DIVERSO E PROSA
Apresentação
Graziela Perosa
Escola de Artes Ciências e Humanidades (EACH), Universidade de São Paulo (USP),São Paulo, SP, Brasil grazielaperosa@yahoo.com.br
O artigo de Pierre Bourdieu, a seguir, foi publicado em 2000, na revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales, dois anos antes de sua morte. Trata-se de uma síntese de décadas de pesquisas empíricas sobre o sistema de ensino e os efeitos não apenas sociais e políticos, mas também cognitivos, que podem ser atribuídos à instituição escolar. O texto "Estruturas escolares, estruturas cognitivas: algumas reflexões preliminares"
Desde Les héritiers (Os herdeiros), lançado em 1964, Bourdieu e Passeron mostram que os filhos de assalariados agrícolas tinham 1% de chance de chegar ao ensino superior, enquanto os filhos de profissionais liberais possuíam mais de 70%. Contra a ideologia do dom esquema explicativo dominante à época para as diferenças de desempenho escolar , os autores apresentam uma análise penetrante a respeito dos diversos níveis de desigualdade dos estudantes diante desse sistema de ensino, revelando as formas de relegação e de autoexclusão; as carreiras refúgio no interior do sistema; as diferenças notadas na escolha do curso superior entre homens e mulheres e entre as diferentes frações das classes sociais. Nessa análise em que a estatística é usada como ferramenta para explicitar regras implícitas em vigor no sistema de ensino francês, os autores revelam não apenas a influência das desigualdades econômicas sobre o desempenho do estudante, mas, sobretudo, a maneira como a herança cultural dota certos grupos de estudantes de "saberes, saber-fazer e saber dizer" altamente rentáveis no sistema de ensino.
Três anos após a publicação de Les héritiers, Bourdieu publica o artigo "Systèmes enseignement et systèmes de pensée" (1967), traduzido para o português como "Sistemas de ensino e sistemas de pensamento" (2007), no qual analisa como os esquemas cognitivos ou as categorias de pensamento de que dispomos , são o resultado de um trabalho de inculcação da instituição escolar, sedimentado em uma série de oposições binárias constituídas historicamente, que estruturam as práticas escolares (brilhante/esforçado, pensamento/ação, grande/pequeno, dentro/fora, masculino/feminino, etc.), que nos induzem a uma maneira de pensar ou, ainda, que nos dispensam de pensar em momentos de baixa tensão (Bourdieu, 2007, p.209). Como a religião para as sociedades antigas e tradicionais, as sociedades dotadas de uma instituição como a escola transmitiriam, de maneira quase imperceptível, um corpo comum de categorias de pensamento que constituiriam o inconsciente escolar e os inconscientes universitários de diferentes tradições disciplinares. Para apreender esses inconscientes, Bourdieu nos propõe a produção de genealogias das instituições e a pesquisa empírica comparativa sobre os sistemas de ensino e a maneira de pensar dos egressos dessas estruturas escolares ou universitárias.
Mas é preciso dar exemplos e oferecer evidências de como esses esquemas cognitivos incorporados presidem a instituição escolar ou universitária. Em 1975, Bourdieu e Saint-Martin examinam, em "Les catégories de entendement professoral"3 3 Esse artigo foi traduzido para o português como "As categorias do juízo professoral" em 1998. , as "formas escolares de classificação", por meio de um estudo da distribuição dos adjetivos empregados por um professor, ao avaliar a produção escrita e a oral dos estudantes do primeiro ano da disciplina Filosofia de um curso preparatório para as Escolas Normais Superiores em Paris. Levando em consideração a categoria socioprofissional dos pais dos alunos, descobrem que as notas e os julgamentos elogiosos cresciam quanto mais alta era a origem social dos estudantes. Expressões como "simplório", "bobo", "servil", "vulgar", "insípido" e outros adjetivos negativos eram mais frequentemente aplicados aos estudantes provenientes das classes médias (comerciantes do interior, artesãos, técnicos), enquanto os adjetivos mais altos e raros na hierarquia escolar culto, original, vivo, inteligente eram mais comuns para descrever o desempenho dos alunos oriundos de famílias que possuíam maior capital cultural.
Por meio da análise do julgamento professoral, os autores revelaram a hierarquia dos valores que constituíam aquela estrutura escolar e a maneira como ela operava distinções entre os alunos. Graças ao efeito do inconsciente escolar e universitário, os professores, sem o saber, eufemizariam uma classificação que é antes de tudo social. Prova da durabilidade desse sistema de classificação inconsciente foi encontrada na análise das notas necrológicas da mesma instituição de ensino superior, nas quais os autores notaram que os critérios utilizados para descrever os mortos eram derivados do mesmo sistema que regia o julgamento professoral. Assim, a taxionomia da percepção e do julgamento escolar poderia ser reencontrada em muitas outras esferas da vida social (Bourdieu, 1974).
Em "O inconsciente da escola", o leitor encontrará não apenas uma reflexão sobre o que devemos à escola sem o saber, mas também sugestões práticas e metodológicas a respeito da condução de pesquisa sobre os efeitos mais ou menos discretos da instituição escolar nos indivíduos. Para o autor, são as genealogias e a comparação sistemática das instituições que nos permitiriam captar os invariantes e as variações das estruturas escolares objetivas e as estruturas cognitivas de que dispomos. Graças a diversos outros estudos comparativos sobre os sistemas de ensino e a formação das elites (Bourdieu, 1989; Ringer, 2000; Weber, 1971) podemos ver que a chave para a comparação é historicizar os sistemas de ensino, uma vez que as divisões internas, a segmentação, sua estrutura e sua evolução são sempre tributárias da história de cada país.
Referências bibliográficas
BOURDIEU, P. La noblesse d'etat. Paris: Les Editions de Minuit, 1989.
BOURDIEU, P. Les fractions de la classe dominante et les modes d'appropriation de l'ouvre d'art. Informations sur les sciences sociales, Paris,13 (3), p. 7-32, juin 1974.
BOURDIEU, P. Sistemas de ensino e sistemas de pensamento. In: MICELI, S. (Org.). Pierre Bourdieu: a economia das trocas simbólicas. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 203-230.
BOURDIEU, P. Systèmes enseignement et systèmes de pensée. Revue Internationale des Sciences Sociales. Fonctions sociales de Education, Paris, v. 19, n. 3, p. 367-388, 1967.
BOURDIEU, P.; PASSERON, J. C. Les héritiers: les étudiants et la culture. Paris: Les Editions de Minuit, 1964.
BOURDIEU, P.; SAINT-MARTIN, M. As categorias do juízo professoral. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (Org.). Pierre Bourdieu: escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 187-227.
BOURDIEU, P.; SAINT MARTIN, M. Les catégories de entendement professoral. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, v. 1, n. 1.3, p. 68-93, mai 1975.
RINGER, F. O declínio dos mandarins alemães. São Paulo: Edusp, 2000.
WEBER, M. Os letrados chineses. In: WEBER, M. Ensaios de Sociologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. p. 471-501.
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- RINGER, F. O declínio dos mandarins alemães São Paulo: Edusp, 2000.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Jan 2014 -
Data do Fascículo
Dez 2013