos espaços escolares, mas o que classificam como parte pedagógica deve ser trabalhada pela equipe da escola. Tais tensionamentos já foram apontados nas discussões do campo da sociologia da relação família-escola, especialmente Silva (2010)Silva, P. (2010). Análise sociológica da relação escola-família. Sociologia: Revista do Departamento de Sociologia da FLUP, XX, 443-464.. Em outros trabalhos (Rosistolato & Viana, 2014Rosistolato, R. P. R., & Viana, G. V. (2014). Os gestores educacionais e a recepção dos sistemas externos de avaliação no cotidiano escolar. Educação e Pesquisa 40, 13-28.; Rosistolato et al. 2016Rosistolato, R. P. R., Pires do Prado, A. P., Koslinski, M. C., Carvalho, J. T., & Moreira, A. M. (2016). Dinâmicas de matrícula em escolas públicas na cidade do Rio de Janeiro. Pro-Posições, 27(3), 237-261. https://doi.org/10.1590/1980-6248-2015-0108.
https://doi.org/10.1590/1980-6248-2015-0...
, 2019Rosistolato, R., Pires Do Prado, A. P., Muanis, M. C., &; Cerdeira, D. G.da S. (2019). N. 43 - Burocracia educacional em interação com as famílias nos processos de matrícula escolar na cidade do Rio de Janeiro. Jornal de Políticas Educacionais, 13(43), 01-28.) analisamos a perspectiva das famílias sobre os processos de matrícula e identificamos perspectivas distintas – entre famílias e gestores - sobre o fenômeno das matrículas escolares, assim como conflitos, articulações e processos de navegação social inerentes às interações desenvolvidas nesse momento.

Em conjunto, nossas investigações sustentam o argumento de que em meio aos procedimentos burocráticos de matrícula ocorrem disputas significativas sobre os sentidos da escolarização para os estudantes. Tais disputas envolvem as famílias e a burocracia escolar e acabam por contribuir com a definição de trajetórias escolares para os alunos. Tais disputas se dão nas microrrelações desenvolvidas entre os agentes e são atravessadas por processos diversos de rotulagem e estigmatização.

4.4 - Famílias inativas nos processos de escolarização e/ou nos espaços escolares

As famílias agregadas nessa categoria são indesejadas por todas os gestores entrevistados. Não houve nenhuma valoração positiva com relação à inatividade das famílias. São as famílias que, na visão dos gestores, são ausentes, não dialogam, não buscam informações sobre a escolaridade das crianças e não atualizam seus dados, como endereço e telefone.

As gestões compreendem que algumas famílias têm baixa escolaridade e poucos conhecimentos sobre o sistema educacional, mas isso não impede que questionem o fato de os responsáveis não atualizarem seus dados, não saberem o ano da escolaridade dos filhos ou que a escola termina no primeiro segmento e que precisam mudar de escola. A ausência de conhecimento e comprometimento com a educação é avaliada negativamente.

A gestora Betina relata a dificuldade com as famílias que não seguem as datas e a organização determinada pela escola para o processo de escolha de escolas no remanejamento do primeiro segmento para o segundo segmento do ensino fundamental. No caso de sua escola, ela faz uma reunião para definir quais escolas os pais preferem. Quem participa da reunião tem prioridade na escolha, mas as famílias que chegam depois, solicitando vagas, são aquelas com comportamentos indesejados pela gestão. A gestora organiza o procedimento de matrícula com as famílias e atende às demandas daquelas que participam da reunião. Ela deixa claro que não tem possibilidades e nem argumentos para aceitar as escolhas das famílias ausentes. A participação ou não na reunião é um critério dos gestores na relação com as famílias. Ao mesmo tempo, a entrevista não revela como ocorrem os processos de divulgação das reuniões e tampouco os motivos que justificariam as ausências das famílias.

Eu faço uma reunião com os pais. Apresento: “Olha, eu posso mandar pra x, y e z. Essas três escolas. Quem quer ir pra x, quem quer ir pra y e quem quer ir pra z. Eu só tenho tantas vagas.” Até hoje, graças a Deus, não teve problema de chegar na reunião e eu não poder atender. Mas quem não vem na reunião, até agora foi assim, quem não foi na reunião. “Ah, eu queria!” “Olha, se você tivesse vindo na reunião eu podia, eu teria vaga, mas agora não tem vaga pra essa escola. Só tem pra essa e pra essa.”

Há consenso entre os gestores de que as famílias que não efetivam a matrícula ou que não seguem as solicitações do sistema de ensino e as regras da escola são indesejadas. Há também as famílias que são indesejadas, porque são chamadas à escola para atender a algum problema da criança, mas que não o resolvem. É a situação explicitada pela gestora Regina quando relata situações de falta de cuidado da família com as crianças pequenas e os conselhos que dá a elas.

Então, tem famílias assim que...dão uma certa autonomia. Já vem aqui, já libera pra ir embora sozinho. E aquele “ir embora sozinho”, você já sabe que ele vai fazer tudo sozinho. Não vai ser só ir embora, entendeu? Você já vai percebendo, assim, que aquela criança já vai vindo mais largada, que aquela criança já não faz o trabalho de casa, que a criança já esquece material, já perde. Então, ele já vai perdendo aquele apoio...da família. Então, tem uns que conseguem relevar isso muito bem. Mas tem outros que você percebe aquela...queda, entendeu? Aí, você chama aquela família, você conversa, você fala e aí fica no seu foco. ... “ó, o seu filho tá indo sozinho porque você foi trabalhar. Você não tem condição de levar e buscar. Mas, em algum momento, você vai ter que olhar pro seu filho, entendeu? Ver o que ele tá fazendo na escola, acompanhar a vida dele na escola.” Né, eu tinha uma colega que falava que a gente tinha que ter escola de pais. Mas é, gente. Eles são pais muito cedo. Então, dois anos seguidos aqui, nós tivemos alunas de 12 anos engravidando. Estudando ainda aqui, entendeu...e engravidando. Quer dizer, é uma criança criando outra criança, né?

A gestora Paula relata o caso de famílias desconhecidas, também indesejadas pelos gestores escolares:

Como tenho aquelas que eu nunca vi ... que a criança com seis, sete anos já vem do morro, da favela, sozinha [...] atravessa essa rua sozinha e eu não sei nem como é o rosto da pessoa.

Na fala dos gestores, as famílias indesejadas são novamente aquelas que, além de não dialogarem com a escola e não atenderem às solicitações da escola e do sistema de ensino, são as portadoras de estigmas sociais, como as famílias pobres, de pais jovens, vulneráveis e com baixa escolaridade.

5 - Contribuições específicas e considerações

No decorrer do artigo, demonstramos que os gestores escolares trabalham com identidades sociais virtuais que incluem, mesmo antes de qualquer conhecimento acerca do estudante, representações sobre perfis de alunos desejáveis e indesejáveis - que “ninguém quer”, impossibilitados de aprender. Os alunos desejados são aqueles que apresentam condições consideradas ideais para o aprendizado, incluindo a atuação da família da maneira esperada pela escola neste processo. Os indesejados correspondem aos perfis opostos a estes; são os portadores de estigmas sociais: vivem em condições de pobreza, filhos de pais jovens e vulneráveis, com baixa escolaridade e baixas expectativas escolares.

Desde a introdução, mostramos estudos sociológicos e antropológicos que apontam para a correlação entre as representações e as expectativas dos professores com relação aos estudantes e seus resultados acadêmicos. Dialogamos com estudos clássicos que argumentam sobre essa correlação e os problemas trazidos por ela para os estudantes mais vulneráveis. Há algum nível de consenso sobre a tendência de a escola –como instituição – reproduzir desigualdades sociais de origem, oferecendo mais atenção exatamente àqueles que precisariam menos, enquanto estigmatiza, rotula e exclui exatamente os alunos que necessitariam de mais atenção. Nesse sentido, nosso estudo apenas corrobora essas investigações e teorias desenvolvidas por elas.

A contribuição específica que trazemos é outra. As diferenças de background social e cultural presentes na rede municipal do Rio de Janeiro – embora significativas – não explicam todas as diferenças de desempenho entre os alunos. Investigamos famílias e estudantes que poderiam ser classificadas como equivalentes em termos de background, mas ainda assim têm filhos com trajetórias educacionais divergentes. Em termos macrossociológicos, as teorias sobre a correlação entre background social e cultural e desempenho escolar seguem confirmadas, mas em termos microssociológicos, elas explicam pouco, principalmente quando pensamos as exceções (Lahire, 1998Lahire, B. (1998). Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. Ática.). São os casos de alunos que teriam perfil para desenvolver trajetórias de “sucesso” ou “fracasso” e ocorre exatamente o contrário.

Decidimos focalizar tais aspectos microssociológicos e buscamos promover o diálogo entre as teorias macrossociológicas que compõem a sociologia da educação e uma abordagem micro, bem específica, trazida pelos estudos interacionistas, com ênfase nos trabalhos de Erving Goffmam. A principal contribuição desse autor está na argumentação sobre os processos sociais que são desenvolvidos – em certa medida de maneira independente das variáveis macro – no plano das interações. Os contextos e cenários de interação promovem relações específicas entre os agentes, que por vezes podem alterar trajetórias que seriam “previsíveis” em termos macrossociológicos.

Neste artigo evidenciamos que os gestores operam com base em classificações que antecedem, inclusive, o primeiro encontro com os estudantes. São as “identidades virtuais” discutidas por Goffman. Após o encontro, há o que podemos classificar como “interações de referendo” – aquelas que confirmam as expectativas sobre os alunos, e outras que podem ser lidas como “interações contraintuitivas”, que desfragmentam as visões dos profissionais da escola sobre os alunos.

A questão central é que tanto as “interações de referendo” quanto as “contraintuitivas” poderiam – ou deveriam – ser relativizadas no âmbito dos processos pedagógicos, mas tendem a serem lidas como “verdades” e seguem orientando as trajetórias dos estudantes. Além da reprodução de desigualdades, o processo de estigmatização de determinados perfis familiares, demonstrado ao longo do artigo, produz desigualdades no âmbito escolar. Os gestores estabelecem relações entre determinados perfis familiares e supostas dificuldades ou (im)possibilidades de aprendizado, assim como orientam suas ações baseados na classificação prévia que aloca as famílias e os filhos em perfis desejados ou indesejados. Há, portanto, suposições sobre a futura trajetória escolar de estudantes com determinados perfis, que podem se concretizar como profecias autorrealizadoras, contribuindo para consolidar os destinos escolares fragmentados, exatamente para aqueles que mais carecem da escola e do que ela pode oferecer em termos pedagógicos.

Tal cenário descrito coloca desafios significativos para a formação de professores e gestores. A inserção do debate sobre os efeitos – por vezes perversos – das interações pedagógicas é capital para que os profissionais da escola passem a relativizar as visões escolares sobre as “identidades virtuais” dos estudantes, o que requer, necessariamente, a relativização de suas próprias visões de mundo. Tal exercício – inerente às investigações antropológicas e sociológicas – pode contribuir diretamente com o combate tanto à reprodução quanto à produção de desigualdades educacionais na escola.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha verah.bonilha@gmail.com
  • 3
    Apoio: CNPq, processos 420596/2018-6 e 309632/2020-0; CAPES/ PROEX, processo 0446/2021
  • 4
    Para um debate sobre a trajetória de recepção e crítica à investigação coordenada por Coleman, ver Gamoran e Long (2006)Gamoran, A., & Long, D. A. (2006, Dec.). Equality of educational opportunity: a 40-year retrospective. WCER Working Paper, n. 2006-9. Madison: University of Wisconsin– Madison, Wisconsin Center for Education Research..
  • 5
    A ideia de “teorias reprodutivistas” funciona como uma categoria englobante para autores inseridos em tradições relativamente diferentes, mas que partem do princípio de que a escola, ao invés de combater as desigualdades sociais de origem, tende a reproduzi-las. Para uma compreensão geral sobre os autores classificados como integrantes das teses “teórico-reprodutivistas”, ver Camargo et al. (2017)Camargo, R. M. B., Gabbi, G. F., Lemes, J. L., & Brenner, C. E. B. (2017). Os principais autores da corrente crítico-reprodutivista. Rev. Inter. Educ. 3(1), 224-239..
  • 6
    Ver Brooke e Soares (2008)Brooke, N., & Soares, J. F. (2008). (Orgs). Pesquisa em eficácia escolar: origem e trajetória. UFMG..
  • 7
    Ver Brooke e Soares (2008)Brooke, N., & Soares, J. F. (2008). (Orgs). Pesquisa em eficácia escolar: origem e trajetória. UFMG. e Sammons (2008)Sammons, P. (2008). As características-chave das escolas eficazes. In N. E. Brooke, & J. F. Soares (Orgs.), Pesquisa em eficácia escolar: origem e trajetórias. (pp. 335-382). Editora UFMG..
  • 8
    Essa tese já está presente em Merton (1968)Merton, R. K. (1968). Social theory and social structure. Free Press. e Rosenthal e Jacobson (1968)Rosenthal, R. E., & Jacobson, L. (1968). Pygmalion in the Classroom. Holt, Rinehart e Winston. .
  • 9
    Há um conjunto de pesquisas inspiradas na obra de Goffman e ou a discutindo que também compõem nosso arcabouço teórico. Não cabe aqui, para os limites deste artigo, descrevê-las exaustivamente. Elas podem ser vistas em: Marsh e Noguera (2018)Marsh, L.T.S., & Noguera, P. (2018). Beyond stigma and stereotypes: an ethnographic study on the effects of school-imposed labeling on black males in an urban charter school. Urban Rev., 50, 447-477., Lafleur e Srivastava (2019)Lafleur, M, & Srivastava, P. (2019, Oct.). Children’s accounts of labelling and stigmatization inprivate schools in Delhi, India and the right to education Act1. Education policy analysis archives, 27(135), 1-33, Scherer (2016)Scherer, L. (2016). ‘I am not clever, they are cleverer than us’: children reading in the primary school. British Journal of Sociology of Education, 37(3), 389-407. Ver também a obra organizada por Jacobsen (2010)Jacobsen, M. H. (2010). The contemporary Goffman. Routledge Taylor & Francis Group. e o livro de Smith (2006)Smith, G. (2006). Erving Goffman. Routledge Taylor & Francis Group. totalmente dedicado às especificidades da obra de Goffman.
  • 10
    Costa (2020)Costa, T. N. (2020). Interações pedagógicas na educação infantil. [Dissertação de Mestrado em Educação]. Universidade Federal do Rio de Janeiro corrobora nossos argumentos, ao mapear processos de rotulação e estigmatização experimentados por crianças na educação infantil. A autora realiza observações etnográficas e entrevistas e sublinha as representações e as ações das professoras com relação às crianças de diferentes perfis socioeconômicos e culturais. No plano das crenças sociais presentes na escola analisada, acredita-se que nem todas as crianças terão trajetórias escolares lineares e consolidarão a sua escolarização. Tais percepções produzem, no plano das interações, estigmas e rótulos que fazem com que as ações pedagógicas contemplem de forma não equitativa as crianças inseridas nas turmas de educação infantil.
  • 11
    Para um debate sobre a contemporaneidade dos estudos de Goffman, ver também Jacobsen (2010)Jacobsen, M. H. (2010). The contemporary Goffman. Routledge Taylor & Francis Group..
  • 12
    Ver, especialmente, Costa (2020)Costa, T. N. (2020). Interações pedagógicas na educação infantil. [Dissertação de Mestrado em Educação]. Universidade Federal do Rio de Janeiro e Almeida (2019)Almeida, D. M. O. (2019). Ações dos gestores escolares no processo de matrícula em uma escola municipal do Rio de Janeiro. 2019. [Dissertação de Mestrado]. Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro..
  • 13
    Entendemos os procedimentos de matrícula escolar como ações pedagógicas que envolvem decisões relacionadas à rede de ensino e a cada unidade escolar.
  • 14
    Portaria E/SUBG/CP n.º 21, de 5 de novembro de 2009; Resolução SME n.º 1363, de 19 de outubro de 2015; Resolução SME n.º 1428, de 24 de outubro de 2016; Resolução SME n.º 25, de 24 de outubro de 2017 (Rio de Janeiro, 2017Rio de Janeiro. (2017). Resolução Secretaria Municipal de Educação n. 25, de 24 de outubro de 2017.).
  • 15
    Das 1543 escolas da rede, 103 são unidades exclusivas de Ensino Fundamental I; 130 são unidades exclusivas de Ensino Fundamental II e; 768 unidades possuem mais de uma modalidade/segmento. Dados obtidos no site da SME: http://www.rio.rj.gov.br/web/sme/educacao-em-numeros. Acesso em 21 de setembro de 2021.
  • 16
    A definição de “burocracia educacional” tem por base a conceituação realizada por Weber (1999)Weber, M. (1999). Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva: Max Weber (Trad. R. Barbosa & K. E. Barbosa, ver. téc. Gabriel C.). Editora Universidade de Brasília; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.. O autor afirma que a burocracia moderna está balizada em princípios norteadores. Em síntese, há divisão fixa de atividades, os poderes de mando são distribuídos, e o cumprimento regular dos deveres burocráticos depende da contratação de um corpo técnico. Gestores escolares e funcionários das escolas são burocratas nesse sentido. Eles são funcionários permanentes das escolas, concursados e depois eleitos para realizar um mandato por tempo determinado. Todas as regras deste mandato são fixadas em Lei, inclusive seus prazos e as suas ações possíveis. A literatura contemporânea aponta a existência de níveis de ações discricionárias em todo e qualquer processo burocrático (Lipsky, 1980Lipsky, M. (1980). Street-Level bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. Russell Sage Foundation.). Conforme apontaremos no decorrer do artigo, tais brechas para ações discricionárias estão presentes na regulamentação das ações da burocracia educacional no Rio de Janeiro. Observe-se que “burocracia educacional” é utilizada como uma categoria englobante, que inclui professores que são gestores e funcionários técnicos que, por vezes, assumem funções burocráticas relacionadas à gestão.
  • 17
    As CRE fazem parte da burocracia da Rede Municipal de Educação. No organograma, estão abaixo da SME. Elas coordenam números variados de escolas, distribuídas em todos os bairros do Rio de Janeiro.
  • 18
    O Indicador de Nível Socioeconômico (INSE), elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), trabalha com dados dos questionários dos estudantes no SAEB. As diferenças entre os níveis III, IV e V referem-se a bens de consumo como freezer, computador e carro. As diferenças educacionais dos responsáveis também são explicitadas. A maioria dos estudantes em escolas de nível III e IV possui responsáveis com o ensino fundamental incompleto ou completo e/ou ensino médio completo e das escolas de nível V possui responsáveis com ensino fundamental completo até o ensino superior completo.
  • 19
    Os nomes das escolas são fictícios.
  • 20
    Em termos weberianos, nossos dados têm limitações que nos impedem de transitar da interpretação relacionada às conexões de sentido para qualquer explicação causal. Trata-se de um primeiro momento de análise que nos permitiu formular hipóteses para pesquisas futuras. Há, também por isso, reduzidas possibilidades de propor interseções causais diretas entre as tipologias apresentadas. Nossa abordagem hermenêutica, nesse caso, aproxima-se mais de Rickert (1943)Rickert, H. (1943). Ciência cultural y ciência natural. Calte. do que do próprio Weber (1999)Weber, M. (1999). Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva: Max Weber (Trad. R. Barbosa & K. E. Barbosa, ver. téc. Gabriel C.). Editora Universidade de Brasília; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo..
  • 21
    Todos os nomes são fictícios.

Referências

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1
Editora responsável: Chantal Victória Medaets https://orcid.org/0000-0002-7834-3834

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Set 2021
  • Revisado
    04 Maio 2022
  • Aceito
    16 Jun 2022
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