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A ESCALADA ESPORTIVA COMO OBJETO INTERMEDIÁRIO NA CRIAÇÃO DE VÍNCULO TERAPÊUTICO

SPORT CLIMBING AS AN INTERMEDIARY OBJECT IN THE CREATION OF THERAPEUTIC BONDS

LA ESCALADA DEPORTIVA COMO OBJETO INTERMEDIO EN LA CREACIÓN DE VÍNCULOS TERAPÉUTICOS

RESUMO

Este artigo é resultado da monografia da pós-graduação da Associação Paranaense de Psicodrama. Como objetivo, buscou-se compreender se a escalada esportiva pode ser utilizada como objeto intermediário na criação de vínculo terapêutico. Muitas vezes, a psicologia clínica é identificada pelo local onde é exercida, e não pela função que exerce. A teoria de papéis do psicodrama explica que uma pessoa assume o papel de terapeuta por meio do vínculo com o contrapapel de cliente. A intervenção em estudo foi uma pesquisa-ação realizada com dois voluntários. Ao final, observou-se que as metáforas presentes na vivência facilitaram a compreensão dos clientes sobre a função dos papéis e a importância desse vínculo, além de ampliar as possibilidades do setting terapêutico e modificar a conserva cultural do que se pode esperar do local de início dessa relação.

PALAVRAS-CHAVE
Psicodrama; Escalada esportiva; Vínculo terapêutico; Objeto intermediário

ABSTRACT

This paper presents findings from a postgraduate thesis conducted at the Paraná Association of Psychodrama, exploring the potential use of sport climbing as an intermediary tool to enhance therapeutic connections. In clinical psychology, there is often a focus on the therapy setting rather than its function. Role theory in psychodrama elucidates how individuals can adopt the role of therapist by engaging with the client’s counter-role. Through an action research intervention involving two volunteers, this study discovered that metaphors drawn from the sport climbing experience effectively facilitated the clients’ understanding of role dynamics and the importance of the therapeutic relationship. These findings not only broadened therapeutic approaches, but also reshaped cultural expectations surrounding therapeutic interactions from the outset.

KEY WORDS
Psychodrama; Sport climbing; Therapeutic connection; Intermediary tool

RESÚMEN

Este artículo presenta los hallazgos de una tesis de posgrado realizada por la Asociación de Psicodrama de Paraná. El objetivo fue investigar si la escalada deportiva puede ser utilizada como un objeto intermedio en la creación de un vínculo terapéutico. En la psicología clínica, a menudo se identifica más por el lugar donde se practica que por la función que desempeña. La teoría del rol del psicodrama explica cómo una persona asume el papel de terapeuta a través del vínculo con el contra-rol del cliente. La intervención focal del estudio fue una investigación-acción realizada con dos voluntarios. Al final, se observó que las metáforas presentes en la experiencia facilitaron la comprensión de los clientes sobre la función de los roles y la importancia de este vínculo. Estos hallazgos no solo amplían las posibilidades en el ámbito terapéutico, sino que también modifican las expectativas culturales sobre lo que se puede esperar del inicio de esta relación.

PALABRAS CLAVE
Psicodrama; Escalada deportiva; Vínculo terapéutico; Objeto intermedio

INTRODUÇÃO

A atividade do psicólogo clínico tem grandes influências do saber médico, tanto pelos próprios criadores quanto pelo termo igualmente utilizado. Clínica, no grego klinê, significa leito. Doron e Parot (2006)Doron, R., & Parot, F. (eds.) (2006). Dicionário de psicologia. Ática. explicam que, originalmente, a atividade clínica é a do médico, que, à cabeceira do doente, o examina para fazer um diagnóstico, um prognóstico e prescrever um tratamento, procedimentos que, segundo Moreira et al. (2007)Moreira, J. O., Romagnoli, R. C., & Neves, E. O. (2007). O surgimento da clínica psicológica: da prática curativa aos dispositivos de promoção da saúde. Psicologia: Ciência e Profissão, 27(4), 608-621. https://doi.org/10.1590/S1414-98932007000400004
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, são suficientes para refletirmos acerca da influência do saber médico na prática psicológica. Isso fez com que criássemos uma cultura sobre o que é esperado desse profissional, do cliente e até mesmo do local de tratamento.

Lo Bianco et al. (1994) como citado em Teixeira (1997)Teixeira, R. P. (1997). Repensando a psicologia clínica. Paidéia, (12-13), 51-62. https://doi.org/10.1590/S0103-863X1997000100005
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enfatizam que clínica não é consultório, mas qualquer lugar que necessite de promoção de saúde. Para os autores, por muitas vezes a clínica é identificada pelo local onde acontece, e não por sua função exercida, o que pressupõe a impossibilidade do fazer clínico fora das quatro paredes de um consultório.

Jacob Levy Moreno, criador do psicodrama, quebrou barreiras ao estender o seu ambiente de atuação para grupos de crianças nos jardins de Viena, assim como para prostitutas e grupos de prisioneiros, e por realizar uma importante pesquisa sociométrica com moças internas em uma escola de Hudson. Para ele (como citado em Nery & Conceição, 2012Nery, M. P., & Conceição, M. I. G. (eds.) (2012). Intervenções grupais: o psicodrama e seus métodos. Ágora., p. 19), “um procedimento verdadeiramente terapêutico deve ter por objetivo toda a espécie humana”.

O psicodrama é uma abordagem que possibilita ao terapeuta e cliente experimentar a espontaneidade que se manifesta não apenas na dimensão das palavras, mas também na atuação, por meio da interação, da fala, da dança, do canto etc. (Blatner & Blatner, 1996 como citado em Faleiros, 2004Faleiros, E. A. (2004). Aprendendo a ser psicoterapeuta. Psicologia: Ciência e Profissão, 24(1), 14-27.), o que evidencia a qualidade da aliança terapêutica para além do local.

Assim, o pesquisador definiu como objetivo primário compreender se a escalada esportiva pode ser utilizada como objeto intermediário na criação de vínculo com o cliente. Para esse fim, desenvolveu os objetivos secundários:

  • Conhecer os aspectos psicológicos e relacionais presentes na escalada esportiva;

  • Avaliar se a escalada esportiva contribui para a percepção do cliente sobre a função do papel e do contrapapel do psicoterapeuta e do cliente;

  • Analisar se a escalada contribui para a motivação do cliente no início do processo terapêutico.

Nas definições de Moreno (2017)Moreno, J. L. (2017). Psicodrama (2. ed.). Cultrix., o papel é uma cristalização final de todas as situações por que um indivíduo passou. Bustos (2005)Bustos, D. M. (2005). O psicodrama: aplicações da técnica psicodramática. Summus. reforça que o papel tem como função a estruturação do ego em suas trocas com o ambiente, sem a possibilidade de trocas que não sejam produzidas por meio de papéis.

A proposta baseou-se na prática vivencial do terapeuta com a escalada, o qual percebeu nesse esporte oportunidades de desenvolvimento da confiança na relação com o outro. Por se tratar de uma abordagem vivencial – “a técnica e a teoria são secundárias em relação à pessoa e à importância da relação terapeuta e cliente” (Ramalho, 2010Ramalho, C. M. R. (2010). Psicodrama e dinâmica de grupo. Iglu., p. 32) –, esta pesquisa utilizou o psicodrama como método de intervenção.

De acordo com Mesquita (2000)Mesquita, A. M. O. (2000). O psicodrama e as abordagens alternativas ao empirismo lógico como metodologia científica. Psicologia: Ciência e Profissão, 20(2), 32-37. https://doi.org/10.1590/S1414-98932000000200006
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, a metodologia proposta pelo psicodrama é uma pesquisa-ação, ou seja, o pesquisador é implicado no processo enquanto pesquisador e mediador. Assim, utilizou-se o projeto socionômico de Jacob Levy Moreno, e seguiram-se os fundamentos do tripé metodológico, que é formado por instrumentos – diretor, ego auxiliar, plateia, palco e protagonista –, contextos – social, grupal e dramático – e etapas – aquecimento, dramatização e comentários (Moreno, 2008Moreno, J. L. (2008). Quem sobreviverá? Fundamentos da sociometria, da psicoterapia do grupo e do sociodrama. Daimon – Centro de Estudos do Relacionamento.).

A pesquisa foi submetida à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e aprovada, sob o número 35924920.0.0000.0093. Contou com uma amostra de dois voluntários como novos clientes em psicoterapia, um homem de 25 anos e uma mulher de 30, que, de forma individual, foram escalar com o pesquisador no primeiro encontro terapêutico. Este foi dividido em duas horas: a primeira aconteceu no Ginásio de Escalada Campo Base, e a segunda, na Associação Paranaense de Psicodrama, local onde as sessões tiveram continuidade.

Como o foco desta pesquisa é a relação inicial entre terapeuta e cliente, os dados coletados foram referentes às quatro primeiras sessões. Para que o sigilo dos participantes possa ser mantido, eles são identificados pelos nomes fictícios Maria e João. Os participantes voluntariaram-se mediante um anúncio postado na conta profissional do psicólogo pesquisador, na plataforma social Instagram.

CADÊ O DIVÃ?

Para começar, precisamos, no primeiro momento, compreender que a pesquisa proposta por si só já é uma quebra da conserva cultural sobre o que é o início de um processo terapêutico. Ao pensar em psicologia clínica, muitos visualizam encontrar o terapeuta em um consultório com o divã ao lado. Segundo Moreno (2017)Moreno, J. L. (2017). Psicodrama (2. ed.). Cultrix., esse é o exemplo de uma conserva cultural, pois esta é considerada a cristalização de objetos, costumes ou ideias, porém também pode ser o ponto de partida para uma verdadeira revolução criadora, impulsionada pela espontaneidade e criatividade. Pelo que se conta, Moreno teria falado com Freud durante uma conferência do curso de medicina: “O senhor analisa os sonhos de seus pacientes. Eu lhes dou coragem para sonhar de novo” (como citado em Gonçalves et al., 1988Gonçalves, C. S., Wolff, J. R., & Almeida, W. C. (1988). Lições de psicodrama: introdução ao pensamento de J. L. Moreno. Ágora.).

Como explicado anteriormente, a psicologia clínica carrega na etimologia da palavra a imagem de um profissional que trará o conhecimento ao adoecido. Estudiosos como Nery (2018)Nery, M. P. (2018). Vínculo e afetividade: caminho das relações humanas (4. ed.). Ágora., Oliveira e Benetti (2015)Oliveira, N. H., & Benetti, S. P. C. (2015). Aliança terapêutica: estabelecimento, manutenção e rupturas da relação. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 67(3), 125-138., Oliveira e Vieira (2015)Oliveira, J. F., & Vieira, É. D. (2015). Reflexões sobre a relação terapêutica: perspectivas da gestal-terapia e do psicodrama. Revista IGT na Rede, 12(22), 92-110. e Queiroz (2017)Queiroz, E. W. S. (2017). A construção do vínculo terapêutico: Uma reflexão sob a perspectiva gestáltica. Revista IGT na Rede, 14(26), 109-126. discorrem sobre o vínculo terapêutico e explicam que o conceito é fundamental para o desenvolvimento terapêutico. Por isso, a pesquisa teve como foco avaliar o fenômeno vínculo pelas lentes do psicodrama, e para a análise dos resultados foram utilizados conceitos como teoria de papéis, iniciadores, fenômeno tele e transferência, teoria do momento, conserva cultural e espontaneidade-criatividade.

DESDE O PRINCÍPIO, A ESCALADA INCLUI O CORPO NO PROCESSO VINCULAR

À primeira vista, por tratar-se de uma atividade incomum à prática psicológica clínica, pode parecer intangível compreender as conexões da escalada esportiva com o processo psicoterapêutico, mas, pelo fato de essa atividade envolver o corpo e a relação entre duas pessoas, torna-se possível associar aspectos importantes da psicoterapia ao psicodrama, como os iniciadores – corporal, emocional e ideativo. Estes fazem parte de um processo de aquecimento, fundamental para todo ato espontâneo. Perazzo (2010)Perazzo, S. (2010). Psicodrama: o forro e o avesso. Ágora. descreve que tais iniciadores não ocorrem separadamente; é preciso dar atenção para que traga à cena as emoções e os aspectos que estão conectados ao físico.

Dessa maneira, ao escalar e utilizar o corpo no processo terapêutico, o psicólogo consegue perceber as sensações e emoções envolvidas, assim como a utilização das metáforas presentes no esporte que estimulam pensamentos sobre os diversos papéis desempenhados pelo cliente. Sobre inserir o corpo no início do processo terapêutico, a paciente Maria comentou:

Eu gosto muito dessas coisas de movimentar o corpo, parece que consigo me conectar mais comigo.

Segundo Vieira et al. (2011)Vieira, L. F., Balbim, G. M., Pimentel, G. G. A., Hassumi, M. Y. S. S., & Garcia, W. F. (2011). Estado de fluxo em praticantes de escalada e skate downhill. Motriz: Revista de Educação Física, 17(4), 591-599. https://doi.org/10.1590/S1980-65742011000400003
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, ao praticar atividade física, os clientes podem atingir determinado estado de fluxo (flow), um estado mental de envolvimento com a tarefa presente. O autor diz que é uma forma de concentração em que a energia psíquica está direcionada à atividade, fazendo com que a autoconsciência desapareça e o senso de tempo se distorça. No psicodrama, poderíamos comparar a atividade física com a teoria do momento. Para Moreno, o conceito do momento possui categoria própria e está situado fora do tempo cronológico: “O momento não pertence ao Cronos – tempo quantitativo – e sim ao Kairós – tempo qualitativo. O primeiro é chamado de ‘tempo do homem’ e o segundo, de ‘tempo de Deus’” (como citado em Fonseca, 2018Fonseca, J. (2018). Essência e personalidade: elementos de psicologia relacional. Ágora., p. 56).

LUZ, CORDA E AÇÃO: AQUECENDO A RELAÇÃO INICIAL

No primeiro encontro, o terapeuta realizou um protocolo de iniciação como aquecimento inespecífico. Perazzo (2010)Perazzo, S. (2010). Psicodrama: o forro e o avesso. Ágora. pontua o aquecimento inespecífico como o primeiro momento, de preparação para a cena psicodramática ou para a escolha do protagonista, quando realizado em grupo.

O terapeuta caminhou pelo ambiente para se aquecer e trazer consciência aos participantes sobre o espaço em que a vivência ocorreria. Fala-se muito sobre o aquecimento dos protagonistas em psicodrama, mas Moreno também descreve que “a espontaneidade do Diretor é o que aquece o paciente” (como citado em Cukier, 2018Cukier, R. (2018). Vida e clínica de uma psicoterapeuta. Ágora., p. 96). Oliveira e Benetti (2015)Oliveira, N. H., & Benetti, S. P. C. (2015). Aliança terapêutica: estabelecimento, manutenção e rupturas da relação. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 67(3), 125-138. reforçam essa ideia ao afirmar que o estilo pessoal, o conhecimento e a experiência daquilo que o terapeuta propõe têm influência direta na aliança terapêutica.

Após o aquecimento inicial, o terapeuta explicou sobre os equipamentos de segurança e sua utilização para preparar os clientes à primeira via a ser escalada. Nesse momento, percebeu diferenças no comportamento de ambos. João, de início, escalou sem muitas perguntas ao terapeuta, enquanto Maria parecia um pouco mais preocupada em dominar a situação e pediu dicas de como fazer. João pareceu confiar imediatamente, o que ainda não era uma certeza, até a hipótese ser confirmada nos primeiros comentários a respeito da sessão:

Se eu sofro com alguma coisa na relação de confiança, talvez seja o excesso. Eu confio tranquilo. Pra mim, é quase instintivo. Existe talvez até uma ingenuidade na minha confiança.

Quanto a Maria, ela pareceu mais receosa, porém no decorrer da vivência a relação foi aparentemente fortalecendo-se. Disse Maria:

A primeira vez que subi me senti bastante ansiosa. Queria chegar ao fim logo, só queria subir, e aí depois consegui me sentir mais conectada, e acho que era importante o apoio. Quando eu estava subindo e não estava mais aguentando, você falou: “Vai, Maria. Faltam só mais dois”. E aí eu falei pra mim: “Vou terminar!”. Isso me dava motivação pra terminar.

O comentário da cliente mostrou que, mediante a comunicação na interação com o psicólogo, ela conseguiu sentir-se motivada para seguir em frente, superando-se para finalizar a via que havia escolhido. Ao descer, demonstrou estar contente e comemorou, pois foi uma atividade que a levou a estar próxima do seu limite físico e a superar o medo inicial. O terapeuta elogiou-a pela coragem e determinação. Segundo Faleiros (2004)Faleiros, E. A. (2004). Aprendendo a ser psicoterapeuta. Psicologia: Ciência e Profissão, 24(1), 14-27., espera-se que o psicodramatista, por sua espontaneidade, crie na relação um clima propício logo na primeira sessão, tornando-a um locus nascendi da espontaneidade do cliente.

As metáforas já são bem aceitas e muito utilizadas em processos psicoterápicos de diversas abordagens da psicologia. Conforme Paschoal e Grandesso (2016)Paschoal, V. N., & Grandesso, M. (2016). O uso de metáforas em terapia narrativa: facilitando a construção de novos significados. Nova Perspectiva Sistêmica, 23(48), 24-43., na prática clínica, elas têm se tornado uma ferramenta auxiliar na comunicação, por trazer reconhecimento e significado para as experiências de vida em qualquer idade. As metáforas podem ser consideradas uma forma de brincar com as palavras ou experiências, o que torna a sessão mais lúdica e permite que o cliente se expresse com maior facilidade e leveza. De acordo com Paschoal e Grandesso (2016, p. 38)Paschoal, V. N., & Grandesso, M. (2016). O uso de metáforas em terapia narrativa: facilitando a construção de novos significados. Nova Perspectiva Sistêmica, 23(48), 24-43., a metáfora “transporta o significado de um contexto para outro”.

Por estruturar-se no psicodrama, a pesquisa trouxe o drama, ou seja, a ação, para as metáforas presentes na escalada. Em vez de os clientes escutarem histórias que poderiam correlacionar com o processo terapêutico, eles puderam vivenciá-las por meio da relação, já que o foco era estimular o vínculo terapêutico inicial. Assim, as metáforas ganharam espaço físico e emocional, agarras (pedras) coloridas e 17 metros de altura. Para o psicodrama, essas metáforas podem enquadrar-se na realidade suplementar, por serem usadas como instrumento para o sujeito experienciar o que ultrapassa a realidade objetiva e oferece uma nova realidade, favorecendo a imaginação (Moreno, 2001Moreno, Z. T. (2001). A realidade suplementar e a arte de curar. Ágora.).

Na atividade, é possível observar o uso da imaginação em diversos momentos, por exemplo, quando terapeuta e cliente comparam a corda de escalada presa à cadeirinha com o cordão umbilical. Para Moreno (1959) como citado em Perazzo (2016)Perazzo, S. (2016). O homem que só chorava: um intermezzo para a realidade suplementar. In S. Perazzo & L. Gottlieb (eds.). Psicodrama: apontamento e criação (p. 163-179). FiloCzar., a realidade suplementar é um estado em que a pessoa atua a sua fantasia. Perazzo (2010)Perazzo, S. (2010). Psicodrama: o forro e o avesso. Ágora. completa que considera o conceito como chave da elucidação não só da cena psicodramática, mas como a base inquestionável do processo de criação, o substrato da nossa verdade psicodramática e poética, o requinte criativo em que o sujeito se integra e se eleva no encontro com o seu semelhante.

Não podemos deixar de considerar que essas metáforas são utilizadas com base nos objetos intermediários encontrados no ginásio de escalada. O termo “objeto intermediário” foi introduzido na teoria e na prática psicodramática por Rojas-Bermúdez (2016)Rojas-Bermúdez, J. G. (2016). Introdução ao psicodrama. Mestre Jou. como um recurso para auxiliar o aquecimento dos pacientes psicóticos crônicos nas sessões de psicodrama. O termo foi assim denominado pelo autor por causa da própria qualidade de intermediar a passagem do campo tenso para o campo relaxado.

RELAÇÃO ENTRE O PSICODRAMA E AS SESSÕES TERAPÊUTICAS

As conversas com os clientes são compreendidas à luz de conceitos psicodramáticos e relacionadas com conceitos da escalada.

Checagem dos equipamentos

Antes de o escalador iniciar a ascensão, a dupla deve estar atenta para conferir mutuamente a segurança e o ajuste correto dos equipamentos. No processo terapêutico, essa verificação compara-se aos acordos e ao possível engajamento de ambos, cliente e terapeuta. Os dois precisam sentir-se seguros, confortáveis e dispostos para a terapia acontecer. Vestir a cadeirinha, como ocorre no procedimento de escalada esportiva, pode ser compreendido no campo simbólico como escolher experimentar a relação paciente-terapeuta. Se o cliente estiver disponível, ele poderá escolher uma corda, que representa o vínculo com determinado terapeuta.

Moreno preocupava-se com a interação, o compartilhar e estar junto para crescer. Dessa forma, tomar uma postura psicodramática implica internalizar um modelo terapêutico que busca trazer ao contexto a relação mais télica possível (Faleiros, 2004Faleiros, E. A. (2004). Aprendendo a ser psicoterapeuta. Psicologia: Ciência e Profissão, 24(1), 14-27.).

Corda dinâmica

A corda dinâmica é uma corda com certa capacidade elástica para a prática da escalada e representa a concretização do vínculo, o que conecta terapeuta e cliente. Para o psicodrama, o vínculo caracteriza a interação entre as pessoas, que atuam por meio de papéis (Bustos, 2001Bustos, D. M. (2001). Perigo, amor à vista: drama e psicodrama de casais. Aleph.). Esse vínculo pode ter características télicas ou transferenciais. Para Bustos (2005)Bustos, D. M. (2005). O psicodrama: aplicações da técnica psicodramática. Summus., não há relação totalmente télica nem totalmente transferencial.

Conforme Bustos (1979)Bustos, D. M. (1979). Psicoterapia psicodramática. Brasiliense., tele é uma noção social, pois somente é vista e desenvolvida na relação com o outro. Já a transferência e a empatia são noções psicológicas, que atuam em nível individual. A afirmação do autor pode ser comparada com a fala da cliente Maria, que receou por não conhecer o terapeuta, insegura se deveria desistir antes de conhecê-lo:

No carro, vindo para cá, eu já estava pensando: ‘Nossa, que diferente! Faz tanto tempo que eu não tenho outro terapeuta, o que eu vou falar? Acho que não vou, vou desistir’, e no fim foi legal ter essa experiência.

Na sessão com João, quando explicava a representação do vínculo por intermédio da corda, ele demonstrou compreendê-la e falou: “Essa corda simboliza o cordão umbilical”, em tom de brincadeira, já que a corda é presa à cadeirinha de escalada na mesma altura do umbigo. Bustos (2001)Bustos, D. M. (2001). Perigo, amor à vista: drama e psicodrama de casais. Aleph. considera que a psicoterapia psicodramática bipessoal repete o modelo relacional mãe-filho, um vínculo superprotetor, mas também temido. Por ser uma modalidade que propicia a investigação das primeiras relações afetivas, as únicas tensões nessa modalidade de atendimento provêm da relação com o terapeuta (Ramalho, 2010Ramalho, C. M. R. (2010). Psicodrama e dinâmica de grupo. Iglu.).

A corda também pode ser considerada como um dos objetos intermediários que facilitam a relação entre terapeuta e cliente. Do ponto de vista prático, o objeto intermediário “é qualquer objeto que funcione como facilitador do contato entre duas ou mais pessoas” (Castanho, 1995, p. 32 como citado em Schmidt, 2006Schmidt, M. L. G. (2006). A utilização do objeto intermediário no psicodrama organizacional: modelos e resultados. Psicologia para América Latina, (8).).

Escalador e segurador

Escalador e segurador são as pessoas conectadas pela corda, porém com funções diferentes. O escalador sobe na parede, enquanto o segurador provê a corda para a ascensão e descida, assim como fica responsável pela assistência e segurança, no caso de quedas.

O escalador e o segurador foram apresentados aos dois clientes no papel de cliente e de contrapapel do terapeuta. Na sessão com João, o terapeuta falou:

Você deve ter percebido que em momento algum eu te puxei para cima. Você teve que fazer força com as próprias pernas e braços para seguir em frente.

Comentou também que precisaria que João comunicasse a ele se faltasse força, para então retesar a corda – termo que significa tirar a folga da corda para não haver quedas.

Em toda relação, a pessoa que dá segurança também deve aprender a dar o espaço de que o outro precisa – determinada folga pode ajudar que o sujeito se sinta livre e confiante em seus movimentos. O terapeuta exemplificou que relacionamentos em que um prende muito o outro acaba por restringir a liberdade, podendo trazer consequências ruins e possíveis rompimentos do vínculo.

Segundo Fonseca Filho (2010, p. 19)Fonseca Filho, J. S. (2010). Psicoterapia da relação: elementos do psicodrama contemporâneo. Ágora., “o paciente e terapeuta, independente[mente] da linha psicoterápica, coparticipam de um encontro humano envolvidos em papéis de categorias diferentes”. O autor explica que, enquanto um busca ajuda, o outro está trabalhando, trazendo para essa relação um vínculo não igualitário, demarcando as características básicas da relação. Mesmo assim, as duas pessoas estão numa relação horizontal, incluídas pelo inter, que é a base cultural para o desenvolvimento do processo ser. Fonseca Filho (2010)Fonseca Filho, J. S. (2010). Psicoterapia da relação: elementos do psicodrama contemporâneo. Ágora. descreve que a qualidade da criação dessa condição de horizontalidade, apesar dos papéis hierárquicos, é o que marca a eficácia do profissional psicoterapeuta.

Inversão de assegurador

A inversão de assegurador representa a inversão de papéis, ou seja, o cliente, que estava escalando, agora passa a oferecer a segurança ao terapeuta. A inversão de papéis é uma técnica do psicodrama que foi também identificada na fase da matriz de identidade. Nesse período, espera-se que as pessoas possam sair da perspectiva do eu e assumir o papel do outro, para que, nesse novo olhar existencial, ampliem sua consciência sobre a relação de reciprocidade, característica do fenômeno tele, que permite enxergar o outro com seus olhos (Fonseca Filho, 2008Fonseca Filho, J. S. (2008). Psicodrama da loucura: correlações entre Buber e Moreno. Ágora.). Essa técnica é bastante difundida como base de intervenções no psicodrama, provavelmente uma das mais utilizadas na clínica. Moreno considera essa técnica como o motor que proporciona o psicodrama, que facilita a ampliação da consciência sobre uma relação (como citado em Cukier, 1992Cukier, R. (1992). Psicodrama bipessoal: sua técnica, seu terapeuta e seu paciente. Ágora.).

A participante Maria, ao inverter o papel com o psicólogo, comentou:

Eu fiquei supertensa aqui embaixo, achei que doeu mais o meu braço aqui do que escalando. Acredito que a responsabilidade é muito grande de ter alguém dependendo de mim, aí talvez por isso fiquei mais tensa.

Na inversão de papéis, cada cliente demonstrou certo nível de desconforto. João achou mais difícil escalar do que dar a segurança, e Maria, o oposto, provavelmente por aspectos relacionados às experiências pessoais de cada um. Naffah Neto (1979) como citado em Perazzo (2010)Perazzo, S. (2010). Psicodrama: o forro e o avesso. Ágora. considera o iniciador físico não apenas um ato mecânico, mas um conjunto complexo de contrações e interações musculares, que possuem conexões com determinada situação e dado tempo. Para Pichón-Rivière (1998)Pichón-Rivière, E. (1998). Teoria do vínculo (6. ed.). Martins Fontes., os vínculos são estruturas dinâmicas em que cada sujeito reage de maneira diferente. Mesmo conectados e dependentes um do outro, cada ser possui suas necessidades internas movidas pela história de vida pessoal.

O profissional explicou que, na escalada, quem dá a segurança precisa estar conectado com o escalador, com atenção total ao que acontece no momento presente. Não pode largar a corda, falar ao telefone, ficar olhando a paisagem. É necessário manter total atenção ao que o escalador está fazendo para acompanhar o seu ritmo e oferecer a maior segurança possível. Em relação à sintonia, o profissional falou aos clientes que, se o ritmo de quem recolhe a corda e de quem escala não for parecido, as quedas podem ser maiores.

Além do segurador, o escalador também precisa perceber o momento, como sentir o corpo quando cansado, para poder descansar em uma boa agarra. Ramalho (2010)Ramalho, C. M. R. (2010). Psicodrama e dinâmica de grupo. Iglu. lembra as ideias morenianas sobre a importância de viver o momento, mesmo que não se possa prever o que ocorrerá. Nas vias mais difíceis, principalmente, é muito importante pensar nos movimentos, descansar bem quando se pode e sempre comunicar o que for necessário. De acordo com Ilgner (2016, p. 15)Ilgner, A. (2016). Treinamento Expresso do Caminho do Guerreiro da Rocha. Companhia da Escalada., “para desenvolver uma boa forma mental, precisamos equilibrar as metas finais com a experiência e o aproveitamento da escalada por si só. Construir a consciência de tais processos mentais é a essência do treinamento mental”.

Quanto ao psicoterapeuta, ele passa por alguns desafios nesse processo, por não saber quais serão as reações nem as transferências da relação (Faleiros, 2004Faleiros, E. A. (2004). Aprendendo a ser psicoterapeuta. Psicologia: Ciência e Profissão, 24(1), 14-27.). O processo da inversão pode auxiliar, pois, se ele busca uma relação télica, ou seja, de mutualidade, mostrar confiança no cliente também é importante, assim como as ações do terapeuta comunicam algo a ele. Tentamos compreender-nos por meio de nossas ações, dos vínculos que estabelecemos na relação com o outro (Nery, 2018Nery, M. P. (2018). Vínculo e afetividade: caminho das relações humanas (4. ed.). Ágora.). Quando o terapeuta se propõe a estar nessa situação de inversão, de forma não verbal ele mostra ao cliente que confia em seus potenciais e que juntos darão conta da responsabilidade.

Escolha da via

A escolha da vida consiste na autonomia do cliente sobre onde deseja chegar e por qual caminho seguir. A João, o terapeuta falou para caminharem pelo ginásio para olharem as outras vias. Encontraram uma via diferente, um pouco mais difícil que as outras que haviam feito. João perguntou:

Você recomenda essa via?

O terapeuta disse: Você que decide. A que escolher estarei com você.

O cliente decidiu subir a via com o apoio do terapeuta.

Nery (2018)Nery, M. P. (2018). Vínculo e afetividade: caminho das relações humanas (4. ed.). Ágora. fala que uma das tarefas do psicólogo é estar atento aos sinais de vinculação, como de comportamento, fala, jeito de falar, emoções, entre outros aspectos.

Com Maria, o terapeuta pôde compreender no segundo encontro a importância de dar-lhe a autonomia necessária para a escolha da via. No compartilhamento, ao fim da sessão, Maria disse:

Estou mais confortável. Eu vim muito travada. Na semana passada eu ainda estava com receio, mas agora estou mais segura, me sentindo mais à vontade.

O psicólogo concordou com ela e mencionou a sua necessidade de entender previamente quase tudo o que estava acontecendo, com certo receio, porém que depois conseguiu escalar. A cliente finalizou a sessão dizendo:

Eu me senti escolhendo o caminho que eu quisesse subir, e dependia do meu esforço, com seu incentivo e sugestões, mas era eu. Então, eu me senti dona do meu processo naquele momento e foi muito legal.

Nery (2018)Nery, M. P. (2018). Vínculo e afetividade: caminho das relações humanas (4. ed.). Ágora. diz que a forma de desempenho predominante do papel do cliente explicita a sua história de vida, sua comunicação e seu aqui e agora no contexto terapêutico. No ginásio, o terapeuta indicava a gradação das vias, contudo quem escolhia para onde ir sempre eram os clientes. O pesquisador até mesmo verbalizou:

Pode escolher. Aonde você for, eu estarei contigo.

As vias são como nossos papéis

Na seguinte metáfora dos papéis, cada via pode representar nossas diferentes funções ou até mesmo nossas metas. Precisamos nos identificar e aquecer antes de iniciar a subida. Provavelmente, ao começar, você precisará rever caminhos, pois, quando na prática, nem todo percurso planejado é o mais confortável. Muitas vezes, precisará pensar se ainda faz sentido continuar por onde decidiu ir anteriormente. Perceber o momento e o que seu corpo comunica é fundamental. Há tempo para planejamento, execução, momentos de descanso enquanto replaneja e de respirar calmamente, poupando energia para não cair de vez.

“A escalada ideal de uma via deve incluir paradas em diversos momentos para planejar e depois mover-se deliberadamente entre os descansos” (Ilgner, 2006Ilgner, A. (2016). Treinamento Expresso do Caminho do Guerreiro da Rocha. Companhia da Escalada., p. 15). Quando se sobe sem parar, a probabilidade de você cair é muito maior. A felicidade não está apenas no topo, mas em aproveitar o caminho, o momento presente. Essa metáfora permitiu ao psicólogo fazer os clientes pensarem em seus vínculos. Nery (2018)Nery, M. P. (2018). Vínculo e afetividade: caminho das relações humanas (4. ed.). Ágora. diz que, na vida, cada vínculo que estabelecemos é único e reporta a comportamentos e emoções especiais.

Foram feitos breves comentários no ginásio, mas os aprofundamentos foram reservados às sessões nas salas da Associação Paranaense de Psicodrama, pela questão do sigilo. Ao perceber que em algumas vias se levavam mais tempo e energia do que em outras, o psicólogo fez uma associação com a vida real e perguntou a João quais dos seus papéis se pareciam com essas vias que demandaram mais. O cliente compartilhou que lhe demandava mais a função de psicólogo, pois acabava por cuidar da namorada e de amigos em alguns momentos, mesmo que não estivesse trabalhando. O tema foi aprofundado nas sessões na clínica, mas as metáforas ali utilizadas foram facilitadoras para começar a se pensar e comunicar sobre algumas relações, aspectos importantes para o início de um processo terapêutico.

Na sessão de Maria, a conexão com seus vínculos surgiu de maneira parecida. Ao abordar o tema, o psicólogo perguntou quais outros papéis sociais Maria desempenhava. Primeiramente, respondeu que o papel de filha lhe era bem significativo. Comentou também sobre o seu papel de irmã e, quando começou a falar do seu papel de namorada, mudou a entonação, dando a impressão de que não estaria tão segura. O psicólogo passou a comparar a corda que utilizavam para compreender melhor as impressões de Maria acerca dessa relação. Maria explicou que a corda estava bamba, não conseguia confiar muito nela. O profissional comentou que o nó que prende a corda na pessoa poderia representar os critérios de escolha para essa relação, mas falariam disso em outro espaço, e Maria concordou.

Moreno (2008)Moreno, J. L. (2008). Quem sobreviverá? Fundamentos da sociometria, da psicoterapia do grupo e do sociodrama. Daimon – Centro de Estudos do Relacionamento. apresenta, com base nos conhecimentos da sociometria, que nossas relações podem ser concretizadas em gráficos, como o teste sociométrico de atração, rejeição ou indiferença, mas para compreender como nos posicionamos em relação a outra pessoa é necessário identificar os critérios de escolha da relação. Por exemplo, para um trabalho acadêmico em conjunto, escolho certa pessoa, enquanto busco alguém diferente para uma noite de entretenimento.

Após as metáforas1 1 Com base nos conceitos de Moreno (2008), o terapeuta poderia levantar outros pontos, como: Em quem de seus vínculos você confiaria para dar segurança? Quem você chamaria para subir a montanha? Você sabe quantos quilos a corda da sua relação aguenta? Como reforçaria sua segurança? Em quantas pessoas está pendurada? Já tentou puxar alguém para cima? Consegue dividir o peso com mais pessoas para subir mais leve? Já que o nó da corda na cadeirinha é o que prende você ao outro, quais foram seus critérios de escolha para se conectar? que instigaram os clientes a pensarem em suas relações, o terapeuta finalizou a atividade no ginásio e, na Associação Paranaense de Psicodrama, utilizou o átomo social para compreender não apenas com quem, mas como acontecem as dinâmicas dessas relações. Segundo Moreno (2017)Moreno, J. L. (2017). Psicodrama (2. ed.). Cultrix., o átomo social é entendido como um agrupamento de elementos pela percepção do protagonista, sendo uma configuração social das próprias relações interpessoais. Cukier (1992)Cukier, R. (1992). Psicodrama bipessoal: sua técnica, seu terapeuta e seu paciente. Ágora. diz que, por intermédio da investigação dramática do átomo social, é possível explorar a sociodinâmica das relações concretizadas pelo cliente.

O foco deste trabalho está na relação vincular com o terapeuta. O psicólogo considera que nas sessões o vínculo pôde ser identificado pelos compartilhamentos dos clientes e pelo aprofundamento dos temas trabalhados, o que indica um bom desenvolvimento dessa relação profissional.

CONTINUIDADE APÓS A ESCALADA

Com Maria, as sessões seguintes caminharam para a compreensão da sua dinâmica relacional com o namorado, influenciada por outros vínculos familiares, principalmente sua relação com o pai. Ao fim das quatro primeiras sessões, a situação não estava resolvida, pois psicoterapia não é mágica, mas durante as dramatizações o psicólogo percebeu que Maria já estava separando melhor os papéis e ciente da sua responsabilidade nesses vínculos, identificando melhor o que poderia fazer sobre aquilo que tem autonomia. Os comentários ao final das sessões ajudaram o profissional a compreender que o vínculo terapêutico estava sendo construído e que Maria estava vendo resultados desse processo, como com a frase final do quarto encontro:

Não tem sido fácil. Eu saio com a cabeça saindo fumaça, mas a primeira palavra que veio foi transformador, por tomar consciência dessa situação.

Nas sessões com João, foi possível trabalhar a sua relação com a namorada, as suas zonas de conforto e o desejo de tornar-se uma figura importante para a sociedade.

Isso mostra que cada cliente possui um ritmo e uma maneira de lidar com seu processo. Assim como na escalada, é fundamental que o psicólogo dê liberdade e apoio para o cliente subir por onde quiser e na velocidade que quiser. Ramalho (2010)Ramalho, C. M. R. (2010). Psicodrama e dinâmica de grupo. Iglu. explica que Moreno pretendia que cada sessão pudesse ser uma experiência existencial, sendo possível encontrar aspectos básicos da fenomenologia existencial, como: existência, ser, espaço, encontro, liberdade, percepção, corpo, imaginário, vivência, entre outros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa identificou que se podem utilizar outros settings para iniciar a psicoterapia e que os recursos disponíveis no ginásio foram facilitadores, funcionando como objetos intermediários para abordar a relação terapêutica. Desse modo, não apenas o local precisa ser considerado, mas a forma como a relação se estabelece durante a vivência proposta.

Quanto aos aspectos psicológicos e relacionais presentes na escalada esportiva, a motivação pessoal do profissional facilitou o aquecimento, e a espontaneidade e a criatividade influenciaram positivamente a motivação dos clientes. Por sentir-se confortável com o espaço alternativo de trabalho, o terapeuta pôde envolver-se com os participantes de forma verdadeira e estar presente na relação, atento aos comportamentos durante a escalada, tornando-os possíveis de serem utilizados como material nas sessões seguintes.

Quanto à percepção dos clientes sobre a função dos papéis, tanto João como Maria assumiram o contrapapel proposto. Pelo movimento de entrega e aprofundamento que tiveram em seus temas, principalmente Maria, por abordar as suas relações primárias, foi possível afirmar que ambos conseguiram desenvolver o vínculo inicial esperado pela pesquisa. Mesmo quando os dados para a pesquisa não seriam mais coletados, os dois clientes desejaram continuar o processo com o terapeuta.

No âmbito da motivação para o início da terapia, o terapeuta observou que aspectos pessoais dos clientes foram facilitadores, pois cada um já havia tido algum envolvimento com atividades de aventura e que, somado ao aspecto terapêutico, gerou curiosidade e abertura.

Numa perspectiva mais ampla, a importância deste trabalho reflete no fato de que pesquisas sobre psicoterapia correlacionada a ambientes não tradicionais de atendimento são escassas e há falta de materiais que possam ajudar a inovar a psicologia sem descaracterizá-la. Durante a aplicação da pesquisa, escalando com os clientes, o profissional psicólogo foi capaz de observar que outros aspectos além do vínculo inicial podem ser estudados e aplicados como forma alternativa de intervenção.

Por fim, considera-se que esta pesquisa trouxe benefícios em diversas escala(da)s, contribuindo com a ciência na aquisição de novos métodos que facilitam a criação do vínculo terapêutico e formas não tradicionais sobre o setting terapêutico, provando que as quatro paredes do consultório representam muito menos que a força da interação humana nesse vínculo profissional. Espera-se, principalmente no âmbito social, que os benefícios deste trabalho alcancem pessoas que não acreditavam na psicoterapia ou não se sentiam motivadas a buscar um psicólogo.

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    Com base nos conceitos de Moreno (2008)Moreno, J. L. (2008). Quem sobreviverá? Fundamentos da sociometria, da psicoterapia do grupo e do sociodrama. Daimon – Centro de Estudos do Relacionamento., o terapeuta poderia levantar outros pontos, como: Em quem de seus vínculos você confiaria para dar segurança? Quem você chamaria para subir a montanha? Você sabe quantos quilos a corda da sua relação aguenta? Como reforçaria sua segurança? Em quantas pessoas está pendurada? Já tentou puxar alguém para cima? Consegue dividir o peso com mais pessoas para subir mais leve? Já que o nó da corda na cadeirinha é o que prende você ao outro, quais foram seus critérios de escolha para se conectar?

AGRADECIMENTOS

Não aplicável.

  • FINANCIAMENTO

    Não aplicável.

DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

Todos os dados foram gerados/analisados no presente artigo.

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Editado por

Editora de seção: Kim Boscolo https://orcid.org/0000-0003-4177-2093

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2023
  • Aceito
    20 Maio 2024
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