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Paulo Freire e bell hooks: um encontro nos Estados Unidos 1 1 Editor responsável: Antonio Carlos Rodrigues de Amorim https://orcid.org/0000-0002-0323-9207 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Leda Maria de Souza Freitas Farah leda.farah@terra.com.br 3 3 Apoio:Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, (Grant /Award Number: '309797/20209')

Paulo Freire y bell hooks: un encuentro en los Estados Unidos

Resumo

O texto analisa as influências recíprocas entre Paulo Freire e bell hooks a partir do exame de suas biografias, seus trabalhos e escritos. Ele e ela tiveram a oportunidade de se conhecer, e vários autores destacam o impacto exercido pelas primeiras obras de Paulo nas Américas, bem como o efeito de sua passagem pelos Estados Unidos. Freire e hooks publicaram em inglês, tendo aprofundado o debate sobre a politicidade da educação e a percepção das desigualdades de classe, raça e sexo. Contando com fontes bibliográficas e fortuna crítica, o artigo identifica pontos de convergência entre o educador popular e a militante feminista, sugere que se posicionaram no centro do capitalismo global e construíram uma teoria insurgente, desafiando as posições hegemônicas.

Palavras-chave
Paulo Freire; bell hooks; United States; Education; Freedom

Resumen

El texto analiza las influencias recíprocas entre Paulo Freire y bell hooks a partir del examen de sus biografías, sus obras y escritos. Él y ella tuvieron la oportunidad de conocerse, y varios autores destacan el impacto de las primeras obras de Paulo en América, así como el efecto de su paso por Estados Unidos. Freire y hooks publicaron en inglés, habiendo profundizado el debate sobre las políticas de educación y la percepción de las desigualdades de clase, raza y género. Apoyándose en fuentes bibliográficas y fortuna crítica, el artículo identifica puntos de convergencia entre la educadora popular y la activista feminista, sugiriendo que se posicionaron en el centro del capitalismo global y construyeron una teoría insurgente, desafiando las posiciones hegemónicas.

Palabras clave
Paulo Freire; bell hooks; Estados Unidos; Educación; libertad

Abstract

This article analyzes the reciprocal influences between Paulo Freire and bell hooks based on the examination of their biographies, works, and writings. Both of them had the opportunity to get to know each other, and several authors highlight the impact exerted by Freire’s early works in the Americas, as well as the effect of his passage through the United States. Freire and hooks published in English, deepening the debate on the politics of education and the perception of inequalities of class, race, and sex. Relying on bibliographic sources and critical literature, the article identifies points of convergence between the popular educator and the feminist militant, suggesting that they have positioned themselves at the center of global capitalism and built an insurgent theory, thus challenging hegemonic positions.

Keywords
Paulo Freire; bell hooks; Estados Unidos; Educação; liberdade

Paulo Réglus Neves Freire

Paulo Freire (1921- 1997) nasceu nos arredores de Recife e lá viveu na infância. Filho de pai capitão da Polícia Militar de Pernambuco e mãe que se dedicou aos trabalhos domésticos, foi criado com a irmã e dois irmãos. Todos realizaram seus estudos de maneira descontínua, devido às dificuldades econômicas enfrentadas pela família com a morte precoce do pai e a crise de 1929. Paulo cursou o primário em escola pública e o ginásio e o colegial como bolsista do Colégio Oswaldo Cruz de Recife, onde trabalhou como bedel, auxiliar de professor e professor de português para financiar seus estudos e colaborar com o orçamento doméstico. Ingressou na universidade pública em 1943 e seguiu dando aulas de Português. Quando aluno do segundo ano do curso de Direito, casou-se com Elza Maia Costa de Oliveira, com quem teve três filhas e dois filhos.

Formou-se em 1947, pela Faculdade de Direito de Recife, mas não fez carreira como advogado. Firmou-se na área da Educação desde 1947, ao assumir o cargo no recém-criado Serviço Social da Indústria (SESI), na Divisão de Educação e Cultura, a convite de Rangel Moreira, seu amigo de colégio. Lá ficou até 1957 e se aproximou das classes trabalhadoras com pouca ou nenhuma escolarização e qualificação profissional. Tomou contato com a condição de exclusão social vivida pela imensa maioria da população jovem e adulta da cidade e região (Freire, 2013Freire, P. (2013). À sombra desta mangueira (11ª ed.). Paz e Terra.).

Na década de 1950 interagiu com atores e instituições do campo da cultura e da educação: a Universidade do Recife, na gestão de João Alfredo da Costa Lima, hoje Universidade Federal de Pernambuco; o Centro Regional de Pesquisas Educacionais, dirigido por Gilberto Freyre; a Sociedade de Arte Moderna do Recife, com Hélio Feijó; o Ateliê Coletivo, com Abelardo da Hora e Francisco Brennand; o Teatro do Estudante de Pernambuco, fundado por Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho; a Prefeitura e a Secretaria Municipal de Educação do Recife, no governo de Miguel Arraes, dentre outros (Mazza, 2022Mazza, D. (2022). Paulo Freire, a cultura e a educação. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2022.).

No imbricamento dessas instituições, processos e atores, ele participou do Movimento de Cultura Popular (MCP) do Recife e, no início da década de 1960, foi convidado a estender para outros estados – Paraíba e Rio Grande do Norte – as experiências de trabalho com educação de adultos que vinha realizando através do Sesi, do Serviço de Extensão e Cultura (SEC) da Universidade, da prefeitura da cidade e de outros movimentos de cultura popular, tais como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e os Centros de Cultura Popular (CPC).

No início da década de 1960 as experiências de alfabetização de adultos se expandiram por intermédio de: Campanha “De pé no chão também se aprende a ler”, CPC, Ligas Camponesas, MCP, SEC e outros processos mobilizados, paradoxalmente, pela militância partidária progressista, pela juventude católica e por recomendações e financiamentos para o continente fixados na Carta de Punta del Este4 4 A Carta foi acordada na VIII Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores da Organização dos Estados Americanos (OEA) realizada em Punta del Este, Uruguai (22 a 31/01/1962), tendo por objetivo discutir o impacto da Revolução Cubana nos assuntos hemisféricos. Os EUA propunham um programa de ajuda econômica de seu governo dirigido à América Latina, denominado Aliança para o Progresso, em troca da adesão ao embargo comercial e adoção de medidas de isolamento ao regime socialista de Cuba (Fundação Getúlio Vargas, 2022). . A experiência de Angicos era parte dessas ações e, segundo Calazans Fernandes e Antonia Terra (1994)Fernandes, C. & Terra, A. (1994). 40 horas de Esperança: o método Paulo Freire, política e pedagogia na experiência de Angicos. Ática., foi entendida pelo general de plantão como um processo de se “engordar cascavéis nesses sertões” (p. 18).

Em 1964, Paulo Freire se encontrava em Brasília, a convite do ministro chefe da casa civil, Darcy Ribeiro, e do Ministro da Educação, Paulo de Tarso Santos, do governo de João Goulart (1961- 1964), coordenando o Programa Nacional de Alfabetização, cujo objetivo era alfabetizar por meio do Sistema Paulo Freire, num curto espaço de tempo, milhões de adultos analfabetos esparramados pelo País. O golpe de estado e o Ato Institucional n. 1, de 09/04/1964, atingiram imediatamente o governo, os ministros, os congressistas, as equipes de trabalho, os governadores e os cidadãos, vistos como opositores ao regime autoritário. O golpe impetrado e liderado pelas Forças Armadas contou com o apoio de parte do empresariado, da sociedade e do governo dos Estados Unidos. Paulo seguiu para o exílio, passando pela Bolívia e se fixando no Chile (1964-1968), nos Estados Unidos (1969) e na Suíça (1970-1980). Assim, pode-se inferir que ele era um homem nordestino, provinciano e periférico que foi alçando projetar-se em escala regional, nacional e internacional (Mazza, 2022Mazza, D. (2022). Paulo Freire, a cultura e a educação. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2022.).

Na condição de exilado político brasileiro (novembro/1964 a abril/1969), morando em Santiago, Paulo trabalhou no Instituto de Capacitação e Investigação em Reforma Agrária (ICIRA), como assessor do Instituto de Desenvolvimento Agropecuário (INDAP) e do Ministério da Educação do Chile e como consultor da UNESCO. Nessas frentes, relacionou-se com pequenos agricultores e grupos de comunidades rurais que passavam por experiências aceleradas de reforma agrária, subvencionadas pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pelo governo chileno (Torres, 2021Torres, C. A. (2021). Investigação-ação participativa e educação popular na América Latina. In L. Cortesão, & J. P. Amorim (Orgs.), Novos contributos para a leitura da obra de Paulo Freire. Novos tributos a Paulo Freire (pp. 35-52). Afrontamento., p. 41). Em 1967, sem dominar o inglês, realizou sua primeira visita de trabalho aos Estados Unidos, para proferir duas conferências em Nova York, baseadas nas ideias e anotações que vinha trabalhando no livro A Pedagogia do oprimido.

A educadora americana Carmen Hunter o acompanhou durante a passagem pelo país e fez a tradução simultânea de suas apresentações. Os convites para ouvi-lo passaram a se repetir e ele realizou uma série de palestras patrocinadas pela OEA, em parceria com a Universidade do Chile e o governo do chileno.

(Haddad, 2019Haddad, S. (2019). O educador: um perfil de Paulo Freire. Todavia., p. 95)

Nessa época ele já havia tornado público um conjunto de experiências sistematizadas nos textos “Conscientização e alfabetização: uma nova visão do processo” (1963), Educação e atualidade brasileira (1959), Educação como prática da liberdade (1965) e Extensão ou comunicação? (1969), os quais mobilizaram, em português e espanhol, trabalhos desenvolvidos no Brasil, no Chile e na América Latina (Santos, 2021Santos, B. de S. (2021). As Epistemologias do Sul, Paulo Freire e Orlando Fals Borda. In L. Cortesão, & J. P. Amorim (Orgs.), Novos contributos para a leitura da obra de Paulo Freire. Novos tributos a Paulo Freire (pp. 15-34). Afrontamento.). Já participava de rede supranacional de intelectuais, composta por Jacques Chonchol, no Chile; Orlando Fals Borda, na Colômbia; Erich Fromm e Ivan Illich, no México; Gustavo Gutiérrez, no Peru, dentre outros (Donoso Romo, 2020Donoso Romo, A. (2020). A educação emancipatória: Ivan Illich, Paulo Freire, Ernesto Guevara e o pensamento latino-americano. EDUSP.).

Esse primeiro convite, juntamente com um prêmio recebido da UNESCO (Kirkendall, 2010Kirkendall. A. J. (2010). Paulo Freire and the cold war. Politics of literacy. University of North Carolina Press.), resultou em muitos outros, através dos quais Paulo antecipou a crítica à educação bancária, que estava desenvolvendo em seu livro Pedagogia do oprimido e, diante da recepção e das sugestões recebidas do público de intelectuais norte-americanos, convenceu-se de que o livro estava em condições de ser publicado e comercializado. Sérgio Haddad (2019)Haddad, S. (2019). O educador: um perfil de Paulo Freire. Todavia. nos relata:

Depois da primeira viagem aos Estados Unidos, o educador passou a receber convites frequentes de diversas universidades americanas para encontros e palestras. De forma mais concreta, chegou uma carta de Harvard com proposta de contrato de dois anos, a partir de 1969 ... Paulo e Elza decidiram negociar (p. 98).

Paulo tinha consciência de que os Estados Unidos representavam, à época, a matriz do imperialismo global, e isso foi motivo de reflexão pelo casal (Freire & Guimarães, 2001Freire, P. & Guimarães, S. (2001). Aprendendo com a própria história (2ª ed., vol. 1). Paz e Terra., pp. 108-110). Entretanto, a ambiência política no Chile apresentava instabilidade, a proposta de trabalho em Harvard era atrativa, e a família decidiu sair do Chile e seguir para os Estados Unidos antes de o Partido Socialista ganhar as eleições presidenciais, com Salvador Allende (1970-1973), que foi deposto por um golpe de estado liderado pelo chefe das Forças Armadas, general Augusto Pinochet, alinhado aos interesses norte-americanos (Vasconcelos, 2020Vasconcelos, J. S. (2020). Paulo Freire e a Guerra Fria: notas de leitura. Mouro. Revista Marxista, 11(14), 1-10.).

Entre 1969 e 1970, parte da família Freire morou em Cambridge, Massachusetts, vivenciou o frio do apartamento alugado pela Universidade, na 371 Broad St, e Paulo ministrava aulas na University of Harvard e assessorava o Center for the Study of Development and Change Social. Lá teve a primeira edição do livro Pedagogy of the oppressed traduzida para o inglês por Myra Bergman Ramos (Nova York: Herder and Herder, 1970), bem como outros títulos: Cultural action for freedom (Prefácio de João da Veiga Coutinho e tradução de Loretta Slover); Harvard Educational Review, Center for the Study of Development and Social Change (Monograph Series no. 1), Cambridge, Mass, 1970; Extension or communication?, com Prefácio de Jacques Chonchol e tradução de Louse Bigwood e Margareth Marshal, McGraw Hill, New York, 1973. Publicado ainda em Londres por Writers and Readers, 1976, juntamente com Education as the practice of freedom. À época, Paulo e seus livros estavam proibidos de entrar na Espanha de Franco e em Portugal de Salazar (Freire, 1992Freire, P. (1992). Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. Paz e Terra., p. 123). Muitos títulos circularam antes em inglês, depois foram traduzidos em inúmeras línguas por editoras reconhecidas e clandestinas e, posteriormente, em português e espanhol (Gadotti, 1996Gadotti, M. (Org.) (1996). Paulo Freire: uma biobibliografia. Cortez: IPF/UNESCO. , pp. 257- 282).

Mesmo considerando as complexas relações que envolvem as dinâmicas econômicas, políticas e culturais, além dos seus rebatimentos nas assimetrias geopolíticas internacionais, deve-se destacar os ganhos simbólicos transnacionais que a passagem de Paulo pelos Estados Unidos conferiu à sua trajetória. São raras as chances de um educador popular nordestino brasileiro dedicado às atividades extensionistas e à educação de adultos alçar visibilidade no centro do imperialismo global e ser lido na língua que ocupa posição privilegiada no progresso da ciência, tecnologia, pesquisa e ambiência cultural internacional (Ortiz, 2004Ortiz, R. (2004, janeiro). As ciências sociais e o inglês. Revista Brasileira de Ciências Sociais, ANPOCS, 19(54), 5-22.). Em Harvard, uma das instituições acadêmicas mais prestigiadas do mundo (que avolumava em seus quadros oito ex-presidentes dos EUA e cerca de 150 ganhadores do Prêmio Nobel), atuou como Visiting Scholar, e isso lhe conferiu o estatuto de “l´exercice legitime de l´activité intellectuelle” e lhe permitiu acumular “acquis historiques” na “lutte international pour la domination en matière culturelle et pour l´imposition du príncipe de domination dominant” (Bourdieu, 2002Bourdieu, P. (2002, Décembre). Les conditions sociales de la circulation internationale des idées. Actes de la Recherche en Sciences Sociales. CSE, 145, 3-8., p. 8).

Paulo orbita neste campo de produção, e seus trabalhos são reinterpretados a partir desta estrutura de recepção, promovendo o que Bourdieu denomina de gate-keepers. Desse modo, as editoras, os tradutores, os prefaciadores, os leitores anexam suas visões à obra, inscrevem-na no contexto de acolhimento e reconstroem o campo de origem, as categorias de percepção e as problemáticas abordadas (Bourdieu, 2002Bourdieu, P. (2002, Décembre). Les conditions sociales de la circulation internationale des idées. Actes de la Recherche en Sciences Sociales. CSE, 145, 3-8., p. 5). Essa curta, porém exitosa, passagem de Paulo por Harvard levou Darcy Ribeiro (1996)Ribeiro, D. (1996). Morri de inveja. In M. Gadotti. (Org.), Paulo Freire: uma biobibliografia (p. 373). Cortez; IPF/Unesco. , a confessar: “Morri de inveja quando vi numa livraria de Nova York um montão de livros do Paulo ao lado de um montinho do meu Processo civilizatório” (p. 373).

Do ponto de vista da constituição do pensamento de Paulo, entendemos que a circulação internacional amadureceu suas ideias e temáticas, pois os escritos da década de 1960 gravitavam em torno da denúncia de nossa inexperiência democrática, que confundia educação com “bacharelismo, oco e vazio”:

Identifica-se assim, absurdamente, teoria com verbalismo. De teoria, na verdade, precisamos nós. De teoria que implica uma inserção na realidade, num contato analítico com o existente, para comprová-lo e vivê-lo plenamente. Neste sentido é que teorizar é contemplar. Não no sentido distorcido que lhe damos, de oposição à realidade. De abstração. Nossa educação não é teórica porque lhe falta esse gosto da comprovação, da invenção e da pesquisa. Ela é verbosa. Palavresca.

(Freire, 2022Freire, P. (2022). Educação como prática da liberdade (52ª ed.). Paz e Terra., p. 123)

Ele reclamava uma teoria da cultura que lutasse contra os erros e os vícios do passado colonial e uma teoria da educação que incluísse “os miseráveis, os trabalhadores analfabetos, o povo mais pobre do Brasil” e que afastasse o “fantasma ideológico do comunismo, que as classes dominantes agitavam contra qualquer governo democrático da América Latina” (Weffort, 2022Weffort, F. C. (2022). Educação e política: Reflexões sociológicas sobre uma pedagogia da liberdade. In P. Freire, Educação como prática da liberdade (52ª ed., pp. 7-39). Paz e Terra., pp. 17-18). Escreveu que no passado brasileiro abusou-se de três “P”: “Pau para castigar, pão para comer e pano para se vestir”. Prossegue Freire (2022)Freire, P. (2022). Educação como prática da liberdade (52ª ed.). Paz e Terra.:

Em verdade, o que caracterizou, desde o início, a nossa formação, foi, sem dúvida, o poder exacerbado ... o gosto masoquista ... a submissão de que decorria, em consequência, ajustamento, acomodação e não integração. ... A integração exige um máximo de razão e consciência. É o comportamento característico dos regimes flexivelmente democráticos. O problema do ajustamento e da acomodação se vincula ao mutismo ... e a nossa inexperiência democrática. (p. 100)

Ele seguiu buscando referenciais que substituíssem, no povo oprimido, antigos hábitos de passividade por novos hábitos de participação e ingerência nas deliberações coletivas e no crescimento do ímpeto popular (Freire, 2022Freire, P. (2022). Educação como prática da liberdade (52ª ed.). Paz e Terra., pp. 117-118). Avaliava que as condições estruturais de nossa colonização se consolidaram pela exploração econômica do grande latifúndio, pelo trabalho escravo, pela violência arrogante, pelas incursões predatórias aos povos nativos e pelo senhor todo-poderoso que alongou o mandonismo nas leis duras “do dono das terras e das gentes”. E diz: “Aí se encontram as condições culturais em que nasceu e se desenvolveram, no homem brasileiro, as disposições de mandonismo, dependência e protecionismo pelas soluções paternalistas e assistencialistas” (pp. 91-94).

Aponta que até mesmo o comércio, a indústria e as atividades culturais das nossas cidades reforçam as tradições verticais antidemocráticas estimuladas desde a chegada da família real, em 1808, visando atender “os prazeres da vida que a corte ostentava”. Assim se deu o nascimento de cima para baixo das “escolas, da imprensa, da biblioteca e do ensino médio”, que autorizaram o direito exclusivo de “galopar, esquivar ou andar de trote pelas ruas das cidades aos militares, milicianos e homens privilegiados vestidos e calçados à européia” (Freire, 2022Freire, P. (2022). Educação como prática da liberdade (52ª ed.). Paz e Terra., pp. 104-106).

Neste certame, Paulo buscou uma pedagogia que “enfrentasse a discussão com o homem comum e o seu direito à participação no poder”, pois a educação desenraizada e opressora levou a que “o povo assistisse bestificado os mais recentes recuos do processo brasileiro ... mas [ele] está começando a entender que os recuos estão se fazendo por causa dos seus avanços” (Freire, 2022Freire, P. (2022). Educação como prática da liberdade (52ª ed.). Paz e Terra., p. 109).

O exílio político de Freire levou-o a subverter as fronteiras nacionais, lançando-o no ambiente cosmopolita transnacional, possibilitando a exposição da Pedagogia do oprimido aos Olhares negros de bell hooks e sensibilizando-o para a problemática da opressão dos povos originários, dos negros, das mulheres e dos migrantes.

Gloria Jean Watkins

Gloria Jean Watkins (1952- 2021) nasceu em Hopkinsville, pequena cidade segregada do estado de Kentucky, sul dos Estados Unidos. Cresceu em família de classe trabalhadora: o pai era zelador e a mãe empregada doméstica em casas de famílias brancas. Foi criada com mais cinco irmãs e um irmão. Estudou em escolas públicas americanas que praticavam o sistema de segregação racial e experimentou “a educação como prática da liberdade” com professore(a)s implicado(a)s com a realidade das comunidades negras. Ficou conhecida como bell hooks, em homenagem à bisavó, indígena Bell Blair Hooks. Faz questão de que seu nome seja escrito em minúsculo, para não ostentar empolação e chamar a atenção para as suas ações e ideias. Permaneceu solteira e não teve filho(a), embora indique que construiu relacionamentos duradouros com companheiros (hooks , 2023hooks, b. (2023). Eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo (12ª. ed. ). Elefante., p. 15; 2021ahooks, b. (2021a). Tudo sobre o amor. Novas perspectivas. Elefante., p. 27). Fala que, segundo o pensamento sexista da época, existiam três carreiras para as meninas negras: casar, trabalhar como empregadas ou ser professoras. Diz:

Desde o ensino fundamental estava destinada a me tornar professora. Mas o sonho de me tornar escritora sempre esteve dentro de mim. Desde a infância, eu acreditava que iria lecionar e escrever. O escrever ... era uma questão de anseio particular e glória pessoal, enquanto o lecionar era um serviço, uma forma de retribuir à comunidade. Para os negros, o lecionar - o educar - era fundamentalmente político, pois tinha raízes na luta antirracista. Com efeito, foi nas escolas ... frequentadas somente por negros, que eu tive a experiência do aprendizado como revolução.

Quase todos os professores da escola ... eram mulheres negras. O compromisso delas era nutrir nosso intelecto para que pudéssemos nos tornar acadêmicos, pensadores e trabalhadores do setor cultural … Aprendemos desde cedo que nossa devoção ao estudo era um ato contra hegemônico, um modo fundamental de resistir a todas as estratégias brancas de colonização racista. Embora não definissem e nem formulassem essas práticas em termos teóricos, minhas professoras praticavam uma pedagogia revolucionária de resistência, profundamente anticolonial.

(Hooks, 2019ahooks, b. (2021a). Tudo sobre o amor. Novas perspectivas. Elefante., pp. 10-11)

No fim da educação básica fez a transição para escolas integradas e passou a conviver com professores(a)s e aluno(a)s predominantemente branca(o)s.

De repente, o conhecimento passou a se resumir a pura informação ... Levados de ônibus a escolas de brancos, logo aprendemos que o que se esperava de nós era a obediência, não o desejo ardente de aprender. A excessiva ânsia de aprender era facilmente entendida como uma ameaça à autoridade branca ... passamos a ter aulas com professores brancos cujas lições reforçavam os estereótipos racistas ... Apesar das experiências intensamente negativas, me formei na escola ainda acreditando que a educação é capacitante ... aumenta nossa capacidade de ser livres.

(Hooks, 2019ahooks, b. (2021a). Tudo sobre o amor. Novas perspectivas. Elefante., pp. 12-13)

Enfrentou desde a infância várias situações adversas que a despertaram para a condição da mulher, da raça e da classe social.

Criada numa família em que o constrangimento agressivo e a humilhação verbal coexistiam com afeto e cuidado, tive dificuldade para abraçar o termo disfuncional ... essa estranha mistura de carinho e crueldade. ... Em um dia normal na minha família de origem, eu receberia atenção carinhosa, e o fato de eu ser uma menina inteligente seria afirmado e estimulado. Então, horas depois, alguém me diria que era exatamente porque eu me achava tão esperta que possivelmente acabaria louca e internada num hospício onde ninguém iria me visitar.

(2021a, p. 43)

Ela teve que reinventar sua capacidade de lidar com a humilhação, estabelecer relações de pertencimento com mulheres negras e aprender a amar dentro da cultura patriarcal e racista. Propõe “políticas de conversão” do niilismo presente na sociedade através de ações que promovam rupturas com o ciclo de perpetuação de dores e violências, que coloquem a ética do amor no plano coletivo e ensinem a formação de comunidades educativas que fortaleçam a autoestima e desafiem o status quo (2021b). Aponta que “onde há abuso físico ou psíquico, violência e mentira a prática amorosa fracassou” (2021a, p 17). Entende que o amor é muito mais que afeição profunda por alguém, trata-se da “vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento … ou o de outra pessoa” (p. 41). Identifica a perda do sentimento de comunidade que conecta e aproxima as pessoas, expande a mente e cria mutualidades libertadoras. Denuncia que as escolas e as igrejas hoje incentivam a ética materialista de ganhar dinheiro o máximo possível e disseminam a competição, o consumismo, o individualismo e o desejo de eliminar o concorrente (2021bhooks, b. (2021b). Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança. Elefante.).

Obteve bolsa de estudos e cursou graduação em Licenciatura e Letras na Universidade de Stanford (1973) e pós-graduação em Letras na Universidade de Wisconsin-Madison (1976). Foi na educação superior que hooks se aproximou dos Estudos de Mulheres5 5 “O campo Women´s Studies surgiu nos Estados Unidos no final dos anos 1960 com a proposta de estudar o feminismo a partir de métodos interdisciplinares, colocando a vida e as experiências de mulheres no centro dos debates sobre construções culturais e sociais de gênero. Raça, orientação sexual e classe eram algumas das questões debatidas nas salas de aula dessas disciplinas, que hoje são mais comumente denominadas Estudos de Gênero (hooks, 2023, p. 10). e aprendeu sobre diferenças de gênero, sexismo e patriarcado como sistemas que moldaram os papéis e a identidade feminina, mas diz ter visto “pouco sobre o papel designado às mulheres negras em nossa cultura” (2023, p. 10). Denuncia que as feministas brancas queriam que suas experiências se conectassem às noções compartilhadas de sororidade: “E lá estava eu ... jovem negra audaciosa ... insistindo em dizer que havia diferenças grandes determinando as experiências das negras e das brancas. Meu esforço para compreender essas diferenças ... fundamentou minhas escritas” (2023, p. 10).

Seu doutorado, realizado na Universidade de Santa Cruz, Califórnia, é sobre a obra de Toni Morrison (1983), escritora, editora e professora negra norte-americana, pioneira na problematização das relações entre raça, gênero e beleza.

Quando comecei o curso de graduação ... me fascinei pelo processo de me tornar uma intelectual negra insurgente. Fiquei surpresa e chocada ao assistir as aulas em que professores não se entusiasmavam com o ato de ensinar, em que pareciam não ter a mais vaga noção de que a educação tem a ver com a prática da liberdade. ... A grande maioria dos nossos professores não dispunham de habilidades básicas de comunicação. Não eram autoatualizados e frequentemente usavam a sala de aula para exercitar rituais de controle cuja essência era a dominação e o exercício injusto do poder. Nesse ambiente, aprendi muito sobre o tipo de professora que não queria ser.

(Hooks, 2019ahooks, b. (2019a). Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade (2ª ed.). WMF Martins Fontes., pp. 13-14)

Sua carreira docente se iniciou em 1976, trabalhando com o ensino do Inglês e dos Estudos Étnicos, quando tomou contato com Pedagogy of the oppressed:

Para reagir a tensão, ao tédio e a apatia ... que tomavam conta das aulas, eu imaginava modos pelos quais o ensino e a experiência de aprendizado poderiam ser diferentes. Quando descobri a obra do pensador brasileiro Paulo Freire, meu primeiro contato com a pedagogia crítica, encontrei nele um mentor, um guia, alguém que entendia que o aprendizado poderia ser libertador.

(Hooks, 2019ahooks, b. (2021a). Tudo sobre o amor. Novas perspectivas. Elefante., p. 15)

Lecionou em vários institutos de ensino pós-secundário e, nas décadas de 1980 e 1990, lecionou e ocupou vários cargos na Universidade of Southern, Califórnia, Yale University, City College of New York e Berea College en Berea, Kentucky.

Com o tempo, passou a ensinar, escrever e publicar sobre Estudos Afro-Americanos, Estudos sobre Mulheres Negras e a construir uma teoria sobre o feminismo, o antirracismo, o antipatriarcalismo e o anticolonialismo, publicadas em livros como: And there we wept: Poems (1978), Ain´t I a woman black: Women and feminism (1981), Feminist theory: From margin to center (1984), Talking back: Thinking feminist, thinking black (1989), dentre outros.

Sua obra incide sobre a interseccionalidade de raça, sexo e gênero como sistemas de opressão que perpetuam a dominação para além das condições de classe social (hooks, 2019chooks, b. (2019c). Olhares negros: raça e representação. Elefante.). Desenvolve uma perspectiva crítica da pedagogia, influenciada pelas leituras que realizou de Paulo Freire e conta:

Na pós-graduação, constatei o que me entediava na sala de aula. O sistema de educação bancária (baseado no pressuposto de que a memorização de informações e sua posterior regurgitação representam uma aquisição de conhecimentos que podem ser depositados, guardados e usados numa data futura) não me interessava.

(hooks, 2019ahooks, b. (2019a). Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade (2ª ed.). WMF Martins Fontes., p. 14)

Seus textos inspiraram estudantes e professores universitários que questionavam a política de dominação, o impacto do racismo e do sexismo, a exploração imperialista e de classe nos Estados Unidos.

bell hooks nos legou ainda questionamentos sobre as ordens de representação e os regimes de visibilidade que dinamizam a política global contemporânea. Passou a observar e analisar criticamente situações cotidianas a partir das quais as identidades negras poderiam ser recuperadas fora do bloco monolítico da cultura ocidental. Narra:

Sexta-feira à noite uma cidade pequena do meio oeste dos Estados Unidos – vou com alguns artistas e professores a uma confeitaria ... Enquanto passamos por um grupo de homens brancos ... podemos ouvi-los falar de nós, dizendo que meus companheiros, que são todos brancos, devem ser progressistas da faculdade ... para estarem andando com uma ‘crioula’. Todos ...agem como se não tivessem ouvido ... Conforme entramos ...todos eles caem na risada e apontam para uma fileira de seios gigantes de chocolate, com direito a mamilos – tetas imensas comestíveis. Eles acham esta ideia deliciosa – sem enxergar nenhuma conexão entre esta imagem racializada e o racismo demonstrado na entrada ... Não veem essa representação dos seios de chocolate como um sinal deslocado de uma nostalgia de um passado racista em que os corpos das mulheres negras eram mercadorias disponíveis para qualquer pessoa branca que pudesse pagar seu preço.

(hooks, 2019chooks, b. (2019c). Olhares negros: raça e representação. Elefante., pp. 129-130)

Empreendeu crítica aos produtos e dispositivos da indústria cultural (filmes, livros, imagens, programas televisivos, cultura pop) que circulavam na atmosfera do capitalismo técnico planetário e indaga: Por que os corpos das mulheres negras são representados com formatos avantajados indicando uma “anatomia merecedora de mais atenção”? Por que os bumbuns empinados performam “iconografias sexuais”? Por que “a imagem da sexualidade da mulher negra foi transformada em sinônimo de luxúria animalesca selvagem”? (hooks, 2019chooks, b. (2019c). Olhares negros: raça e representação. Elefante., pp. 138-143).

Ela explicita em seus trabalhos a dor do tempo, o sentimento de sofrimento e sugere pedaços de cura, apontando para diques que contenham a supremacia branca e desenhem uma plataforma que faça emergir os “Olhares negros” (hooks, 2019chooks, b. (2019c). Olhares negros: raça e representação. Elefante.). São pautas de intervenções que posicionam a visão hegemônica a outros olhares subalternizados em torno de apropriações culturais. E nos questiona: “Como os homens negros e suas masculinidades são representados nos filmes de Madonna? Ela é sempre capaz de destruir, apagar, dominar e consumir o objeto de seu desejo? Ela “se apropria de aspectos da cultura negra e os transforma em mercadoria”? (hooks, 2019chooks, b. (2019c). Olhares negros: raça e representação. Elefante., p. 21).

Estabelece fios de conexão que podem aproximar os não hegemônicos: indígenas nativos e negros e afro-americanos. Propõe a possibilidade de uma solidariedade enraizada culturalmente, que ative esses grupos de modo a que não se identifiquem com as atitudes supremacistas brancas e nem aceitem a vitimização e a impotência. Ela luta por visibilizar e positivar identidades negras debatendo-se com em um mundo, ao mesmo tempo, aterrorizador e rico da cultura negra do Sul dos USA e questiona: Por que “a ideia do “primitivo está impregnada nas psiques das pessoas ... moldando estereótipos racistas contemporâneos, perpetuando o racismo”? Por que “associar a negritude com a irracionalidade descontrolada ... decadência ... corrupção... doença e morte?” (hooks, 2019chooks, b. (2019c). Olhares negros: raça e representação. Elefante., p. 83).

Ao reivindicar a relação entre raça, representação e construção identitária, supera a armadilha das disputas entre políticas universalistas, identitárias e emergenciais e acena para ações transformadoras, capazes de encontrar maneiras de reinventar o mundo a partir de outras sensibilidades estéticas, éticas e políticas.

Denuncia que nem mesmo a presença de um presidente negro na Casa Branca, Barack Obama (2009-2017), mudou as representações racializadas da formação social estadunidense, pois “Michele Obama foi apresentada pela mídia de massa como raivosa, castradora, má, todas as maneiras odiosas recorrentes as mulheres negras e desmoralizadas” (hooks, 2019chooks, b. (2019c). Olhares negros: raça e representação. Elefante., p. 28). Indaga-nos: “Por que as representações da sexualidade da mulher negra no mercado cultural aparecem sempre associadas a alguém que está vendendo uma buceta quente?” (hooks, 2019chooks, b. (2019c). Olhares negros: raça e representação. Elefante., p. 129).

Daí a importância do(a) professor(a) e da escola que eduquem para que as imagens negociadas destronem a supervalorização da branquitude, desvinculem o status da negritude como marcador de impotência e vitimização e promovam “cura através da conscientização” (hooks, 2019chooks, b. (2019c). Olhares negros: raça e representação. Elefante., pp. 62-63).

Assim, hooks (2021b)hooks, b. (2021b). Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança. Elefante. amplifica o estatuto da educação quando declara:

A educação em sua melhor forma - essa profunda transação humana chamada ensino e aprendizagem - não está relacionada apenas a adquirir informação ou conseguir um emprego. Educação tem a ver com cura e plenitude. Está relacionada com empoderamento, libertação, transcendência, renova a vitalidade. Diz respeito a encontrar nossa existência e nosso lugar no mundo (p. 89).

Nesta chave, entende que professore(a)s democrático(a)s admitem que o aprendizado não se confina à sala de aula ou a espaços institucionalizados – ocorre o tempo todo e se constitui como um dos processos mais relevantes na vida de pessoas pretas, periféricas e pobres, “pois é uma experiência que enriquece a vida integralmente” (hooks, 2021bhooks, b. (2021b). Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança. Elefante., p. 89). Sugere o diálogo como lugar central na pedagogia democrática:

Conversar para compartilhar informações e trocar ideias é a prática que dentro e fora do ambiente acadêmico, afirma que o aprendizado pode ocorrer em durações variadas ... e que o conhecimento pode ser compartilhado em diferentes registros de discurso.

(hooks, 2021bhooks, b. (2021b). Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança. Elefante., p. 91)

Dessa maneira, participa de movimentos feministas negros que promovam justiça social, entendendo-os como ações concretas que conspiram contra as estruturas de dominação e as hierarquias opressivas existentes.

hooks, como Freire, valoriza a teoria e escreve várias vezes que chegou a ela porque se sentia machucada, com intensa dor e, portanto, queria compreender o que estava acontecendo ao seu redor e dentro de si – a teoria, os livros, a reflexão foram ferramentas que lhe possibilitaram desafiar o status quo, transcender as condições de pobreza familiar, desafiar a autoridade masculina paterna e materna, tomar consciência da segregação racial e reagir à castração feminina. A teoria foi um refúgio que lhe permitiu entender o que acontecia no mundo e como, por meio do pensamento crítico, era possível construir “processos de auto recuperação e de libertação coletiva” (hooks, 2019ahooks, b. (2019a). Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade (2ª ed.). WMF Martins Fontes., p. 85).

Sugere que, quando a teorização está fundamentada na experiência vivida, não existe brecha entre a teoria e a prática, pois aquela segue o rastro da perturbação decorrente do sentimento de opressão e exclusão. Aponta que a teoria feminista negra deve superar o falso abismo entre a teoria e prática, considerando que o objetivo desta separação é “dividir, separar, excluir ... silenciar, censurar e desvalorizar várias vozes teóricas feministas” (hooks, 2019ahooks, b. (2019a). Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade (2ª ed.). WMF Martins Fontes., p. 91). Por tudo isso, hooks insiste em novas formas de representação e novos regimes de visibilidade que habitam a política global contemporânea e induz-nos a uma ação transformadora capaz de encontrar maneiras de (re)inventar um mundo possível com outras performances éticas, étnicas e estéticas.

O encontro

Paulo Freire e bell hooks emergem no cenário político nacional e internacional no período da Guerra Fria, localizado entre o fim da Segunda Guerra Mundial (1945) e a extinção da União Soviética (1991), caracterizado pela disputa entre Estados Unidos e União Soviética. Tal rivalidade dividiu o mundo em dois blocos que sustentavam a incompatibilidade de convivência entre as ideologias liberal capitalista e planificada socialista, em virtude de suas posições antagônicas sobre: propriedade privada, liberdade individual, igualdade coletiva, leis de mercado e intervenção do Estado, visando garantir as necessidades básicas dos cidadãos. A Guerra Fria contou com estratégias de disputas de poder, busca por hegemonia e pressão política, econômica e ideológica nos países que poderiam se alinhar aos interesses das duas potências. Nos Estados Unidos, a ameaça vermelha marcou a segunda metade do século XX, caracterizada pela repressão a todos os grupos considerados comunistas, pelo fortalecimento de grupos fundamentalistas de supremacia branca, por ataques a funcionários públicos, educadores e sindicalistas, por investigações e inquéritos baseados em suspeitas inconclusivas e por forte combate policial contra a população negra (Mariz, 2021Mariz, S. F. (2021, novembro). Paulo Freire e bell hooks e a construção de uma pedagogia feminista crítica. Revista Olhares, 9(3), 51-74.).

Os países da América sofreram acentuada repressão policial, voltada às manifestações oposicionistas, ao excesso de patriotismo conservador e foram palco de acusações infundadas contra os trabalhadores sindicalizados, ameaças e perseguições a agremiações políticas e promessas de ajudas financeiras a países alinhados aos interesses dos Estados Unidos.

Paulo, em 1992, descreve a conjuntura que emoldurou a publicação da Pedagogia do oprimido:

O livro apareceu numa fase histórica cheia de intensa inquietação. Os movimentos sociais na Europa, nos Estados Unidos, na América Latina, em cada espaço-tempo com suas características próprias. A luta contra a discriminação sexual, racial, cultural, de classe, a luta em defesa do ambiente, os Verdes, na Europa. Os golpes de Estado com a nova face, na América Latina, e seus governos militares que se alongaram da década anterior. Os golpes de Estado agora ideologicamente fundados, e todos eles ligados de uma ou de outra maneira ao carro-chefe do Norte, na busca de viabilizar o que lhe parecia dever ser o destino capitalista do continente. As guerrilhas na América Latina; as comunidades de base, os movimentos de libertação na África, a independência das ex-colônias portuguesas, a luta na Namíbia, Amílcar Cabral, Julius Nyerere, sua liderança na África e sua repercussão fora da África. A China. Mao. A Revolução Cultural. A extensão viva do significado de maio de 1968. As lutas político-sindicais e pedagógico-sindicais, todas obviamente políticas ... Guevara assassinado na década anterior e sua presença como símbolo não apenas para movimentos revolucionários latino-americanos, mas também para lideranças e ativistas progressistas de todo o mundo. A guerra do Vietnã e a reação no interior dos Estados Unidos. A luta pelos direitos civis e o transbordamento do clima político-cultural dos anos 60, naquele país, para a década de 70.

(Freire, 1992Freire, P. (1992). Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. Paz e Terra., p. 121)

Freire e hooks foram acusados de participar de “atividades subversivas” e se vincularam a movimentos libertários, civis e religiosos, que questionavam os modelos tradicionais de ensino baseados na aquisição de conhecimento por exposição ostensiva do(a) professor(a) e repetição automática do(a)s estudantes. Assumiram que o sentido do aprendizado se relaciona ao propósito de agir “na criação de um mundo em que seja menos difícil amar” (Freire, 1988Freire, P. (1988). Pedagogia do oprimido (18ª ed.). Paz e Terra., p. 184). Não obstante, ele e ela transitaram no centro hegemônico do capitalismo global, EUA, e lá publicaram, em diferentes décadas, suas obras em inglês.

Paulo contrapõe a sociedade tradicional fechada à sociedade aberta e em transição; a economia predatória, à economia da vida; a pedagogia tradicional, à pedagogia da pergunta, a partir da explicitação do “jogo de contradições que nutrem a superação de velhos temas e a nova percepção de muitos deles” (Freire, 2022Freire, P. (2022). Educação como prática da liberdade (52ª ed.). Paz e Terra., p. 69). Critica a educação pública burguesa que opera com conteúdos fragmentários, insensíveis e abstratos e defende a educação pública popular, identificada com as condições concretas de vida dos setores marginalizados, em busca de elementos culturais, temas geradores, universos vocabulares que acenasse a cenários de justiça e igualdade (Freire, 1988Freire, P. (1988). Pedagogia do oprimido (18ª ed.). Paz e Terra.). Denuncia o “sadismo da consciência opressora, na sua visão necrófila do mundo ... e no seu amor às avessas - um amor à morte e não à vida” (p. 47).

Aponta ainda que a massificação dos modos de vida no mundo moderno promove interpretações simplistas dos problemas, reforça tendências passadistas, inclinação ao gregarismo, fragilidade nas argumentações, forte teor de emocionalidade, irracionalismo sectário, gosto por explicações fabulosas e impermeáveis à investigação. Indica que a apropriação, pela humanidade, de sua posição no contexto local, nacional e internacional implicava em tomada de consciência e desenvolvimento da criticidade, contando com a mediação de trabalho pedagógico que promove rupturas emancipatórias.

Dessa forma, a transformação não é um processo mecânico decorrente da industrialização, da modernização e da urbanização, como apregoa a teoria desenvolvimentista; pelo contrário, ela está sob constante ameaça. Por isso, o saber da experiência não é suficiente, é preciso explicitar as situações de conflito e contradição por meio do debate, do diálogo e do exercício do contraditório.

Assim, a leitura do mundo, do ponto de partida da experiência, deve ser confrontada com o exercício da atividade política na esfera pública e do posicionamento frente a questões fundamentais sobre “a favor de que, do que, de quem; contra quem e o que” realizamos a educação (Freire, 1982Freire, P. (1982). Educação. O sonho possível. In Brandão, C. R., O Educador: vida e morte. (2ª. ed.). Graal., p. 97). Nesta perspectiva, a escolarização deve ser pensada como ação voltada para empoderar determinados grupos e desempoderar outros no conjunto das práticas culturais e das formações sociais.

A pedagogia de Paulo, à época, ombreou com a crítica que hooks fazia ao escravismo e a necessidade de valorizar os saberes autóctones por meio de práticas educativas que serpenteavam outras formas de existir, outros olhares e outras práticas representativas (Mazza, 2022Mazza, D. (2022). Paulo Freire, a cultura e a educação. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2022.).

Ela conta que, quando estudava na Universidade de Santa Cruz, Paulo foi convidado para fazer um seminário com alunos e professores do Terceiro Mundo. Fizeram de tudo para impedi-la de participar, pois temiam que sua crítica feminista atrapalhasse a discussão de temáticas importantes. Nesta época Paulo tinha cerca de 60 anos e já era um intelectual reconhecido internacionalmente. hooks tinha perto de 30, cursava pós-graduação e iniciava sua carreira como professora. Escreveu:

Protestei e me deixaram participar ... meu peito estava pesado com aquela tentativa sexista de controlar minha voz e o encontro ... Isso criou uma guerra dentro de mim, pois eu queria interrogá-lo sobre o sexismo de sua obra. Então, com cortesia, no momento adequado eu tomei a iniciativa na reunião ... certas pessoas falaram contra o fato de eu levantar essas questões e desvalorizaram sua importância. Paulo interveio para dizer que essas questões eram cruciais e as respondeu. Nesse momento, eu realmente tive amor por ele, porque ele exemplificou com atos os princípios de sua obra. Se ele tivesse tentado silenciar ou desvalorizar ... muitas coisas teriam mudado para mim ...

Passei horas conversando, ouvindo música, tomando sorvete com ele na minha lanchonete favorita ... A lição que aprendi vendo Paulo incorporar na prática aquilo que descreve na teoria foi profunda. Entrou em mim, me tocou e me deu coragem.

Não tem sido fácil fazer o trabalho que faço e me situar na academia, mas persevero vendo o exemplo de outros. Ele me inspirou. Abracei as contradições do seu comportamento sexista como um processo de aprendizagem que a pessoa luta para mudar, mas essa luta leva tempo.

(hooks, 2019ahooks, b. (2019a). Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade (2ª ed.). WMF Martins Fontes., pp. 78-80)

hooks questionava a linguagem sexista de escritores considerados progressistas:

Enquanto lia Freire, em nenhum momento deixei de estar consciente do sexismo da linguagem e do modo com que ele e outros líderes políticos, intelectuais e pensadores críticos progressistas do Terceiro Mundo, como Fanon, Memmi etc. construíam um paradigma falocêntrico de libertação – onde a liberdade e a experiência de masculinidade patriarcal estavam ligadas como se fossem a mesma coisa.

(2019ahooks, b. (2019a). Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade (2ª ed.). WMF Martins Fontes., p. 69)

No entanto declara, em linguagem metafórica, ter encontrado Freire num momento em que estava sedenta de libertação da condição de sujeito colonizado, marginalizado, que precisava romper a prisão do status quo. Situa seus escritos “como água que contém um pouco de terra. Como estamos com sede, o orgulho não vai nos impedir de separar a terra e ser nutridos ... A obra de Paulo foi uma água viva para mim” (hooks, 2019ahooks, b. (2019a). Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade (2ª ed.). WMF Martins Fontes., pp. 71-72). Alega que essa experiência posicionou Paulo, na sua vida, como um professor desafiador que alimentou a sua luta contra a supremacia da cultura branca:

Encontrei a obra de Freire num momento em que estava começando a política de dominação, o impacto do racismo, do sexismo, da exploração de classe e da colonização que ocorre dentro dos Estados Unidos, me senti identificada com os camponeses marginalizados de que ele fala e com meus irmãos e irmãs negras, meus camaradas da Guiné-Bissau. Cheguei à universidade com a experiência de uma mulher negra da zona rural do Sul ... Tinha vivido a luta pela dessegregação racial e estava na resistência sem ter uma linguagem política para formular o processo. Paulo foi um dos pensadores cuja obra me deu uma linguagem. Ele me fez pensar profundamente sobre a construção de uma identidade na resistência. Uma frase de Freire se tornou um mantra revolucionário para mim: “Não podemos entrar na luta como objetos para nos tornarmos sujeitos mais tarde”. ... Freire se posicionou, na minha mente e no meu coração, como um professor desafiador cuja obra alimentou minha própria luta contra o processo de colonização e a mentalidade colonizadora. ... ele nunca falou da conscientização como um fim em si, mas sempre na medida em que se soma a práxis significativa.

(hooks, 2019ahooks, b. (2019a). Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade (2ª ed.). WMF Martins Fontes., pp. 66-68)

Não é possível aferir que as obras de hooks influenciaram as de Paulo, pois ela era estudante e iniciava sua carreira acadêmica quando se encontraram, mas ele foi afetado pelas críticas e pelo relacionamento que estabeleceram e seus textos posteriores apresentam marcadores dessa sensibilização. Na Pedagogia da esperança, Paulo (1992) diz:

Falar da linguagem, do gosto das metáforas, da marca machista com que escrevi a Pedagogia do oprimido e, antes dela, Educação como prática da liberdade, me parece importante e necessário…Me lembro ...das cartas que recebi em 1970, de como, condicionado pela ideologia autoritária, machista, reagi. ... ”Ora, quando falo de homem, a mulher está incluída”. E por que os homens não se acham incluídos quando dizemos: “As mulheres estão decididas a mudar o mundo? .... Nesse sentido é que explicitei ... o meu débito àquelas mulheres, cujas cartas me fizeram ver o quanto a linguagem tem ideologia.... A discriminação da mulher, expressada e feita pelo discurso machista e encarnada em práticas concretas é uma forma colonial de tratá-la, incompatível, portanto, com qualquer posição progressistas, de mulher ou de homem, pouco importa (pp. 67-68). Foi nessa época que entrei em contato com a realidade dura de uma das dimensões mais dramáticas do Terceiro Mundo do Primeiro. A realidade dos chamados trabalhadores imigrantes ... a experiência da discriminação racial, de classe e sexo. (p. 123)

Afora as indicações diretas de Freire, existem vários testemunhos sobre a recepção do seu trabalho nos Estados Unidos e na Europa. Trilla i Bernet (1996)Trilla i Bernet, J. (1996). Repercussões da obra de Freire. In M. Gadotti (Org.), Paulo Freire: uma biobibliografia (pp. 645- 646). Cortez; IPF/Unesco., desde a Espanha dirá:

A incidência de Freire não se limita à educação de adultos … e ao Terceiro Mundo ... existe no interior das sociedades ricas, chamadas de Primeiro Mundo, enormes desigualdades sociais .... Além disso, é preciso reconhecer que a conscientização é um fenômeno humano (p. 646).

Ou seja, independentemente do espaço-tempo, sempre é necessário decifrar a realidade para transformá-la, pois só assim nos tornamos sujeitos históricos.

Considerações finais

As fontes bibliográficas (May, 2004May, T. (2004). Pesquisa social: questões, métodos e processos. Artmed.) destacam o impacto que os primeiros trabalhos de Paulo exerceram nas Américas e o efeito de sua passagem pelos Estados Unidos: a tradução de seus livros para o inglês, sua exposição ao debate sobre as desigualdades de classe, raça, sexo e gênero, bem como o desdobramento desses fatos no debate sobre a politicidade da educação. Citando depoimentos de intelectuais que conviveram com ele nos EUA, Shor (1996)Shor, I. (1996). Um livro perturbador a respeito da educação. In M. Gadotti. (Org.), Paulo Freire: uma biobibliografia (pp. 565- 567). Cortez; IPF/Unesco. diz que Freire “instigou educadores e estudantes a mudarem o modo como ensinavam e seu livro foi um guia e uma inspiração no combate ao autoritarismo da educação” (p. 566). Giroux (1996)Giroux, H. A. (1996). Um livro para os que cruzam fronteiras. In M. Gadotti (Org.). Uma biobibliografia (pp. 569-570). Cortez; IPF/Unesco. assinala que “sua narrativa da educação é um projeto político que rompe com as múltiplas formas de dominação e amplia os princípios e as práticas da dignidade humana, liberdade e justiça social” (p. 569). Para McLaren (1996)McLaren, P. (1996). Paulo Freire e o primeiro mundo. In M. Gadotti (Org.), Paulo Freire: uma biobibliografia (pp. 587- 589). Cortez; IPF/Unesco.,

Sua teoria se tornou conhecida no mundo e permitiu ser lida como uma espécie de contra-narrativa ao discurso dos ricos, poderosos e privilegiados ... Seu trabalho… colocou o pobre e o oprimido no palco da história ... Os leitores ... são confrontados com a cumplicidade do Primeiro Mundo na criação da opressão sobre as pessoas no Terceiro Mundo ... Freire é um testemunho da resistência, dignidade e inteligência dos oprimidos ... a vida e o trabalho de Freire ajudaram-me a desaprender meus privilégios de branco e anglo do sexo masculino, e “descolonizar” minhas próprias perspectivas como educador no ocidente industrializado (pp. 587-588).

A crítica realizada publicamente por hooks sobre a presença do paradigma falocêntrico na obra de Freire promoveu um diálogo fértil e uma amizade genuína, com repercussões no campo da educação, do movimento feminista negro e das publicações. Abriu brechas para que várias mulheres nele se inspirassem para legitimar suas sublevações. Hernández (1996)Hernández, I. (1996). Uma geração que graças a você aprendeu a sonhar. In M. Gadotti (Org.), Paulo Freire: uma biobibliografia. (pp. 242- 243). Cortez; IPF/Unesco., uma educadora indígena argentina, diz:

fui encontrando Paulo no Brasil, no Chile, na Argentina, na Bolívia, em Nicarágua, El Salvador e até cruzando a fronteira e chegando em Los Angeles ... Uma geração de latinas americanas aprendia com ele. Juntaram-se vocábulos em português, espanhol e tantas línguas indígenas...e assim, todas nós fomos alfabetizando em nossos sonhos. A lecto-escrita em mapudungum-espanhol foi pensada a partir de um alegre portunhol, no frio e chuvoso sul do Chile ... A pedagogia do diálogo e do conflito nascia. (p. 243)

Abramowicz, professora universitária e amiga de Paulo, descreve a lição de amor que recebeu dele quando Elza morreu e recupera suas palavras:

Sinto a incrível experiência do vazio.... Uma presença tão pequena do amanhã... não sei amaciar a saudade ... . Eu não sou o futuro para meus filhos e minhas filhas; sou um pouco do passado e muito do presente ... já pensei em parar tudo e lentamente sumir ... optar pela vida é a única forma de viver e ser leal a Elza!

(Freire, referido por Abramowicz, 1996Abramowicz, M. (1996). Amor e perda em tempos de vida. Em dois momentos entrelaçados. In M. Gadotti (Org.), Paulo Freire: uma biobibliografia. (pp. 201- 204). Cortez; IPF/Unesco., pp. 202-204)

Viezzer, socióloga, escritora e educadora da Rede Mulher de Educação, interpelou Paulo sobre uma metodologia de educação popular feminista, entendendo que seu trabalho provocava a emersão das relações de dominação e opressão:

Ao trabalhar a partir da ótica das mulheres, a pedagogia do oprimido deve necessariamente levantar as questões sobre as várias contradições existentes na sociedade que extrapolam as contradições de classes sociais. O movimento feminista desvendou a realidade de opressão do gênero feminino pelo gênero masculino como parte constitutiva da realidade social, em todas as classes sociais. ... É a esta construção social que as feministas denominam Relações Sociais de Gênero, ou seja, as relações que historicamente foram construídas pela sociedade e que, portanto, podem mudar. ... Os escritos de Freire foram por nós utilizados para levantar esta contradição fundamental no trabalho de educação popular com grupos de mulheres.

(Viezzer, 1996Viezzer, M. L. (1996). Paulo Freire e as relações de gênero. In M. Gadotti (Org.), Paulo Freire: uma biobibliografia (pp. 596- 598). Cortez; IPF/Unesco., pp. 596- 597)

Neste debate, a análise dos percursos de Freire e hooks sugere que mesclaram suas vidas com as dimensões da pedagogia e da política, atuaram como ativistas, professor(a) e escritor(a) nos Estados Unidos, tiveram seus trabalhos desdobrados em vários países das Américas e desafiaram as posições hegemônicas conservadoras em defesa de uma educação como prática da liberdade e do aprofundamento das relações democráticas nas sociedades capitalistas contemporâneas, desiguais e violentas. Paulo se filiou à educação de adultos, às camadas populares e à construção da ordem democrática. bell se vinculou à causa das mulheres negras e à luta antirracial, antipatriarcal e anticolonialista. Ele e ela questionam o autoritarismo das relações professor(a) e aluno(a), encorajam o(a)s estudantes a acreditarem na validade de suas experiências como ponto de partida do processo educacional, valorizam os processos de educação não escolar e apreciam o diálogo como “processos que geram longas fermentações sociais” (Lima, 2021Lima, L. C. (2021, julho 16). A propósito de Paulo. A Terra é redonda. https://aterraeredonda.com.br/a-proposito-de-paulo-freire/
https://aterraeredonda.com.br/a-proposit...
, p. 1). Defendem a educação como exercício político, a sala de aula como espaço de confrontação e a pedagogia como ciência que produz relatórios de práticas que devem conscientizar, denunciar e modificar as situações de exclusão, opressão e exploração. Finalmente, concebem como essencial “a educação feminista, sobretudo, para orientar a análise para uma nova interpretação dos conhecimentos existentes” (Meyers, 1996Meyers, R. S. (1996). Paulo Freire e o feminismo. In M. Gadotti (Org.), Paulo Freire: uma biobibliografia (p. 598). Cortez; IPF/Unesco., p. 598).

Daí a presença de valores como esperança, amorosidade e tolerância, mas também indignação, teimosia e justa ira nas suas formulações e mediações contemporâneas de pedagogias insurgentes e transgressoras.

De 1970 a 1980, Paulo morou em Genebra, na Suíça, e trabalhou para o Conselho Mundial de Igrejas (CMI). Lá desenvolveu atividades de assessoria a vários grupos sociais vulneráveis, movimentos de libertação nacional em África, organizações em defesa de direitos humanos que reivindicavam um projeto de educação popular acoplado à luta pela libertação de formas de opressão historicamente determinadas. No CMI seu trabalho se reaproximou das atividades extensionistas que caracterizaram sua inserção no Brasil e no Chile. Em 1971, juntamente com um grupo de exilados brasileiros, Paulo e Elza fundaram o Instituto de Ação Cultural (IDAC), dedicado à investigação-ação-participativa, prestando serviços educativos a vários países em desenvolvimento, organizando seminários e oficinas, colaborando na implementação de programas nacionais de alfabetização e produzindo materiais didático-pedagógicos (Macedo et al., 2013Macedo, E, Vasconcelos, L, Evans, M., Lacerda, M., & Vaz Pinto, M. (2013). Revisitando Paulo Freire: sentidos na educação. Liber Livro., pp. 39-40). Em 1980, Freire voltou definitivamente ao Brasil, passou a integrar o quadro de docentes da Universidade Estadual de Campinas (1980 a 1991), filiou-se ao Partido dos Trabalhadores, respondeu como Secretário da Educação da cidade de São Paulo, no governo de Luiza Erundina (1989 a 1991), colaborou como docente na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, em meados de 1991, afastou-se de todas as instituições e se aposentou. Nesse mesmo ano, de volta aos Estados Unidos, manteve um diálogo com Myles Horton, com quem escreveu We make the road by walking: Conversations on Education and social change.

Após uma conferência na University of California, Los Angeles, em abril de 1991, Moacir Gadotti, Carlos A. Torres, Pilar O´Cadiz, Peter McLaren e Paulo Freire acordaram sobre a criação do Instituto Paulo Freire, com sede em São Paulo, que hoje conta com “21 núcleos em 18 países, promovendo estudos críticos e sistemáticos do trabalho de Paulo Freire, através da investigação, do desenvolvimento profissional dos educadores e do diálogo com outros autores” (Macedo et al., 2013Macedo, E, Vasconcelos, L, Evans, M., Lacerda, M., & Vaz Pinto, M. (2013). Revisitando Paulo Freire: sentidos na educação. Liber Livro., p. 44). Morreu em São Paulo, aos 75 anos, em maio de 1997, , de infarto no miocárdio.

bell hooks, de modo similar, fundou em 2014 o bell hooks Institute, in Berea, Kentucky, visando atrair lideranças progressistas, ativistas, artistas, feministas, estudantes negro(a)s, pessoas LGBTQI+ para a causa dos direitos humanos e da justiça social, expandindo a compreensão de que a opressão de sexo e gênero é produto do exercício combinado do patriarcado e da supremacia branca. Morreu em Berea, aos 69 anos, em dezembro de 2021, de insuficiência renal.

Para Freire e hooks os Estados Unidos figuraram como uma porta de acesso a ideias, trabalhos, contatos e publicações que promoveram uma economia de bens simbólicos com forte ancoragem nas disposições de trocas internacionais, nos processos de socialização, nas categorias compartilhadas de percepção e julgamento dos trabalhos realizados e no papel das editoras, investindo em obras que – no decorrer da temporalidade de circulação – poderiam ser consagradas pelos pares e reconvertidas em bens econômicos (Sapiro, 2017). Esta dinâmica realizada no centro e na língua hegemônicos do capitalismo global, independente do cálculo interessado do(a) envolvido(a), posicionou-o(a) no polo dominante da luta pela visibilidade internacional. É possível sugerir que o sucesso editorial de Paulo Freire e sua incorporação nos estudos de bell hooks facilitaram o trânsito dos textos dela junto a editoras que inicialmente rejeitaram os escritos de uma mulher negra (hooks, 2023hooks, b. (2023). Eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo (12ª. ed. ). Elefante., p. 11). Acreditamos que a legitimidade do ativismo de hooks e sua amizade com Freire tenham favorecido a recepção dele junto a grupos feministas, antirracistas e mais radicais. O professor e a professora cultivam um estilo de escrita voltado aos leitore(a)s de estratos subalternos, educadore(a)s e militantes políticos, distanciando-se dos padrões acadêmicos e aproximando-os de textos de combate e autoajuda. Mas esta é uma outra discussão.

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    Normalização, preparação e revisão textual: Leda Maria de Souza Freitas Farah leda.farah@terra.com.br
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    Apoio:Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, (Grant /Award Number: '309797/20209')
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    A Carta foi acordada na VIII Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores da Organização dos Estados Americanos (OEA) realizada em Punta del Este, Uruguai (22 a 31/01/1962), tendo por objetivo discutir o impacto da Revolução Cubana nos assuntos hemisféricos. Os EUA propunham um programa de ajuda econômica de seu governo dirigido à América Latina, denominado Aliança para o Progresso, em troca da adesão ao embargo comercial e adoção de medidas de isolamento ao regime socialista de Cuba (Fundação Getúlio Vargas, 2022Fundação Getúlio Vargas. (2022, janeiro 28). Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Carta de Punta del Este. In Dicionário on line de Verbetes Temáticos. https://www18.fgv.br//cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/punta-del-este-conferencia-de.
    https://www18.fgv.br//cpdoc/acervo/dicio...
    ).
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    “O campo Women´s Studies surgiu nos Estados Unidos no final dos anos 1960 com a proposta de estudar o feminismo a partir de métodos interdisciplinares, colocando a vida e as experiências de mulheres no centro dos debates sobre construções culturais e sociais de gênero. Raça, orientação sexual e classe eram algumas das questões debatidas nas salas de aula dessas disciplinas, que hoje são mais comumente denominadas Estudos de Gênero (hooks, 2023hooks, b. (2023). Eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo (12ª. ed. ). Elefante., p. 10).

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Editor responsável: Antonio Carlos Rodrigues de Amorim https://orcid.org/0000-0002-0323-9207

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    11 Jan 2023
  • Aceito
    05 Set 2023
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