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Etnografia realista: uma proposta para vivenciar um objeto de estudo “na própria pele” 1 1 Editor responsável: Raumar Rodríguez Giménez https://orcid.org/0000-0001-9643-9314 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Luiza Lentz (Tikinet) revisao@tikinet.com.br

Resumo

A etnografia realista é especialmente recomendada em pesquisas que abordam temas relacionados à cultura corporal, pois exige do pesquisador um grau de envolvimento que borra as fronteiras entre a vida pessoal, profissional e acadêmica. O objetivo deste artigo é apontar as vantagens da utilização dessa metodologia específica em um ambiente esportivo e oferecer suporte teórico e metodológico para aqueles que pretendem vivenciar tal empreendimento etnográfico. Para tanto, nos valemos do processo de investigação adotado em uma pesquisa de doutorado que versou sobre a relação entre coach e pupilo de fisiculturismo. Este artigo se divide em três momentos principais, que têm como fio condutor o processo empírico que compreende a forja de um atleta de fisiculturismo: no primeiro momento, realizamos uma aproximação à etnografia realista; no segundo, destacamos as estratégias de rigor metodológico e validez interpretativa relacionadas ao fazer etnográfico realista; no terceiro, por fim, apresentamos uma proposta de operacionalização da movimentação analítica dos achados prospectados em campo. Finalmente, salientamos que a etnografia realista permite captar “desde dentro”, e de forma profundamente implicada, os elementos constituintes de uma cultura muito particular, no caso a relação de obediência entre pupilo e coach de fisiculturismo, à qual não teríamos acesso sem a imersão corporal profunda de um pesquisador em um dos polos dessa relação.

Palavras-chave
Etnografia; Pesquisa Qualitativa; Educação Física

Abstract

Realistic ethnography is especially recommended in research about body culture as it requires a degree of involvement that blurs the boundaries between researchers’ personal, professional, and academic life. This study aims to point out the advantages of using this specific methodology in a sport environment and offer theoretical and methodological support to those who intend to experience such an ethnographic venture. We used the research process adopted in a PhD thesis that addressed the relationship between guru and bodybuilding pupil. This study is divided into three main moments that have, as their guiding thread, the empirical process that comprises the forging of a bodybuilding athlete: in the first one, we carry out an approach to realistic ethnography; in the second one, we highlight the strategies of methodological rigor and interpretive validity related to realistic ethnography; and in the third one, we describe a proposal to operationalize the analytical movement of the findings prospected in the field. Realistic ethnography enables us to capture “from within,” and in a deeply implicated way, the constituent elements of a very particular culture, in this case, the relationship of obedience between pupil and bodybuilding guru, which we lack access to without the deep bodily immersion of a researcher in one of the poles of this relationship.

Keywords
Ethnography; Qualitative Research; Physical Education

Dos bancos acadêmicos às salas de musculação: considerações iniciais

Fazer uma etnografia realista envolve e conecta completamente a vida pessoal e profissional do pesquisador ao contexto do tema da pesquisa. O etnógrafo realista precisa depreender a cultura particular a qual se propôs estudar por meio de um processo de “encarnação”, de entranhamento de códigos culturais de um grupo a ponto de incorporá-los a sua corrente sanguínea. Isso demanda tempo, paciência, energia e disposição para imergir física, social, cognitiva e emocionalmente na cultura alheia.

Apesar de o termo realista não ser o mais utilizado na literatura disponível em português ou espanhol, sendo mais encontrado em ambas as línguas nas traduções dos textos escritos originalmente em língua inglesa (Atkinson, 2015Atkinson, M. (2015). O empírico contra-ataca: fazendo etnografia realista. In I. M. Gomes, A. B. Fraga, & Y. M. Carvalho (Orgs.), Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação (pp. 211-254). Rede Unida.; Marcus, 1991Marcus, G. (1991). Identidades passadas, presentes e emergentes: requisitos para etnografias sobre a modernidade no final do século XX ao nível mundial. Revista de Antropologia, 34, 197-221. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.1991.111301
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, 2004Marcus, G. (2004). O intercâmbio entre arte e antropologia: como a pesquisa de campo em artes cênicas pode informar a reinvenção da pesquisa de campo em antropologia. Revista de Antropologia, 47(1), 133-158. https://doi.org/10.1590/S0034-77012004000100004
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; Sklodowska, 1993Sklodowska, E. (1993). Testimonio mediatizado: ¿Ventriloquia o heteroglosia? (Barnet/Montejo; Burgos/Menchú). Revista de Crítica Literaria Latinoamericana, 19(38), 81-90.; Van Maanen, 1993Van Maanen, J. (1993). Secretos del oficio: sobre escribir etnografía. Revista Colombiana de Sociología, 11(1), 47-68.), essa tipologia etnográfica não é recente. A etnografia realista (ethnographic realism) é fortemente influenciada pelos princípios da “descrição densa” proposta por Clifford Geertz (1989a)Geertz, C. (1989a). Estar lá, escrever aqui. Diálogo, 22(3), 58-63., na qual a presença do etnógrafo tanto na cena quanto na escrita é considerada parte integrante da produção etnográfica. É um estilo de produção que implica o pesquisador/narrador no objeto da narração em busca do equilíbrio entre observação objetiva e participação subjetiva (Atkinson, 2015Atkinson, M. (2015). O empírico contra-ataca: fazendo etnografia realista. In I. M. Gomes, A. B. Fraga, & Y. M. Carvalho (Orgs.), Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação (pp. 211-254). Rede Unida.; Marcus & Cushman, 1982Marcus, G. E., & Cushman, D. (1982). Ethnographies as texts. Annual Review of Anthropology, 11, 25-69.; Sklodowska, 1993Sklodowska, E. (1993). Testimonio mediatizado: ¿Ventriloquia o heteroglosia? (Barnet/Montejo; Burgos/Menchú). Revista de Crítica Literaria Latinoamericana, 19(38), 81-90.). De acordo com Michel Atkinson (2015)Atkinson, M. (2015). O empírico contra-ataca: fazendo etnografia realista. In I. M. Gomes, A. B. Fraga, & Y. M. Carvalho (Orgs.), Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação (pp. 211-254). Rede Unida., a etnografia realista é especialmente recomendada em pesquisas que abordam temas relacionados à cultura corporal, particularmente no mundo dos esportes, pois ela permite captar sutilezas da rede de significados que se configura (e modifica) na interação entre corpos em movimento.

Em função disso, o objetivo deste artigo é propor uma forma de operacionalizar um estudo sob a perspectiva da etnografia realista, de modo a apontar as vantagens do uso dessa metodologia específica nesse nicho particular e subsidiar teórico-metodologicamente o pesquisador qualitativo que deseje vivenciar “na própria pele” tal empreitada etnográfica. Para a escrita deste texto, nos valemos do processo de investigação adotado em uma pesquisa de doutorado que versou sobre a relação entre coach e pupilo de fisiculturismo. Naquela pesquisa, problematizamos a relação de autoridade/obediência entre coach e atleta de fisiculturismo em processos radicais de construção corporal com base na hipertrofia muscular. Para tanto, um dos pesquisadores realizou, no decorrer da produção empírica do estudo, a trajetória de preparação para competições de fisiculturismo, esculpindo o próprio corpo por meio de rituais bioascéticos, sob a tutela e a expertise de coach do referido esporte (Machado, 2020Machado, E. P. (2020). “Segue o plano!”: a relação de autoridade/obediência entre coach e pupilo no processo de construção corporal do fisiculturista [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. Repositório Digital da UFRGS. https://lume.ufrgs.br/handle/10183/221616
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)3 3 A informação foi retirada para fins de preservação do anonimato da autoria. .

O fisiculturismo amador ou profissional pode ser considerado um esporte que busca desenvolver ou transformar tamanho, forma, simetria, definição e qualidade estética do físico, ou, como os entusiastas do fisiculturismo denominam: shape4 4 Shape é um termo êmico que faz menção ao corpo do fisiculturista. Os termos e expressões êmicas (oriundas da empiria no campo de estudo) são de suma importância para o processo etnográfico. . O desempenho nessa modalidade esportiva, independentemente da categoria, requer a combinação de práticas bioascéticas, baseadas, sobretudo, em rotinas intensas de treinamento, associadas a uma estratégia nutricional restrita e ao uso de medicamentos potencializadores da arquitetura corporal. São investimentos corporais que podem ser pensados como rotinas bioascéticas, um exercício de bodydesigner (Machado, 2020Machado, E. P., & Fraga, A. B. (2020). Anabolizantes na graduação em Educação Física: um dilema ético-sanitário entre estudantes que praticam fisiculturismo. Journal of Physical Education, 31, 1-11. https://doi.org/10.4025/jphyseduc.v31i1.3166
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; Machado & Fraga, 2020Machado, E. P., & Fraga, A. B. (2020). Anabolizantes na graduação em Educação Física: um dilema ético-sanitário entre estudantes que praticam fisiculturismo. Journal of Physical Education, 31, 1-11. https://doi.org/10.4025/jphyseduc.v31i1.3166
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), baseado em práticas nutricionais e farmacológicas ainda pouco estudadas pela ciência (Mallmann & Alves, 2018Mallmann, L. B., & Alves, F. D. (2018). Avaliação do consumo alimentar de fisiculturistas em período fora de competição. Revista Brasileira de Nutrição Esportiva, 12(70), 204-212.).

Nosso interesse em adotar o método etnográfico realista foi inspirado na experiência de um dos pesquisadores como atleta de fisiculturismo. A opção pela etnografia também decorreu da necessidade de ampliar as análises que envolvem a busca pelo corpo hipertrofiado, simétrico e definido para além da perspectiva biomédica. Nossa intenção, por óbvio, não era mensurar as variáveis do treinamento de um fisiculturista em preparação, e sim mostrar todas as condições que levavam (e levam) o atleta a realizar esses processos, ou então, a não fazer aquilo que poderia lhe “tirar do foco”.

Como pretendíamos analisar as relações de autoridade/obediência entre atleta e coach nessa prática corporal específica, julgamos apropriado acompanhar o processo de adesão consentida do pupilo às orientações do coach por meio de uma imersão profunda, na qual o pesquisador, um dos autores deste texto, tornou-se um dos atores privilegiados da relação, sentindo na carne as agruras da preparação de um atleta de fisiculturismo.

A operacionalização da etnografia realista nos permitiu captar o longo processo de transformação corporal desse pesquisador/autor do texto: de mero entusiasta do fisiculturismo à posição de atleta amador, que compreendeu desde a fase inicial da preparação corporal à subida nos palcos de competições amadoras de bodybuilding.

Ser um fisiculturista é uma tarefa árdua por diversas razões. Primeiro, é necessário disciplina total no que se refere à dieta e às rotinas de treinamento: o fisiculturista acaba, por vezes, abdicando da vida social em nome da prática de seu esporte, que não ocorre apenas na sala de musculação. Para o atleta de fisiculturismo, essa modalidade esportiva é mais do que um compromisso inserido na rotina diária – é um modo de estar no mundo que requer dedicação integral à prática. Realizar um processo etnográfico de imersão profunda acaba por submeter o pesquisador a isso, ainda mais se for um pesquisador-atleta, que, além de uma tese a ser defendida ao final do doutoramento, possui um shape a ser atingido no palco.

Este artigo está dividido em três partes, além das considerações iniciais e finais: na primeira, realizamos uma aproximação à etnografia realista. Na segunda parte, destacamos as estratégias de rigor metodológico, como as questões éticas, a posicionalidade e a confiabilidade do fazer etnográfico realista. Por fim, apresentamos uma proposta de operacionalização da codificação analítica dos achados obtidos em campo.

O começo do processo: aproximação a um modo de fazer etnografia realista

No momento em que buscamos compreender relações de autoridade e obediência em um esporte demarcado por práticas consideradas underground, clandestinas e/ou radicais, vislumbramos o processo etnográfico como o cerne metodológico para a imersão no campo de estudo.

A etnografia, em sua vertente mais clássica, tem origem na investigação antropológica sobre a vida e a cultura dos povos. No processo analítico etnográfico, utiliza-se o tratamento qualitativo das informações obtidas, visto que há necessidade de uma interpretação mais ampla, baseada em uma descrição densa e profunda (Geertz, 1989bGeertz, C. (1989b). A interpretação das culturas. LTC.).

Autores como Wolcott (1993)Wolcott, H. F. (1993). Sobre la intención etnográfica. In Rada Brun A. D., Velasco Maíllo, H. M., & García Castaño, F. J. (Coords.), Lecturas de antropología para educadores: el ámbito de la antropología de la educación y de la etnografía escolar (pp. 127-144). Trotta. e Wilcox (1993)Wilcox, K. (1993). La etnografía como una metodología y su aplicación al estudio de la escuela: una revisión. In Rada Brun A. D., Velasco Maíllo, H. M., & García Castaño, F. J. (Coords.), Lecturas de antropología para educadores: el ámbito de la antropología de la educación y de la etnografía escolar (pp. 95-126). Trotta. consideram a etnografia uma proposta descritiva que demanda fidelidade do investigador no processo de descrição e interpretação da natureza dos acontecimentos de determinado grupo de pessoas. O pesquisador deve, portanto, situar-se em uma posição que o permita não apenas observar as condutas daquele grupo, mas também interpretar as interações entre os sujeitos envolvidos, os significados que dali emanam e que constituem a cultura particular daquele grupamento (Geertz, 1989bGeertz, C. (1989b). A interpretação das culturas. LTC.).

Baztán (1995)Baztán, A. A. (1995). Etnografía: metodologia cualitativa en la investigación sociocultural. Marcombo. introduz um elemento importante ao fazer etnográfico: não se restringir a uma mera descrição da cultura de um grupo, mas buscar compreender globalmente todos os processos que envolvem aquela comunidade, vislumbrando, dentro do possível, soluções para os problemas do grupo estudado.

O nível de imersão do pesquisador no cenário dos acontecimentos e as relações que ocorrem entre os sujeitos no campo estudado estão atrelados ao rol de técnicas administradas para suportar a tarefa investigativa – como o pesquisador percebe, descreve e interpreta o que visualiza no objeto estudado (tanto no que tange ao visível, quanto ao invisível). Na medida em que o pesquisador é peça-chave do processo de produção empírica, não há como estar ausente no texto acadêmico que resulta desse detalhado trabalho de prospecção. No caso da etnografia realista, especialmente aquelas desenvolvidas com integrantes de grupos de práticas corporais, o grau de entrega física do pesquisador no processo de produção empírica é particularmente intenso, e deve ser proporcionalmente retratado no texto que vem a público.

Com o intuito de compreender como era constituída a relação de autoridade/obediência entre o coach de fisiculturismo e o atleta pupilo de na pesquisa da qual este artigo é fruto, o trabalho etnográfico efetivamente desenvolvido buscou não apenas descrever detalhadamente a cultura na qual um dos autores estava imerso, mas também o grau de entrega física por ele empregado, como é possível perceber no seguinte trecho extraído do diário de campo:

Comi o mínimo possível, mas eu não aguentava… Estava passando fome, passando sede… mesmo assim eu fiquei em segundo lugar… daí nesse dia eu saí do campeonato e a gente foi direto pra uma pizzaria . . . . A maioria das pessoas fala “ah mas pra que isso?” . . . . É estranho mesmo, porque não há gratificação financeira nenhuma nisso tudo. O que vem me movendo nisso é o prazer de me superar. . . . Quando eu vejo que já estou com o rosto magro, a pele colada, que estou sofrendo, o coach me fala: “nessa semana mais meia hora de esteira todos os dias” . . . . Eu abaixo a cabeça e faço. Sigo a instrução, pois há quase dois anos eu faço isso, e eu sei que ao final de tudo será gratificante

(Diário de Campo – 25 de maio de 2018).

Para um fisiculturista se estabelecer bem (ser reconhecido pelos pares) dentro do esporte, a prática deve ser realizada ininterruptamente por um longo período. Normalmente, treina-se seis dias por semana, a depender da fase do ano; se estiver em um momento próximo à competição, treina-se até mais de seis vezes por semana, e mais de uma vez ao dia.

No decorrer das práticas iniciais e do envolvimento do pesquisador com o fisiculturismo, buscou-se sempre responder à questão: como é ser membro de uma comunidade fisiculturista? Começamos a perceber cada vez mais que se os autores quisessem, de fato, compreender o significado e a importância de todas as rotinas do fisiculturismo para os praticantes do esporte, o pesquisador-atleta não poderia entrar “de leve” nessa prática corporal. Seu modo de viver precisaria ser modificado para que fosse possível, além de estudar o tema, praticar efetivamente o fisiculturismo. Para tanto, foi necessário encaixar a prática do esporte no cronograma de trabalho acadêmico, adequar compromissos pessoais, assumir novas responsabilidades familiares e estabelecer outro tipo de relação com os amigos. Enfim, incorporar novos hábitos diante das novas rotinas. O seguinte trecho extraído do diário de campo exibe a magnitude da alteração na rotina de um dos autores desse texto:

Estou percebendo que ser um fisiculturista é uma tarefa árdua por diversas razões. Primeiro, preciso disciplina total no que se refere à dieta e às rotinas de treinamento. Estou abdicando de todo o resto da vida social em nome da prática do meu esporte, e estou vendo que este esporte não se restringe apenas ao treino que ocorre na sala de musculação. Meu desempenho no trabalho já não é mais o mesmo . . . . Isso já está tomando conta da minha vida em todos os momentos, do acordar ao dormir . . . . Se eu durmo, já durmo pensando que preciso descansar para o próximo treino. Enquanto trabalho, já estou montando em minha mente o treino, pensando na hora que irei encerrar o expediente e ir para a academia

(Diário de Campo do Pesquisador – 15 de março de 2017).

No momento desse relato, o pesquisador-atleta já estava completamente convencido de que havia sido integralmente absorvido pela cultura do fisiculturismo, e que tal prática havia, literalmente, se tornado parte de sua vida, tanto que a rotina de preparação passou a estruturar todas as demais atividades de seu cotidiano: determinava o modo de pensar, comportar e conviver com os outros.

No início de 2017, o pesquisador-atleta já estava totalmente imerso no fisiculturismo e havia contratado um coach, que lhe dava orientações sobre como manipular seu corpo; sua rotina estava completamente adaptada à busca da execução perfeita do esporte5 5 Desde os contatos iniciais, o coach já tinha ciência que estaria fazendo parte de um estudo etnográfico e que o autor estava em fase de doutoramento. . Participava de workshops, cursos e eventos sociais com pessoas do meio, de modo que conseguiu fazer um círculo de amizades com pessoas exclusivamente envolvidas com a prática da musculação. A forma de viver do pesquisador principal do estudo mudou drasticamente, tornando-se cada vez mais difícil separar sua vida particular de seu estudo de doutorado, fenômeno típico da etnografia realista (Atkinson, 2015Atkinson, M. (2015). O empírico contra-ataca: fazendo etnografia realista. In I. M. Gomes, A. B. Fraga, & Y. M. Carvalho (Orgs.), Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação (pp. 211-254). Rede Unida.).

Em vez de estudar a interação social de modo distante, o modelo etnográfico realista que desenvolvemos, com base nos pressupostos de Atkinson (2015)Atkinson, M. (2015). O empírico contra-ataca: fazendo etnografia realista. In I. M. Gomes, A. B. Fraga, & Y. M. Carvalho (Orgs.), Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação (pp. 211-254). Rede Unida., estava centrado na crença de que só se aprende algo sobre um objeto de estudo por meio da imersão total. Etnografias realistas dentro dessa perspectiva baseiam-se na capacidade de o pesquisador não apenas se situar no contexto estudado durante longos períodos, mas de tratar o próprio corpo como um objeto de inscrição sobre o qual é possível moldar uma dada cultura, colocando-se nela tão incisivamente a ponto de assumir um papel naquele contexto (Atkinson, 2015Atkinson, M. (2015). O empírico contra-ataca: fazendo etnografia realista. In I. M. Gomes, A. B. Fraga, & Y. M. Carvalho (Orgs.), Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação (pp. 211-254). Rede Unida.).

Lewis-Beck et al. (2004)Lewis-Beck, M. S., Bryman, A., & Liao, T. F. (Eds.). (2004). The SAGE encyclopedia of social science research methods. Sage Publications. ressaltam que, de modo geral, o compromisso do pesquisador com a comunidade da qual ele passa a fazer parte é outro elemento importante da tipologia etnográfica. Há um explícito compromisso político com os participantes do estudo, de modo que os autores devem se comprometer a compartilhar suas descobertas e progressos para colaborar com o crescimento do grupo, tal como ilustra o seguinte trecho do diário de campo:

Todas as quintas-feiras pela manhã, em jejum, eu estou enviando o relatório para meu coach. Nele eu envio fotos de frente, de lado, de costas, além de relatar como se passou a minha semana em questão de treinamento e dieta, além de falar se houve algum outro problema que tenha interferido na minha vida frente ao meu objetivo de competir em maio. Inicialmente eu contei para ele que minha ideia seria experienciar isso com fins acadêmicos, mas a meu ver ele já esqueceu deste “detalhe”, e eu sofro as dores de preparação tal qual qualquer outro atleta dele sofre . . . . Ao término “disso tudo”, minha ideia é devolver pra ele todo este caderno de anotações e sensações, para que ele veja tudo que passa na cabeça de um atleta e discuta comigo esse conjunto de sensações que sinto, e aquilo que senti na preparação para o campeonato…

(Diário de Campo – 27 de dezembro de 2017).

Assim, o pesquisador, em vez de controlar o estudo e explorar o assunto para seu próprio propósito, torna-se um parceiro daqueles que estão implicados no estudo, a ponto de tornar-se, como no caso da pesquisa em tela, o próprio sujeito do estudo, em busca de seu aprimoramento.

Para Peirano (1995)Peirano, M. (1995). A favor da etnografia. Relume Dumará., o processo etnográfico inclui silenciamentos, marcas e ruídos que não caminham necessariamente em um único sentido, não produzindo visão unilateral de uma situação; essa visão na verdade é caleidoscópica. Desse modo, são criados entendimentos (e desentendimentos), rupturas e aproximações que não estão na “primeira camada” de escrita dos relatórios do estudo (sobretudo nos diários de campo), e sim nas entrelinhas, como mensagens subliminares, ora apagadas e borradas, mas sempre presentes. Logo, assumir um posicionamento “encarnado” (aqui consideramos encarnado como vivenciado na carne), é possibilitar que essas entrelinhas, que marcam os percursos etnográficos, façam parte da escrita, de modo artesanal. Aqui tratamos a etnografia realista não apenas como um método, mas como uma metodologia que leva em conta a imersão no mundo da vida, a tal ponto que o fazer etnográfico realista não nos permite mais identificar as fronteiras entre vida e obra.

Para Albuquerque (2017)Albuquerque, F. C. (2017). Meu corpo em campo: reflexões e desafios no trabalho etnográfico com imigrantes na Itália. Cadernos de Campo, 26(1), 309-326. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v26i1p309-326
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, a incursão do corpo no processo etnográfico é elemento central, posto que o corpo é elemento de interação: chega antes de qualquer outra coisa, é a primeira mensagem a ser transmitida; com base nele, as portas podem ou não serem abertas. Portanto, ele é fundamental para o aprofundamento ou não dos níveis de relações no fazer etnográfico, que muitas vezes são iniciadas a partir dos estereótipos. Para o autor, quando se trata de entrevistar, participar e observar uma realidade, é fundamental tomar consciência de haver um corpo.

O processo etnográfico aqui descrito teve forte inspiração no trabalho de Louis Wacquant (2004)Wacquant, L. (2004). Body and soul: notebooks of apprentice-boxer. Oxford University Press., que realizou uma etnografia realista a partir da imersão profunda no processo de aprendizado do ofício de boxeador. Assim como Wacquant (2004)Wacquant, L. (2004). Body and soul: notebooks of apprentice-boxer. Oxford University Press., um dos autores principais deste texto se submeteu a um longo processo de aprendizagem no campo a partir da dinâmica do trabalho de lapidação de um fisiculturista, desde seu lado exposto aos holofotes midiáticos, até seu lado underground, repleto de práticas escusas e radicais, por serem consideradas atentados sanitários ao senso comum. De certo modo, os relatos desse processo de pesquisador-atleta tornaram um dos autores um sujeito capaz de pensar, a partir da perspectiva do atleta, as experiências corporais, as práticas no cotidiano da academia de musculação e a relação com o coach contratado, sem abandonar suas lentes teóricas e metodológicas de pesquisador.

Nos primeiros momentos de imersão etnográfica, quem estava lá era o “eu-pesquisador” de um dos autores do texto, que foi, gradativamente, dando espaço ao “eu-fisiculturista”, até que este foi tomando conta do cenário, de modo que os que estavam à volta esqueciam, devido à tamanha dedicação e reconhecimento pelos demais atletas, que o motivo inicial de ingresso no campo era a realização da tese de doutorado. Inclusive, houve momentos que até mesmo o próprio pesquisador se esquecia disso, e o que lhe fazia “retomar o prumo” e se recolocar como pesquisador era a necessidade de registrar tais momentos no diário de campo.

Por fim, quando terminada a fase empírica do trabalho de tese, houve um reequilíbrio entre as dimensões pesquisador e atleta do autor principal, o que o levou às primeiras tentativas de afastamento do que havia vivido na pele para realizar um necessário movimento de estranhamento analítico dos achados em campo: o eu-pesquisador voltava à tona a fim de problematizar o como e os porquês de ter feito aquilo que fez.

A literatura internacional dispõe de alguns exemplos de etnografias realistas. Devemos ficar atentos para não tratar qualquer processo de pesquisa qualitativa que utilize a observação como fonte para uma descrição detalhada de um grupo como sendo uma etnografia realista. A diferença entre uma simples observação, uma etnografia, e a realização de uma etnografia realista é a intensidade com a qual os pesquisadores ingressam na cultura de determinado grupo. O etnógrafo realista deve se tornar membro de um grupo cultural, fazer o que eles fazem cotidianamente, vivenciar as singularidades desse grupo de sujeitos, fazer e, inclusive no caso dos fisiculturistas, deixar de fazer alguns elementos da vida cotidiana.

Além do trabalho de Atkinson (2015)Atkinson, M. (2015). O empírico contra-ataca: fazendo etnografia realista. In I. M. Gomes, A. B. Fraga, & Y. M. Carvalho (Orgs.), Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação (pp. 211-254). Rede Unida., realizado com praticantes de yoga, outras etnografias realistas vinculadas à cultura corporal e do esporte foram realizadas. A exemplo: com grupos de surfistas (Sands, 2001Sands, R. (2001). Sport ethnography. Human Kinetics.), boxeadores (Wacquant, 2004Wacquant, L. (2004). Body and soul: notebooks of apprentice-boxer. Oxford University Press.), skatistas (Beal, 1995Beal, B. (1995). Disqualifying the official: an exploration of social resistance through the subculture of skateboarding. Sociology of Sport Journal, 12(3), 252-267. https://doi.org/10.1123/ssj.12.3.252
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), snowboarders (Thorpe, 2011Thorpe, H. (2011). Snowboarding bodies in theory and practice. Palgrave Macmillan.), praticantes de windsurfe (Wheaton, 2000Wheaton, B. (2000). ‘Just do it’: consumption, commitment, and identity in the windsurfing subculture. Sociology of Sport Journal, 17(3), 254-274. https://doi.org/10.1123/ssj.17.3.254
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) e jogadores de rugby (Howe, 2001Howe, P. (2001). An ethnography of pain and injury in professional rugby union: the case of Pontypridd RFC. International Review for the Sociology of Sport, 36(3), 289-303. https://doi.org/10.1177/101269001036003003
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).

Apesar de o estudo de Wheaton (2000)Wheaton, B. (2000). ‘Just do it’: consumption, commitment, and identity in the windsurfing subculture. Sociology of Sport Journal, 17(3), 254-274. https://doi.org/10.1123/ssj.17.3.254
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ter sido realizado com praticantes de windsurfe, foi possível identificar semelhanças no que se refere à relação do pesquisador-autor com o processo imersivo. Wheaton, a partir de seu envolvimento no referido esporte, identificou que os participantes estavam bem conectados a uma cultura de lazer situada, na qual compartilhavam uma variedade de símbolos, como roupas, fala e comportamentos. Dessa forma, o autor considerou que a cultura do windsurfe é diretamente dependente do que as mídias (no caso, as revistas) que cobrem o esporte apresentam como elemento identitário da cultura do praticante, de modo que os bens simbólicos adotados pelos sujeitos demonstram o quão envolvidos com essa cultura eles estão, com a produção de “hierarquias” que funcionariam como status diferenciais dentro daquela cultura. O tipo de prancha, umas mais caras, outras mais baratas, por exemplo, ou o dinheiro que os praticantes investem nos materiais de uso, podem identificar o status do sujeito naquela cultura.

No que se refere à operacionalização da etnografia realista, Glass-Coffin e Anderson (2015)Glass-Coffin, B., & Anderson, L. (2015). I Learn By Going. In S. H. Jones, T. E. Adams, & C. Ellis (Eds.), Handbook of Autoethnography(pp. 57-84). Left Coast Press. indicam que, ao longo do processo, o uso da observação participante está diretamente ligado às vinculações epistemológicas com as quais o pesquisador se lança a campo. No caso, partimos do princípio de que o pesquisador tem interesses específicos e interfere diretamente nos objetos estudados, alterando, inclusive, o espaço em que realiza a investigação.

A empiria prospectada no processo etnográfico do qual este artigo é fruto ocorreu de forma ininterrupta, pois em nenhum momento dos quatro anos de envolvimento com o esporte o autor principal deixou de ser um fisiculturista. Assim, todas as experiências eram pormenorizadas em diário de campo, elemento potencializador de toda operacionalização desta metodologia.

Pelo fato de a etnografia realista ter sido a metodologia principal empregada nesta pesquisa, o diário de campo acabou assumindo um lugar de protagonista na produção dos dados primários e no processo analítico posterior. Nele, o pesquisador-atleta registrou anotações sobre fatos marcantes que vivenciou em sua rotina como atleta durante o período da pesquisa, mas também foram inseridos registros fotográficos e atualizações das redes sociais do autor, principalmente o Instagram, pois o fisiculturismo se constitui como uma prática em que a visualização dos corpos em processo de transformação muscular é fundamental para o entendimento da relação coach-atleta. Portanto, essas imagens se tornaram um potente “repositório de dados” que alimentavam tanto o processo de orientação da prática fisiculturista pelo coach, quanto os dados etnográficos.

Para a confecção dos diários de campo, um dos autores utilizou dois cadernos de 100 folhas com anotações sequenciais. Assim que terminou de preencher os dois cadernos, as anotações passaram a ser feitas em um aplicativo de celular, pois era mais ágil captar e descrever os acontecimentos instantaneamente. Na época em que as anotações eram realizadas somente nos cadernos, devido ao tempo que transcorria entre o acontecimento e a produção do relato, nem tudo era efetivamente registrado, como as sensações e percepções do atleta logo após um treino bem ou malsucedido.

Nesse ínterim, ao assumir a posição de atleta desde o início do processo de produção empírica, “nasceu” a figura do pesquisador-fisiculturista 24 horas por dia, nos sete dias da semana, ora observando o que fazia, ora problematizando o que fazia ou sobre o que era orientado a fazer pelo seu coach. Além da observação e do registro diário da prática na academia de musculação sob a orientação de um coach, o pesquisador fisiculturista também registrou outros momentos extraordinários dentro do universo do fisiculturismo, como a participação na feira Arnold Classic South America6 6 Mais informações sobre o evento, que ocorreu em São Paulo, dos dias 12 a 14 de abril de 2019, estão disponíveis em: https://arnoldsouthamerica.com.br/. , evento no qual o pesquisador buscou se aproximar da elite do fisiculturismo mundial. Vale salientar que a observação participante é um elemento valioso para a produção de informações ao longo do processo de construção de uma etnografia realista, já que permite obter informações que ainda não foram documentadas.

Em todas essas situações de observação, o pesquisador principal estava com seu diário de campo. Para Weber (2009)Weber, F. (2009). A entrevista, a pesquisa e o íntimo, ou por que censurar seu diário de campo?. Horizontes Antropológicos, 15(32), 157-170. https://doi.org/10.1590/S0104-71832009000200007
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, é no diário de campo que se dá o exercício pleno da etnografia, de modo que nele devem estar relacionados os eventos observados ou compartilhados. Também é no diário de campo que se deve acumular os acontecimentos para analisar as práticas, discursos e posições dos sujeitos envolvidos na cultura estudada. O diário tem a função de descrever os fenômenos estudados, além de permitir ao pesquisador compreender os lugares estudados e esclarecer as atitudes do pesquisador na interação com os demais (Weber, 2009Weber, F. (2009). A entrevista, a pesquisa e o íntimo, ou por que censurar seu diário de campo?. Horizontes Antropológicos, 15(32), 157-170. https://doi.org/10.1590/S0104-71832009000200007
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).

“Um modo de estar lá para escrever aqui7 7 Inspirado em Geertz (1989a). “: rigor, ética e confiabilidade do fazer etnográfico realista

Dadas as características singulares da etnografia realista, especialmente quando o processo de imersão ocorre em um universo de práticas underground, socialmente marginalizadas, os cuidados éticos na condução do trabalho precisam ser redobrados para garantir a credibilidade do estudo. Para Atkinson (2015)Atkinson, M. (2015). O empírico contra-ataca: fazendo etnografia realista. In I. M. Gomes, A. B. Fraga, & Y. M. Carvalho (Orgs.), Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação (pp. 211-254). Rede Unida., um dos requisitos éticos mais importantes da etnografia realista é que o pesquisador deixe que a cultura observada se inscreva nele e, exatamente em função desse movimento, autorize-se a escrever sobre os acontecimentos relativos àquela comunidade de dentro.

À medida em que o trabalho de prospecção empírica foi avançando, a figura do pesquisador que desenhou o projeto de investigação foi paulatinamente subsumindo à figura do fisiculturista, de tal modo que passou a ser considerado um membro nato daquele grupo. Diferentemente dos praticantes de yoga estudados por Atkinson (2015)Atkinson, M. (2015). O empírico contra-ataca: fazendo etnografia realista. In I. M. Gomes, A. B. Fraga, & Y. M. Carvalho (Orgs.), Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação (pp. 211-254). Rede Unida., os fisiculturistas possuem mais reservas à participação em investigações de natureza acadêmica, principalmente pelo receio de que algumas de suas práticas possam ser mal interpretadas quando vistas por quem é de fora.

Em relação aos procedimentos éticos, como de praxe, todos os cuidados passíveis de serem previstos antes do acesso ao campo foram assinalados no projeto submetido à Comissão de Pesquisa da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade à qual os autores são vinculados, tendo sido aprovado sob o parecer n. 3.198.510. Apesar da complexidade do trabalho de campo, a fundamentação teórica e o detalhamento dos procedimentos metodológicos que constavam no documento submetido ao CEP resultaram na tramitação do estudo sem intercorrências, de modo que seu fluxo foi rápido, sem “idas e vindas”, nem grandes solicitações de correções ou ajustes do texto. Ademais, também possuímos a autorização prévia para a realização deste estudo pelo outro sujeito envolvido (coach), indicando que concordava com sua participação no estudo por meio de assinatura em Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os outros envolvidos (demais coachs e atletas que participarem direta ou indiretamente do estudo) também assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido específico indicando concordância.

No que se refere à análise documental, sobretudo à análise de postagens online, ressaltamos que a literatura acadêmica e jurídica não indica a necessidade de tramitação ética no que tange aos materiais publicados nas redes sociais. Os materiais que foram postados na modalidade “pública” em tais redes são abertos para a visualização de todos e não possuem nenhuma restrição de exibição, portanto, não é necessária a anuência dos autores das postagens, podendo ser utilizados no trabalho como dados secundários (Recuero et al., 2015Recuero, R., Bastos, M., & Zago, G. (2015). Análise de redes para mídia social. Sulina.).

Cabe destacar que, antes mesmo de iniciar o trabalho de campo, o pesquisador-atleta do estudo estava ciente de todos os riscos que estariam implicados, principalmente no que se refere às práticas bioascéticas inerentes à rotina do fisiculturista, como, a realização de rotinas de treinamento longas e extenuantes, a suplementação dos mais variados recursos e a realização de dietas super restritivas, procedimentos que são definidos em parte da literatura biomédica como um “atentado” à saúde (Moraes et al., 2015Moraes, D. R., Castiel, L. D., & Ribeiro, A. P. P. G. A.(2015). “Não” para jovens bombados, “sim” para velhos empinados: o discurso sobre anabolizantes e saúde em artigos da área biomédica. Cadernos de Saúde Pública, 31(6), 1131-1140. https://doi.org/10.1590/0102-311X00068914
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).

Um dos elementos potencializados a partir da produção desta empiria, partindo dos pressupostos da etnografia realista, foi colocar a relação de autoridade/obediência entre coach e atleta de fisiculturismo aberta às críticas dos envolvidos no contexto cultural e dos externos a ele, por meio daquilo que Jones et al. (2015)Jones, S. H., Adams, T. E., & Ellis, C. (Eds.). (2015). Handbook of autoethnography. Routledge. denominam um processo de fazer-se vulnerável por meio da exposição de suas experiências pessoais, demonstrando uma relação dialógica entre si mesmo e a cultura.

Por mais que façamos parte e estejamos imersos na cultura estudada, devemos desenvolver a capacidade de nos afastar do problema e analisá-lo de forma crítica, problematizando muito além do “como faço aquilo que faço”, e chegando a uma problematização mais profunda, do tipo “por que eu faço aquilo que faço?” ou “como cheguei ao ponto de fazer aquilo que faço?”. Com a prática etnográfica realista, tivemos a oportunidade de realizar muito mais do que uma descrição densa sobre os modos de vida de uma cultura particular; também nos foi possível problematizar as relações constituídas nesse cotidiano, bem como as tensões e as hierarquias que são estabelecidas dentro de sociedades específicas (Velho, 1994Velho, G. (1994). Observando o familiar. In Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea (pp. 121-132). Zahar.).

No que se refere aos critérios de rigor e validez interpretativa da etnografia realista, Fine (1999)Fine, G. A. (1999). Field labor and ethnographic reality. Journal of Contemporary Ethnography, 28(5), 532-539. https://doi.org/10.1177/089124199129023523
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apresenta a necessidade de uma etnografia que busque por narrativas cada vez mais realistas dos participantes do estudo, tanto por parte do pesquisador principal quanto pelos colaboradores, devendo tais narrativas irem além de apenas uma mera descrição do local e dos membros da cultura. O autor ainda acrescenta que todo trabalho empírico se baseia na afirmação de que os leitores podem confiar nas conjecturas do pesquisador, afinal, as narrativas representam alegações de uma verdade. Quer as afirmações sejam sobre a transparência do mundo social ou sobre a transparência da visão de mundo do autor, Fine (1999)Fine, G. A. (1999). Field labor and ethnographic reality. Journal of Contemporary Ethnography, 28(5), 532-539. https://doi.org/10.1177/089124199129023523
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considera que o argumento é funcionalmente idêntico em ambas as situações.

Para Fine (1999)Fine, G. A. (1999). Field labor and ethnographic reality. Journal of Contemporary Ethnography, 28(5), 532-539. https://doi.org/10.1177/089124199129023523
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, os etnógrafos realistas não sustentam – e nem devem sustentar – que as descrições que apresentam são relatos exatos ou transparentes de um mundo “lá fora”. O autor reconhece que, no caso da etnografia, essa ferramenta de produção e interpretação empírica somos nós mesmos, o que conseguimos captar no “campo de batalha”. O processo de validez interpretativa da materialidade empírica, portanto, está centrado na capacidade do pesquisador etnógrafo de se colocar no texto e dialogar com as fontes disponíveis, expondo-as e colocando a empiria diante da crítica teórica. Com base em Lefèvre (1993)Lefèvre, F. (1993). Debate sobre o artigo de Minayo & Sanches. Cadernos de Saúde Pública, 9(3), 239-262. https://doi.org/10.1590/S0102-311X1993000300003
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, nomeamos esse elemento posicionalidade do pesquisador qualitativo.

Em relação à posicionalidade (“quem vos fala”), ressaltamos a importância da proximidade à temática do estudo, principalmente levando em consideração as afirmações de Fernando Lefèvre (1993)Lefèvre, F. (1993). Debate sobre o artigo de Minayo & Sanches. Cadernos de Saúde Pública, 9(3), 239-262. https://doi.org/10.1590/S0102-311X1993000300003
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. Em seu texto, o autor afirma que no momento da interpretação dos dados, a formação, a experiência (acadêmica e de vida) e as bases teóricas pregressas do pesquisador são de suma importância. A interpretação do material empírico pode “ressoar” de forma diferenciada e ser significativa para um pesquisador, mas, para outro, pode não significar nada. Essa diferença não advém, necessariamente, de um pesquisador ser mais bem formado em metodologia científica do que outro. Na pesquisa qualitativa, um pesquisador não apenas pode, como deve, ser diferente do outro. Não se busca uma verdade única em um depoimento, mas uma verdade específica, metabolizada pela história de vida desse pesquisador (Lefèvre, 1993Lefèvre, F. (1993). Debate sobre o artigo de Minayo & Sanches. Cadernos de Saúde Pública, 9(3), 239-262. https://doi.org/10.1590/S0102-311X1993000300003
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).

Da mesma forma que a posicionalidade está baseada na experiência e na intimidade do pesquisador com a temática, o potencial reflexivo está diretamente ligado a tais experiências. O potencial de reflexividade do pesquisador emerge como um importante meio para responder à complexidade da pesquisa, levando em consideração que, muitas vezes, ao coletar informações, o pesquisador obtém relatos de situações nas quais se percebe a “aflição sentimental” dos entrevistados (Doyle, 2012Doyle, S. (2012). Reflexivity and the capacity to think. Qualitative Health Research, 23(2), 258-255. https://doi.org/10.1177/1049732312467854
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), sendo o pesquisador principal instrumento de geração (construção) dos dados informativos. Da mesma forma, Joy et al. (2006)Joy, A., Sherry, J. F., Troilo, G., & Deschenes, J. (2006). Writing it up, writing it down: being reflexive in accounts of consumer behavior. In R. W. Belk (Ed.), Handbook of qualitative research methods in Marketing (pp. 345-360). Edward Elgar. consideram que o potencial de reflexividade é um critério de confiabilidade e rigor atribuído à pesquisa qualitativa.

Ao longo do processo de descrição densa sobre os modos de vida de uma cultura particular, o etnógrafo realista vai concomitantemente problematizando as relações constituídas nesse cotidiano, bem como as tensões e hierarquias estabelecidas no grupo estudado. Segundo Anderson e Glass-Coffin (2015)Glass-Coffin, B., & Anderson, L. (2015). I Learn By Going. In S. H. Jones, T. E. Adams, & C. Ellis (Eds.), Handbook of Autoethnography(pp. 57-84). Left Coast Press., nesse processo de descrição reflexiva, o pesquisador passa a se questionar acerca do que é possível que contem sobre ele que ainda não saiba, o que o leva a se reconhecer, paulatinamente, como sujeito pertencente à cultura pesquisada.

Em função da relação de pertencimento cada vez mais estreita, o pesquisador-autor deste artigo, por vezes, assumia em suas narrativas um tom de fã quando fazia referência ao coach, dada a admiração por seu trabalho e o tempo de convivência nesse percurso de modificação corporal. Essa foi uma das razões que nos levaram a considerar importantes as entrevistas com outros coaches, para buscar diversas experiências de condução do trabalho e de relação entre coach e atleta. Desse modo, seria possível ampliar o entendimento sobre esse processo com outros “nativos” daquela cultura, mas que poderiam ter, como foi possível constatar, diferentes níveis de entrega nessa relação.

No que se refere ao processo de validação externa e interna dos achados empíricos, há concepções que dão mais ênfase à validade dos resultados, também denominada validade externa, e há concepções que dão mais ênfase à validade do processo, do método, também denominada validade interna (Ollaik & Ziller, 2012Ollaik, L. G., & Ziller, H. M. (2012). Concepções de validade em pesquisas qualitativas. Educação e Pesquisa, 38(1), 229-241. https://doi.org/10.1590/S1517-97022012005000002
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).

Fine (1999)Fine, G. A. (1999). Field labor and ethnographic reality. Journal of Contemporary Ethnography, 28(5), 532-539. https://doi.org/10.1177/089124199129023523
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apresenta três balizadores para dar validade à etnografia realista: (i) que as narrativas forneçam evidências que sejam suficientemente boas (em termos intersubjetivos) para entender a cultura estudada; (ii) que as narrativas reflitam as perspectivas pelas quais os participantes entendem seus mundos; e (iii) que as narrativas proporcionem o desenvolvimento de uma teoria testável. A elas, o autor atribuiu, respectivamente, os nomes de defesa intersubjetiva, defesa epistemológica e defesa pragmática. Diante desses baluartes, Fine (1999)Fine, G. A. (1999). Field labor and ethnographic reality. Journal of Contemporary Ethnography, 28(5), 532-539. https://doi.org/10.1177/089124199129023523
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considera que, apesar dos desafios atuais, a etnografia realista potencialmente será a abordagem dominante no século XXI.

Indo ao encontro do indicado por Fine (1999)Fine, G. A. (1999). Field labor and ethnographic reality. Journal of Contemporary Ethnography, 28(5), 532-539. https://doi.org/10.1177/089124199129023523
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como atributo de validade empírica, ao longo da implementação dos procedimentos etnográficos desta pesquisa, o material produzido pelos autores retornou para aprovação e análise dos demais envolvidos com a produção. Esse retorno ocorreu em conversa direta com os colaboradores e entrevistados, colocando à disposição destes as transcrições e as informações que foram problematizadas e dialogando acerca das interpretações que foram sendo desenvolvidas.

Fine (1999)Fine, G. A. (1999). Field labor and ethnographic reality. Journal of Contemporary Ethnography, 28(5), 532-539. https://doi.org/10.1177/089124199129023523
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indica que, em campo, o pesquisador irá se deparar com “afirmações de verdade” e, mesmo que tal conjunto de afirmações não possa ser reivindicado como definitivo, ele normalmente é muito valioso para o etnógrafo naquele momento específico.

Imaginemos a seguinte situação: se dois etnógrafos visitassem a mesma cena, cada um sairia com uma perspectiva diferente da situação; ainda assim, as imagens que eles percebem seriam reconhecíveis uma pela outra. Uma das características que tornou as etnografias realistas tão poderosas é que elas fazem sentido tanto para os leitores quanto para os participantes das cenas descritas. Como público, somos levados a imaginar essas cenas, que, quando estão bem narradas/articuladas no texto, nos fazem ver os cenários descritos. Em suma, fazem sentido, especialmente para quem já teve experiência naquelas situações “fotografadas” (Fine, 1999Fine, G. A. (1999). Field labor and ethnographic reality. Journal of Contemporary Ethnography, 28(5), 532-539. https://doi.org/10.1177/089124199129023523
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).

Podemos considerar, em última análise, que essas etnografias que denominamos realistas ganham tal significado em virtude de seu poder intersubjetivo, de modo que outros sujeitos, ao lerem trabalhos produzidos dentro dessa perspectiva, tendem a concluir que nossas afirmações seriam mais ou menos válidas.

Calvey (2011)Calvey, D. (2011). Book review: Elijah Anderson (ed.), ‘The Enduring Legacy of Urban Ethnography: Myth and Reality’ and ‘Urban Ethnography: Its Traditions and its Futures’. Special, double issue: Ethnography 10(4), December 2009 and 11(1), March 2010. Qualitative Research, 11(2), 214–217. https://doi.org/10.1177/14687941110110020602
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indica que a etnografia realista, rica em interação, baseia-se e incorpora relatos microscópicos e detalhados que apresentam particularidades e variações locais, desencorajando generalizações simples. Percebemos, no transcorrer da empiria, que a proximidade diária e ininterrupta ao tema de estudo promove o desenvolvimento da sensibilidade teórica do pesquisador qualitativo que utiliza a etnografia realista. Em nosso caso, o processo de estar em “campo” se deu a partir da interseção de lócus diferenciados nos quais os praticantes da musculação compartilham seus conhecimentos sobre as modificações corporais na busca de um corpo ainda mais hipertrofiado, simétrico e definido.

A ideia principal consistia em fazer com que o pesquisador-atleta realizasse o que os demais atletas faziam, ver as práticas que eles viam, entender como sua cultura fazia sentido para eles a ponto de serem seus próprios entusiastas, tal como Atkinson (2015)Atkinson, M. (2015). O empírico contra-ataca: fazendo etnografia realista. In I. M. Gomes, A. B. Fraga, & Y. M. Carvalho (Orgs.), Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação (pp. 211-254). Rede Unida. havia feito em seu trabalho de campo. Se o pesquisador estivesse distanciado e não imerso na cultura do fisiculturismo, os membros iriam tentar mantê-lo à certa distância da própria cultura que compartilhavam. Até porque conhecer alguns deles e participar de algumas atividades na academia não garantiria, por si só, o acolhimento do pesquisador como membro da cultura do fisiculturismo.

Delineando a musculatura empírica: a interpretação dos achados etnográficos realistas

No que se refere à interpretação do material obtido, os etnógrafos realistas buscam gerar uma sólida interpretação da cultura por meio da combinação sistemática de múltiplos pontos de vista dentro de um determinado contexto, de modo a construir os chamados “mapas de significado”. Para a construção de tais mapas, como já mencionado anteriormente, é fundamental que o sujeito esteja inserido como membro da cultura estudada (Atkinson, 2015Atkinson, M. (2015). O empírico contra-ataca: fazendo etnografia realista. In I. M. Gomes, A. B. Fraga, & Y. M. Carvalho (Orgs.), Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação (pp. 211-254). Rede Unida.).

O processo de produção de dados na etnografia realista é fundamentado na correlação das narrativas obtidas em campo, tomando como ponto de partida uma coprodução, entre pesquisador e sujeitos, de relatos sobre a vida em grupo. Essas narrativas, por sua vez, devem ser condensadas em uma metanarrativa principal, de modo artesanal e indutivo. Atkinson (2015)Atkinson, M. (2015). O empírico contra-ataca: fazendo etnografia realista. In I. M. Gomes, A. B. Fraga, & Y. M. Carvalho (Orgs.), Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação (pp. 211-254). Rede Unida. aconselha que a operacionalização da análise da etnografia realista seja realizada de acordo com as propostas de codificação da teoria fundamentada (GT), pois permitiria ao etnógrafo tratar de forma mais sistemática e articulada o volume de dados produzidos e registrados no diário de campo. Atkinson defende que o uso dos procedimentos específicos de codificação da GT tornaria mais consistente o processo de interpretação dos achados, um dos elementos que ele considera menos desenvolvidos no processo de consolidação das pesquisas etnográficas de um modo geral.

Entretanto, ao dedicarmos nossa atenção a estudos que utilizaram a GT, percebemos que essa proposta não poderia se ater apenas a um conjunto de codificações dessa complexa metodologia, visando exclusivamente a interpretação dos dados etnográficos. Não há dúvidas de que a GT tem um potencial enorme de utilização em trabalhos de cunho etnográfico, mas não nos pareceu apropriado empregar nesta pesquisa apenas uma parte da GT, já que o instrumental e a fundamentação teórica próprias da teoria não foram adotados como elemento estruturante do estudo, tal como Priscilla Antunes (2019)Antunes, P. C. (2019). Práticas corporais integrativas: experiências de contracultura na atenção básica e emergência de um conceito para o campo da saúde [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. Repositório Digital da UFRGS. https://lume.ufrgs.br/handle/10183/203795
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fez em sua tese de doutorado8 8 A obra de Antunes (2019) é um exemplo de trabalho eminentemente baseado na teoria fundamentada (GT). Nessa tese, Antunes indica metodologicamente o passo a passo de confeccionar uma GT de qualidade. . Portanto, diferentemente do indicado por Atkinson (2015)Atkinson, M. (2015). O empírico contra-ataca: fazendo etnografia realista. In I. M. Gomes, A. B. Fraga, & Y. M. Carvalho (Orgs.), Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação (pp. 211-254). Rede Unida., a análise da empiria não se centrou nos procedimentos interpretativos da GT, e sim no processo de codificação temática oriundo da própria experiência do pesquisador como nativo do campo do fisiculturismo e como um acadêmico já atravessado pelos conceitos de expertise, enhancement corporal, bioascese e poder pastoral.

Nesse contexto, diversos procedimentos foram adotados no processo de categorização analítica. Em um primeiro momento, realizamos um processo de codificação aberta, centrado na análise de descrever, categorizar e nomear o que foi observado no processo etnográfico (a partir das anotações do diário de campo) e no processo de análise documental das redes sociais (a partir da análise e discussão das postagens do coach e da interação de seus seguidores/atletas nas redes sociais). Para identificar se havia repetição das ações e situações vivenciadas por nós na etnografia e pelos demais participantes nas discussões na rede, buscamos analisar como as pessoas envolvidas com a questão da preparação com coaches para campeonatos de fisiculturismo repercutiam a situação na rede; de que maneira essa situação (o processo de preparação para campeonatos de fisiculturismo e a relação entre o pesquisador e o coach) se diferenciava das demais, bem como buscamos trazer à tona as interpretações das pessoas do convívio do pesquisador-atleta (amigos e familiares) sobre aquela situação. Nessa fase, procuramos identificar esquemas gerais de comportamento do pesquisador-atleta, do coach e dos sujeitos envolvidos na cultura. Além disso, as outras três porções metodológicas – entrevistas com os outros coaches e análise documental via second review das narrativas da dissertação de mestrado do autor principal e análise de outros documentos obtidos durante a empiria – também alimentaram as categorias de codificação supracitadas.

Um segundo momento de interpretação dos dados se centrou na aglutinação das informações e em sua correlação, agrupando-as em categorias um pouco maiores. Nessa fase, houve intersecção de alguns achados empíricos em mais de uma categoria, bem como a reunião de categorias analíticas: reunimos as falas e experiências pessoais que contextualizavam a função de um coach de fisiculturismo para gerar a categoria de “primeira movimentação analítica”, que descreve “o que faz um coach de fisiculturismo”; reunimos os relatos pessoais do pesquisador e as narrativas dos entrevistados que remetiam às rotinas de preparação para competições e à entrega às ordens do coach para gerar a segunda movimentação analítica, que descreveu a “preparação de um fisiculturista”; reunimos os relatos de receios, medos e resistências com as narrativas do pesquisador e dos entrevistados que mencionavam os tensionamentos sobre “fazer os protocolos em si mesmo” para gerar a terceira movimentação analítica, que descreveu os “receios e medos do atleta”; e, por fim, reunimos as narrativas pessoais constantes no diário de campo com os outros materiais prospectados nas falas dos colaboradores que remetiam à autoria sobre o corpo do fisiculturista, para gerar a quarta movimentação analítica, que descreve “quem é o criador da obra”. Todas essas categorias tiveram, como fio condutor, a temática da relação de autoridade/obediência entre coach e atleta de fisiculturismo.

Um terceiro momento da codificação dos achados consistiu na escolha de categorias que se relacionavam de forma a compor uma categoria maior, de tal modo que acabou sendo gerado um mapa etnográfico relacionado aos elementos centrais e periféricos identificados na empiria. Consideramos que todo esse conjunto de análises potencializou a elaboração de um esquema que indicasse, de forma hierárquica (do mais ao menos denso analiticamente; das situações mais repetitivas às menos repetitivas), a importância dos elementos (dados e categorias) produzidos no trabalho de campo e na empreitada analítica.

Além disso, paralelamente à organização das categorias, ocorreram os tensionamentos dos fenômenos transcorridos ao longo da produção da empiria: pudemos reler as anotações do diário de campo e, de forma distanciada do momento do ocorrido, problematizar o que (de que modo e por quais motivos) o pesquisador-atleta fazia: as condições causais, os contextos, as condições situacionais e as ações estratégicas adotadas por esse pesquisador-atleta no decorrer da empiria.

Por fim, em um quarto momento de categorização, pudemos desenvolver dois quadros analíticos importantes para ilustrar a relação de autoridade/obediência entre coach e atleta de fisiculturismo. Um primeiro quadro que indica como ocorrem as modulações de entrega, identificadas por meio dos “graus de adesão” ao coach, que variaram da “pouca entrega” à “entrega total”. Em um segundo quadro analítico, posterior às categorias de adesão, foi possível organizar os pormenores que fazem do atleta obediente ao coach. Em suma, a obediência do atleta à autoridade do coach se reforça quando o primeiro vê estampado em seu próprio corpo os resultados do plano ao qual ele se submeteu voluntariamente, alimentando aquilo que as narrativas indicaram como um “compromisso moral” com o coach, decorrente dessa relação de obediência. Cada um desses momentos foi tratado em capítulo específico no relatório final de doutoramento.

Dos palcos às bancas: considerações finais

Tudo culmina na ‘defesa da obra’ que ocorre no palco: para subir no palco, não basta estar pintado e com a sunga adequada para a competição. Eu também deveria estar com um shape que representasse todo o processo de “chegar até lá”. Nessa hora, veio à mente tudo aquilo ao que me submeti nesses últimos meses. É no palco que o resultado de minhas decisões se representou na minha própria pele. Podemos comparar o momento do palco com a apresentação de um trabalho final, com a defesa de um estudo frente à banca avaliadora. Lá no palco o atleta temos que estar na nossa melhor forma e exibir os pontos fortes de nosso ‘trabalho’. Lá devemos mostrar como foi o percurso todo, até a chegada àquele momento

(Diário de Campo – 20/05/2018).

Concluímos este artigo com um trecho do diário de campo do estudo original, ponto de confluência do processo de captação dos acontecimentos na perspectiva de quem os viveu intensamente. Nele, o pesquisador se vê em retrospectiva, anota suas reflexões, anseios e medos, aquilo que ele enxerga e aquilo que ele não enxerga no ato de registrar os fenômenos nos quais está imerso. É o diário de campo que estabelece a ponte entre o estar lá e o escrever aqui, que traz à tona o processo de produção empírica que materializa a análise etnográfica realista sob a forma de texto acadêmico.

Não nos resta dúvida quanto à potencialidade da etnografia realista em empreendimentos investigativos dessa natureza, nos quais um “pesquisador-atleta” se permite ficar por um longo período imerso “até o pescoço” na cultura do fisiculturismo para extrair dali uma interpretação sobre aquela cultura particular. O processo de primeiramente se “embarrar” no cenário de prática, e depois se afastar do vivido para interpretar o fenômeno estudado, sob a ótica da etnografia realista, agrega autenticidade à descrição e gera confiabilidade na interpretação materializada sob a forma de texto.

Para estudos dessa natureza, especialmente os que envolvem práticas corporais de alta entrega física como o fisiculturismo, o processo de captação dos significados por meio da realização de uma etnografia realista nos moldes propostos por Atkinson (2015)Atkinson, M. (2015). O empírico contra-ataca: fazendo etnografia realista. In I. M. Gomes, A. B. Fraga, & Y. M. Carvalho (Orgs.), Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação (pp. 211-254). Rede Unida. permite-nos captar, “desde dentro” e de forma profundamente implicada, os elementos constituintes de dado fenômeno dentro da cultura corporal de movimento, no caso específico deste estudo, a relação de obediência entre pupilos e coaches, à qual não teríamos acesso sem a imersão profunda de um pesquisador em um dos polos dessa relação.

Por fim, cabe destacar que a etnografia realista, apesar de não ter sido tão difundida em língua portuguesa ou espanhola, tem grande potencial de aplicação em pesquisas no Brasil que tratem de temas relacionados à cultura corporal, de modo particular no mundo dos esportes. Por isso, recomendamos o desenvolvimento de pesquisas baseadas nessa metodologia específica para quem deseja vivenciar “na própria pele” tal empreitada etnográfica.

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    Normalização, preparação e revisão textual: Luiza Lentz (Tikinet) revisao@tikinet.com.br
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    A informação foi retirada para fins de preservação do anonimato da autoria.
  • 4
    Shape é um termo êmico que faz menção ao corpo do fisiculturista. Os termos e expressões êmicas (oriundas da empiria no campo de estudo) são de suma importância para o processo etnográfico.
  • 5
    Desde os contatos iniciais, o coach já tinha ciência que estaria fazendo parte de um estudo etnográfico e que o autor estava em fase de doutoramento.
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    Mais informações sobre o evento, que ocorreu em São Paulo, dos dias 12 a 14 de abril de 2019, estão disponíveis em: https://arnoldsouthamerica.com.br/.
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    Inspirado em Geertz (1989a)Geertz, C. (1989a). Estar lá, escrever aqui. Diálogo, 22(3), 58-63..
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    A obra de Antunes (2019)Antunes, P. C. (2019). Práticas corporais integrativas: experiências de contracultura na atenção básica e emergência de um conceito para o campo da saúde [Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. Repositório Digital da UFRGS. https://lume.ufrgs.br/handle/10183/203795
    https://lume.ufrgs.br/handle/10183/20379...
    é um exemplo de trabalho eminentemente baseado na teoria fundamentada (GT). Nessa tese, Antunes indica metodologicamente o passo a passo de confeccionar uma GT de qualidade.

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Editor responsável: Raumar Rodríguez Giménez https://orcid.org/0000-0001-9643-9314

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    11 Maio 2022
  • Revisado
    12 Out 2022
  • Aceito
    20 Dez 2023
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