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Aspectos da matriz de identidade nas entrevistas iniciais do psicodrama

Aspectos de la matriz de identidad en las entrevistas iniciales de psicodrama

Aspects of the identity matrix in the initial psychodrama interviews

RESUMO

O objetivo desta pesquisa foi identificar aspectos da matriz de identidade durante entrevistas iniciais que antecedem o processo psicoterápico. A metodologia foi qualitativa, abordando estudo de caso de uma ex-cliente. Optou-se por uma análise à luz da teoria socionômica, teoria dos clusters e perspectiva interseccional. A entrevistada era originária de família na qual experimentou violências, negligências e omissões na infância, situação que cristalizou um modo de ser “briguenta”, que se irradiava para outros papéis sociais. Apresentou queixas de conflitos com o esposo, presença de processos transferenciais complementares, com agudo sofrimento psicológico e busca por soluções não realistas. Destaca-se aspectos do primeiro e do segundo universo da matriz de identidade e é constatada a potência das entrevistas iniciais para o psicodrama.

PALAVRAS-CHAVE
Psicodrama; Entrevistas iniciais; Matriz de identidade

RESUMEN

El objetivo fue identificar aspectos de la matriz identidad durante entrevistas iniciales que preceden al proceso psicoterapéutico. La metodología fue cualitativa, abordando estudio de caso de excliente. Elegimos analizar a la luz de la teoría socionómica, teoría de clusters y perspectiva interseccional. La entrevistada era originaria de familia en la que vivió violencia, abandono y omisión en su infancia, situación que cristalizó una forma “pendenciera” de ser que irradió a otros roles sociales. Presentó quejas de conflictos con su marido y presencia de procesos de transferencia, con agudo sufrimiento psicológico y búsqueda de soluciones poco realistas. Detectamos aspectos del primer y segundo universo de la matriz de identidad y comprobamos la potencia de las entrevistas iniciales para psicodrama.

PALABRAS CLAVE
Psicodrama; Entrevistas iniciales; Matriz de identidad

ABSTRACT

The objective of this research was to identify aspects of the identity matrix during the initial interviews of the psychotherapeutic process. The methodology was qualitative, approaching the case study of a former client. The analysis was based on socionomic theory, cluster theory and intersectional perspective. The interviewee was brought up by a family in which she experienced violence, neglect and omission during childhood. This situation crystallized and spread to other social roles. She complained of conflicts with her husband and the presence of additional transfer processes, with psychological suffering and search for unrealistic solutions. We detected aspects of the first and second universes of the identity matrix and verified the power of the initial interviews for Psychodrama.

KEYWORDS
Psychodrama; Initial interviews; Identity matrix

INTRODUÇÃO

O presente texto resulta do trabalho de conclusão do Curso de Formação em Psicodrama Nível I com o tema da Matriz de Identidade nas Entrevistas do Psicodrama1 1 Defesa do TCC em 12/05/2023 pela Associação Bahiana de Psicodrama e Psicoterapia de Grupo, sob a orientação de Rosana Rebouças (CRP 03/1317). . Esse tema surgiu a partir da constatação de que a técnica das entrevistas iniciais, que antecedem a psicoterapia no psicodrama, desvelou conteúdos pessoais tal material poderia basear hipóteses e manejos terapêuticos e facilitaria a contextualização dos processos psicológicos na estrutura dos sistemas sociais presentes na sociedade.

As justificativas acima mobilizam a seguinte indagação: é possível identificar aspectos da matriz de identidade, nas entrevistas iniciais que antecedem o psicodrama bipessoal?2 2 Bipessoal é uma terminologia adotada no psicodrama para definir uma relação entre duas pessoas. A metodologia da investigação foi qualitativa e, para abordar o objeto de estudo, foi escolhida a pesquisa exploratória focando num estudo de caso que, segundo Gil (2002, p. 54)Gil, A. C. (2002) Como elaborar projetos de pesquisa. (4ª ed.). Atlas., “permite uma investigação profunda (...) ampla e detalhada do conhecimento”. Os critérios para a escolha da participante foram: ex-cliente adulta (18 a 30 anos); ter participado de todas as etapas das entrevistas iniciais; ter acesso aos registros físicos das sessões e autorizado o estudo dos seus dados para investigação. “Dados autorizados segundo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; coleta de dados baseada na Resolução 510/2016: parágrafo único. Não serão registradas nem avaliadas pelo sistema CEP/CONEP:(...) VII - pesquisa com objetivo aprofundamento teórico de situações que emergem espontânea e contingencialmente na prática profissional, desde que não revelem dados que possam identificar o sujeito”.

A metodologia moreniana do século XX dialoga com as metodologias de pesquisa em psicologia do século XXI, a partir de três conceitos (Moreno, 1993Moreno, J. L. (1993). Psicodrama. (Á. C. Trad.) (9ª ed.). Cultrix., p. 303): o “locus, status nascendi e a matriz”. O locus contextualiza a pesquisa. O status nascendi permite acompanhar os processos psicológicos ocorridos durante a pesquisa. Já a matriz define a origem do objeto de estudo e os envolvidos como coautores(as) da investigação. Ressalto que utilizo a categoria protagonista, em vez de cliente ou paciente segundo o psicodrama.

ORIGENS DO PSICODRAMA E SUA INTRODUÇÃO NO BRASIL

O psicodrama é um método de psicoterapia de grupo, criado pelo psiquiatra romeno Jacob Levy Moreno (1889-1974), a partir da sua teoria denominada socionomia. É definida como: “a ciência que explora a ‘verdade’ por métodos dramáticos. Trata das relações interpessoais e de mundos particulares” (Moreno, 1992Moreno, J. L. (1992) Quem Sobreviverá? Fundamentos da sociometria, psicoterapia de grupo e sociodrama. (Vols. 1-3. A. R. Faria, D. L. Rodrigues e M. A. Kafuri Trads.). Dimensão., p. 183).

Moreno (1993)Moreno, J. L. (1993). Psicodrama. (Á. C. Trad.) (9ª ed.). Cultrix. destacou quatro bases para a criação do psicodrama. A primeira deu-se na infância, quando ele tinha quatro anos e dramatizou a “brincadeira de Deus” com os amigos. A segunda (1908 e 1911) foi uma contação de histórias para crianças nos jardins de Augarten/Viena/Áustria. A terceira ocorreu em duas intervenções em grupos com adultos: em 1913 com um colega médico, na qual reuniram e orientaram as profissionais do sexo sobre seus direitos e saúde. Já em outra ação (entre 1915 a 1917), ele trabalhou como psiquiatra para acolher e medicar famílias refugiadas da Primeira Guerra Mundial. A quarta base (entre 1921 a 1925) aconteceu após atender o convite de atores profissionais, que lhe pediram para explorar e ampliar a criatividade daquele grupo. Após experimentações no palco, produziu processos criativos e métodos que resultaram no teatro da espontaneidade e no teatro terapêutico, técnicas utilizadas no psicodrama.

Em 1925, Moreno migrou de Viena para os EUA e se estabeleceu como psiquiatra, psicoterapeuta, formador e pesquisador de grupos no país adotado, consolidando o psicodrama em congressos internacionais nos EUA, Europa, América do Sul e, principalmente, no Brasil.

A primeira introdução do psicodrama no Brasil foi em 1930, com Helena Antipoff, em Belo Horizonte (MG), com as técnicas parciais do psicodrama (Gonçalves, Wolff & Almeida, 1988Gonçalves, C. S., Wolff, J, R. & Almeida, W. C. (1988). Lições de Psicodrama. introdução ao pensamento de J. L. Moreno. Ágora., p. 30). A segunda aconteceu na década de 1940, no Rio de Janeiro (RJ) com o sociólogo, intelectual e militante Guerreiro Ramos (1915-1982), por meio do Teatro Experimental do Negro (TEN) (Malaquias, 2020Malaquias, M. C. (Org.). (2020). Psicodrama e relações étnicas-raciais: diálogos e reflexões. (Cap I. pp. 17-27). Ágora., p. 17). A terceira foi em 1955, com Pierre Weil (1924-2008), a partir de treinamentos a profissionais no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), no Rio de Janeiro (Metaxa Kladi, 2020Metaxa Kladi, V. (2020). Pierre Weil e o psicodrama no Brasil. Revista Brasileira de Psicodrama, 17(1), 185-187. Recuperado de: https://revbraspsicodrama.org.br/rbp/article/view/99). Por fim, a quarta objetivou a formação profissional, com o psiquiatra e psicodramatista colombiano J. G. Rojas-Bermúdez (1926-2022) que, em 1970, organizou com colegas brasileiros o V Congresso Internacional de Psicodrama e Sociodrama, realizado em São Paulo (Soeiro, 1995Soeiro, A. C. (1995). Psicodrama e Psicoterapia. (2ª ed. C. A. Saad. Trad. col. rev. e ampl.). Ágora., p. 25).

BREVE APRESENTAÇÃO SOBRE A SOCIONOMIA

A socionomia é a teoria que sustenta o método do psicodrama. Definida como “a ciência das leis sociais” (Moreno, 1974Moreno, J. L. (1974). Psicoterapia de Grupo e Psicodrama. Introdução à teoria e à práxis. (A. C. M. Cesarino Filho. Trad.). Mestre Jou., p. 39), é dividida em três áreas: a sociodinâmica, que aborda a dinâmica dos grupos, com o método role playing; a sociometria, que estuda os padrões de afetos presentes nos grupos, com o teste sociométrico; e a sociatria, que tem fins sócio e psicoterapêutico, a partir dos métodos de psicoterapia de grupo, do sociodrama, do psicodrama auxiliado pelas técnicas básicas.

Os principais conceitos teóricos da socionomia são: o fator e ou a espontaneidade, o fator tele, a teoria dos papéis, a matriz de identidade e o átomo social. Moreno (1974)Moreno, J. L. (1974). Psicoterapia de Grupo e Psicodrama. Introdução à teoria e à práxis. (A. C. M. Cesarino Filho. Trad.). Mestre Jou. definiu o conceito de espontaneidade ou fator e comparando a um catalizador ou propulsor que favorece o emergir da criatividade: a “espontaneidade é a resposta adequada a uma nova situação ou a nova resposta a uma situação antiga” (Moreno, 1974Moreno, J. L. (1974). Psicoterapia de Grupo e Psicodrama. Introdução à teoria e à práxis. (A. C. M. Cesarino Filho. Trad.). Mestre Jou., p. 58).

Já o fator tele (do grego: distante, agindo à distância) foi definido como uma ligação elementar que pode existir entre os indivíduos e objetos”, sendo considerada “o fundamento de todas as relações interpessoais sadias e elemento essencial de todo método eficaz de psicoterapia” (Moreno, 1974Moreno, J. L. (1974). Psicoterapia de Grupo e Psicodrama. Introdução à teoria e à práxis. (A. C. M. Cesarino Filho. Trad.). Mestre Jou., p. 52).

A teoria de papéis é um conceito defendido por Moreno na matriz de identidade (Moreno, 1993Moreno, J. L. (1993). Psicodrama. (Á. C. Trad.) (9ª ed.). Cultrix., p. 238) como: “uma unidade de experiência sintética em que se fundiram elementos privados, sociais e culturais”. Ele também dividiu os papéis em três tipos: papéis psicossomáticos, sociais e psicodramáticos e relacionou o conceito de papéis com a origem do e u: “o desempenho de papéis é anterior ao surgimento do Eu. Os papéis não emergem do eu; é o Eu todavia que emerge dos papéis” (Moreno, 1993Moreno, J. L. (1993). Psicodrama. (Á. C. Trad.) (9ª ed.). Cultrix., p. 25).

A matriz de identidade é uma visão moreniana do desenvolvimento sócio-psicológico na infância e auxilia para a compreensão de formação de identidade, da dinâmica e dos processos psicológicos que ocorrem nos grupos humanos.

A matriz de identidade foi dividida inicialmente em cinco etapas e posteriormente resumida em dois universos, contendo três momentos. Ela abrange etapas pelas quais a criança passa de um processo de indiferenciação total para uma progressiva diferenciação do contexto sociocultural. As etapas são assim definidas: o Iº universo contém duas fases – a primeira, denominada de matriz de identidade total indiferenciada e a segunda de matriz de identidade total diferenciada, e o IIº universo, com a etapa denominada Matriz da Brecha entre Fantasia e Realidade. É o momento em que a criança avança no processo de diferenciação mais fina e subjetiva, separando fantasia de realidade, para poder estabelecer uma distinção mais segura entre o Eu, o Tu e o Outro.

Por fim, o último conceito é o de átomo social, que mostra o “padrão de relações em torno de um indivíduo” (Moreno, 1993Moreno, J. L. (1993). Psicodrama. (Á. C. Trad.) (9ª ed.). Cultrix., p. 135) no momento presente.

AS REFERÊNCIAS FILOSÓFICAS DA SOCIONOMIA

No conceito de Matriz de Identidade, Moreno (1993, p. 25) afirma que a matriz “é existencial, mas não é experimentada. Pode ser o locus onde surgem, em fase gradual, o Eu e suas ramificações, os papéis”. Esse conceito tem raízes nos seguintes pensadores existencialistas, visitados por Moreno e que contribuíram para ampliar a noção de matriz.

O pai do existencialismo, Søren Kierkegaard (1813-1855), defendeu ideias como: a existência autêntica, a loucura, a angústia, o tédio e a responsabilidade sobre suas próprias ações (Martín, 1996Martín, E. G. (1996). Psicologia do Encontro: J. L. Moreno. (M. J. A. Albuquerque Trad.). (Cap I, pp. 15-41). Ágora.), desafios que a criança poderá enfrentar na sua matriz. Já Friedrich Nietzsche (1844-1900) debateu a “vivência humana subjetiva”, “o eterno retorno”, o “super-homem” e a crítica à moral da sua época. Tais temas, Moreno (1993, pp. 70-73)Moreno, J. L. (1993). Psicodrama. (Á. C. Trad.) (9ª ed.). Cultrix. relacionou com questões como identidade, teatro genuíno, convenções e relações entre criador e criatura.

Em Henri Bergson (1859-1941), Moreno destacou o conceito de élan vital, o qual tem aproximação com o conceito de espontaneidade e adequação às circunstâncias (Martín, 1996Martín, E. G. (1996). Psicologia do Encontro: J. L. Moreno. (M. J. A. Albuquerque Trad.). (Cap I, pp. 15-41). Ágora.. p. 18), dispositivo que auxilia a criança a enfrentar obstáculos na matriz (Moreno, 1993Moreno, J. L. (1993). Psicodrama. (Á. C. Trad.) (9ª ed.). Cultrix., p.154). Martin Buber (1878-1965) filosofou sobre a categoria encontro ao problematizar o Eu-Tu e Eu-Isso nas relações humanas. Já Moreno (1993)Moreno, J. L. (1993). Psicodrama. (Á. C. Trad.) (9ª ed.). Cultrix. adotou uma visão prática e criou métodos e técnicas que possibilitaram o encontro existencial.

Por último, o filósofo Martin Heidegger (1889-1976) fundou a fenomenologia existencial e debateu sobre o sentido da vida e a experiência autêntica no mundo concreto, conceitos que podem ser experimentados pela criança na matriz ao vivenciar a brecha entre fantasia e realidade (Seibt, 2018).

AS ENTREVISTAS INICIAIS NO PSICODRAMA

Segundo Bleger (2003)Bleger, J. (2003). Temas de Psicologia: Entrevista e Grupos. (2ª ed. R. M. M. de Moraes. Trad. L. L. Rivera Rev. pp. 2-48). Martins Fontes., a técnica de entrevistas iniciais em psicologia se originou na medicina e objetiva o estudo total do comportamento do indivíduo, enquanto durar a relação.

Moreno (1974, p. 143)Moreno, J. L. (1974). Psicoterapia de Grupo e Psicodrama. Introdução à teoria e à práxis. (A. C. M. Cesarino Filho. Trad.). Mestre Jou. distingue três formas de avaliação terapêutica: a estética, a existencial e a científica. A primeira diz respeito à beleza, à composição das cenas e ao sensível. A segunda valoriza o encontro no aqui e agora existencial. A terceira é a avaliação científica, sustentada pela ciência psicológica, pela psiquiatria e pela socionomia.

Rojas-Bermúdez (1997, pp. 196-201)Rojas-Bermúdez, J. G. (1997). Teoría y Técnica Psicodramáticas. (pp. 196-202). Paidós. Seibt, Cezar Luis. (2018). Considerações sobre a fenomenologia hermenêutica de Heidegger. Revista do NUFEN, 10(1), 126-145. https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol10(1).n04ensaio29
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sistematizou um roteiro de entrevistas iniciais e as dividiu em três etapas: a primeira, denominada contato inicial, visa sondar a possibilidade de um trabalho futuro e a possível “confiança mútua” para desenvolvimento da tele; a segunda, chamada de biopatográfica, consiste na coleta de dados numa sequência linear da história de vida do(a) protagonista, e a terceira, apresentada como psicodramática, investiga e evoca memórias afetivas significativas, expressas pelo corpo estático3 3 A Técnica de Construção de Imagens (TCI) é uma contribuição de Rojas-Bermúdez (1980, p. 127) para o psicodrama. Consiste em reproduzir cenas de situações reais, imaginárias ou criadas pelo(a) protagonista no palco psicodramático, usando o corpo estático, com o auxílio do ego auxiliar e/ou de componentes do grupo, para compor uma cena, tal como numa fotografia. ou em movimento.

Além dessas três etapas, existem mais duas que conheci nas escolas de formação em psicodrama, por meio de comunicação oral das docentes: a etapa do átomo social e o teste com cadeiras.

A quarta etapa, o átomo social, tem por objetivo investigar a rede social do(a) protagonista e o fator tele. Visa eleger e distribuir os afetos por pessoas significativas e os qualifica como prótons (carga positiva), elétrons (negativa) ou nêutrons (neutra). A quinta etapa é o teste com as cadeiras, momento no qual o(a) protagonista dispõe de duas cadeiras gêmeas no palco do psicodrama e as movimenta como desejar, visando mobilizar o fator e.

VISÕES DA MATRIZ DE IDENTIDADE

Alguns autores estudaram e publicaram sobre a matriz de identidade. Seguem os que foram visitados para este artigo:

O psiquiatra Jaime G. Rojas-Bermúdez (1997-), baseado no psicodrama e em outras disciplinas, criou a teoria do núcleo do eu. Endossou a Teoria dos Papéis Psicossomáticos e a premissa de que o Eu emerge dos papéis.

A psicóloga e psicodramatista Rosângela P. F. Wechsler (1998-)Wechsler, M. P. F. (1998). Relações entre Afetividade e Cognição: de Moreno a Piaget. (2 ed.). Annablume. fez correlações entre a construção do pensamento cognitivo na infância, do psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980) com as etapas do desenvolvimento psicossocial na matriz identidade moreniana.

Na teoria dos clusters do psiquiatra argentino Dalmiro M. Bustos (1934-), cluster significa aglomerado. Segundo Moreno (1993, p. 230)Moreno, J. L. (1993). Psicodrama. (Á. C. Trad.) (9ª ed.). Cultrix., “os papéis não são isolados; tendem a formar conglomerados. Dá-se uma transferência de e dos papéis não representados para os papéis que serão representados. A esta influência dá-se o nome de efeito de cachos”. Bustos (1990, p. 103)Bustos, D. M. (1990) Perigo… Amor à vista! (2ª ed. Cap 6, pp. 109-166). Aleph. define tais aglomerados de papéis com características que podem ser tipificada s como parentais e fraternais, as quais iremos definir como clusters 1, 2 e 3.

REFERENCIAL DE ANÁLISE

Abordo a análise dos dados a partir da teoria socionômica, da teoria do núcleo do eu, teoria dos clusters e da visão interseccional descrita por Lugones (Silva & Menezes, 2020Silva, R. A. & Menezes, J. de A. (2020). A interseccionalidade na produção científica brasileira. Revista Pesquisas e Práticas Psicossociais, 15(4), 1-16. Recuperado de: http://seer.ufsj.edu.br/revista_ppp/article/view/e3252
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). Segundo Silva e Menezes (2020, p. 6)Silva, R. A. & Menezes, J. de A. (2020). A interseccionalidade na produção científica brasileira. Revista Pesquisas e Práticas Psicossociais, 15(4), 1-16. Recuperado de: http://seer.ufsj.edu.br/revista_ppp/article/view/e3252
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foi a jurista e militante Kimberlé W. Crenshaw quem criou o termo interseccionalidade ao identificar a interdependência dos marcadores sociais de raça, gênero e classe social. Antes vistos de forma isolada, ao se articularem produzem desigualdades nas relações de poder e violação dos direitos humanos.

ANALISANDO OS DADOS

A protagonista da pesquisa será denominada de C. Tinha 29 anos, era branca e cisgênero, originária de uma família espírita. Nasceu numa cidade do interior de Pernambuco. Era casada com um médico e tinha duas filhas (6 e 4 anos) nascidas nesse casamento. Apresentou duas queixas principais para procurar o serviço de psicoterapia: constantes mudanças de humor e conflitos com o esposo. As entrevistas iniciais ocorreram de agosto até outubro de 2012. Imediatamente após as entrevistas iniciou a sua psicoterapia em psicodrama.

Nas segunda infância, C. relatou que havia conflitos entre o casal parental, o que implicava numa permanente tensão na família, com intolerância e às vezes violência física dos adultos para com as crianças (ao todo foram quatro filhos): aos 7 anos, “agredia, batia e revidava com quem brigava na escola” (C.). Na adolescência: “era terrível, chegava em casa e me trancava no quarto para estudar, pois a minha mãe era muito grossa e o meu pai não me defendia” (C.).

Na juventude, trilhou um projeto de independência da família de origem, organizado em duas linhas de frente: a primeira ação foi entrar na graduação de nutrição numa universidade pública da capital. A segunda ação foi se casar, pois engravidou sem planejamento e mudou-se para Recife com o esposo.

Numa análise panorâmica e sócio-histórica sobre as relações de gênero na sociedade patriarcal, temos os estudos da filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) (2019, p. 177)Beauvoir, S. (2019) O mundo sempre pertenceu aos machos: Fatos e Mitos. (5ª ed., Vol. 1. S. Millet. Trad.). Nova Fronteira. que, na segunda metade do século XX, alertava sobre a submissão da mulher burguesa, ao se dedicar à função reprodutora e doméstica. Já no séc. XXI, na visão da literatura científica interseccional, podemos concluir que C. era alheia aos marcadores sociais pelos quais era atravessada e que são aprovados na sociedade neoliberal brasileira; e desfrutava de privilégios, de tal modo que não questionava tal pertencimento de classe, apesar das consequências para a sua saúde mental.

Numa análise mais fina, Moreno (1993)Moreno, J. L. (1993). Psicodrama. (Á. C. Trad.) (9ª ed.). Cultrix. realizou uma investigação com crianças sobre o desempenho de papéis usando o método role playing. Percebeu que algumas crianças apresentavam mais dificuldades do que outras em desempenhar determinados papéis sociais. Concluiu que tais obstáculos estavam relacionados às vivências mais primitivas na matriz de identidade, pois a criança está numa situação de co-ação, coexperiência e coexistência ao converter partes dos papéis parentais ao seu Eu: “a criança está experimentando uma forma de existência que é tanto pré-inconsciente como pré-consciente, é estritamente uma vida em ato” (Moreno, 1993Moreno, J. L. (1993). Psicodrama. (Á. C. Trad.) (9ª ed.). Cultrix., p. 228), típico da inteligência sensória motora, nessa faixa etária.

Por outro lado, os papéis representados (por exemplo: juiz, aluno ou médico) são aqueles que a criança alcançou auxiliada pelas funções psicológicas superiores, tais como a memória, a consciência e o raciocínio lógico e que a ajudou na aprendizagem conceitual no desempenho de novos papéis sociais em diferentes contextos de desenvolvimento.

C. expressou um modo de funcionamento nas relações sociais com características como de “Tenho[ter] gênio forte”, “Sou[ser] explosiva” e “Pego[ar] briga com facilidade” . Segundo Rojas-Bermúdez (1980, pp. 56-57)Rojas-Bermúdez, J. G. (1980). Introdução ao Psicodrama. (3ª ed., J. M. D’Alessandro. Trad.). Mestre Jou. Brasil., por meio dos papéis sociais: “se adquire a Matriz de Identidade do grupo sociocultural”. Portanto, ela pode ter internalizado e disseminado tal funcionamento no cacho de papéis. Mas, por outro lado, tal maneira de existir demonstra uma insurgência diante da cristalização dos papéis sociais atribuídos às mulheres na sociedade.

A apresentação do átomo social de C. estava contraído, em vez de expansivo, com a presença de apenas três pessoas significativas: o esposo e as duas filhas. Vivia um vínculo conjugal marcado por expectativas frustradas, rancores e cobranças: “Não foi a uma consulta durante o pré-natal” (com ela), “Eu não tenho marido, mas tenho amigas”, e “Olho para ele e me sinto mãe dele” (em vez de esposa) (C.). Havia a presença de processos transferenciais nos dois lados da relação, da parte dela quando assume um papel social de mãe, em vez de esposa do seu marido; já da parte dele, quando aceitou papel de filho na relação. Isso m arca ausência do clusters 3 onde se espera, um encontro existencial autêntico, numa simetria de poder na relação conjugal.

Entretanto, o que foi observado era características do clusters 2. Nesse cluster é o momento em que a pessoa procura se diferenciar de um éthos parental, numa relação de assimetria de poder entre pais e filhos, atraindo reações de confronto, submissão, rebeldia, abandono e omissão da autoridade paterna (Bustos, 1990Bustos, D. M. (1990) Perigo… Amor à vista! (2ª ed. Cap 6, pp. 109-166). Aleph.), situação vivenciada pela protagonista com o seu pai.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Retomamos a pergunta principal: “É possível identificar aspectos das vivências da matriz de identidade da protagonista nas etapas das entrevistas iniciais do psicodrama?” Na pesquisa qualitativa em psicologia, tal resposta não é definitiva, pois a abordagem do objeto de estudo é mais compreensiva e interpretativa do que objetiva.

Entretanto, a conclusão é que as vivências da protagonista durante as entrevistas iniciais sugerem a presença de aspectos do primeiro e segundo universos da sua matriz de identidade. A característica “briguenta” de C. ora embaraçava, tencionava e rompia os vínculos afetivos ora demonstrava uma recusa em se sujeitar aos papéis sociais de gênero, explicitados no seu átomo social. A articulação entre os marcadores sociais de classe e gênero produziram uma interseccionalidade, resultando em sofrimento psíquico e desigualdade de poder na relação conjugal.

A potência das entrevistas iniciais no psicodrama desperta a mobilização do fator e diante de situações inéditas,; a vivência do corpo expressivo em vez do corpo instrumental; a comunicação de afetos e memórias significativas; a investigação estética e existencial, de Moreno; a familiarização com a sessão de psicodrama; e o aquecimento para uma tele recíproca ou não, entre psicoterapeuta e protagonista.

A articulação entre o conceito efeito de cachos e o desempenho de papéis na teoria socionômica promete novas investigações, mas que foge ao escopo do presente relato.

  • 1
    Defesa do TCC em 12/05/2023 pela Associação Bahiana de Psicodrama e Psicoterapia de Grupo, sob a orientação de Rosana Rebouças (CRP 03/1317).
  • 2
    Bipessoal é uma terminologia adotada no psicodrama para definir uma relação entre duas pessoas.
  • 3
    A Técnica de Construção de Imagens (TCI) é uma contribuição de Rojas-Bermúdez (1980, p. 127) para o psicodrama. Consiste em reproduzir cenas de situações reais, imaginárias ou criadas pelo(a) protagonista no palco psicodramático, usando o corpo estático, com o auxílio do ego auxiliar e/ou de componentes do grupo, para compor uma cena, tal como numa fotografia.

AGRADECIMENTOS

Não se aplica.

  • FINANCIAMENTO

    Não se aplica.

DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

Não se aplica.

REFERÊNCIAS

  • Beauvoir, S. (2019) O mundo sempre pertenceu aos machos: Fatos e Mitos (5ª ed., Vol. 1. S. Millet. Trad.). Nova Fronteira.
  • Bleger, J. (2003). Temas de Psicologia: Entrevista e Grupos. (2ª ed. R. M. M. de Moraes. Trad. L. L. Rivera Rev. pp. 2-48). Martins Fontes.
  • Bustos, D. M. (1990) Perigo… Amor à vista! (2ª ed. Cap 6, pp. 109-166). Aleph.
  • Gil, A. C. (2002) Como elaborar projetos de pesquisa (4ª ed.). Atlas.
  • Gonçalves, C. S., Wolff, J, R. & Almeida, W. C. (1988). Lições de Psicodrama. introdução ao pensamento de J. L. Moreno. Ágora.
  • Malaquias, M. C. (Org.). (2020). Psicodrama e relações étnicas-raciais: diálogos e reflexões (Cap I. pp. 17-27). Ágora.
  • Martín, E. G. (1996). Psicologia do Encontro: J. L. Moreno (M. J. A. Albuquerque Trad.). (Cap I, pp. 15-41). Ágora.
  • Metaxa Kladi, V. (2020). Pierre Weil e o psicodrama no Brasil. Revista Brasileira de Psicodrama, 17(1), 185-187. Recuperado de: https://revbraspsicodrama.org.br/rbp/article/view/99
  • Moreno, J. L. (1974). Psicoterapia de Grupo e Psicodrama. Introdução à teoria e à práxis. (A. C. M. Cesarino Filho. Trad.). Mestre Jou.
  • Moreno, J. L. (1992) Quem Sobreviverá? Fundamentos da sociometria, psicoterapia de grupo e sociodrama. (Vols. 1-3. A. R. Faria, D. L. Rodrigues e M. A. Kafuri Trads.). Dimensão.
  • Moreno, J. L. (1993). Psicodrama (Á. C. Trad.) (9ª ed.). Cultrix.
  • Rojas-Bermúdez, J. G. (1980). Introdução ao Psicodrama (3ª ed., J. M. D’Alessandro. Trad.). Mestre Jou. Brasil.
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Editado por

Editora de seção: Kim Boscolo https://orcid.org/0000-0003-4177-2093

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Dez 2023
  • Aceito
    18 Abr 2024
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