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Contribuições do psicodrama no letramento racial no Brasil Contributions of psychodrama to racial literacy in Brazil

Contributions of psychodrama to racial literacy in Brazil

Contribuciones del psicodrama a la alfabetización racial en Brasil

Malaquias, M. C.. 2023. Etnodrama: contribuições do grupo de estudos de psicodrama e relações raciais. Ágora

O livro Etnodrama: contribuições do grupo de estudos de psicodrama e relações raciais, organizado por Maria Célia MalaquiasMalaquias, M. C. (Ed.) (2023). Etnodrama: contribuições do grupo de estudos de psicodrama e relações raciais. Ágora., é uma obra de leitura obrigatória não só para psicólogos, psicodramatistas e educadores, como também para o público em geral, dada a necessidade urgente de se acabar de uma vez por todas com a falta de letramento racial em nosso país. Como o próprio título sugere, o livro foi construído a várias mãos femininas e feministas, que se debruçaram com afinco, sob a batuta de Maria Célia, sobre o aprofundamento da discussão crítica do tema das relações raciais e suas implicações teórico-vivenciais com foco no psicodrama. A criação do grupo foi motivada pela constatação da ausência de espaços em que se pudesse falar sobre as feridas provocadas pelo racismo, como explica Maria Célia. O grupo de estudo liderado pela autora teve início em 2022, vem angariando adeptas desde então e tem revolucionado o fazer psicodramático com sua postura crítica, racializada e contextualizada sócio-historicamente.

O resultado dessa experiência coletiva, como muito bem assinalado no prefácio pela psicodramatista Valéria Brito, é uma verdadeira “ousadia, ou melhor, é um ato espontâneo e criativo”. Os onze capítulos que compõem a obra trazem um leque abrangente de aplicações sobre temas fundamentais de racialidade, interseccionalidade e socionomia. Foram escritos por mulheres que se autodeclararam de diferentes grupos étnico-raciais, se implicam de modo reflexivo e crítico na temática e ilustram os capítulos com casos oriundos da prática profissional, tratados à luz da teoria socionômica.

As referências utilizadas na escrita dos capítulos prestam verdadeiro tributo aos ícones de enorme envergadura intelectual, compostas principalmente por autoras brasileiras negras, proeminentes especialistas na questão racial no Brasil. Dentre elas, destacam-se Sueli Carneiro, Lélia González, Djamila Ribeiro, Conceição Evaristo, Maria Aparecida Silva Bento, Virgínia Bicudo, Neusa Santos Souza, Carolina Maria de Jesus. Além dessas autoras, também são citados outros grandes nomes centrais envolvidos no debate profundo sobre o tema na arena científica internacional tais como Frantz Fanon, bell hooks, Angela Davis, Grada Kilomba, dentre outros. Não resta dúvida de que a obra faz justiça epistêmica e confere centralidade à narrativa negra feminina, usualmente silenciada pelo discurso eurocêntrico, branco e masculino.

O primeiro capítulo, elaborado por Adriana Dellagiustina, Marli de Oliveira e Teresa Cristina Gonçalves, introduz de forma precisa o tema central que perpassa toda a obra: a crucial importância do letramento racial em diversos contextos. Nesse sentido, as autoras exploram a experiência de um grupo de estudo composto por mulheres de diferentes origens étnicas, focalizando especialmente sua aplicação nos campos da saúde e da educação. Ao examinarem as experiências profissionais à luz das questões étnico-raciais cotidianas, as autoras levantam questionamentos pertinentes acerca da sistemática marginalização do conhecimento produzido pelas comunidades negras, destacando a urgência de estabelecer novos espaços de valorização e preservação desses saberes. Elas concluem enfatizando que o grupo de estudos em psicodrama e relações étnico-raciais se configura não apenas como um espaço de aprendizado, mas também como um verdadeiro quilombo contemporâneo, um ponto de partida para ações antirracistas que podem ecoar por todo o Brasil.

No segundo capítulo, a ausência de debates em torno das ideias de Frantz Fanon e sua influência na psiquiatria levou as autoras Evânia Vieira, Luiza de Oliveira e Maria Célia Malaquias a explorar um potencial diálogo entre Fanon e Moreno, reconhecendo ambos como agentes de transformação na clínica da saúde mental. Esses psiquiatras, marcados por ideias libertárias e uma postura de defesa dos marginalizados, enfrentam até hoje certa resistência devido às suas posições contundentes. Ao conceber o sujeito como um ser intrinsecamente social, Moreno e Fanon propõem abordagens que mostram a interconexão entre o processo de adoecimento psíquico e as dinâmicas sociais. Fanon, por exemplo, atribui a origem da loucura à alienação imposta pelo colonialismo, que perpetua as ideologias raciais da modernidade colonial. Por sua vez, Moreno associa a saúde mental à capacidade de desempenhar papéis sociais e cultivar a espontaneidade e a criatividade, aspectos que são corroídos pelo impacto do colonialismo. Dessa forma, as autoras exploram a convergência entre as visões de Fanon e Moreno, ressaltando a importância de considerar suas contribuições no contexto contemporâneo da saúde mental, especialmente no que diz respeito à compreensão dos mecanismos que subjazem ao sofrimento psíquico e à busca por abordagens terapêuticas mais inclusivas e libertadoras.

No terceiro capítulo, Adriane Lobo e Sirlene Pedro abordam a questão da representatividade negra dentro da matriz de identidade moreniana. As autoras examinam a teoria da matriz de identidade com um olhar específico sobre a experiência da pessoa negra, destacando os impactos dos três séculos de escravidão nesse grupo. Elas ressaltam que as múltiplas formas de violência têm suas raízes nos cruéis contextos dos navios negreiros, senzalas e casas-grandes. A população negra, marcada pelo deslocamento forçado, sequestros, violência e anonimato genealógico, foi compelida, apesar de sua resistência e luta, a suportar a opressão brutal da escravidão. Em poucas palavras, o texto ressalta uma recomendação crucial: embora o psicodrama ofereça um vasto repertório de técnicas terapêuticas, é fundamental que profissionais capacitados estejam disponíveis para a pessoa negra, oferecendo uma escuta empática e genuína, reconhecendo sua história e não subestimando sua dor.

No quarto capítulo, são exploradas as complexidades e desafios envolvidos na psicoterapia de casais pertencentes a famílias afrocentradas. Daniela Cardoso da Silva se propõe a examinar esses fenômenos sob a perspectiva das pessoas negras, colocando-as no centro das discussões e reconhecendo sua própria capacidade de agência e agenda. Essa abordagem desafia o pensamento eurocêntrico dominante, que historicamente tem tentado subjugar os africanos à marginalização. Um dos principais desafios enfrentados pelo terapeuta que trabalha com casais negros é lidar com a complexidade da consciência negra subjetivada sob uma ótica branca. Essa dinâmica revela a importância de se estabelecer relacionamentos afrocentrados, nos quais os indivíduos negros têm um entendimento profundo do letramento racial e estão conscientes de sua posição dentro de uma sociedade estruturalmente marcada pelo racismo.

No quinto capítulo, intitulado “A construção da intersubjetividade sob a égide do racismo”, de autoria de Elenice Gomes e Rosana Rebouças, a discussão é aprofundada com base em suas experiências pessoais e profissionais. O objetivo das autoras é investigar como as subjetividades são moldadas nas pessoas que enfrentam as realidades do racismo estrutural. Segundo as autoras, o pacto da branquitude impede que indivíduos brancos reconheçam a profundidade das desigualdades, preconceitos e violações de direitos que afetam as pessoas não brancas. As autoras destacam a importância do autoconhecimento como um passo fundamental para a transformação de atitudes e incentivam as pessoas a se engajarem na ressignificação dos laços afetivos e amorosos entre todos os seres humanos, reconhecendo a igualdade intrínseca de todos, independentemente de raça ou etnia. Em síntese, concluem que o racismo atinge a todos e é também um problema de todos.

No sexto capítulo, Luiza Guimarães aborda as percepções da branquitude na prática clínica e oferece uma perspectiva privilegiada como psicóloga branca. A autora demonstra a lacuna na inclusão de teorias com enfoque racial na bibliografia básica dos currículos dos cursos de psicologia, observando que, quando muito, o tema da desigualdade racial é relegado a um segundo plano. Além disso, ela ressalta a tendência histórica da psicologia em interpretar o sofrimento humano como algo meramente individual, como uma falha pessoal, ignorando as influências do contexto sócio-histórico-cultural na vida dos pacientes. Ao contextualizar a história violenta da colonização no Brasil, com a invasão europeia e a instituição da escravidão, a autora expõe os impactos significativos na formação da identidade tanto da negritude quanto da branquitude, o que nos deve inspirar a revisitar constantemente nossas posturas diante do nefasto racismo estrutural. A autora conclui enfatizando o aspecto ético fundamental da prática psicológica, destacando o compromisso profissional de se adotar uma postura crítica e de oposição à violência e à manutenção de sistemas opressores.

No sétimo capítulo, Caroline Bettio, Dayse Bispo Silva e Maria Luiza Barbosa discutem as consequências da falta de letramento racial na promoção de cuidados a pessoas negras. As autoras compartilham, de forma franca e corajosa, a experiência de uma sessão psicodramática aberta, na qual testemunharam a presença de dinâmicas de racismo estrutural e pessoal na dramatização, o que gerou uma série de angústias e reflexões. Em resumo, a sessão revelou diversas vozes de personagens que defendiam a ideia da democracia racial, culpabilizando o protagonista negro por suas próprias dores e solidão. Infelizmente, essa situação não é uma exceção e é frequentemente repetida em diversos espaços, incluindo os principais fóruns do psicodrama brasileiro. O potencial iatrogênico de sessões psicodramáticas conduzidas por profissionais analfabetos raciais pode resultar em danos significativos e perpetuar ainda mais o racismo.

No oitavo capítulo, Maristela Felipe conduz uma reflexão sobre o papel da mulher negra no contexto profissional, com base em um etnodrama remoto. A autora destaca a eficácia da abordagem psicodramática na análise de questões raciais e de gênero, graças às suas técnicas refinadas que permitem uma compreensão mais profunda das dinâmicas grupais e das inter-relações humanas. Ela ressalta o fato de que investigar a experiência da mulher negra no mundo do trabalho é confrontar um problema de epistemicídio acadêmico, que permanece velado. A autora salienta que a mulher negra não é adjetivada, mas categorizada e, frequentemente, invisibilizada. Também denuncia que a escassez de autoras e literaturas negras na perspectiva psicodramática não é mera coincidência, mas reflete uma lacuna sistemática que precisa ser abordada.

No nono capítulo, intitulado “Mulher guerreira e o esquema da supermulher: impactos do estresse social na saúde mental”, Evânia Vieira e Maria Célia Malaquias compartilham suas preocupações sobre os estereótipos atribuídos à mulher negra como sendo forte e guerreira, e o impacto dessas imagens na saúde mental dessas mulheres. As autoras observaram que, embora a representação de força possa ter efeitos protetores, a busca incessante pelo sucesso e a responsabilidade de ajudar os outros podem ter consequências prejudiciais. Elas concluem que o autocuidado radical pode ser uma estratégia essencial para enfrentar esses desafios de maneira sustentável.

No décimo capítulo, inspirada em um filme, Melissa Vidal aborda o racismo e o sofrimento decorrentes do deslocamento forçado. A autora destaca a significativa prevalência do preconceito étnico-racial entre a população negra refugiada, tanto na Europa quanto na Américas, o que transforma a busca por segurança em uma experiência terrível. A partir do filme britânico intitulado “O que ficou para trás”, a autora analisa de forma reflexiva as dinâmicas de interação inter-racial, utilizando o psicodrama como ferramenta de análise. Melissa conclui que a falta de reconhecimento da corresponsabilidade histórica na opressão e no apagamento étnico-racial contribui para a perpetuação dos privilégios das pessoas brancas.

O décimo primeiro capítulo fecha a obra com uma discussão interdisciplinar sobre envelhecimento, negritude e psicodrama, liderada pelas autoras Silvana Gondim e Soraia César. Elas contextualizam o tema considerando a pirâmide populacional, destacam o notável crescimento da população idosa e enfocam a realidade da população negra. As autoras ressaltam que, em relação às taxas de natalidade e mortalidade, os óbitos neonatais entre crianças negras são mais frequentes do que entre crianças brancas, assim como acontece com as parturientes negras em comparação com as brancas. Além disso, observam que 70% dos homicídios entre a população jovem são de vítimas negras. Enquanto a expectativa de vida para a pessoa branca no Brasil é de 76 anos, para a população negra é de 67,5 anos. As autoras realçam que é fundamental considerar a violência histórica enraizada ao longo do tempo, que visa de forma velada apagar e desumanizar a população negra, atuando como uma forma de limpeza social.

Indiscutivelmente, Maria Célia Malaquias desponta como uma das principais autoridades em psicodrama e relações raciais no Brasil, juntamente com o pioneiro brasileiro no tema, Alberto Guerreiro Ramos. Esta resenha almeja despertar no leitor o interesse pela leitura completa da obra, dada a sua extrema relevância na promoção do letramento racial e no combate ao racismo.

AGRADECIMENTOS

Não se aplica.

  • FINANCIAMENTO

    Não se aplica.

DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

Não se aplica.

REFERÊNCIAS

  • Malaquias, M. C. (Ed.) (2023). Etnodrama: contribuições do grupo de estudos de psicodrama e relações raciais Ágora.

Editado por

Editora de seção: Oriana Hadler https://orcid.org/0000-0001-9736-2224

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2024
  • Aceito
    17 Mar 2024
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