RESUMO
O estudo objetivou compreender as contribuições do psicodrama bipessoal na identificação e ação reparatória de cenas nucleares de universitários com embotamento da espontaneidade no ambiente acadêmico. Foi realizada uma pesquisa-ação em formato de psicodrama bipessoal on-line com dois estudantes universitários, acessados por meio da técnica da bola de neve. Os atendimentos seguiram as etapas de sessão psicodramática, suas técnicas e ferramentas. A análise das sessões foi realizada com base nos pressupostos teóricos da socionomia. Identificou-se que as cenas nucleares relacionadas à ansiedade dos protagonistas estavam associadas à infância. Os status nascendis foram trabalhados em ação reparatória com a criança interna ferida dos protagonistas, de modo a auxiliar no desenvolvimento da espontaneidade.
PALAVRAS-CHAVE
Psicodrama; Ansiedade; Estudantes;
On-line
ABSTRACT
The study aimed to understand the contributions of bipersonal psychodrama in the identification and reparatory action of core scenes of university students with blunted spontaneity in the academic environment. An action research was carried out in an on-line bipersonal psychodrama format with two college students, accessed through the snowball technique. The sessions followed the steps of a psychodramatic session, its techniques, and tools. The analysis of the sessions was carried out based on the theoretical assumptions of socionomics. It was identified that the core scenes related to the protagonists’ anxiety were associated to childhood. The status nascendis were worked in reparatory action with the wounded inner child of the protagonists, in order to help the development of spontaneity.
KEYWORDS
Psychodrama; Anxiety; Students; Online
RESUMEN
El estudio pretendía comprender las contribuciones del psicodrama bipersonal en la identificación y acción reparatoria de escenas nucleares de estudiantes universitarios con embotamiento de la espontaneidad en el entorno académico. Se realizó una investigación-acción en formato de psicodrama bipersonal online con 2 estudiantes universitarios, a los que se accedió mediante la técnica de bola de nieve. Las sesiones siguieron las etapas de la sesión psicodramática, sus técnicas y herramientas. El análisis de las sesiones se realizó desde los supuestos teóricos de la Socionomía. Se identificó que las escenas centrales relacionadas con la ansiedad de los protagonistas estaban asociadas a la infancia. Los status nascendis se trabajaron en acción reparadora con el niño interior herido de los protagonistas, para ayudar al desarrollo de la espontaneidad.
PALABRAS CLAVE
Psicodrama; Ansiedad; Estudiantes; En línea
INTRODUÇÃO
O mundo de hoje apresenta novidades todos os dias e vive em rápida mudança, e o ser humano tenta acompanhar esse ritmo acelerado. Diante dessa aceleração, sente os impactos diretos da constante montanha-russa de novidades, sendo essas pressões da sociedade atual uma das possíveis influências no desenvolvimento da ansiedade (Gama et al., 2008Gama, M. M. A., Moura, G. S., Araújo, R. F., & Teixeira-Silva, F. (2008). Ansiedade-traço em estudantes universitários de Aracajú (SE). Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, 30(1), 19–24. https://doi.org/10.1590/S0101-81082008000100007
https://doi.org/10.1590/S0101-8108200800...
).
O contexto universitário também pode ser uma das influências na ansiedade vivenciada, pois se trata de um espaço em que a produtividade é constantemente estimulada, senão cobrada, acarretando altos níveis de estresse entre os sujeitos inseridos nesse meio. Ainda há ansiedade comum entre os estudantes por causa das mudanças fisiológicas, sociológicas e neuropsicológicas decorrentes da transição da adolescência à fase de adultos jovens, faixa etária em que a maioria das pessoas ingressa no ensino superior. Entre os fatores do espaço acadêmico que intensificam o fator ansiogênico, temos a grade curricular, os horários de aula e o número de demandas, bem como a interação desses fatores com os fatores individuais, a forma como se vivenciam as situações e os valores positivos ou negativos atribuídos a cada um desses momentos (Ferreira et al., 2009Ferreira, C. L., Almondes, K. M., Braga, L. P., Mata, A. N. S., Lemos, C. A., & Maia, E. M. C. (2009). Universidade, contexto ansiogênico? Avaliação de traço e estado de ansiedade em estudantes do ciclo básico. Ciência & Saúde Coletiva, 14(3), 973–981. https://doi.org/10.1590/S1413-81232009000300033
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200900...
).
Na socionomia, conjunto de teorias e técnicas morenianas, incluindo o psicodrama, a ansiedade pode ser compreendida como o oposto da espontaneidade, conceito essencial para a teoria (Bustos, 2006Bustos, D. M. (2006). Perigo... Amor à Vista! Drama e Psicodrama de Casais. São Paulo (SP). Aleph.). Tendo como base o fato de que Moreno (2008)Moreno, J. L. (2008). Quem sobreviverá? Fundamentos da sociometria, da psicoterapia de grupo e do sociodrama. São Paulo (SP). Daimon. concebe a espontaneidade como o agir adequado ao contexto e que respeita o EU, que opera no presente, no aqui e agora, as psicopatologias devem-se ao desenvolvimento insuficiente da espontaneidade (Silva Filho, 2015Silva Filho, L. A. (2015). Doença mental, um tratamento possível: psicoterapia de grupo e psicodrama. Ágora.). Além disso, considerando que uma pessoa ansiosa tende a se preocupar com o futuro e o passado, é possível associar que a ansiedade corresponde ao embotamento da espontaneidade (Vitali & Castro, 2021Vitali, M. M. & Castro, A. (2021). A pluralidade da ansiedade de universitários: contribuições do psicodrama bipessoal on-line. In G. P. Vidal & M. M. Vitali (Eds.). O drama na tela: trajetórias do psicodrama on-line (pp. 79-108). Curitiba (PR). Appris.). Moreno (2008, p. 55)Moreno, J. L. (2008). Quem sobreviverá? Fundamentos da sociometria, da psicoterapia de grupo e do sociodrama. São Paulo (SP). Daimon. traz que “a ansiedade resulta na ‘perda’ da espontaneidade”. No psicodrama, foca-se nos aspectos saudáveis dos indivíduos, caracterizados pela capacidade de estimular a espontaneidade de forma recíproca em suas relações.
Trabalhar com queixas de ansiedade no psicodrama é lidar com um bloqueio na espontaneidade do indivíduo, ou seja, um embotamento na espontaneidade. Segundo Moreno (2008)Moreno, J. L. (2008). Quem sobreviverá? Fundamentos da sociometria, da psicoterapia de grupo e do sociodrama. São Paulo (SP). Daimon., cabe ao terapeuta “ensinar” o paciente a ser mais espontâneo. Conforme o indivíduo se desenvolve, ocorre o adestramento da espontaneidade. Ou seja, o contato com o processo de aprendizagem formal e informal em diferentes espaços possibilita acessar (e desempenhar) conteúdos esperados em determinado papel, por exemplo, o de estudante (Moreno, 2014Moreno, J. L. (2014). Psicodrama (13ª ed.). São Paulo (SP). Cultrix.). É possível refletir que a aceitação de conteúdos externos, sem considerar o sujeito, pode bloquear a vida criativa, seja por familiares, seja pelo ambiente escolar. O autor também evidencia que a relação entre ansiedade e espontaneidade causa um desempenho de papéis sociais fraco e desproporcional à realidade. Nesse contexto, concebem-se a importância e a emergência de se trabalhar o embotamento da espontaneidade no ambiente acadêmico, em razão das características desse espaço e dos dados alarmantes de saúde mental (Cruz et al., 2020Cruz, M. C. N. L., Gonçalves, F. T. D., Melo, K. C., Soares, A. N., Silva, W. C., Silva, C. O., Mesquita, Z. A., Araújo, B. F., Costa, E. M., Nascimento Neto, A. H., Oliveira, M. C. S., Rodrigues, R. P. D., Chagas, A. F., & Ibiapina, C. C. (2020). Ansiedade em universitários iniciantes de cursos da área da saúde. Brazilian Journal of Health Review, 3(5), 14644–14662. https://doi.org/10.34119/bjhrv3n5-259
https://doi.org/10.34119/bjhrv3n5-259...
; Jardim et al., 2020Jardim, M. G. L., Castro, T. S., & Ferreira-Rodrigues, C. F. (2020). Sintomatologia Depressiva, Estresse e Ansiedade em Universitários. Psico-USF, 25(4), 645–657. https://doi.org/10.1590/1413/82712020250405
https://doi.org/10.1590/1413/82712020250...
; Maia & Dias, 2020Maia, B. R., & Dias, P. C. (2020). Ansiedade, depressão e estresse em estudantes universitários: o impacto da COVID-19. Estudos em Psicologia, 37, e200067. https://doi.org/10.1590/1982-0275202037e200067
https://doi.org/10.1590/1982-0275202037e...
).
O psicodrama bipessoal é uma das formas de trabalho dos psicodramatistas e uma das ferramentas possíveis para se trabalhar com universitários que sofrem de ansiedade, por causa dos seus resultados e da possibilidade de olhar diretamente para o desenvolvimento emocional do sujeito (Cukier, 1992Cukier, R. (1992). Psicodrama bipessoal: sua técnica, seu terapeuta e seu paciente. São Paulo (SP). Ágora.).
No que se refere à ansiedade, considerando a visão do psicodrama bipessoal como o embotamento da espontaneidade, é possível supor que as dificuldades enfrentadas pelos universitários estejam associadas a experiências de adestramento da espontaneidade. Essas experiências podem ser chamadas de cenas nucleares, que são as cenas iniciais das dificuldades que o protagonista aborda como queixa, ou seja, o início da cristalização de comportamentos que se repetem em suas experiências de vida e prejudicam sua espontaneidade (Cukier, 1998Cukier, R. (1998). Sobrevivência emocional: as dores da infância revividas no drama adulto. São Paulo (SP). Ágora.). Portanto, o psicodrama bipessoal possibilita atuar com a ação reparatória na cena nuclear e trazer contribuições significativas para a vida desses universitários em sofrimento e, ainda, para o desenvolvimento do psicodrama como ciência.
Rosa Cukier (1998)Cukier, R. (1998). Sobrevivência emocional: as dores da infância revividas no drama adulto. São Paulo (SP). Ágora. aborda que muitos problemas dos adultos que procuram ajuda na psicoterapia mostram suas raízes na infância, principalmente em uma família disfuncional. A criança percebe que o adulto é injusto com ela e sente raiva, porém não há nada que pode fazer, a não ser se submeter, gerando sentimentos de vergonha, humilhação e inferioridade que permanecem ao longo da vida, apesar de tentar esquecê-los. A autora pontua que as cenas regressivas permitem trabalhar a cena nuclear, a cena de origem das dificuldades que se repetem e embotam a espontaneidade. Portanto, mediante a ação reparatória, lida-se com essa situação inicial a fim de possibilitar um agir espontâneo no aqui e no agora.
No que se refere à cena nuclear, Perazzo (1999)Perazzo, S. (1999). Fragmentos de um olhar psicodramático. São Paulo (SP). Ágora. afirma que, para Moreno, ela está associada a um conjunto composto de matriz, locus e status nascendi. Para Bustos (2006)Bustos, D. M. (2006). Perigo... Amor à Vista! Drama e Psicodrama de Casais. São Paulo (SP). Aleph., o locus são as circunstâncias que desencadearam o conflito. Portanto, investiga-se o local em que o conflito ocorreu e os fatores associados à demanda. Já matriz são as respostas do sujeito a essas circunstâncias, que acabam se cristalizando para ser reutilizadas em outras situações parecidas e em outros papéis; é necessário explorar a resposta do sujeito à situação e aos estímulos existentes no momento. Por fim, o status nascendi é o modo relacional registrado por meio da cena nuclear vivenciada, é o que sofre perturbações e influencia no aparecimento dos sintomas e das transferências; onde explora-se o momento do surgimento da resposta. Essa tríade relaciona-se à distorção transferencial de vínculos que caracteriza um movimento existencial do sujeito, ou seja, uma tendência de repetir determinados modelos ou padrões ao longo da vida do indivíduo (Perazzo, 1994Perazzo, S. (1994). Ainda e sempre psicodrama. São Paulo (SP). Ágora.).
Nesse sentido, com as diversas possibilidades de movimentos e articulações, o indivíduo só consegue apreender as facetas que se apresentam em determinados contextos e situações, juntamente com registros passados e perspectivas de vinculação, que podem criar um status nascendi transferencial. Todavia, o locus não permanece imutável, considerando as circunstâncias em que ocorre um movimento relacional, não apenas um conflito. Logo, a ação dramática modifica esse locus por meio da realidade suplementar, e, então, modificam-se as respostas (Perazzo, 1999Perazzo, S. (1999). Fragmentos de um olhar psicodramático. São Paulo (SP). Ágora.).
Essas novas respostas podem ser entendidas como um novo status nascendi relacional, que advém da mesma matriz, também configurada por um vínculo atual ou residual, que está no locus que foi modificado pela “força imaginativa e metafórica da realidade suplementar” (Perazzo, 1999Perazzo, S. (1999). Fragmentos de um olhar psicodramático. São Paulo (SP). Ágora., p. 203). Dessa maneira, é esse novo status nascendi que “imprime” uma nova forma de ser e vivenciar os vínculos, como uma libertação das conservas do indivíduo (Perazzo, 1999Perazzo, S. (1999). Fragmentos de um olhar psicodramático. São Paulo (SP). Ágora.).
Segundo Perazzo (1994)Perazzo, S. (1994). Ainda e sempre psicodrama. São Paulo (SP). Ágora., atuar com a ação reparatória é trilhar o caminho de elos transferenciais por meio dos movimentos existenciais que se repetem no contexto social e no contexto dramático em uma sessão. Nery (2014)Nery, M. P. (2014). Vínculo e afetividade: caminho das relações humanas (3ª ed.). São Paulo (SP). Ágora. utiliza o termo “lógica afetiva de conduta” para nomear esse padrão de comportamento transferencial que se inicia em uma cena nuclear e se torna uma verdade usada como estratégia de sobrevivência em diversas situações. A ação reparatória ocorre a fim de reparar essa lógica.
Diante dessa conjuntura teórica, o presente estudo teve como objetivo compreender as contribuições do psicodrama bipessoal na identificação e ação reparatória de cenas nucleares de universitários com embotamento da espontaneidade no ambiente acadêmico.
MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa com delineamento qualitativo, em formato de relato de experiência e pesquisa-ação, pois o pesquisador é ativo no processo de investigação (Yin, 2016Yin, R. K. (2016). Pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre (RS). Penso.). Este estudo possui foco explicativo, pois busca encontrar relação entre dois fenômenos (Minayo, 2008Minayo, M. C. S. (2008). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde (11ª ed.). São Paulo (SP). Hucitec.) o embotamento da espontaneidade de acadêmicos e as cenas nucleares.
Os participantes desta investigação foram dois estudantes universitários que estavam em sofrimento e com embotamento da espontaneidade no ambiente acadêmico, conforme autorrelato evidenciado na triagem. A amostra foi não probabilística e intencional, e os participantes foram acessados por meio da técnica metodológica da bola de neve (snowball). Essa técnica consiste em identificar possíveis participantes por meio do círculo de relacionamentos da pesquisadora que se encaixem nos critérios de inclusão e exclusão do estudo (Becker, 1993Becker, H. S. (1993). Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo (SP). Hucitec.).
Os critérios de inclusão foram: estar regularmente matriculado em um curso de ensino superior; apresentar sofrimento no ambiente acadêmico; não possuir vínculo próximo com a pesquisadora; e aceitar participar de quatro sessões de psicodrama bipessoal. Já os critérios de exclusão foram: não estar matriculado em um curso de ensino superior ou estar com a matrícula trancada; não considerar estar em sofrimento por causa do ambiente acadêmico; e ter vínculo próximo à pesquisadora, como ser amigo próximo ou familiar.
Os dois participantes da pesquisa foram, portanto, dois estudantes do quinto semestre do curso de Psicologia. O primeiro, um homem de 34 anos, optou por não utilizar nome fictício, mas a fim de garantir a questão ética do anonimato será nomeado Petróleo. Ele já teve contato com o psicodrama em sala de aula, por teoria e vivências, porém nunca realizou psicoterapias com essa abordagem. A segunda participante, com o nome fictício escolhido por ela mesma, Águia, de 38 anos e do gênero feminino, apenas teve contato com o psicodrama em sala de aula. A escolha do nome ocorreu após o fim das sessões, e a participante optou por esse nome em razão da imagem visualizada sobre o processo psicoterapêutico.
Esta pesquisa possui o foco psicoterápico em formato de psicodrama bipessoal breve, por trabalhar um tema bem delimitado em um espaço definido de tempo (Ferreira-Santos, 1997Ferreira-Santos, E. (1997). Psicoterapia breve: abordagem sistematizada de situações de crise. São Paulo (SP). Ágora.). As quatro sessões de psicodrama bipessoal foram realizadas em formato de psicodrama clínico on-line, por terem ocorrido na pandemia de Covid-19. As sessões foram individuais, semanais e tiveram duração média de 50 minutos. Cada sessão seguiu as etapas de uma sessão psicodramática, com aquecimento, dramatização e compartilhamento. Por conta da amplitude de dados coletados, este artigo possui como objetivo aprofundar a análise da terceira sessão, que teve como alvo o trabalho com ação reparatória em uma cena nuclear da queixa de ansiedade.
Os encontros foram gravados e posteriormente transcritos em dois corpura, um para cada participante do estudo. A análise das sessões foi realizada com base nos preceitos epistemológicos e teóricos da socionomia, de Jacob Levy Moreno e pós-morenianos. Assim, seguiu conforme as etapas de sessão, ferramentas, contextos, instrumentos e técnicas explicitados por Rodrigues (2007)Rodrigues, R. (2007). Quadros de referência para intervenções grupais: psico-sociodramáticas. DPSedes, 1-16. Recuperado de http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicodrama/Quadros_referencia_Intervencoes_Grupais.pdf
http://www.sedes.org.br/Departamentos/Ps...
e demais conceitos e definições do referencial teórico psicodramático, como teoria da matriz de identidade, teoria de papéis e ação reparatória.
A utilização dos dados obtidos com as sessões de psicodrama foi condicionada à autorização concedida verbalmente por meio de uma gravação em áudio e é igualmente válida conforme a legislação do Conselho Nacional de Saúde para pesquisas com seres humanos, na Resolução nº 510/16. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi disponibilizado em forma digital ao participante. Ademais, a pesquisa foi submetida ao conselho do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos e aprovada sob o parecer nº 3.526.523.
RESULTADOS
Caso 1: A busca por petróleo amor
O aquecimento inespecífico da sessão ocorreu com o relato sobre a semana de Petróleo no trabalho e na faculdade. Por meio de duplos e espelhos, a diretora foi investigando a atual condição do protagonista e aprofundou-se especificamente nas questões da faculdade. Duplo e espelho são consideradas técnicas clássicas do psicodrama que possibilitam ao paciente o reconhecimento do EU.
Petróleo relatou que, por conta do trabalho, tem pouco tempo para ler os materiais. Aprende mais sobre pressão, esperando um ou dois dias antes de ter de entregar um trabalho ou realizar uma prova para estudar. Contou também que a maior angústia na faculdade se refere ao fato de achar que não conseguirá fazer as atividades: “Uma coisa que eu não vou dar conta, aí quando eu pego pra fazer eu fico encascado, porque é uma coisa tão fácil, que eu poderia ter feito na semana passada”.
Por um duplo, o protagonista iniciou um relato de que era muito curioso quando criança, e isso fazia com que não seguisse todas as regras da família. A diretora interrompeu-o, pois o protagonista tende a ser muito racional, e começou um aquecimento para entrar na cena e trabalhar com a cena regressiva, em formato aberto1 1 Psicodrama em formato aberto também pode ser definido como psicodrama com montagem de cena, como indicado por Cukier (2018). A autora distingue o trabalho com cena aberta do trabalho realizado internamente, com psicodrama interno, por exemplo, e indica que essas duas modalidades de trabalho com cenas exigem aquecimentos diferentes, específicos para cada contexto. . Com base no roteiro de entrevista com a cena infantil de Cukier (2018)Cukier, R. (2018). Vida e clínica de uma psicoterapeuta. São Paulo (SP). Ágora., a cena foi explorada a fim de investigar as defesas infantis que podem estar relacionadas ao movimento existencial do protagonista e sua atual queixa de ansiedade.
Petróleo contou que a criança sabia que iria apanhar por conta de sua curiosidade, e seguindo o sentimento que essa cena despertou, a fim de permanecer no percurso transferencial, chegamos a uma nova cena. Tratava-se de uma cena de quando tinha 3 anos de idade e, para explorá-la a fim de identificar o elo transferencial e sua ligação com o movimento existencial do protagonista, a diretora questionou Petróleo sobre o que estava se passando com a criança. Petróleo disse que podia parecer estranho, mas que se recordava de sempre estar cavando o chão em busca de petróleo, pois sabia que valia dinheiro.
O protagonista continuou relatando que se lembrava dessa busca por petróleo como uma forma de melhorar as condições da família e que se tratava de uma tentativa de ser aceito por ela. A diretora questionou por que essa criança precisava dessa aceitação, buscando compreender o que Cukier (2018)Cukier, R. (2018). Vida e clínica de uma psicoterapeuta. São Paulo (SP). Ágora. chama de compromissos ou promessas de vingança para resgatar a dignidade perdida, que influenciam na cristalização de defesas infantis e acabam por embotar a espontaneidade.
Petróleo contou que foi muito desprezado pela família, pois o pai não queria filhos e a mãe acabou afastando-se destes por conta da rejeição do companheiro. Ele relatou ainda que teve sua primeira aceitação da mãe aos 26 anos de idade. Identificou-se que essa criança buscava a aceitação e o reconhecimento da mãe nessa época e que fez um compromisso de que “quando eu crescer, eu vou ser melhor em tudo que faço”. Ao explorar essa frase, o protagonista respondeu que ficava repetindo a palavra “ajudar”, especificamente ajudar outras pessoas.
Nesse momento, compreende-se a conduta infantil cristalizada de uma criança que sofreu muita ausência durante a infância, uma lógica afetiva de conduta que afeta sua espontaneidade na medida em que sua criança interna ferida instiga o indivíduo a agir de forma a ser melhor em tudo o que faz (Nery, 2014Nery, M. P. (2014). Vínculo e afetividade: caminho das relações humanas (3ª ed.). São Paulo (SP). Ágora.). Por isso, quando algo sai de seu controle, é tão difícil, pois é complicado ser o melhor em algo que você ainda não conhece (o aspecto do controle foi trabalhado na sessão anterior). Isso está ligado também à necessidade de sempre ajudar os outros, identificada desde a primeira sessão, pela lógica afetiva de conduta de que precisa ajudar para ser amado, pois não pode dar trabalho aos demais.
A criança interna do protagonista foi concretizada em uma minialmofada. Petróleo escolheu rosa escuro como a cor da almofada entre as opções, e a única almofada dessa cor tinha o formato de um coração. A diretora manteve a almofada à vista, segurando-a ao seu lado para que ficasse o tempo todo visível a Petróleo. A dramatização, a partir desse momento, tem a função de explorar a cena nuclear do protagonista e elaborar as conservas dessa criança, a fim de atuar com a ação reparatória no movimento existencial cristalizado nesse período da infância. Então a diretora questionou: “O que fez essa criança querer ser a melhor em tudo?”. O protagonista respondeu: “Terem feito ela pensar que ela era um erro foi o que fez ela querer ser melhor em tudo”.
A diretora então solicitou a tomada de papel, que foi marcada pela retirada da minialmofada do campo de visão do protagonista enquanto ele estivesse no papel de sua criança e pelo retorno da almofada para concretizar a criança e para que Petróleo voltasse ao seu papel, uma adaptação da técnica ao contexto on-line. Na entrevista no papel “a criança” foi questionada sobre como ela identifica que foi um erro na vida das pessoas e investigamos a lógica afetiva de conduta. A partir disso, a diretora realizou um duplo: “Se eu for o melhor em tudo, ninguém vai me fazer sofrer, porque eu vou ser muito bom”, com o que o protagonista concordou. A diretora assumiu o papel da criança e fez um espelho do que foi dito, ao que Petróleo disse que sente orgulho do pequeno que foi, pois ele foi muito forte passando por tudo isso, mas reconhece que pagou um preço alto para uma criança.
O protagonista reconheceu que é quem é hoje por conta dessa criança e que sente muito orgulho por isso, mas nesse momento se percebeu a necessidade de negociar com essa criança a conduta cristalizada, a fim de realizar uma ação reparatória nessa cena nuclear que até hoje guia as ações de Petróleo e provocam ansiedade. Após algumas inversões de papel, Petróleo no papel da criança reconhece que fez o que pôde e que entende que é necessário seguir um caminho diferente, pois ser o melhor em tudo o que faz não tem o mesmo significado que tinha antes.
É possível identificar que a negociação com a criança interna foi bem-sucedida, pois, após a ação reparatória de reconhecer que quando criança fez o que estava ao seu alcance, negociar uma lógica de conduta que já não se encaixava em sua vida e se resolver com sua criança interna, se retornou às cenas que foram os elos transferenciais para se chegar à cena nuclear e a voltar para o aqui e o agora. A sessão foi finalizada, e poderia ter sido realizado o teste de espontaneidade, levando o protagonista à cena ansiogênica atual para avaliar se a cena regressiva desbloqueou a espontaneidade, no entanto a sessão já havia ultrapassado o tempo-limite.
Caso 2: O medo de errar ser julgada
A sessão iniciou-se com a protagonista relatando que conteúdos da última sessão emergiram durante a semana. Na última sessão, buscou-se investigar as experiências escolares e ansiogênicas da protagonista a fim de investigar a possível lógica afetiva de conduta. Águia relatou cenas de sua infância sobre rejeições e bullying que vivenciou na época da escola, e a diretora usou esse conteúdo para realizar o elo transferencial entre a queixa atual de ansiedade e o sofrimento infantil ligado à sua criança interna ferida.
O objetivo da sessão foi realizar a ação reparatória na cena nuclear que deu início à sua conduta cristalizada, que começou com uma fantasia dirigida e com a diretora atuando de forma acolhedora, pois já havia percebido nas sessões anteriores a necessidade de Águia de apoio afetivo. A diretora então questionou: “Quando foi a primeira vez que eu me senti assim?”. Foi solicitado que Águia visualizasse uma porta e, ao atravessá-la, estaríamos nessa cena, que a protagonista deveria descrever. A protagonista então relatou que estava dentro de uma sala de aula, aos 9 ou 10 anos de idade. Após testar o aquecimento da protagonista com algumas perguntas, foi orientada que, ao abrir os olhos, estivesse nessa cena. A protagonista escolheu a cor de uma minialmofada para concretizar Águia na cena, e a cor escolhida foi o rosa claro. A diretora perguntou o que estava acontecendo nessa sala de aula de modo a explorar a cena, e a protagonista contou: “Esse rosa me faz lembrar que na época eu ganhei um tênis rosa... Quando eu cheguei pela primeira vez na escola com esse tênis, eu não sei o que esse tênis tinha de tão engraçado, que riam desse tênis. E até hoje esse tênis rosa vem na minha mente”.
Foi realizada a tomada de entrevista no papel da protagonista com Águia na cena, que não teve como objetivo resolver nenhum conflito; a cena foi utilizada como forma de explorar a cena infantil em que se sentiu rejeitada, o sentimento para ser usado como elo transferencial e compreender a formação de sua lógica afetiva de conduta. Em uma tentativa de compreender o que a protagonista precisa, para conhecer seu movimento existencial, a diretora questionou: “E o que tu gostarias nesse momento? Do que tu precisas agora?”, contudo a protagonista no papel da criança respondeu: “Preciso que as pessoas parem de rir, de tirar sarro, não sei por que eles fazem isso”.
Como Águia deu uma resposta que exige que as outras pessoas mudem de comportamento, a diretora percebeu que a cena estava seguindo um rumo em que a protagonista se amargurava pela situação enfrentada na época, em vez de seguir para um percurso transferencial. Portanto, a diretora foi por outra direção, perguntando em que outra situação a protagonista já tinha se sentido dessa forma. A protagonista lembrou-se de outra cena escolar em que uma professora entendeu mal o que disse e a criança foi enviada para a direção. Após explorar a cena, a diretora fez um duplo: “Essa criança foi muito mal interpretada em várias situações, com tênis, com aparência, com as boas intenções”.
A diretora percebeu a necessidade de levar essa criança para uma situação de força antes de dar continuidade ao percurso e agir sobre a criança interna ferida. Em razão das experiências de sofrimento na infância, a protagonista parecia resistente em trabalhá-las, não de forma consciente, mas sim por serem situações muito difíceis. Por meio de um trabalho interno, identificamos um local de força: em casa, brincando de escolinha. Entrevistando essa criança, identificou-se que ela aprendeu que ficar sozinha era melhor e criou um medo das pessoas e da exposição.
A diretora buscou fazer a protagonista entrar em contato com seus sentimentos e, em uma tentativa de identificar sua lógica afetiva de conduta, questionou: “Como essa criança completaria essa frase: quando eu crescer, eu nunca vou...”, ao que a protagonista respondeu: “Rir de ninguém”. A diretora, com base em questões trabalhadas anteriormente em que a lógica afetiva de conduta foi identificada, realizou um duplo: “Rir de ninguém, eu vou ser uma pessoa boa, que vai ajudar os outros, eu vou fazer tudo pelos outros”. A protagonista concordou e continuou: “É isso. É por isso que hoje eu me doo pelas pessoas, não gosto de rir de ninguém. Se tem alguém zombando, se eu puder, eu corrijo, principalmente bullying. [...] Isso me deixa P da vida”.
Voltando novamente para a sua criança, após compreender que sua dedicação aos outros estava voltada a tudo o que sofreu, a diretora percebeu a necessidade de cuidar dessa criança interna ferida, de que ela se reconhecesse como importante e se autoafirmasse. Então, a protagonista acolheu sua criança, concretizada em uma minialmofada, e a diretora manejou a situação com inversões de papel e espelhos. Todavia, Águia apresentava resistência em aceitar o cuidado, e concretizamos uma figura que acreditava poder ajudá-la nesse momento: sua mãe. Identificamos uma necessidade de “não incomodar”, e a protagonista mostrou-se resistente e racional durante a cena com a mãe. Após algumas tentativas de interpolação de resistência, Águia mostrou-se abalada, e trabalhamos no sentido de acolher sua criança interna e de cuidar dela.
De volta à cena com a criança interna, Águia reconheceu que precisava acreditar mais em si mesma. A diretora buscou acessar a cena nuclear novamente, no entanto a protagonista tentou retornar mais uma vez às cenas da escola, no que a diretora interpolou resistência e solicitou uma lembrança anterior, ao que Águia contou que até uns 8 anos de idade desmaiava com frequência e se achava fraca.
Após compreender que a cena nuclear envolvia a doença, a diretora buscou explorar essa cena a fim de entender o cuidado de que essa criança interna ferida precisava, então questionou: “E do que essa criança precisava?”, ao que respondeu: “Apoio”. Assim, conversou com essa criança, concretizada em uma minialmofada, utilizando a inversão de papéis. Com auxílio de duplos, espelhos e principalmente interpolação de resistência, Águia percebeu que não era fraca por ter passado por tudo isso, mas sim muito forte. A interpolação de resistência foi muito necessária, pois tentava resolver a situação modificando a forma como as outras pessoas a viam e a tratavam. Duplos, espelhos e inversão de papéis foram usados para acolher a criança e auxiliar no reconhecimento do EU da protagonista.
Após a negociação e o acolhimento de sua criança interna, retornamos às cenas abertas no percurso transferencial, e Águia conversou com cada uma dessas crianças sobre sua força. Ao retornar ao aqui e agora, foi realizada uma associação entre o que foi identificado e trabalhado na dramatização e sua vida atual. Para finalizar, a diretora orientou um processo de internalização do cuidado, carinho e força, empregando recursos cinestésicos, como o contato com o próprio corpo.
Nessa sessão, a diretora encontrou muita dificuldade em realizar um percurso transferencial, principalmente pela necessidade de interpolar resistência e chegar à cena nuclear. A interpolação ocorreu verbalmente, no sentido de não aceitar que a paciente se colocasse no papel passivo diante dos acontecimentos, estimulando-a a pensar em outras formas de agir, outras cenas, a se conectar com o emocional, e não apenas com o racional. Após algumas tentativas, conseguiu encontrar a cena nuclear e possibilitar a ação reparatória por meio do cuidado da criança interna ferida da paciente, pois essa criança era uma criança que precisava de reconhecimento do EU e de cuidado.
Ainda assim, identificou-se que existem outras questões a serem trabalhadas nessa infância, envolvendo outras queixas da protagonista, que podem (ou não) estar associadas ao embotamento da espontaneidade vivenciado no ambiente acadêmico, como, por exemplo, a dedicação aos outros antes de si mesma e a dificuldade em “abandonar” pessoas de seu convívio, dedicando-se a manter até mesmo relações não saudáveis. Igualmente, as cenas de bullying e da criança “doente” ainda precisam ser trabalhadas, pois nessa sessão foram trabalhados especificamente o reconhecimento do EU e a força interna.
DISCUSSÃO
As contribuições do psicodrama bipessoal na identificação de cenas nucleares envolvem inúmeros aspectos. As etapas de uma sessão são essenciais para atingir tal finalidade. Sendo assim, cada sessão utilizou diferentes recursos para aquecer diretora e pacientes para a dramatização e ação reparatória. Os iniciadores mentais, verbais, corporais e imaginários facilitaram a preparação para trabalhar o tema protagônico (Nery, 2010Nery, M. P. (2010). Grupos e intervenção em conflitos. São Paulo (SP). Ágora.). A dramatização dos conteúdos que emergiram na sessão ocorreu com diferentes técnicas, conforme o nível de aquecimento e o vínculo entre diretora e protagonista, aspectos indicados por Perazzo (1994)Perazzo, S. (1994). Ainda e sempre psicodrama. São Paulo (SP). Ágora. para manutenção de cena ou aquecimento.
O locus da cena nuclear de Petróleo, alcançado no processo terapêutico psicodramático pelo percurso transferencial, está ligado à negligência vivenciada na infância. Ao dramatizar uma queixa específica do protagonista, por meio de um elo transferencial surgiu uma cena intermediária que continha o mesmo movimento existencial, nesta pesquisa, relacionado à queixa de ansiedade, que, por sua vez, “traz consigo” uma nova cena, e é nesse ponto em que atua a ação reparatória (Perazzo, 1994Perazzo, S. (1994). Ainda e sempre psicodrama. São Paulo (SP). Ágora.).
Por essa queixa de ansiedade de Petróleo, identificou-se um movimento existencial relacionado à dificuldade em lidar com a falta de controle. Seguindo o percurso transferencial desse movimento existencial, chega-se ao locus da negligência vivenciada em sua matriz de identidade. A matriz, as respostas do protagonista a essa circunstância (Bustos, 2006Bustos, D. M. (2006). Perigo... Amor à Vista! Drama e Psicodrama de Casais. São Paulo (SP). Aleph.), foi a busca por Petróleo na cena nuclear, que corresponde a uma lógica afetiva de conduta em que procura fazer tudo ao seu alcance para ser aceito e reconhecido. Essa matriz cristaliza-se e, segundo Perazzo (1999)Perazzo, S. (1999). Fragmentos de um olhar psicodramático. São Paulo (SP). Ágora., passa a ser utilizada em outros papéis ou situações parecidas, como identificado na busca por ajudar a todos ao seu redor e ser a pessoa a quem os colegas recorrem. O status nascendi de Petróleo, a resposta a essa matriz que compõe um movimento existencial (Perazzo, 1999Perazzo, S. (1999). Fragmentos de um olhar psicodramático. São Paulo (SP). Ágora.), é o de que precisa ser o melhor em tudo o que faz. Esse movimento interferia na vida atual do protagonista, destacando-se com a ansiedade. Ou seja, o embotamento da espontaneidade ocorria por conta do status nascendi da cena nuclear.
Com relação ao tema protagônico de ansiedade de Águia, o locus destacou a doença na infância, que a levava a desmaiar com frequência. Esse contexto fez com que desenvolvesse uma matriz de retraimento em diversas relações, principalmente em casa e na escola, como explorado nas sessões. O status nascendi de Águia foi de que era fraca, o que guiou os vínculos e o estabelecimento de relações posteriores até os dias atuais, em que não tinha confiança em si mesma na universidade e passava por situações de embotamento da espontaneidade.
Uma questão que sobressaiu nessa sessão foi a necessidade de interpolação de resistência, especialmente com a protagonista Águia, tendo em vista que não estava autorizada por sua criança a dar trabalho, mesmo para a diretora. De acordo com Cukier (2018)Cukier, R. (2018). Vida e clínica de uma psicoterapeuta. São Paulo (SP). Ágora., a dramatização é importante por conta da surpresa sobre o conteúdo que emerge, sendo a interpolação de resistência necessária para estimular respostas espontâneas. Para Calvente (1998)Calvente, C. (1998). Interpolação de resistências. In R. F. Monteiro (Ed.). Técnicas Fundamentais do Psicodrama (2ª ed., pp. 97-104). São Paulo (SP). Ágora., a interpolação de resistência ocorre quando há resistências ao papel ou à cena. No caso de Águia, houve dificuldade em dar uma resposta espontânea à cena, repetindo padrões transferenciais e permanecendo no papel de vítima/submissa. Nesse contexto, a interpolação de resistência foi utilizada pela verbalização de questionamentos que estimularam a protagonista a entrar em contato com as contradições e resistências em olhar para o tema e buscar novos caminhos além dos já conhecidos.
A resistência é muito comum quando se atingem determinados temas e se necessita de uma postura psicodramática para ser superada e adquirir força de enfrentamento. A tensão apresentada pelo protagonista é um “equivalente transferencial” que pode indicar resistência, e cabe ao psicodramatista identificar o melhor momento para enfrentá-la. É comum que o momento anterior à ação reparatória seja carregado de tensão, sendo importante mantê-lo para propiciar a catarse. Ademais, não resolver tensões quando se atua com cenas múltiplas torna essa tensão uma ponte associativa para se atingir a ação reparatória (Perazzo, 1994Perazzo, S. (1994). Ainda e sempre psicodrama. São Paulo (SP). Ágora.).
Perazzo (1999)Perazzo, S. (1999). Fragmentos de um olhar psicodramático. São Paulo (SP). Ágora. salienta que, para Bustos, apenas a matriz da cena nuclear pode ser modificada, ou seja, a resposta do indivíduo ao conjunto específico de fatores, no entanto o autor considera que qualquer resposta que venha de uma matriz contém cargas transferenciais e constitui um status nascendi, que, por sua vez, é um movimento existencial derivado de um vínculo e que tem subjetividades. Dessa maneira, qualquer resposta do indivíduo a outros vínculos, com ou sem cargas transferenciais, pode ser considerada parte de um “status nascendi relacional e não como o próprio vínculo-matriz” (Perazzo, 1999Perazzo, S. (1999). Fragmentos de um olhar psicodramático. São Paulo (SP). Ágora., p. 202). Assim, o locus é apenas as circunstâncias em que ocorrem o vínculo original e a resposta, podendo ou não ocorrer conflitos, e a matriz é vista como a configuração geral do vínculo com todas as possibilidades de movimentos existenciais e articulações transferenciais.
O trabalho com a ação reparatória na cena nuclear dos participantes gera um novo status nascendi relacional, que vem da mesma matriz, e o locus é modificado na realidade suplementar. Assim, o novo status nascendi corresponde a uma nova forma de vivenciar os vínculos (Perazzo, 1999Perazzo, S. (1999). Fragmentos de um olhar psicodramático. São Paulo (SP). Ágora.). Petróleo passou a entender que ser o melhor em tudo não tem o mesmo significado, e Águia compreendeu a força que tem por ter superado as situações vivenciadas no locus. Esses novos status nascendis auxiliam no desenvolvimento da espontaneidade dos participantes do estudo.
No caso de Águia, foi necessária interpolação de resistência até que compreendesse que todos os desdobramentos de uma ação reparatória ocorrem da relação entre a protagonista e ela mesma. Assim, a resposta disso poderá ser recriada na relação com os outros e nos vínculos atuais do indivíduo. Afinal, o vínculo-matriz está presente por meio da concretização em papéis psicodramáticos na sessão. A relação estabelecida pelo protagonista com as outras personagens na cena psicodramática demonstra a relação com ele mesmo e como estabelece suas relações (Perazzo, 1999Perazzo, S. (1999). Fragmentos de um olhar psicodramático. São Paulo (SP). Ágora.). Conforme Perazzo (1999, p. 205)Perazzo, S. (1999). Fragmentos de um olhar psicodramático. São Paulo (SP). Ágora., “é o próprio sujeito-protagonista que preenche a si mesmo pelo viés de uma realidade suplementar, inaugurando um novo status nascendi relacional, co-criativamente”.
No presente estudo, o foco foi trabalhar com as cenas nucleares de universitários que apresentavam queixas de ansiedade, levando a diretora e os participantes do estudo a se conectarem com as suas crianças internas feridas. Uma das formas mais comuns de se trabalhar essa criança ferida é o psicodrama com cenas regressivas. Por meio de uma cena atual, é possível chegar à cena nuclear, ou seja, à cena de início das dificuldades que o paciente traz como queixa, da cristalização de comportamentos que se repetem nas situações e que prejudicam a espontaneidade (Cukier, 1998Cukier, R. (1998). Sobrevivência emocional: as dores da infância revividas no drama adulto. São Paulo (SP). Ágora.). Perazzo (1994)Perazzo, S. (1994). Ainda e sempre psicodrama. São Paulo (SP). Ágora. denomina esse processo de ação reparatória e percurso transferencial.
Apesar das diferenças, o psicodrama mostrou-se eficaz em ambos os casos, como também identificado no estudo de Godoy e Riquinho (2018)Godoy, L. P., & Riquinho, D. L. (2018). O sociodrama como forma de amenizar as ansiedades da pós-graduação. Revista Brasileira de Psicodrama, 26(2), 140–145. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20180036
https://doi.org/10.15329/2318-0498.20180...
com pós-graduandos. Os autores compreenderam que o embotamento da espontaneidade causa significativo sofrimento aos indivíduos, e por intermédio de um sociodrama, utilizando os recursos psicodramáticos, foi possível auxiliá-los no desenvolvimento da espontaneidade. Afinal, o embotamento do fator prejudica a manifestação da criatividade e de respostas adequadas às situações vivenciadas, gerando respostas com conservas culturais cristalizadas (Moreno, 2008Moreno, J. L. (2008). Quem sobreviverá? Fundamentos da sociometria, da psicoterapia de grupo e do sociodrama. São Paulo (SP). Daimon.).
Nas intervenções aqui relatadas, o trabalho com as cenas nucleares foi um dos pontos abordados, não sendo a integralidade dos atendimentos. Inicialmente, explorou-se a vivência acadêmica dos participantes, e foram identificadas as lógicas afetivas de conduta. Após o trabalho com as cenas nucleares, foi realizada uma sessão para verificar a ansiedade no contexto atual. O trabalho com cenas nucleares é uma importante ferramenta disponível aos psicodramatistas, mas não o nosso único recurso, devendo ser utilizado em consonância com outras técnicas e considerando o sujeito e o contexto em sua integralidade. Afinal, o contexto universitário pode ser um ambiente extremamente ansiogênico (Ferreira et al., 2009Ferreira, C. L., Almondes, K. M., Braga, L. P., Mata, A. N. S., Lemos, C. A., & Maia, E. M. C. (2009). Universidade, contexto ansiogênico? Avaliação de traço e estado de ansiedade em estudantes do ciclo básico. Ciência & Saúde Coletiva, 14(3), 973–981. https://doi.org/10.1590/S1413-81232009000300033
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200900...
; Cruz et al., 2020Cruz, M. C. N. L., Gonçalves, F. T. D., Melo, K. C., Soares, A. N., Silva, W. C., Silva, C. O., Mesquita, Z. A., Araújo, B. F., Costa, E. M., Nascimento Neto, A. H., Oliveira, M. C. S., Rodrigues, R. P. D., Chagas, A. F., & Ibiapina, C. C. (2020). Ansiedade em universitários iniciantes de cursos da área da saúde. Brazilian Journal of Health Review, 3(5), 14644–14662. https://doi.org/10.34119/bjhrv3n5-259
https://doi.org/10.34119/bjhrv3n5-259...
; Jardim et al., 2020Jardim, M. G. L., Castro, T. S., & Ferreira-Rodrigues, C. F. (2020). Sintomatologia Depressiva, Estresse e Ansiedade em Universitários. Psico-USF, 25(4), 645–657. https://doi.org/10.1590/1413/82712020250405
https://doi.org/10.1590/1413/82712020250...
; Maia & Dias, 2020Maia, B. R., & Dias, P. C. (2020). Ansiedade, depressão e estresse em estudantes universitários: o impacto da COVID-19. Estudos em Psicologia, 37, e200067. https://doi.org/10.1590/1982-0275202037e200067
https://doi.org/10.1590/1982-0275202037e...
).
Por fim, cabe ressaltar que as sessões ocorreram em formato on-line. Esse formato de atendimentos exige algumas mudanças pontuais em algumas técnicas utilizadas, mas as etapas de sessão permanecem (Vidal & Castro, 2020Vidal, G. P., & Castro, A. (2020). O psicodrama clínico on-line: uma conexão possível. Revista Brasileira de Psicodrama, 28(1), 54–64. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20196
https://doi.org/10.15329/2318-0498.20196...
). As autoras complementam que a realidade suplementar é amplamente utilizada nas sessões on-line, como no momento de solicitar que os pacientes fechem os olhos, visualizem e narrem a cena, e, ao abrir os olhos, por meio da realidade suplementar, ambos estariam na cena. A concretização das personagens utilizando minialmofadas ocorreu com o cuidado de mantê-las visíveis pela câmera para o protagonista. Outras técnicas e ferramentas não precisam de modificação para o contexto virtual, como as fantasias guiadas e o psicodrama interno. Apesar de algumas dificuldades, como certos momentos de instabilidade da internet, ressaltam-se os aspectos positivos do trabalho na cena nuclear da queixa de espontaneidade dos participantes do estudo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo do presente estudo foi compreender as contribuições do psicodrama bipessoal na identificação e ação reparatória de cenas nucleares de universitários com o embotamento da espontaneidade no ambiente acadêmico. Por meio do arcabouço teórico do psicodrama, foram utilizadas diferentes técnicas para explorar e elaborar os conteúdos relacionados ao tema protagônico: a ansiedade.
Por meio de um percurso transferencial entre diversas cenas de suas vidas, identificaram-se a cena nuclear relacionada à queixa de ansiedade, seu locus, matriz e status nascendi. O primeiro participante teve como locus a negligência; a matriz relacionou-se à busca por fazer tudo ao seu alcance para ser aceito e reconhecido no contexto familiar; e o status nascendi era de que precisava ser o melhor em tudo o que fazia. A segunda participante teve como locus uma doença enfrentada desde o nascimento, no núcleo familiar, matriz de retraimento, e o status nascendi de que era fraca. Por meio da cena reparatória com suas crianças internas feridas, foi modificado o status nascendi por meio da realidade suplementar. Foram possibilitadas novas respostas que afetaram a queixa de ansiedade, vivenciada pelo embotamento da espontaneidade. O embotamento do fator relacionava-se à lógica de conduta cristalizada pela criança interna ferida, cristalização que foi negociada com a ação reparatória.
Cabe ressaltar que o psicodrama bipessoal em formato on-line foi relevante no contexto de isolamento social enfrentado na pandemia de Covid-19, preservando a saúde dos envolvidos no processo terapêutico, sem desqualificar as contribuições do psicodrama ao protagonista. Com pequenas modificações em algumas técnicas e ferramentas, é possível garantir a qualidade do processo psicoterapêutico com o psicodrama on-line.
São evidentes as contribuições do psicodrama bipessoal na ação reparatória de cenas nucleares de universitários com ansiedade, mas esta pesquisa contou com dois participantes. Cabe às futuras pesquisas se aprofundarem no tema, bem como explorarem outras modalidades na ampla gama disponível na socionomia. Destaca-se ainda que fatores sociais e instituições são relevantes para a temática que atravessa o adoecimento dos alunos, sendo importante aprofundar-se em tais aspectos em outros estudos.
-
1
Psicodrama em formato aberto também pode ser definido como psicodrama com montagem de cena, como indicado por Cukier (2018)Cukier, R. (2018). Vida e clínica de uma psicoterapeuta. São Paulo (SP). Ágora.. A autora distingue o trabalho com cena aberta do trabalho realizado internamente, com psicodrama interno, por exemplo, e indica que essas duas modalidades de trabalho com cenas exigem aquecimentos diferentes, específicos para cada contexto.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, gostaria de agradecer a Amanda Castro, por caminhar ao meu lado. Em segundo lugar, a Vivi e à Viver Mais Psicologia, o espaço de caminhada. Por fim, àquelas e àqueles que confiam em mim e no meu trabalho, caminhando juntas/os.
-
FINANCIAMENTO
Não se aplica.
DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA
Não se aplica.
REFERÊNCIAS
- Becker, H. S. (1993). Métodos de pesquisa em ciências sociais São Paulo (SP). Hucitec.
- Bustos, D. M. (2006). Perigo... Amor à Vista! Drama e Psicodrama de Casais São Paulo (SP). Aleph.
- Calvente, C. (1998). Interpolação de resistências. In R. F. Monteiro (Ed.). Técnicas Fundamentais do Psicodrama (2ª ed., pp. 97-104). São Paulo (SP). Ágora.
- Cruz, M. C. N. L., Gonçalves, F. T. D., Melo, K. C., Soares, A. N., Silva, W. C., Silva, C. O., Mesquita, Z. A., Araújo, B. F., Costa, E. M., Nascimento Neto, A. H., Oliveira, M. C. S., Rodrigues, R. P. D., Chagas, A. F., & Ibiapina, C. C. (2020). Ansiedade em universitários iniciantes de cursos da área da saúde. Brazilian Journal of Health Review, 3(5), 14644–14662. https://doi.org/10.34119/bjhrv3n5-259
» https://doi.org/10.34119/bjhrv3n5-259 - Cukier, R. (1992). Psicodrama bipessoal: sua técnica, seu terapeuta e seu paciente São Paulo (SP). Ágora.
- Cukier, R. (1998). Sobrevivência emocional: as dores da infância revividas no drama adulto São Paulo (SP). Ágora.
- Cukier, R. (2018). Vida e clínica de uma psicoterapeuta São Paulo (SP). Ágora.
- Ferreira, C. L., Almondes, K. M., Braga, L. P., Mata, A. N. S., Lemos, C. A., & Maia, E. M. C. (2009). Universidade, contexto ansiogênico? Avaliação de traço e estado de ansiedade em estudantes do ciclo básico. Ciência & Saúde Coletiva, 14(3), 973–981. https://doi.org/10.1590/S1413-81232009000300033
» https://doi.org/10.1590/S1413-81232009000300033 - Ferreira-Santos, E. (1997). Psicoterapia breve: abordagem sistematizada de situações de crise São Paulo (SP). Ágora.
- Gama, M. M. A., Moura, G. S., Araújo, R. F., & Teixeira-Silva, F. (2008). Ansiedade-traço em estudantes universitários de Aracajú (SE). Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, 30(1), 19–24. https://doi.org/10.1590/S0101-81082008000100007
» https://doi.org/10.1590/S0101-81082008000100007 - Godoy, L. P., & Riquinho, D. L. (2018). O sociodrama como forma de amenizar as ansiedades da pós-graduação. Revista Brasileira de Psicodrama, 26(2), 140–145. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20180036
» https://doi.org/10.15329/2318-0498.20180036 - Jardim, M. G. L., Castro, T. S., & Ferreira-Rodrigues, C. F. (2020). Sintomatologia Depressiva, Estresse e Ansiedade em Universitários. Psico-USF, 25(4), 645–657. https://doi.org/10.1590/1413/82712020250405
» https://doi.org/10.1590/1413/82712020250405 - Maia, B. R., & Dias, P. C. (2020). Ansiedade, depressão e estresse em estudantes universitários: o impacto da COVID-19. Estudos em Psicologia, 37, e200067. https://doi.org/10.1590/1982-0275202037e200067
» https://doi.org/10.1590/1982-0275202037e200067 - Minayo, M. C. S. (2008). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde (11ª ed.). São Paulo (SP). Hucitec.
- Moreno, J. L. (2008). Quem sobreviverá? Fundamentos da sociometria, da psicoterapia de grupo e do sociodrama São Paulo (SP). Daimon.
- Moreno, J. L. (2014). Psicodrama (13ª ed.). São Paulo (SP). Cultrix.
- Nery, M. P. (2010). Grupos e intervenção em conflitos São Paulo (SP). Ágora.
- Nery, M. P. (2014). Vínculo e afetividade: caminho das relações humanas (3ª ed.). São Paulo (SP). Ágora.
- Perazzo, S. (1994). Ainda e sempre psicodrama São Paulo (SP). Ágora.
- Perazzo, S. (1999). Fragmentos de um olhar psicodramático São Paulo (SP). Ágora.
- Rodrigues, R. (2007). Quadros de referência para intervenções grupais: psico-sociodramáticas. DPSedes, 1-16. Recuperado de http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicodrama/Quadros_referencia_Intervencoes_Grupais.pdf
» http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicodrama/Quadros_referencia_Intervencoes_Grupais.pdf - Silva Filho, L. A. (2015). Doença mental, um tratamento possível: psicoterapia de grupo e psicodrama Ágora.
- Vidal, G. P., & Castro, A. (2020). O psicodrama clínico on-line: uma conexão possível. Revista Brasileira de Psicodrama, 28(1), 54–64. https://doi.org/10.15329/2318-0498.20196
» https://doi.org/10.15329/2318-0498.20196 - Vitali, M. M. & Castro, A. (2021). A pluralidade da ansiedade de universitários: contribuições do psicodrama bipessoal on-line In G. P. Vidal & M. M. Vitali (Eds.). O drama na tela: trajetórias do psicodrama on-line (pp. 79-108). Curitiba (PR). Appris.
- Yin, R. K. (2016). Pesquisa qualitativa do início ao fim Porto Alegre (RS). Penso.
Editado por
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Set 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
12 Mar 2023 -
Aceito
20 Jul 2023