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Realidade suplementar no psicodrama interno: contribuições para o manejo clínico

Supplementary reality in internal psychodrama: contributions to clinical management

La realidad suplementaria en el psicodrama interno: contribuciones al manejo clínico

RESUMO

A realidade suplementar no psicodrama interno proporciona um espaço terapêutico em que a imaginação, a expressão criativa e a espontaneidade são valorizadas, o que permite aos participantes explorar e vivenciar dimensões além da realidade cotidiana. Este estudo investiga especificamente como a realidade suplementar no psicodrama interno auxilia na resolução de conflitos e na expansão da consciência subjetiva dos participantes. Enfatiza também a sua aplicação terapêutica e impacto no manejo clínico. Por meio de análise teórica e estudos de caso, examina-se como os participantes engajam e moldam essa realidade num contexto protegido, realçando a promoção do autoconhecimento e a cura. Os resultados apontam que, ao incentivar a expressão criativa e a resolução de conflitos internos, o psicodrama proporciona uma compreensão aprofundada das dinâmicas psicológicas, favorecendo a empatia e a transformação pessoal.

PALAVRAS-CHAVE
Psicodrama; Psicodrama interno; Realidade suplementar

ABSTRACT

Supplemental reality in internal psychodrama provides a therapeutic space where imagination, creative expression, and spontaneity are valued, allowing participants to explore and experience dimensions beyond everyday reality. This study specifically investigates how supplemental reality in internal psychodrama assists in conflict resolution and the expansion of participants’ subjective consciousness. It also emphasizes its therapeutic application and impact on clinical management. Through theoretical analysis and case studies, it examines how participants engage and shape this reality in a safe context, highlighting the promotion of self-knowledge and healing. The results indicate that psychodrama, by encouraging creative expression and the resolution of internal conflicts, provides a deeper understanding of psychological dynamics, fostering empathy and personal transformation.

KEYWORDS
Psychodrama; Internal psychodrama; Supplementary reality

RESUMEN

La realidad suplementaria en el psicodrama interno proporciona un espacio terapéutico donde se valoran la imaginación, la expresión creativa y la espontaneidad, lo que permite a los participantes explorar y experimentar dimensiones más allá de la realidad cotidiana. Este estudio investiga específicamente cómo la realidad suplementaria en el psicodrama interno ayuda a la resolución de conflictos y a la expansión de la conciencia subjetiva de los participantes. También destaca su aplicación terapéutica y su impacto en el manejo clínico. A través del análisis teórico y de estudios de casos, se examina cómo los participantes se involucran y dan forma a esta realidad en un contexto seguro, destacando la promoción del autoconocimiento y la curación. Los resultados indican que el psicodrama, al estimular la expresión creativa y la resolución de conflictos internos, proporciona una comprensión más profunda de las dinámicas psicológicas, fomentando la empatía y la transformación personal.

PALABRAS CLAVE
Psicodrama; Psicodrama interno; Realidad suplementaria

INTRODUÇÃO

Este artigo explora a concepção de “realidade suplementar” no contexto do psicodrama, um conceito inovador introduzido por Moreno, Blomkvist e Rutzel, (2001)Moreno, Z., Blomkvist, L. D., & Rutzel, T. (2001). A realidade suplementar e a arte de curar. Ágora. e Moreno e Moreno (2006)Moreno, J. L., & Moreno, Z. (2006). Psicodrama, terapia de ação e princípios da prática. São Paulo. SP. Daimon.. A realidade suplementar representa um espaço terapêutico em que os indivíduos podem explorar e vivenciar diferentes papéis e situações de forma segura e controlada, ampliando a realidade convencional. Este artigo está organizado da seguinte maneira: após esta introdução, na qual explicitamos alguns aspectos teóricos do tema, a próxima parte revisa a literatura sobre a realidade suplementar, seguida por uma discussão metodológica dos estudos de caso usados para explorar seu impacto no psicodrama. A análise dos resultados é apresentada a seguir, culminando nas considerações finais que refletem sobre as implicações práticas e teóricas da pesquisa.

Pretende-se investigar a multifacetada contribuição da realidade suplementar no contexto do psicodrama interno procurando entender como essa realidade expandida pode ser empregada na resolução de conflitos, tanto internos quanto interpessoais, o que permite uma introspecção profunda e a reconciliação de aspectos contraditórios da psique e das relações humanas. Busca-se também explorar a capacidade da realidade suplementar de expandir a consciência e produzir subjetividade, facilitando uma compreensão mais rica e matizada do eu e do mundo ao redor. Além disso, examina-se como esse espaço terapêutico ampliado promove um acesso enriquecido ao imaginário, oferecendo um palco para a exploração de sonhos, fantasias e cenários alternativos, que são cruciais para o processo de cura1 1 No contexto do psicodrama, ‘cura’ não se refere ao restabelecimento de um estado anterior de saúde, mas à capacidade de integrar experiências, resolver conflitos internos e alcançar um novo nível de equilíbrio e compreensão pessoal. A realidade suplementar facilita este processo, permitindo uma exploração segura e criativa de aspectos internos e externos da vida do indivíduo. e autoconhecimento. Finalmente, explicita-se como a realidade suplementar pode ser utilizada para a elaboração efetiva de traumas e processos de luto, ajudando os indivíduos a processar e integrar experiências dolorosas e não resolvidas de maneira segura e controlada. Metodologicamente, o estudo se apoia em uma revisão bibliográfica de obras fundamentais de Moreno e outros teóricos do psicodrama, complementada por análises de casos clínicos que exemplificam a aplicação da realidade suplementar em sessões psicodramáticas.

A realidade suplementar, um conceito intrínseco ao psicodrama, conforme discutido em diversos estudos, é explorada em várias dimensões, fornecendo insights valiosos para o desenvolvimento da pesquisa original permitindo uma interação profunda com experiências internas e a construção de novos significados. Essa realidade não é um mero cenário fictício; ela é uma construção ativa que abarca o imaginário, as emoções e as relações humanas, servindo como um espaço para o exercício da criatividade e da resolução de conflitos.

Para Perazzo (2010)Perazzo, S. F. (2010). O mito da cadeira vazia. Revista Brasileira de Psicodrama, 18(1), 81-90., a realidade suplementar é vista como um cenário onde o indivíduo pode enfrentar e dialogar com aspectos internos, muitas vezes representados por cadeiras vazias que simbolizam relações ou partes da psique não resolvidas. Esse método facilita uma interação direta e simbólica com componentes emocionais subconscientes, e promove a cura e o autoconhecimento. Bilik (2019)Bilik, E. (2019). Neuropsicodrama: O que está acontecendo em nossos cérebros no psicodrama?. Revista Brasileira de Psicodrama, 27(2), 165–173. Recuperado de: https://www.revbraspsicodrama.org.br/rbp/article/view/9/4
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explora como a realidade suplementar estimula áreas cerebrais específicas, e demonstra o impacto do psicodrama na atividade cerebral e na função cognitiva. Este estudo enfatiza o papel da realidade suplementar em facilitar não apenas a expressão emocional, mas também a integração e o processamento neurológico das experiências vividas.

Carvalho (2015)Carvalho, L. F. A. S. (2015). Realidade Suplementar para Famílias. Revista Brasileira de Psicodrama, 23(2), 45-53. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20150009
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discute a aplicação da realidade suplementar em terapias familiares. O autor destaca o uso da realidade suplementar em contextos de doação de órgãos, enfatizando como ela ajuda as famílias a lidar com o luto e a morte, e promove uma contínua ligação emocional e simbólica entre doadores e receptores. O autor destaca como essa abordagem ajuda as famílias a criar novas narrativas e perspectivas sobre a morte e o luto, o que facilita um processo de cura compartilhada. Vasconcelos, Melo, Carvalho e Venancio (2023)Vasconcelos, M. de F. F. de, Melo, M. R. de ., Carvalho, M. C., & Venancio, K. M. S. (2023). Pela Realidade Suplementar Desses (Nossos) Tempos. Revista Brasileira de Psicodrama, 30. https://doi.org/10.1590/psicodrama.v30.588
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mergulham na intersecção entre realidade suplementar, imaginação e política, apresentando a realidade suplementar como uma forma de resistir às estruturas opressoras e de reimaginar a existência, articulando-a com o poder da imaginação e a necessidade de criar realidades alternativas. Esse enfoque destaca a capacidade disruptiva da realidade suplementar, sugerindo que ela pode ser um veículo para a transformação social e individual.

Todos esses estudos demonstram a flexibilidade e a profundidade da realidade suplementar no psicodrama ao oferecer novas possibilidades para a terapia e pesquisa psicológicas. A realidade suplementar atua como um campo fértil para a experimentação, o que permite aos indivíduos e grupos explorar dinâmicas relacionais, traumas e questões existenciais de maneira controlada e terapêutica.

A meu ver, a realidade suplementar como um mecanismo de enriquecimento da experiência humana, ainda é pouco explorada no manejo clínico do psicodrama. Esta pesquisa busca oferecer novas perspectivas sobre a utilidade e o impacto da realidade suplementar no desenvolvimento psicológico e emocional dos indivíduos.

O interesse pelo tema surge da observação de que, embora o psicodrama seja um campo bem estabelecido dentro da psicologia, a exploração detalhada da realidade suplementar e seu potencial transformador ainda é limitada. Este estudo se justifica pela necessidade de uma compreensão mais profunda da realidade suplementar, visando ampliar as aplicações do psicodrama na prática clínica e fomentar o desenvolvimento teórico do campo.

Em termos de contribuição, este artigo pretende enriquecer o entendimento teórico do psicodrama, destacando a realidade suplementar como um elemento central na facilitação da expressão e transformação pessoal. Além disso, espera-se que os resultados desta pesquisa inspirem mais investigações e discussões sobre as dimensões ampliadas da experiência humana no psicodrama, contribuindo para a evolução da prática psicoterapêutica e da teoria psicodramática.

A noção de “realidade suplementar” é uma parte fundamental do psicodrama, introduzida por Moreno. A realidade suplementar refere-se a um espaço terapêutico criado durante uma sessão de psicodrama, no qual os participantes têm a oportunidade de explorar e experimentar diferentes papéis e situações de maneira segura e controlada. Trata-se de uma realidade ampliada que se desenrola no contexto psicodramático de uma sessão de psicoterapia psicodramática. É um espaço onde a imaginação e a expressão criativa são encorajadas, e permite que os indivíduos investiguem e revelem aspectos de si mesmos, seus relacionamentos e suas experiências (Fig. 1). Os participantes têm a oportunidade de explorar e desempenhar diferentes papéis psicodramáticos, como de um pai, um filho, um monstro, um amante, entre outros.

O psicodrama não consiste apenas na encenação de episódios, passados, presentes e futuros, que são vivenciados e concebidos no cenário da realidade - um equívoco freqüente. Há no psicodrama um tipo de experiência que ultrapassa a realidade, que oferece ao sujeito uma nova e extensiva experiência de realidade, uma realidade suplementar. Fui influenciado na cunhagem do termo “realidade suplementar” pelo conceito de Marx de “mais-valia”. O valor suplementar seria a parte do salário do trabalhador que lhe é roubado pelo empregador capitalista. Mas a realidade suplementar, em contraste, não é uma perda, mas um enriquecimento da realidade por meio do investimento e do uso extensivo da imaginação. Essa expansão da experiência é possibilitada no psicodrama pelos métodos não usados na vida - egos auxiliares, cadeira auxiliar, duplo, inversão de papéis, espelho, loja mágica, a cadeira alta, o bebê psicodramático, o solilóquio, o ensaio da vida e outros

(Moreno, 1965, citado por Moreno, Blomkvist, Rutzel, 2001Moreno, Z., Blomkvist, L. D., & Rutzel, T. (2001). A realidade suplementar e a arte de curar. Ágora.).
Figura 1
Experiência do imaginário é o espaço onde a imaginação e a expressão criativa são encorajadas.

Quando o cliente reproduz um recorte do contexto social, como uma briga com sua esposa na cena dramática, essa cena acontece dentro da realidade suplementar, dentro do contexto psicodramático. Essa reprodução de situações vividas pelos papéis sociais é realizada de forma segura e controlada, e permite que os participantes explorem, expressem e ampliem aspectos de suas vidas e relacionamentos. Ao psicodramatizar um recorte do contexto social vivido no passado, que foi gênese de psicopatologia ou de alguma questão que trouxe angústia para o cliente no aqui e agora, o cliente tem a possibilidade de reviver, experienciar novamente o que viveu no corpo, a emoção e os sentimentos e ir mais além. Com isso, ele amplia a realidade para possibilitar a consciência do que aconteceu e caminhar para a cura na catarse integrativa. Nesse contexto, a “realidade suplementar” é uma extensão da realidade cotidiana, na qual os participantes podem recriar cenas, relacionamentos e eventos marcantes de suas vidas. Eles podem assumir papéis diferentes, incluindo o papel deles mesmos, de pessoas em suas vidas ou até mesmo de partes de si mesmos, como emoções ou aspectos de sua personalidade ou do próprio corpo.

Soliani (1993) explora a ideia da realidade suplementar como um recurso terapêutico poderoso. Com base em suas experiências e práticas clínicas, ela discute como o psicodrama e a criação desse espaço suplementar podem permitir que os participantes explorem conflitos internos, resolvam problemas interpessoais, aumentem a consciência de si mesmos e desenvolvam empatia pelos outros. Soliani ressalta a importância da participação ativa dos indivíduos na criação da realidade suplementar, permitindo-lhes experimentar diferentes perspectivas e ampliar sua compreensão das situações vivenciadas. Ela enfatiza a liberdade criativa e a segurança fornecida pelo ambiente terapêutico, que encoraja a expressão espontânea dos participantes.

Por outro lado, uma realidade vital acontece no contexto social, na vida cotidiana, por meio da relação complementar dos papéis sociais exercidos pelos indivíduos. É nesse contexto que os papéis sociais desempenhados têm um impacto direto na realidade cotidiana. Dessa forma, a realidade suplementar no psicodrama proporciona aos participantes a oportunidade de vivenciar uma realidade ampliada e enriquecida, explorando novamente as situações em um espaço tratado e controlado. Essa experiência contribui para uma compreensão mais profunda de si mesmos, de suas relações e das dinâmicas que permeiam suas vidas. Já a realidade vital ocorre no contexto social, onde os papéis sociais são desempenhados nas suas diversas formas de complementariedade.

Em resumo, a realidade suplementar vivenciada no psicodrama permite uma exploração ampliada da realidade, enquanto a realidade vital se manifesta no contexto social, por meio da interação e complementaridade dos papéis sociais desempenhados. O psicodrama proporciona um espaço seguro e controlado para a experimentação de diferentes papéis e situações; um local confiável para o autoconhecimento e o desenvolvimento pessoal dos participantes.

No psicodrama, a realidade suplementar é vivida no contexto psicodramático, em que os participantes são encorajados a experimentar diferentes papéis e situações, transcendendo as limitações da realidade cotidiana. Essa ampliação da realidade possibilita uma compreensão mais profunda de si mesmo, dos outros e das dinâmicas que permeiam as interações humanas. A noção de realidade suplementar, também conhecida como “mais realidade”, foi introduzida por Jacob Levy Moreno, criador do psicodrama, e estabelece uma analogia com o conceito de mais-valia de Karl Marx. Embora essa analogia não seja amplamente explorada por Moreno em seus escritos, ela tem sido discutida e desenvolvida por outros autores e estudiosos do psicodrama, como Zerka Moreno e alguns teóricos contemporâneos.

A realidade suplementar, assim como a mais-valia, envolve um valor adicional, uma dimensão extra que vai além do que é aparente e convencional (Fig. 2). Ela afirma que, assim como o trabalhador produz um valor excedente que é apropriado pelo empregador na teoria marxista da mais-valia, o indivíduo no psicodrama vivencia uma realidade ampliada, uma “mais realidade”, que vai além das limitações do cotidiano. Assim como a mais-valia de Marx se refere ao valor excedente gerado pelo trabalho e apropriado pelo capitalista, a realidade suplementar no psicodrama pode ser entendida como um valor adicional ou enriquecido da experiência humana. Ela proporciona uma visão expandida da realidade, que vai além das limitações da vida cotidiana, e admite a expressão de aspectos internos e a exploração de possibilidades que muitas vezes não são acessadas nas interações sociais convencionais. Segundo Moreno e Moreno (2006, p. 26)Moreno, J. L., & Moreno, Z. (2006). Psicodrama, terapia de ação e princípios da prática. São Paulo. SP. Daimon. “realidade suplementar (excedente) é somente um termo analógico. Em nosso caso significa que há certas dimensões invisíveis na realidade da vida não inteiramente experimentadas ou expressas, razão por que temos de usar operações e instrumentos suplementares a fim de trazê-las para nossos quadros terapêuticos”.

Figura 2
Realidade Suplementar valor adicional, uma dimensão extra que vai além do que é aparentemente vital e convencional.

A ideia central por trás dessa analogia é que tanto a mais-valia quanto a realidade suplementar se referem a dimensões adicionais ou ampliadas da experiência humana, que vão além das realidades convencionais e aparentes. Enquanto a mais-valia de Marx se concentra na exploração do trabalho e na apropriação do valor excedente pelo empregador, a realidade suplementar no psicodrama amplia a experiência do indivíduo, permitindo a exploração de papéis, a expressão criativa e o acesso a dimensões internas e externas da vida.

No psicodrama, a realidade suplementar é acessada por meio da exploração e expressão criativa dos papéis sociais. Os participantes são encorajados a experimentar diferentes papéis, assumir perspectivas diversas e vivenciar situações em um contexto seguro e controlado. Nesse processo, ocorre uma expansão da realidade, que autoriza os indivíduos a acessarem aspectos profundos de si mesmos, suas emoções, desejos, conflitos e relações. Assim como na teoria da mais-valia, na qual o trabalhador produz um valor que vai além do valor necessário para sua subsistência, no psicodrama, o indivíduo produz uma experiência que transcende os limites da realidade cotidiana. Essa experiência ampliada proporciona uma compreensão mais profunda de si mesmo, dos outros e das dinâmicas relacionais, e permite a transformação pessoal e o crescimento psicológico.

A analogia proposta por Zerka Moreno (2006)Moreno, J. L., & Moreno, Z. (2006). Psicodrama, terapia de ação e princípios da prática. São Paulo. SP. Daimon. destaca a importância da realidade suplementar no psicodrama como um espaço onde os participantes podem acessar e experimentar uma dimensão enriquecida da vida. Essa dimensão vai além do que é percebido no contexto social convencional, pois permite a expressão autêntica, a vivência emocional e a ressignificação de experiências passadas. Portanto, Zerka Moreno nos ensina que, assim como a mais-valia representa um valor adicional gerado pelo trabalho, a realidade suplementar no psicodrama representa uma experiência enriquecida que vai além da realidade cotidiana, o que proporciona uma compreensão ampliada do eu e das relações humanas. Essa analogia nos convida a refletir sobre a importância e o potencial transformador da realidade suplementar no processo terapêutico do psicodrama.

No psicodrama interno, a realidade suplementar facilita a diferenciação de partes ou estados de ego, pois cria um espaço imaginativo onde as diferentes partes do self podem ser expressas e exploradas de forma segura e controlada. A realidade suplementar promove a espontaneidade e a criatividade, que são essenciais para o desenvolvimento do self. Isso alinha-se com a abordagem do manejo clínico que visa desenvolver um self harmonizado e compassivo, capaz de integrar as diversas partes internas (Khouri, 2022Khouri, G. (2022). Os estados de ego pela experiência psicodramática bipessoal: a externalização de papéis internos (partes). Revista Brasileira de Psicodrama, 30. https://doi.org/10.1590/psicodrama.v30.538
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).

A realidade suplementar no psicodrama interno pode utilizar a projeção para o futuro como uma ferramenta terapêutica significativa, pois possibilita ao indivíduo explorar cenários futuros de forma simbólica e segura. Segundo Cortes e Vidal (2021)Cortes, C. F. & Vidal, G. P. (2021). O eu do futuro: contribuições do psicodrama interno on-line. Revista Brasileira de Psicodrama, 29(2), 152–158. https://doi.org/10.15329/2318-0498.00459
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, essa técnica ajuda na preparação para enfrentar incertezas e mudanças, como as decorrentes da pandemia da Covid-19. Essa projeção não apenas facilita a elaboração de expectativas e planos futuros, mas também permite ao paciente ensaiar e visualizar possíveis soluções e trajetórias de vida.

Segundo Bilik (2019)Bilik, E. (2019). Neuropsicodrama: O que está acontecendo em nossos cérebros no psicodrama?. Revista Brasileira de Psicodrama, 27(2), 165–173. Recuperado de: https://www.revbraspsicodrama.org.br/rbp/article/view/9/4
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, a realidade suplementar no psicodrama envolve uma ativação extensiva e integrativa do cérebro, que vai desde as estruturas subcorticais mais primitivas até o córtex pré-frontal. Essa ativação abrangente sugere que a realidade suplementar facilita um acesso profundo à memória cinestésica do corpo, o que permite aos indivíduos processar e integrar experiências primitivas e fundamentais. A experiência na realidade suplementar não apenas recupera memórias e sensações profundamente enraizadas, mas também envolve uma intensa interação neurobiológica que promove a integração emocional e cognitiva, evidenciando o potencial terapêutico profundo dessa abordagem.

Além disso, a realidade suplementar aceita a exploração e resolução de experiências inacabadas apoiada pelo efeito Zeigarnik2 2 O efeito Zeigarnik refere-se à tendência das pessoas de lembrar tarefas inacabadas ou interrompidas melhor do que tarefas completas. Esse fenômeno foi identificado pela psicóloga soviética Bluma Zeigarnik nos anos 1920, após observações em um restaurante, onde notou que os garçons pareciam lembrar melhor os pedidos não concluídos do que dos que já haviam sido finalizados. (Schützenberger, 2012, citado por Bilik, 2019Bilik, E. (2019). Neuropsicodrama: O que está acontecendo em nossos cérebros no psicodrama?. Revista Brasileira de Psicodrama, 27(2), 165–173. Recuperado de: https://www.revbraspsicodrama.org.br/rbp/article/view/9/4
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) que mantém ativa a tendência de lembrar tarefas incompletas, facilitando um processamento neurológico direcionado para a conclusão e integração dessas experiências. Confrontos significativos dentro dessa realidade promovem a transformação pessoal, pois ativam áreas cerebrais responsáveis pela tomada de decisões, resolução de conflitos e processamento emocional. Isso, juntamente com a integração dos hemisférios cerebrais direito e esquerdo, sublinha o papel crítico da realidade suplementar em harmonizar o processamento emocional e cognitivo, e contribui para o crescimento e o desenvolvimento pessoal no contexto terapêutico.

TRÊS TIPOS DE REALIDADE

Moreno leva em conta três tipos de realidade: a primeira, a infra realidade, considerada uma sub-realidade, retrata algo vivido no passado e relatado no presente; a segunda está representada pela realidade presente, vivida no aqui-e-agora; a terceira, a realidade suplementar, constitui uma realidade sonegada, porém passível de ser resgatada na revivência da cena psicodramática. Daí a necessidade de essa realidade ser mobilizada pelo sujeito por meio da espontaneidade-criatividade e à sua maneira passar a integrar sua vivência.

Na vida, nossos sofrimentos são reais, nossa fome, nossa raiva são reais. É a diferença entre realidade e ficção; ou, como disse Buda: “O que é terrível ser, é adorável de ver”. Uma característica do ato criativo é que ele significa agir de forma suigeneris. Durante o processo de viver somos muito mais influenciados, isto é, agem sobre nós, do que agimos. Essa é a diferença entre uma criatura e um criador

(Moreno, 1973, in Moreno, Blomkvist e Rutzel, 2001Moreno, Z., Blomkvist, L. D., & Rutzel, T. (2001). A realidade suplementar e a arte de curar. Ágora., p. 166).

Zerca (2001)Moreno, Z., Blomkvist, L. D., & Rutzel, T. (2001). A realidade suplementar e a arte de curar. Ágora. diz “o que chamamos de realidade é criado no palco, na ação que se desenrola entre as pessoas envolvidas – uma realidade que se relaciona com o nosso Self Trágico” fazendo uma alusão à semelhança entre a ideia do Self Trágico e da Realidade Suplementar. Essa citação aqueceu a minha curiosidade para pesquisar a razão dessa correlação. O conceito de Self trágico foi desenvolvido pela poeta e escritora inglesa Ruth Padel (1992Padel, R. (1992). In and out of the mind: Greek images of the tragic self. Princeton, New Jersey. Princeton University Press. https://doi.org/10.1515/9781400884322
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, 1995)Padel, R. (1995). Whom gods destroy: elements of Greek and tragic madness. Princeton, New Jersey . Princeton University Press.3 3 Ruth Padel é uma poetisa, romancista e autora britânica de não ficção. Ela nasceu em Londres em 1946 e estudou clássicos na Universidade de Oxford. Lecionou grego na Universidade de Oxford e no Birkbeck College mas, em 1984, desistiu da carreira acadêmica para se dedicar à escrita. Padel é uma autora prolífica e influente, que tem feito contribuições significativas para a literatura, a poesia e o estudo da Grécia Antiga. . O livro trata da concepção de self na Grécia Antiga, com foco na tragédia grega. A autora argumenta que a tragédia grega oferece uma visão rica e complexa da natureza humana, que é marcada pela tensão entre a racionalidade e a irracionalidade, o desejo e a necessidade. O livro está dividido em três partes. Na primeira parte, Padel discute a noção de self na Grécia Antiga. Ela argumenta que o self grego era concebido como um ser composto, que incluía tanto a razão quanto a irracionalidade. A razão era representada pelos deuses do Olimpo, que eram vistos como seres perfeitos e impassíveis. A irracionalidade era representada pelas paixões, que eram vistas como forças poderosas que podiam levar o homem à ruína. Na segunda parte, Padel analisa as tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípides4 4 Ésquilo, Sófocles e Eurípides foram os três grandes dramaturgos da tragédia grega clássica. Eles viveram e escreveram na Atenas do século V a.C., durante o período de ouro da democracia ateniense. . Ela argumenta que essas tragédias exploram a tensão entre a razão e a irracionalidade. Os protagonistas das tragédias gregas são frequentemente vítimas de suas próprias paixões, que os levam a cometer erros fatais. Na terceira parte, Padel discute as implicações da tragédia grega para a nossa compreensão da natureza humana. Ela argumenta que a tragédia grega nos ensina que o self é um ser complexo e contraditório, marcado pela tensão entre a razão e a irracionalidade.

Para Padel, o Self trágico é uma dimensão da alma humana marcada pela consciência da finitude e da morte. É uma dimensão que nos confronta com a nossa vulnerabilidade e nos leva a questionar o sentido da vida. Para Zerka Moreno (2001)Moreno, Z., Blomkvist, L. D., & Rutzel, T. (2001). A realidade suplementar e a arte de curar. Ágora. o “Self Trágico deveria ser entendido como a necessidade artística de dar voz à dor da vida e da morte. A dor de nossa passagem pela vida envolve experiências como punições, doenças, guerras, ou perdas, para nomear apenas algumas”.

Zerka Moreno (2001, p.166-171)Moreno, Z., Blomkvist, L. D., & Rutzel, T. (2001). A realidade suplementar e a arte de curar. Ágora., em suas reflexões sobre o ‘Self Trágico’, destaca a distinção entre a história da alma e a história do ego. A história do ego é uma narrativa linear e cronológica de eventos que ocorreram na vida de uma pessoa. Já a história da alma é uma narrativa fragmentada e não linear de imagens, sentimentos e experiências. Enquanto momentos importantes da história do ego incluem eventos como casamento, nascimento e desenhos, a história da alma é uma tapeçaria de imagens e experiências aparentemente desconexas, como filmes, encontros, rostos ou vergonhas vívidas. O Self Trágico é uma força criativa e destrutiva que pode levar a atos extremos, como suicídio ou assassinato. Interrogar a história da alma pode levar a indagações profundas, como a que Zerka Moreno cita: “Quantas vezes você morreu em sua vida?”. A verdade da alma, portanto, pode divergir radicalmente da verdade do ego. Essa diferenciação é particularmente evidente em casos de suicídio, nos quais o Self Trágico se manifesta. A tendência é buscar explicações nas estatísticas externas visíveis, mas muitas vezes permanecemos sem compreender a verdadeira motivação interna do indivíduo. O Self Trágico se expressa por meio de imagens sombrias, loucura e autodestruição, e sua manifestação externa pode ser observada tanto no suicídio quanto em casos de homicídio, nos quais o Self Trágico é encarnado pelo assassino. No contexto do psicodrama, conforme entendido por Moreno, essas diferentes realidades do ego e da alma se entrelaçam, criando uma ‘realidade suplementar’ que é ao mesmo tempo artística e criativa. O Self Trágico pode ser expresso por meio da ação dramática na realidade suplementar do protagonista, sendo dirigido pelo diretor para explorar sua história da alma. Isso pode levar a revelações surpreendentes sobre a vida do protagonista, incluindo sua visão de seus pais e familiares. O psicodrama efetivamente ajuda as pessoas a acessar sua história da alma na realidade suplementar, pois elas são encorajadas a reviver experiências passadas e expressar emoções reprimidas. Isso pode ajudar as pessoas a entender melhor a si mesmas e a resolver conflitos internos. No palco psicodramático, a alma do protagonista guia a ação, enquanto o diretor facilita a expansão e intensificação dessa tensão dramática da vida. Essas sessões revelaram percepções intensas e muitas vezes surpreendentes sobre as relações familiares, em que a verdadeira essência dos relacionamentos é explorada, muitas vezes diferindo da percepção comum.

A biografia de J. L. Moreno nos fornece alguns insights sobre a relação entre esses dois conceitos. Moreno nasceu em uma família judia ortodoxa na Romênia, e viveu uma infância marcada por pobreza e violência. Essas experiências o levaram a desenvolver uma profunda sensibilidade para a dimensão trágica da existência humana. Moreno também foi um homem de ação. Ele acreditava que a ação era a chave para a mudança e a cura. O psicodrama, desenvolvido por ele, é uma forma de psicoterapia que enfatiza a importância da ação. Ao longo de sua vida, Moreno também se interessou pela arte e pela cultura. Ele acreditava que a arte podia nos ajudar a lidar com as emoções difíceis e a encontrar sentido na vida. A biografia de Moreno sugere que o Self trágico e a realidade suplementar são conceitos afins. Eles são duas faces da mesma moeda, que nos ajudam a compreender a complexidade da existência humana e a encontrar caminhos para a cura e a transformação.

CONCEITOS DE SELF TRÁGICO E REALIDADE SUPLEMENTAR OBSERVADOS NA PRÁTICA

A seguir, trazemos alguns exemplos concretos de como os conceitos de Self trágico e realidade suplementar podem ser observados na prática. Uma pessoa que está lidando com a perda de um ente querido pode usar o conceito de Self trágico para se conectar com a sua dor e com a sua vulnerabilidade. Ela pode também usar a realidade suplementar para criar um espaço seguro para expressar suas emoções e para encontrar formas de honrar a memória do seu ente querido. Uma pessoa que está sofrendo de um trauma5 5 No psicodrama, o trauma é entendido como experiências não integradas que influenciam o desenvolvimento e as interações. Em outras abordagens o trauma é visto como energia retida no corpo, que requer métodos que permitam sua liberação e processamento. Na abordagem focada no reprocessamento de memórias, o trauma é tratado como memórias mal processadas, sendo necessário o reprocessamento e a integração saudável dessas memórias. Esses conceitos são complementares. pode usar o conceito de Self trágico para compreender a sua experiência e para encontrar formas de se curar. Ela pode também usar a realidade suplementar para experimentar novos papéis e possibilidades, e para se reconectar com a sua força interior; Uma pessoa que está buscando um sentido para a vida pode usar o conceito de Self trágico para refletir sobre a sua existência e para encontrar formas de viver uma vida mais plena e significativa.

No psicodrama interno, a Realidade Suplementar é uma dimensão criada da experiência humana que vai além da realidade cotidiana a partir da imaginação do protagonista e segue a direção do terapeuta psicodramatista. Esse, atuando como diretor, auxilia o protagonista a criar a cena e os personagens que serão envolvidos na dramatização no imaginário. A Realidade Suplementar processada durante a vivência de um psicodrama interno pode ser dividida em três etapas, similares às etapas do psicodrama conforme J. L. Moreno. Porém não podemos perder de vista que todo o processo do psicodrama interno que está sendo vivenciado já faz parte da segunda etapa do psicodrama (dramatização)6 6 O processo psicodramático envolve três etapas: aquecimento, no qual os participantes são preparados emocionalmente com exercícios para se envolver na atividade; ação ou jogo dramático, que é o núcleo do psicodrama, em que os participantes encenam situações da vida real, assumindo diferentes papéis; e compartilhamento ou feedback, momento de reflexão e discussão das experiências vivenciadas, facilitado pelo diretor do psicodrama, para integrar os aprendizados à vida real. . Assim, vejamos:

  • Criação da cena: o protagonista, com a ajuda do terapeuta psicodramatista, cria a cena que será dramatizada no imaginário para alcançar o objetivo terapêutico com a catarse de integração. Essa cena deve ser realista o suficiente para que o protagonista possa reviver o trauma com clareza, mas também deve ser segura o suficiente para que ele não ultrapasse a sua janela de tolerância. A janela de tolerância, conceito cunhado por Daniel Siegel (2016)Siegel, D. J. (2016). Neurobiologia Interpersonal, um manual integrativo de la mente. Barcelona. Editorial Eleftheria., refere-se à faixa de ativação emocional e fisiológica na qual uma pessoa pode funcionar de forma efetiva e confortável, sem sentir-se sobrecarregada ou desengajada. Fora desta janela, as pessoas podem experimentar hiperativação (sobrecarga, ansiedade, reações exageradas) ou hipoativação (desconexão, apatia, entorpecimento). Essa cena pode ser baseada em um evento real ou imaginário, e pode ser representada no presente, no passado ou no futuro.

  • Dramatização da cena: no imaginário da realidade suplementar o protagonista assume o papel de um ou mais personagens da cena, e dramatiza as ações e os diálogos desses personagens. O psicodramatista pode auxiliar o protagonista a explorar diferentes possibilidades de ação e de relacionamento entre os personagens. Nessa fase, assim como num processo de dramatização normal, as técnicas do psicodrama podem ser utilizadas, a exemplo da inversão de papéis, do duplo, do role playing etc. É nesta fase que em geral as respostas fisiológicas aparecem e as sensopercepções começam a aflorar. Nesse momento, o terapeuta deve estar instrumentalizado para dar continuidade à cena ou deslocar para o rastreamento das sensopercepções corporais, ou propor um exercício de mindfulness ou atenção plena e outras intervenções, principalmente quando essas estiverem com alto nível de ativação rodando próximo da janela de tolerância do cliente.

    Situações não traumáticas carregadas de tensão e estresse, ao serem ativadas com as lembranças das cenas vividas, também fazem aflorar sensopercepções corporais e emoções com maior intensidade porém, muitas vezes, trazendo desconforto. Dessa forma, um direcionador de manejo é garantir um distanciamento para que a cena traumática não fique fixada na mente do cliente por muito tempo.

    (Khouri 2020Khouri, G.S. (2020). Psicodrama interno no tratamento de traumas: direcionadores de manejo. Revista Brasileira de Psicodrama, 26(1), 51–65. Recuperado de https://www.revbraspsicodrama.org.br/rbp/article/view/49
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    , 2022Khouri, G. (2022). Os estados de ego pela experiência psicodramática bipessoal: a externalização de papéis internos (partes). Revista Brasileira de Psicodrama, 30. https://doi.org/10.1590/psicodrama.v30.538
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    ).
  • Processamento da cena: após a dramatização, o protagonista é convidado a refletir sobre a experiência que vivenciou. O terapeuta pode auxiliar o protagonista a identificar os significados da cena, e a elaborar os conteúdos emocionais que foram mobilizados. Como vimos, o psicodrama interno pode ser usado para acessar e processar memórias traumáticas.

A Realidade Suplementar permite que o protagonista reviva o trauma em um ambiente seguro e controlado, onde ele pode enfrentar novamente o trauma de forma mais adaptativa. Ao acessar e processar o trauma de forma segura e controlada, o protagonista pode começar a superar o trauma e a reconstruir sua vida. Aqui estão algumas orientações a serem dadas ao cliente ao experienciar a Realidade Suplementar durante a vivência de um psicodrama interno: a) seja paciente e respeitoso com seus próprios limites; b) não tente se forçar a fazer nada que não esteja pronto para fazer; c) a depender da situação, foque no processo, não no resultado; d) não tenha como objetivo do psicodrama interno apenas resolver o problema, mas queira aprender sobre si mesmo e sobre o seu trauma; e) ao vivenciar, esteja aberto a novas experiências; f) saiba que o psicodrama interno pode ser uma experiência transformadora, mas também pode ser desconfortável; g) esteja preparado para enfrentar emoções difíceis.

Cada terapeuta pode ter seu próprio estilo de manejo ao utilizar técnicas específicas para facilitar a vivência na Realidade Suplementar e o processo de psicodrama interno com seus pacientes.

RELATO DE SESSÃO COM EVIDÊNCIAS DA REALIDADE SUPLEMENTAR

PROCESSANDO LUTO DO PAI

Este trabalho ancora-se na Resolução 510/2016 no que tange os aspectos éticos, uma vez que não serão registradas nem avaliadas pelo sistema CEP/CONEP: pesquisas que tratam de aprofundamento teórico de situações que emergem espontânea e contingencial mente na prática profissional, desde que não revelem dados que possam identificar o sujeito. Encaramos o luto como uma experiência humana profunda que requer elaboração e integração. Segundo autores como Worden (2009)Worden, J. W. (2009). Grief Counseling and Grief Therapy: A Handbook for the Mental Health Practitioner (4th ed.). New York, NY: Springer Publishing Company. https://doi.org/10.1891/9780826101211
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, o luto é um processo de ajustamento emocional e cognitivo após uma perda significativa, no qual o indivíduo aprende a viver com esta nova realidade. Kubler-Ross (1969)Kubler-Ross, E. (1969). On Death and Dying. New York, NY: Macmillan. também contribui significativamente para a compreensão do luto, descrevendo suas fases e a importância de reconhecer e validar cada uma delas no processo terapêutico. Nesse contexto, utilizo técnicas de psicodrama interno para facilitar a expressão e exploração dos sentimentos de Júlia, dentro de um espaço seguro e controlado. A menção à “atenção plena” alude à importância de uma presença consciente e focada no momento atual, um conceito amplamente explorado por autores como Kabat-Zinn (1994)Kabat-Zinn, J. (1994). Wherever You Go, There You Are: Mindfulness Meditation in Everyday Life. New York, NY: Hyperion., que define a atenção plena como a atenção que é mantida de maneira intencional, no momento presente e de forma não julgadora. Essa abordagem ajuda os indivíduos a se conectarem com suas experiências internas de maneira mais profunda e compassiva, o que facilita o processo de luto.

Georges (G): Olá, Júlia. Como você está se sentindo hoje? Júlia (J): Estou um pouco melhor, obrigada. Ainda estou sentindo muita saudade do meu pai, mas estou começando a lidar com a perda. G: Isso é ótimo. É importante permitir-se sentir as emoções que estão surgindo. J: Sim, eu sei. Mas às vezes é difícil. Às vezes, sinto como se estivesse enlouquecendo. G: É normal sentir-se assim. O luto é um processo complexo e pode levar algum tempo para se curar. J: Eu sei, mas eu gostaria de encontrar uma maneira de lidar com isso de uma maneira mais saudável. G: Eu posso te ajudar com isso. Vamos tentar uma técnica chamada psicodrama interno. J: O que é isso? G: É uma técnica que usa a imaginação para ajudar as pessoas a lidar com questões emocionais. No psicodrama interno, você vai imaginar uma cena que representa algo que está causando dificuldades. Você pode assumir o papel de qualquer pessoa que esteja envolvida na cena, incluindo você mesma. J: Parece interessante. G: Vamos começar? J: Sim, vamos. (Georges ajuda Júlia a se concentrar e relaxar, utilizando respiração profunda e atenção plena.) G: Imagine que você está em um lugar onde se sente segura e confortável. J: Estou em uma praia deserta. O sol está se pondo, as ondas estão quebrando na areia, e o vento está soprando suavemente. Estou sozinha, mas me sinto confortável e em paz. (Georges faz uma pausa.) G: Agora, imagine que você vê seu pai caminhando em sua direção. J: Meu pai! Ele está vindo em minha direção! (Georges faz uma pausa.) G: O que você quer dizer a ele? J: Estou pensando em como gostaria de ter sido uma filha melhor. Eu sempre quis te fazer feliz, mas eu sei que nem sempre consegui. (Júlia começa a chorar.) G: Júlia, por que não tentamos uma coisa? Por que você não assume o papel do seu pai e me diz o que ele diria a você? (Inversão de papéis) J: Eu não sei se consigo. G: Eu posso te ajudar. Eu vou ser seu pai. (Georges assume o papel do pai de Júlia.) G (Como o pai de Júlia): Júlia, eu sei que você está se sentindo preocupada. Você acha que não foi uma boa filha. Mas eu quero que você saiba que eu te amo do jeito que você é. Eu sempre estarei orgulhoso de você. (Júlia se surpreende e começa a sorrir.) J: Eu te amo, pai. (Júlia abraça o pai imaginário.) G: Agora imagine que você e seu pai estão sentados na praia, conversando. J: Estamos conversando sobre tudo. Sobre como eu era quando criança, sobre os nossos sonhos, sobre as nossas frustrações. G: Você está se sentindo mais confortável com ele agora? J: Sim, estou. Parece que ele está me ouvindo. G: Diga a ele algo que você sempre quis dizer. J: Papai, eu sinto muito por não ter sido uma filha melhor. Eu sempre quis te fazer feliz, mas eu sei que nem sempre consegui. G: O que ele respondeu? J: Não se preocupe, minha filha. Eu te amo do jeito que você é. J: Papai! G: Como você se sente agora? J: Me sinto aliviada. Finalmente, eu consegui dizer a ele tudo o que eu preciso dizer. G: Como foi essa experiência para você? J: Foi muito útil. Eu me sinto mais próxima do meu pai e me perdoei por algumas coisas que eu fiz. G: É importante lembrar que o luto é um processo. Vai levar algum tempo para você se curar completamente. Mas você está no caminho certo. J: Obrigada, Georges. (A sessão termina.)

PROCESSAMENTO E COMENTÁRIO

A sessão de psicodrama interno com Júlia foi bem-sucedida no sentido de que ela conseguiu expressar suas emoções e sentimentos relacionados à perda de seu pai. A técnica foi útil para isso, pois permitiu que ela criasse uma realidade suplementar na qual pôde se conectar com seu pai de uma maneira segura e controlada. A realidade suplementar criada por Júlia foi rica em detalhes e expressiva. Ela descreveu uma praia deserta, com o sol se pondo, as ondas quebrando na areia, e o vento soprando suavemente. Ela também descreveu seu pai como uma figura calorosa e acolhedora. Essa descrição permitiu que ela revivesse suas memórias de seu pai de uma forma positiva e reconfortante. No processamento do luto, a realidade suplementar ofereceu um ambiente onde ela pode enfrentar e elaborar suas perdas de maneira segura e controlada. Ela processou o luto de seu pai dentro deste espaço ampliado.

A técnica de psicodrama interno tem uma série de aspectos positivos. Ela pode ser uma ferramenta eficaz para o processamento de emoções, o desenvolvimento da autoestima e a resolução de conflitos. Além disso, pode ser usada para explorar diferentes possibilidades e perspectivas. No entanto, a técnica também tem algumas limitações. Uma limitação é que ela requer uma capacidade imaginativa mínima do cliente. Se o cliente não for capaz de criar uma realidade suplementar, a técnica pode não ser eficaz. Outra limitação é que a técnica pode levar a uma ativação intensa das emoções do cliente. Isso pode ser positivo, ao permitir que o cliente expresse emoções que estão reprimidas. No entanto, também pode ser negativo, ao levar o cliente a sair da janela de tolerância.

Na sessão, foram utilizadas duas técnicas do psicodrama clássico: o solilóquio e a inversão de papéis. Como sabemos o solilóquio é uma técnica que permite ao cliente expressar seus pensamentos e sentimentos para si mesmo. Foi usado na sessão para ajudar Júlia a identificar seus sentimentos de culpa em relação ao pai. A inversão de papéis foi usada na sessão para ajudar Júlia a expressar seus sentimentos de culpa ao pai e receber o perdão dele.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo explorou a realidade suplementar no psicodrama interno, evidenciando sua capacidade de oferecer um espaço criativo e seguro para a exploração e confrontação de aspectos profundos da vida e identidade dos indivíduos. A prática clínica e a investigação empírica revelam que essa dimensão suplementar não apenas facilita a expressão criativa, o autoconhecimento e a resolução de conflitos, mas também permite a abordagem terapêutica de traumas e bloqueios emocionais em um ambiente controlado.

Foi demonstrado que o manejo da realidade suplementar, conforme conceituado por J. L. Moreno (2006)Moreno, J. L., & Moreno, Z. (2006). Psicodrama, terapia de ação e princípios da prática. São Paulo. SP. Daimon., proporciona um espaço ampliado para que os participantes vivenciem dimensões além do cotidiano, e assim promovam uma experiência transformadora. As técnicas como solilóquio e inversão de papéis se mostraram eficazes no psicodrama interno ao permitir que os clientes se expressem e explorem diferentes facetas de si mesmos e de suas relações.

Ademais, a interação com o conceito do Self Trágico revela a profundidade da experiência humana acessada por meio da realidade suplementar. Essa abordagem permite tratar de temas como dor, perda e vulnerabilidade de forma transformadora, e oferece novos caminhos para a cura e a integração emocional.

O estudo também aponta para a necessidade de futuras pesquisas que abordem as variações interindividuais na experiência da realidade suplementar, sua eficácia em diferentes contextos clínicos e culturais e a influência das características pessoais nessa experiência. A análise destaca a oportunidade de investigar mais sobre como as narrativas e identidades pessoais se entrelaçam com conceitos como o Self Trágico no contexto psicodramático.

Concluindo, a realidade suplementar se consolida como uma ferramenta terapêutica significativa no psicodrama interno ao promover desenvolvimento pessoal e transformação psicológica. Este artigo contribui para a literatura existente ao sublinhar a relevância da realidade suplementar no psicodrama e delinear direções para pesquisas futuras, a fim de desvendar a complexidade da experiência humana e o potencial transformador do psicodrama na prática clínica.

  • 1
    No contexto do psicodrama, ‘cura’ não se refere ao restabelecimento de um estado anterior de saúde, mas à capacidade de integrar experiências, resolver conflitos internos e alcançar um novo nível de equilíbrio e compreensão pessoal. A realidade suplementar facilita este processo, permitindo uma exploração segura e criativa de aspectos internos e externos da vida do indivíduo.
  • 2
    O efeito Zeigarnik refere-se à tendência das pessoas de lembrar tarefas inacabadas ou interrompidas melhor do que tarefas completas. Esse fenômeno foi identificado pela psicóloga soviética Bluma Zeigarnik nos anos 1920, após observações em um restaurante, onde notou que os garçons pareciam lembrar melhor os pedidos não concluídos do que dos que já haviam sido finalizados.
  • 3
    Ruth Padel é uma poetisa, romancista e autora britânica de não ficção. Ela nasceu em Londres em 1946 e estudou clássicos na Universidade de Oxford. Lecionou grego na Universidade de Oxford e no Birkbeck College mas, em 1984, desistiu da carreira acadêmica para se dedicar à escrita. Padel é uma autora prolífica e influente, que tem feito contribuições significativas para a literatura, a poesia e o estudo da Grécia Antiga.
  • 4
    Ésquilo, Sófocles e Eurípides foram os três grandes dramaturgos da tragédia grega clássica. Eles viveram e escreveram na Atenas do século V a.C., durante o período de ouro da democracia ateniense.
  • 5
    No psicodrama, o trauma é entendido como experiências não integradas que influenciam o desenvolvimento e as interações. Em outras abordagens o trauma é visto como energia retida no corpo, que requer métodos que permitam sua liberação e processamento. Na abordagem focada no reprocessamento de memórias, o trauma é tratado como memórias mal processadas, sendo necessário o reprocessamento e a integração saudável dessas memórias. Esses conceitos são complementares.
  • 6
    O processo psicodramático envolve três etapas: aquecimento, no qual os participantes são preparados emocionalmente com exercícios para se envolver na atividade; ação ou jogo dramático, que é o núcleo do psicodrama, em que os participantes encenam situações da vida real, assumindo diferentes papéis; e compartilhamento ou feedback, momento de reflexão e discussão das experiências vivenciadas, facilitado pelo diretor do psicodrama, para integrar os aprendizados à vida real.

AGRADECIMENTOS

Não se aplica.

  • FINANCIAMENTO

    Não se aplica.

DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

Todos os dados foram gerados/analisados no presente artigo.

REFERÊNCIAS

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Editado por

Editor de seção: Érico Douglas Vieira https://orcid.org/0000-0002-9845-2245

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2024
  • Aceito
    05 Abr 2024
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