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Devolução de heranças familiares: um estudo de caso de legados transgeracionais

Return of family heirlooms: a case study of transgenerational legacies

Devolución de reliquias familiares: un estudio de caso de legados transgeneracionales

RESUMO

Este artigo teve como objetivo compreender as contribuições da terapia transgeracional na devolução de heranças familiares de uma paciente ansiosa. O estudo de caso retrata trechos de quatro sessões de psicoterapia que ocorreram por meio de uma plataforma on-line. Foram identificadas lealdades invisíveis com a mãe e a avó, que carregavam o peso da violência sexual e o medo e a desconfiança dos homens, bem como a síndrome de aniversário em relação à mãe e o fenômeno da parentificação, ao tornar-se cuidadora dos pais. Após vivência das técnicas, houve a ampliação da consciência da paciente, que percebeu que poderia honrar seus antepassados liberando-se de conservas culturais paralisadoras, com base nas heranças familiares positivas.

PALAVRAS-CHAVE
Timidez; Genosociograma; Terapia transgeracional; Lealdades invisíveis; Legados

ABSTRACT

This article aimed to understand the contributions of transgenerational therapy in the return of the family heirlooms of an anxious patient. The case study portrays excerpts from four psychotherapy sessions that took place via an online platform. Invisible loyalties were identified with the mother and grandmother, who carried the weight of sexual violence and the fear and distrust of men, as well as the anniversary syndrome in relation to the mother and the phenomenon of parentification, when becoming the parents’ caregiver. After experiencing the techniques, the patient’s awareness increased and she realized that she could honor her ancestors by freeing herself from paralyzing cultural preserves, based on positive family inheritances.

KEYWORDS
Shyness; Genosociogram; Transgenerational therapy; Invisible loyalties; Legacies

RESUMEN

Este artículo tuvo como objetivo comprender los aportes de la Terapia Transgeneracional en la devolución de las reliquias familiares de un paciente ansioso. El estudio de caso presenta extractos de 4 sesiones de psicoterapia que se llevaron a cabo a través de una plataforma en línea. Se identificaron lealtades invisibles con la madre y la abuela, que cargaban con el peso de la violencia sexual y del miedo y desconfianza hacia los hombres, así como con el síndrome de aniversario en relación a la madre y el fenómeno de la parentificación, al convertirse en cuidadoras de los padres. Después de experimentar las técnicas, la conciencia de la paciente aumentó y se dio cuenta de que podía honrar a sus antepasados liberándose de cotos culturales paralizantes, basados en herencias familiares positivas.

PALABRAS CLAVE
Timidez; Genosociograma; Terapia Transgeneracional; Lealtades Invisibles; Legados

INTRODUÇÃO

Matriz de identidade, locus nascendi e papel complementar. Muitos termos de origem psicodramática parecem reforçar a ideia de que o ser humano só existe em relação e que a família é o primeiro grupo no qual se é inserido. Com base na leitura psicodramática, a psicoterapeuta chega à formação em terapia transgeracional compreendendo que, antes mesmo de fazer parte do átomo familiar (relações familiares), o indivíduo carrega uma série de expectativas que podem vir do nome que é escolhido para ele ou dos papéis complementares ao seu redor: pai, mãe, avós e irmãos. Todas as histórias familiares correspondem a um clima socioemocional, que influencia no desempenho de papéis do indivíduo, e a ação dramática pode constituir uma maneira de dar novas respostas a padrões que se repetem.

Uma forma de encontrar a verdade pessoal e familiar de cada um é permitindo novos padrões de consciência, questionando-se: quem eu sou diante dos outros que complementam meu papel? Quem eu sou para o outro que espera algo de mim? Como eu aprendi a dar e receber afeto nas relações familiares? Essa característica que parece tão forte na minha forma de me relacionar é de fato minha ou um modo que encontrei de pertencer à família ou de manter o equilíbrio na balança familiar?

Muitos pacientes que chegam à psicoterapia passam a fazer tais questionamentos quando percebem a repetição dos padrões familiares. É comum ouvir: “Deus me livre, não quero ser como minha avó”. De repente o paciente se percebe repetindo o aspecto do outro que repele. Desse modo, a terapia transgeracional oportuniza a consciência das repetições, dos legados, dos padrões familiares, com o objetivo de favorecer a conciliação de aspectos positivos do átomo familiar e a devolução de papéis e legados não salutares.

Destaca Maciel (2014)Maciel, M. (2014). Psychodrama in the transgeneracional psychoterapy. Revista Brasileira de Psicodrama, 22(1), 92-99. que os traumas familiares mais comuns que parecem se relacionar a legados familiares são:

  • Mortes prematuras (incluindo abortos, nados-mortos etc.);

  • Eventos trágicos (guerras, catástrofes naturais etc.);

  • Homicídios;

  • Suicídios;

  • Exclusão de pessoas da família;

  • Pessoas desaparecidas;

  • Situações injustas na família;

  • Divórcios conflituosos;

  • Doenças graves ou deficiências;

  • Mudança de país, nacionalidade, valores e crenças.

Pesquisas (Kahn & Denov, 2022Kahn, S., & Denov, M. (2022). Transgenerational trauma in Rwandan genocidal rape survivors and their children: a culturally enhanced bioecological approach. Transcultural Psychiatry, 59(6), 727-739. https://doi.org/10.1177/13634615221080231
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; Krippner & Barrett, 2019Krippner, S., & Barrett, D. (2019). Transgenerational Trauma: The Role of Epigenetics. Journal of Mind & Behavior, 40(1), 53-62.; Kwan, 2020Kwan, Y. Y. (2020). Time-image episodes and the construction of transgenerational trauma narratives. Journal of Asian American Studies, 23(1), 29-59. https://doi.org/10.1353/jaas.2020.0001
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) nas áreas da psicologia e psiquiatria demonstram que traumas familiares passados podem ser transmitidos de geração em geração. Essa transmissão pode ocorrer por imagens não reconhecidas (Van IJzendoorn et al., 2003Van IJzendoorn, M. H., Bakermans-Kranenburg, M. J., & Sagi-Schwartz, A. (2003). Are children of Holocaust survivors less well-adapted? A meta-analytic investigation of secondary traumatization. Journal of Traumatic Stress, 16(5), 459-469. https://doi.org/10.1023/a:1025706427300
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), sensações, comportamentos repetidos (Wilkins et al., 2013Wilkins, E. J., Watson, M. F., Russon, J. M., Moncrief, A. M., & Whiting, J. B. (2013). Residual effects of slavery: What clinicians need to know. Contemporary Family Therapy, 35(1), 14-28. https://doi.org/10.1007/s10591-012-9219-1
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), eventos que se repetem em datas similares (Schützenberger, 2013Schützenberger, A. A. (2013). Transgenerational analysis and psychodrama: applying and extending Moreno’s concepts of the co-unconscious and the social atom to transgenerational links. In C. Baim, J. Burmeister & M. Maciel (Eds.). Psychodrama: advances in theory and practice (pp. 155-174). Routledge.) e até mesmo silêncios propagados para a geração sobrevivente, que, embora temporalmente separada da violência experimentada pelos mais velhos, carrega na forma de se relacionar os resquícios de medos e estratégias de sobrevivência (Kahn & Denov, 2022Kahn, S., & Denov, M. (2022). Transgenerational trauma in Rwandan genocidal rape survivors and their children: a culturally enhanced bioecological approach. Transcultural Psychiatry, 59(6), 727-739. https://doi.org/10.1177/13634615221080231
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).

Portanto, a terapia transgeracional parece trazer base empírica e teórica para a compreensão e intervenções não só para psicodramatistas, mas para terapeutas que trabalham no aqui e agora os reflexos das relações e dos comportamentos de antepassados nos aspectos de conservação cultural (crenças rígidas) e no desempenho de papéis (Maciel, 2014Maciel, M. (2014). Psychodrama in the transgeneracional psychoterapy. Revista Brasileira de Psicodrama, 22(1), 92-99.; Ros, 2014Ros, G. A. (2014). Trans-generational psychodrama and sociodrama. Revista Brasileira de Psicodrama, 22(2), 71-77.). Isso traz consciência e amplia as possibilidades de escolha daqueles cujas dores emocionais refletem histórias familiares não reconhecidas, validadas ou processadas.

TERAPIA TRANSGERACIONAL: PRINCIPAIS CONCEITOS E FENÔMENOS OBSERVADOS

No Brasil, temos muitos ditados populares como “a fruta não cai longe do pé” ou “quem sai aos seus não degenera”. A ideia de transmissão de comportamentos, modelos emocionais e papéis parece permear histórias e ditados narrados no senso comum. Embora esses ditados sugiram denotar um modelo determinista, eles abrem espaço para a ciência demonstrar que histórias familiares conscientes e inconscientes afetam a forma como o indivíduo se relaciona consigo e com os outros no presente (Kahn & Denov, 2022Kahn, S., & Denov, M. (2022). Transgenerational trauma in Rwandan genocidal rape survivors and their children: a culturally enhanced bioecological approach. Transcultural Psychiatry, 59(6), 727-739. https://doi.org/10.1177/13634615221080231
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).

Tem-se a ideia de que há um conteúdo subjetivo, e um padrão comportamental que se repete ao longo de gerações se remete à transmissão intergeracional e transgeracional de negócios inacabados. Os negócios inacabados podem deixar a sua marca com acontecimentos e doenças que se repetem por gerações, até que haja um encerramento, como em lutos, acontecimentos catastróficos, não ditos, que exigem finalização e desfecho. Frequentemente, referem-se a legados inconscientes das gerações anteriores (intergeracionais), traumas não resolvidos, perdas não lamentadas, bem como segredos familiares ou pessoais que podem ser transmitidos e afetar as gerações seguintes de forma profunda (Schützenberger, 2013Schützenberger, A. A. (2013). Transgenerational analysis and psychodrama: applying and extending Moreno’s concepts of the co-unconscious and the social atom to transgenerational links. In C. Baim, J. Burmeister & M. Maciel (Eds.). Psychodrama: advances in theory and practice (pp. 155-174). Routledge.).

A transmissão intergeracional pode ser explicada pela aprendizagem de comportamentos e internalização de climas emocionais, já que engloba duas gerações, mas como ocorreria a transmissão transgeracional? Os conceitos de coconsciente e coinconsciente trazidos pelo psicodrama podem melhor esclarecer esse fenômeno (Schützenberger, 2013Schützenberger, A. A. (2013). Transgenerational analysis and psychodrama: applying and extending Moreno’s concepts of the co-unconscious and the social atom to transgenerational links. In C. Baim, J. Burmeister & M. Maciel (Eds.). Psychodrama: advances in theory and practice (pp. 155-174). Routledge.).

Schützenberger (2013)Schützenberger, A. A. (2013). Transgenerational analysis and psychodrama: applying and extending Moreno’s concepts of the co-unconscious and the social atom to transgenerational links. In C. Baim, J. Burmeister & M. Maciel (Eds.). Psychodrama: advances in theory and practice (pp. 155-174). Routledge. esclarece, baseado nos seus estudos clínicos, aspectos oriundos da transmissão de mandatos coinconscientes. Aquilo que é conhecido e entendido conscientemente sobre as heranças das gerações anteriores faz parte do conteúdo intergeracional. Já aquilo que não faz parte das memórias, que apresenta lacunas, elementos foracluídos, encriptados ou que não foi colocado em palavras e que se refere a três gerações ou mais pode ser considerado transgeracional (Rehbein & Chatelard, 2013Rehbein, M. P., & Chatelard, D. S. (2013). Transgeracionalidade psíquica: uma revisão de literatura. Fractal: Revista de Psicologia, 25(3), 563-583. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000300010
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; Schützenberger, 2013Schützenberger, A. A. (2013). Transgenerational analysis and psychodrama: applying and extending Moreno’s concepts of the co-unconscious and the social atom to transgenerational links. In C. Baim, J. Burmeister & M. Maciel (Eds.). Psychodrama: advances in theory and practice (pp. 155-174). Routledge.). Tais conteúdos podem tornar-se fantasmas na história familiar, ou seja, obsessões ou sintomas advindos de segredos familiares, que permeiam o coinconsciente familiar (Schützenberger, 1997Schützenberger, A. A. (1997). Meus antepassados. Paulus.).

A ideia de coinconsciente parece ancorada na noção psicodramática de um Eu plural, formado no desempenho de papéis, nas relações sociais, que afetam os vínculos e produzem acordos e mandatos em determinadas cenas, diante de alguns temas que podem ser compreendidos como ameaçadores a qualquer um dos Eus envolvidos. Isso pode gerar um campo, que engloba formas de ser, histórias, imagens e fantasias que se perpetuam no inconsciente familiar por gerações. Ao mesmo tempo que se mostram na repetição, tais conteúdos, que podem ameaçar a integridade do eu (self) dos envolvidos, são esquecidos ou não ditos e transformam-se em cenas temidas, formas de estar no mundo e de assumir diversos papéis (Knobel, 2011Knobel, A. M. (2011). Co-conscious and co-unconscious in psychodrama. Revista Brasileira de Psicodrama, 19(2), 139-152.).

A comunicação coinconsciente pode produzir adoecimento e até eventos traumáticos e mortes, que se repetem na mesma data por várias gerações. Isso é o que Schützenberger (2013)Schützenberger, A. A. (2013). Transgenerational analysis and psychodrama: applying and extending Moreno’s concepts of the co-unconscious and the social atom to transgenerational links. In C. Baim, J. Burmeister & M. Maciel (Eds.). Psychodrama: advances in theory and practice (pp. 155-174). Routledge. chama de síndrome de aniversário. Como outros exemplos, a síndrome de aniversário pode ocorrer quando sintomas ou eventos semelhantes se manifestam em um descendente com aproximadamente a mesma idade do seu ancestral. Também pode se manifestar por uma ligação (crises, pesadelos) em datas ou períodos em que algo traumático ocorreu com determinado ancestral, numa mesma data ou idade. Isso não implica algo necessariamente negativo, tendo em vista que casamentos, nascimentos, dados de trabalho também podem repetir-se entre descendente e ancestral em datas semelhantes. Essa repetição pode estar vinculada a outro conceito igualmente relevante: lealdades invisíveis.

O conceito de lealdade envolve a internalização de expectativas do objeto de ligação e a assunção de ações e papéis com o objetivo de cumprir mandatos e obrigações introjetados. A lealdade invisível está relacionada a um senso nem sempre consciente de dever, equanimidade e justiça, que implica cumprir as obrigações internalizadas em função da necessidade de manutenção de mérito e reconhecimento diante do sistema familiar ou do medo de descumprir tais obrigações e lidar com sentimentos de culpa, que funcionam de modo a regular e manter o sistema de lealdade. Assim, a busca por reconhecimento, filiação, pertença mediada pelos sentimentos de gratidão ou culpa parece parte da relação parcial entre a pessoa e o seu familiar internalizado, que funciona como uma voz interna que lhe diz como agir e como deve manter-se no sistema familiar para ser reconhecido no grupo familiar ou ser digno de afeto (Boszormenyi-Nagy & Spark, 2008Boszormenyi-Nagy, I., & Spark, G. M. (2008). Lealtades invisibles: Reciprocidad en terapia familiar intergeracional. Amorrortu.).

São englobadas situações de justiça ou injustiça que afetam a contabilidade familiar, como vingança, infortúnio, doença, abandono, má-fé, exploração dos membros, relações de afeto que podem influenciar a sensação de débito ou crédito familiar (Schützenberger, 1997Schützenberger, A. A. (1997). Meus antepassados. Paulus.). Diante de tais circunstância, tal membro do sistema terá de liquidar a sua dívida no sistema de retroalimentação intergeracional, internalizando os compromissos, correspondendo às expectativas e, com o tempo, transmitindo-as aos filhos (Boszormenyi-Nagy & Spark, 2008Boszormenyi-Nagy, I., & Spark, G. M. (2008). Lealtades invisibles: Reciprocidad en terapia familiar intergeracional. Amorrortu.).

Uma das consequências do sistema de débitos e créditos no sistema familiar pode ser a parentificação. O psicanalista Schmideberg (1948)Schmideberg, M. (1948). Parents as childrens. Psychiatric Quarterly Supplement, 22, 207-218. esclarece que alguns cuidadores primários, em função de experiências emocionais, como conflitos conjugais, lutos, doenças, tendem a investir no filho como uma figura parental. A criança pode assumir vários papéis na família, tais como de pacificador, ajudante e confidente, para fortalecer os laços familiares, especialmente na relação conjugal dos pais. Para Kehlstadt (2018)Kehlstadt, L. Z. (2018). Des adultes encore parentifiés: la parentification, un concept clé en psyhcothérapies d’adultes. Thérapie Familiale, 39(2), 127-147. https://doi.org/10.3917/tf.182.0127
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, em muitos casos de adultos que sofreram a parentificação, estes podem exacerbar a aparência de autonomia, de cuidador ou de resolvedor dos pais, para ocultar inseguranças afetivas que os mantêm vinculados fortemente à sua família de origem, em detrimento até mesmo da família formada a posteriori.

Algo que se relaciona a tais inseguranças afetivas é a triangulação, na perspectiva de Murray Bowen (1993)Bowen, M. (1993). Family therapy in clinical practice. Jason Aronson.. O conceito de triangulação engloba um sistema de relação entre três pessoas que abrange uma díade e um terceiro, que é chamado a fazer parte daquele sistema quando o nível de perturbação e de ansiedade entre as duas pessoas se amplia, visando ao alívio da tensão. Entretanto, quando os indivíduos estão emocionalmente triangulados no passado, mantêm estáticas as posições que ocuparam nas suas famílias de origem, prejudicando a consciência de si e de outros nos relacionamentos atuais (Martins et al., 2008Martins, E. M. A., Rabinovich, E. P., & Silva, C. N. (2008). Família e o processo de diferenciação na perspectiva de Murray Bowen: um estudo de caso. Psicologia USP, 19(2), 181-197.). Nesses casos, torna-se relevante o estabelecimento da tele no vínculo.

Na teoria psicodramática, o fator tele é o responsável pela percepção correta de si e do outro. Não existe uma percepção extremamente pura, livre de juízos de valor e afetos pessoais, mas mesmo com essas interferências é possível estabelecer uma relação télica, na medida em que ambos se reconhecem (Bustos, 2006Bustos, D. M. (2006). Perigo... Amor à vista! Drama e psicodrama de casais. Aleph.).

Com a tomada de consciência sobre esses traumas da história familiar e da eventual existência de lealdades invisíveis, triangulações e parentificações, o indivíduo pode desvencilhar-se da repetição de padrões que servem para a manutenção da contabilidade familiar, ou seja, outras formas de lidar com a dinâmica de créditos e débitos familiares (Maciel, 2014Maciel, M. (2014). Psychodrama in the transgeneracional psychoterapy. Revista Brasileira de Psicodrama, 22(1), 92-99.).

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa fenomenológica, psicodramática, qualitativa e exploratória que utiliza o estudo de caso para ocupar-se dos seus objetivos (Brito, 2006Brito, V. (2006). Um convite à pesquisa: epistemologia qualitativa e psicodrama. In A. M. Monteiro, D. Merengué & V. Brito (Eds.), Pesquisa qualitativa e psicodrama (pp. 13-56). Ágora.). Optou-se pelo estudo de caso por causa da necessidade de demonstrar as aplicações da terapia transgeracional.

As intervenções tratadas neste texto se estabeleceram de forma remota, pela plataforma Whereby, nos meses de maio e junho de 2023, no total de quatro sessões, sendo a primeira de 50 minutos, a segunda de 1,5 hora e as duas últimas de 50 minutos. Todos os atendimentos foram em formato bipessoal, que Moreno e Moreno (2014)Moreno, J. L., & Moreno, Z. T. (2014). Fundamentos do psicodrama. Agora. chamaram de psicodrama a dois, que é uma “abordagem terapêutica oriunda do psicodrama, que não faz uso de egos auxiliares e atende apenas a um paciente de cada vez, [...] ou seja, um paciente e um terapeuta” (Cukier, 2018Cukier, R. (2018). Psicodrama bipessoal: sua técnica, seu terapeuta e seu paciente. Ágora., p. 17). As técnicas aplicadas para coleta de dados e intervenção foram escolhidas considerando o referencial da psicogenealogia e da terapia transgeracional (Maciel, 2014Maciel, M. (2014). Psychodrama in the transgeneracional psychoterapy. Revista Brasileira de Psicodrama, 22(1), 92-99.).

Salienta-se que as sessões on-line foram realizadas de acordo com as resoluções do Conselho Federal de Psicologia do Brasil para a temática. Resguardou-se o sigilo dos atendimentos com o uso de fones de ouvido e com o contrato de que as sessões não poderiam ser gravadas ou transmitidas, além da impossibilidade de serem realizadas caso houvesse outras pessoas no cômodo da profissional ou da paciente (conforme a Resolução nº 4, de 2020Conselho Federal de Psicologia (CFP) (2020). Resolução nº 4, de 26 de março de 2020. Dispõe sobre regulamentação de serviços psicológicos prestados por meio de Tecnologia da Informação e da Comunicação durante a pandemia do Covid-19. Conselho Federal de Psicologia.). As sessões não foram gravadas ou transcritas, e para a análise e discussão deste texto foram utilizados apenas os registros de sessão, de redação obrigatória a todos os profissionais psicólogos (conforme a Resolução nº 001/2009Conselho Federal de Psicologia (2009). Resolução nº 001/2009, de 30 de março de 2009. Dispõe sobre a obrigatoriedade do registro documental decorrente da prestação de serviços psicológicos. Conselho Federal de Psicologia. Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2009/04/resolucao2009_01.pdf
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, de 2009). De tais registros constam a descrição das atividades e das técnicas usadas e as impressões subjetivas da profissional.

A pesquisa não passou por Comitê de Ética, porém segue os preceitos da Resolução nº 510/2016Conselho Nacional de Saúde (2016). Resolução nº 510/2016. – Dispõe sobre a pesquisa em Ciências Humanas e Sociais. Brasil: Ministério da Saúde., que trata dos processos que não necessitam passar por sistema Comitê de Ética/Conselho Nacional de Ética em Pesquisa, buscando o aprofundamento teórico de tópicos oriundos da prática profissional, resguardando dados de identificação.

Esse aprofundamento teórico tem por fundamentação a análise de sentido de González-Rey (2012)González-Rey, F. (2012). Pesquisa qualitativa em psicologia: caminhos e desafios. Cengage.. Para a análise neste trabalho, foram escolhidas as sessões em que foram empregados o genosociograma, o duplo, o solilóquio, a maximização, a inversão de papéis e o átomo social.

As sessões descritas e analisadas correspondem ao atendimento de uma paciente que chamaremos de Lírio (nome fictício), que sinalizou assentimento de que os seus dados fossem utilizados neste escrito, desde que anonimizados. Lírio, entre as pacientes atendidas, foi escolhida como participante para este trabalho tendo em vista a sua busca espontânea por informações transgeracionais e o seu interesse pelo papel que ocupava na dinâmica familiar.

RESULTADOS E DISCUSSÃO: POSSIBILIDADES DE APLICAÇÃO DA TERAPIA TRANSGERACIONAL DIANTE DO MEDO DE VINCULAÇÃO DE UMA PACIENTE ANSIOSA

O processo de vinculação nem sempre é fácil. Envolve autoconhecimento, reconhecimento dos próprios limites e dos limites dos outros e autorização para crescer e ir para o mundo. Muitos se perguntam: será que o outro vai gostar de mim? Será que eu estou sendo agradável? O outro vai me abandonar?

Lírio é uma dessas pessoas. Com 33 anos, ela chegou à terapia em abril de 2023, em razão de sintomas de ansiedade e crises de pânico recorrentes. Ela afirmou ser tímida, ter medo de se relacionar e de enfrentar figuras de autoridade. Como professora de crianças, ela sentia-se potente, porém, quando precisava lidar com outros professores ou com a direção da escola, entendia-se pequena e impotente. Fazia uso de ansiolíticos e antidepressivos desde a primeira crise, em 2022, momento em que percebeu que tem dificuldades de se separar fisicamente dos pais e medo de que eles morram.

Durante a psicoterapia, mediante um duplo da terapeuta (falar em primeira pessoa como se fosse o paciente), Lírio reconheceu a seguinte fala:

Tenho medo de decepcionar as pessoas... Meus pais.

Por meio desse duplo, a paciente assumiu ter dificuldade de desidealizar as figuras parentais. Essa técnica foi utilizada para que a paciente entrasse em contato com uma emoção não verbalizada, ou ainda não conscientizada (Cukier, 2018Cukier, R. (2018). Psicodrama bipessoal: sua técnica, seu terapeuta e seu paciente. Ágora.), permitindo que houvesse o desbloqueio das emoções que abriram espaço para um importante objetivo psicoterápico: o processo de diferenciação da paciente com os pais.

Para melhor conhecer as relações da paciente, a terapeuta optou por realizar um átomo social familiar. A compreensão da rede vincular possibilita a compreensão de aspectos do comportamento do sujeito (no caso de Lírio, a ansiedade social), pois o indivíduo vai descobrindo o seu papel na dinâmica familiar, de acordo com os estímulos da rede em que está incluído (Bustos, 2006Bustos, D. M. (2006). Perigo... Amor à vista! Drama e psicodrama de casais. Aleph.).

Para realizar o átomo familiar de forma on-line, a terapeuta usou o site da doutora Karen Fried, que dispõe de variadas figuras que podem ser dispostas na tela, de acordo com a escolha do paciente.

Conforme destacado na Fig. 1, Lírio primeiramente escolheu uma joaninha para representar a si mesma, uma fada para representar a irmã, que segundo a paciente faz o que deseja, e um arco-íris para representar a sobrinha de 1 ano, que diz Lírio ter nascido para trazer alegria para a família. A irmã e a sobrinha não residem com Lírio. A exploração do átomo deu-se pela verificação da triangulação que surge na imagem entre igreja, escudo e joaninha. Isso também se evidenciou na narrativa da paciente, que começou a terapia dizendo que é quem facilita a comunicação entre os pais. A triangulação pode manter estáticos os papéis da família de origem, e isso não autoriza o indivíduo a ir para o mundo, a sair do núcleo familiar, para desenvolver as suas relações externas (Martins et al., 2008). Nesse sentido, a terapeuta escolheu trabalhar a hipótese de triangulação nessa sessão, iniciando pela tomada de papel das personagens escolhidas.

Figura 1
Átomo familiar de Lírio.

Ao tomar o papel de joaninha, Lírio disse:

Sou pequena e frágil. Posso voar, mas tenho medo.

A terapeuta perguntou qual familiar poderia auxiliar a joaninha a voar, e a paciente disse que os seus pais eram aqueles que ajudariam. No papel da mãe (igreja), afirmou:

Eu cuido, protejo e mostro o que é certo e o que é errado.

No papel do pai (escudo), disse:

Nada vai lhe acontecer, eu protejo.

A terapeuta perguntou o que Lírio sentia ao ouvir isso, e a paciente respondeu:

Uma mistura de alívio e culpa. Eu não posso ser um peso para eles.

Diante do choro da paciente, a terapeuta pediu para que Lírio fechasse os olhos e, após escaneamento corporal, imaginasse essa culpa como um objeto. Lírio imaginou uma caixa preta com uma tempestade dentro dela. Em seguida, a terapeuta questionou a quem pertencia esse objeto e que falasse a primeira coisa que aparecesse na sua mente. Lírio disse que pertencia à avó materna. A terapeuta escolheu utilizar essa fantasia dirigida para que a paciente pudesse concretizar essa culpa e identificar as relações que a permeavam, tendo em vista que, conforme Boszormenyi-Nagy e Spark (2008)Boszormenyi-Nagy, I., & Spark, G. M. (2008). Lealtades invisibles: Reciprocidad en terapia familiar intergeracional. Amorrortu., a culpa ou a necessidade de reconhecimento parecem ser processos que alimentam as lealdades invisíveis.

Após o retorno da fantasia dirigida, a paciente foi convidada a devolver essa culpa para a avó. Então, dispôs-se em pé e segurou uma caixa de sapatos com materiais escolares, que representava a caixa da culpa. Disse à avó:

Vó, a senhora sempre disse que eu preciso ser uma boa menina, que não posso fazer nada de errado, mas a senhora erra também, todo mundo erra, eu não posso parar minha vida com medo de errar. A senhora ficou viúva e não casou mais, não sei se por medo de julgamento. Essa culpa e esse medo não são meus, não quero mais carregar.

A paciente entregou a caixa, colocando-a na cama. Aqui, foi possível perceber que essas regras internalizadas pela mãe e por Lírio sobre ser uma pessoa certa e fazer as coisas certas parecem vir da avó. É fundamental saber aqui quem criou essas regras, em que contexto e de que forma elas se passaram ao longo do tempo. Em relação à devolução das heranças, o objetivo é encontrar uma resposta que seja específica para o paciente pessoalmente, e não idêntica ou oposta ao antepassado, pois idêntico ou oposto não significa liberdade (Schützenberger, 2012Schützenberger, A. A. (2012). Esercizi Pratici di Psicogenealogia: Per scoprire i propri segreti di famiglia, essere fedeli agli antenati, scegliere la propria vita. Di Renzo.).

Figura 2
Átomo familiar de Lírio, após a devolução das heranças negativas.

No papel da avó (tempestade), a paciente relatou que no seu tempo as moças que não eram sérias eram muito malvistas e que não queria que as suas filhas ou netas fossem vistas como “mulheres da vida”. Ao dizer isso, ela emocionou-se bastante, e a terapeuta perguntou para Lírio se gostaria de mudar algo na imagem do átomo familiar após essa conversa com a avó.

No novo átomo familiar, conforme a Fig. 2, Lírio colocou-se como uma borboleta, ao lado da irmã, que é uma fada e que, portanto, tem as suas asas também, e da sobrinha, que fica ao lado da irmã. O pai e a mãe permaneceram como os mesmos objetos escolhidos anteriormente (igreja e escudo), porém agora ficaram na lateral e o pai mais próximo de Lírio – ela não estava mais no meio do casal. A avó, que antes era uma tempestade, agora era apenas uma nuvem mais clara.

Sobre tais mudanças, destacou Lírio:

Eu quero voar como minha irmã, não preciso ficar cuidando dos meus pais para que eles cuidem da minha avó que tem Alzheimer. Eles estão bem. Eu que preciso tomar uma distância até pra enxergar melhor eles.

Assim, a paciente pareceu ter saído da função de aliviar a tensão da relação dos pais, o que configuraria a triangulação.

Com a partilha, foi finalizada a sessão, tendo em vista que já haviam se passado 50 minutos.

Considerando a possibilidade de lealdade invisível com a avó e para investigar possíveis síndromes de aniversário e segredos familiares, a terapeuta optou por aplicar um genosociograma com Lírio. A aplicação teve a duração de 1,5 hora e iniciou-se com a história do nome. Lírio contou que fora a mãe quem escolhera o seu nome, que era de uma personagem da novela que era a mocinha da história, a boazinha. A escolha do nome marca a distância entre a procriação biológica e a filiação. O ato de dar um nome a uma criança demonstra que a filiação não é um acontecimento biológico, mas simbólico, pois ao escolher um nome a família pode estar demonstrando as regras para pertencer àquele grupo ou o papel esperado para aquele novo membro (Tesone, 2009Tesone, J. E. (2009). Inscrições transgeracionais no nome próprio. Jornal de Psicanálise, 42(76), 137-157.) – no caso de Lírio, o papel de boazinha.

Figura 3
Genosociograma construído por Lírio.

Ao explorar o papel de boazinha (oriundo do seu nome), a paciente afirmou que precisava ser boazinha para não ser abandonada e disse que queria trabalhar na sessão o medo de ficar sozinha. Ao falar desse medo, inicialmente, trouxe dados da família paterna, mas em seguida focou quase totalmente na família materna. Na Fig. 3 segue o genosociograma construído em sessão.

No genosociograma, no tracejado em roxo, é possível perceber que coabitam Lírio, seu pai e sua mãe. Lírio apresenta uma relação mais distanciada com a sua avó paterna, marcada pela linha azul, e mais próxima de sua mãe, marcada pela linha vermelha. Lírio identifica-se física e emocionalmente com sua mãe (linha verde), considerando que as duas têm sintomas de ansiedade e crises de pânico. A paciente destacou que ambas se colocam para receber cuidados apenas quando estão em situações de crise. Ela afirmou que a mãe sempre falava que as filhas não podiam ser vagabundas/prostitutas.

Ao olhar o genosociograma com a paciente, foi possível perceber que ela e a mãe foram a segunda filha e tiveram o início das crises de pânico com a mesma idade: 32 anos. Ao investigarmos a vida da mãe com essa idade, pôde-se perceber que foi um período de brigas com a avó materna. A terapeuta perguntou a sensação de Lírio acerca dessa relação da mãe com a avó, e ela respondeu:

Minha mãe tem muita raiva da vó, a vó não cuidou dela direito, minha mãe foi obrigada a cuidar dos irmãos. Minha mãe teve um acidente na infância de carro, e minha avó não cuidou dela. Ela ficou com uma lesão que não a deixou cuidar de mim. Meu pai que teve que cuidar de mim, ele diz que eu era quietinha.

Em um duplo, Lírio disse à terapeuta:

Eu não posso dar trabalho, minha mãe não pode cuidar de mim.

Ela complementou dizendo que a mãe não fora cuidada e ela também não e que talvez isso a fizesse querer cuidar da mãe. A terapeuta ainda demonstrou para Lírio a relação abusiva da avó que transferia a maternidade (a responsabilidade de cuidar dos filhos) para a mãe da paciente. Ela ressaltou ainda que a mãe e Lírio receberam a missão do cuidado, que parecia que as duas só poderiam ser cuidadas em situação de doença, o que configuraria um ganho secundário das crises de ansiedade.

Além do fenômeno da parentificação, discutido anteriormente, verificaram-se aqui a síndrome de aniversário e a lealdade invisível com a mãe, tendo em vista que na sociometria familiar há um vínculo de atração entre mãe e filha mediado pela relação, que Schützenberger (2012)Schützenberger, A. A. (2012). Esercizi Pratici di Psicogenealogia: Per scoprire i propri segreti di famiglia, essere fedeli agli antenati, scegliere la propria vita. Di Renzo. destaca como de dívidas e méritos, em que é necessário esclarecer os tipos de justiça e injustiça praticados na família. Para esclarecer essa possível injustiça e a medida reparatória que a família havia elegido, foi explorada a relação de Lírio com a avó.

Ao olhar para a sua relação ambivalente com a avó, representada pelo traço preto em zigue-zague junto ao traço vermelho, Lírio afirmou que, apesar de a avó ser rígida e dizer que mulheres sérias não podiam sorrir, ela passara por tempos difíceis. Nesse momento, Lírio ficou em silêncio, e a terapeuta pediu que desse voz ao pensamento (solilóquio). A paciente falou que a avó sofrera um abuso na infância (injustiça), que desconhecia o abusador, mas sentia que podia ser alguém da família, já que esse era um assunto proibido (possível segredo familiar). Logo, a terapeuta destacou que parece que a avó também não fora cuidada e que ser gorda (algo que todas as mulheres da família são) foi uma forma encontrada para proteger esse corpo da violência sofrida. Lírio emocionou-se e lembrou-se do medo que a mãe tinha de que ela virasse vagabunda:

Talvez minha mãe não quisesse que eu fosse violentada, assim como minha avó.

A terapeuta pediu que dissesse isso para a mãe como se ela estivesse presente. Lírio falou:

Eu sei me proteger, mãe. Eu posso sorrir, eu posso me relacionar, eu sei me proteger.

Aqui a terapeuta explorou a gordura e as crises de ansiedade como resposta aos fantasmas que fazem referência ao segredo do abuso sofrido pela avó. Aquelas situações familiares que não puderam ser elaboradas, ou seja, que não puderam ser incorporadas ao consciente familiar, darão origem ao sofrimento psíquico e se constituirão como traumas, que podem ter implicação psicossomática (Schützenberger, 1997Schützenberger, A. A. (1997). Meus antepassados. Paulus.).

Chegando ao fim da sessão, a paciente partilhou que nunca tinha explorado de forma profunda a relação da mãe com a avó. A terapeuta combinou de continuarem o trabalho na sessão seguinte.

Na próxima sessão, a paciente parecia querer evitar o assunto e trazia situações do trabalho no seu discurso. Surgiu uma raiva da direção da escola, e a terapeuta percebeu que essa raiva parecia ocorrer porque Lírio era obrigada a fazer atividades que não eram da sua função. Então, a terapeuta destacou em um duplo:

Estou com raiva, porque me pedem para fazer coisas, me largam obrigações que não são minhas.

Em seguida, a paciente foi questionada:

Se não fosse você a dizer isso, que outro membro da família estaria dizendo e para quem?.

Aqui, a terapeuta tentou promover o reconhecimento e a diferenciação entre os sentimentos da paciente e os sentimentos da mãe. Realocar as emoções e tomar consciência delas no vínculo são importantes para a consciência da posição no átomo familiar (Schützenberger, 1997Schützenberger, A. A. (1997). Meus antepassados. Paulus.). Rapidamente, Lírio disse que a sua mãe diria algo parecido para a sua avó. Assim, teve início a inversão de papéis, de modo que fosse possível liberar a raiva materna na relação com a avó.

No papel da sua mãe, Lírio disse para a avó:

Você deveria ter cuidado de mim, foi horrível tudo que te aconteceu... [silêncio de alguns segundos]. O abuso... Mas eu não posso cuidar dos outros para você. Você é a mãe, e eu sou a filha. Eu tive medo de tanta coisa na vida, eu batia nas minhas filhas para você não achar que eu estava permitindo que elas fossem assanhadas e agora eu tenho muita raiva de ter que cuidar de ti porque tens Alzheimer.

Essa foi uma cena em que a terapeuta foi pedindo para Lírio falar cada vez mais alto (maximização), visando à liberação das emoções negadas. Além disso, houve um momento de silêncio. Nele a terapeuta permitiu que a paciente pudesse quebrar o segredo familiar. É importante que o paciente fale o não dito, que esteja totalmente no momento presente, capaz de ver e enfrentar os problemas sem “desviar os olhos” (Schützenberger, 2012Schützenberger, A. A. (2012). Esercizi Pratici di Psicogenealogia: Per scoprire i propri segreti di famiglia, essere fedeli agli antenati, scegliere la propria vita. Di Renzo.).

Posteriormente, no papel da avó, a paciente respondeu:

Eu peço desculpas, mas eu agora preciso esquecer as coisas do passado.

A terapeuta disse em um duplo:

Talvez o Alzheimer me ajude nisso.

Lírio no papel da avó confirmou e prosseguiu:

Não fui cuidada, minha filha, e sei que não tens a obrigação de me cuidares e não deverias ter que ter cuidado dos teus irmãos, mas agora tu podes escolher de quem cuidar e o que fazer da tua vida.

Em seguida, a paciente escolheu encerrar a cena com a imagem da avó cuidando da mãe e foi convidada no papel da avó a fechar os olhos e embalar sua mãe (foi usado um travesseiro para tanto), guardando a sensação de que a partir de agora havia a bisavó cuidando da avó, a avó cuidando da mãe e Lírio sendo cuidada pela mãe. Depois, a paciente foi convidada a despedir-se dessas mulheres que a antecederam, que cuidaram dela e que foram cuidadas e seguir seu caminho como adulta.

Chegando ao fim da sessão, a paciente destacou estar mais leve, sentindo-se mesmo como se tivesse feito alongamento. Rindo com a paciente, a terapeuta disse:

Alongar é crescer, né.

Sair de uma situação de parentificação ou de triangulação, com a consciência e a escolha de novas respostas relacionais, permite ao indivíduo investir nos próprios interesses (Martins et al., 2008Martins, E. M. A., Rabinovich, E. P., & Silva, C. N. (2008). Família e o processo de diferenciação na perspectiva de Murray Bowen: um estudo de caso. Psicologia USP, 19(2), 181-197.).

Na última sessão a compor este trabalho, a paciente chegou contando que saiu com as amigas e que se sentiu bem, que não tinha tido mais crises nesse período e que as amigas diziam que ela não estava mais tímida nas relações. A terapeuta questionou a paciente se ela daria outro nome para a timidez, e ela trouxe: gordura e medo de as pessoas lhe fazerem mal. Foi sugerido que Lírio escolhesse objetos pesados para representar cada um desses aspectos, que seriam devolvidos a quem parecia ter carregado isso em primeiro lugar, e a paciente imediatamente se lembrou da avó. Lírio escolheu um vaso para a gordura e um fichário para o medo de as pessoas lhe fazerem mal. Ela tentou empilhar o vaso no fichário, que se desequilibrava, e a terapeuta disse:

Parece que é esse medo então que sustenta a gordura. Vamos agradecer as boas heranças de sua avó e devolver o que não lhe pertence.

A paciente assentiu com a cabeça, estendeu os braços equilibrando os objetos e disse para a avó:

Eu agradeço, vó, porque você me apresentou Deus, me ajudou a me manter na minha fé. Meu Deus não pune, ele me ama, me protege, me cuida. A senhora me mostrou que eu posso enfrentar as situações difíceis com Deus, mas eu quero devolver esse medo de que as pessoas me façam mal e a necessidade dessa gordura como proteção. Eu me protejo, vó. Eu tenho as palavras para me defender, eu tenho Deus, eu tenho minhas amigas.

A terapeuta então disse:

Isso não significa que a ame menos.

Lírio repetiu a frase e complementou:

Eu a amo, vó.

A paciente escolheu finalizar a cena devolvendo os objetos e respirando fundo. Por alguns minutos, a terapeuta e a paciente ficaram respirando profundamente e fazendo sons de alívio. Ao final, quando questionada sobre como estava, Lírio disse:

Estou leve, parece que eu dormi um monte e acordei agora.

A paciente seguiu em psicoterapia e, nesse momento, está em fase de projeção para o futuro e planejamento da saída da casa dos pais. Assim, a consciência e a possibilidade de dar novas respostas aos vínculos cujos papéis pareciam predeterminados permitiram que Lírio se autorizasse a investir na própria vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A timidez pode representar uma característica do indivíduo, mas também uma forma de lidar com a ansiedade que surge diante dos segredos familiares, bem como de se invisibilizar e de não dar trabalho para a família. Assim, surge como uma estratégia para gerar mérito ou lidar com as injustiças sofridas pelos antepassados.

É possível identificar isso no caso de Lírio, que inicialmente assumiu ter dificuldade de desidealizar as figuras parentais, pois entendia não poder dar trabalho e ter como responsabilidade facilitar a comunicação entre os pais. Os fenômenos da triangulação e da parentificação pareciam embotar a paciente perante situações sociais em que se via tendo de construir relações fora do átomo familiar.

A relação entre culpa e lealdade invisível ficou clara no caso de Lírio, que buscava o alívio da culpa que seria gerada caso não fizesse a sua função na disposição de papéis. Além disso, havia a busca pelo reconhecimento materno, já que não tinha sido cuidada pela mãe na primeira infância.

Ao ter de olhar para essa culpa, Lírio percebeu que as regras internalizadas pela mãe e por ela sobre ser uma pessoa certa pareciam vir da avó e ter origem em uma cena de abuso vivenciada por esta. Sabe-se que os sobreviventes de situações de violência podem carregar culpa, pela sensação de impotência, de que deveriam ter feito algo, mas não sabem bem o quê. Essa culpa parecia atravessar a vida da mãe de Lírio e de Lírio. Portanto, a sua devolução para que a avó gerasse uma nova resposta foi importante para que a paciente se visse como alguém forte e potente, que também pode ser cuidada e que pode errar, não precisando mais ser a boazinha para ser amada. Assim, se antes as crises de ansiedade eram a única forma de receber cuidado, agora Lírio constatou que podia cuidar e ser cuidada e que isso faz parte da vida adulta.

Além do fenômeno da parentificação, houve a identificação da síndrome de aniversário e da lealdade invisível com a mãe, que, por sua vez, parecia vinculada de forma ambivalente à avó. Como estratégias para lidar com esses fenômenos, o átomo social propiciou a autorização para sair da triangulação. O genosociograma evidenciou os segredos familiares e ampliou a consciência da síndrome de aniversário e da sociometria familiar. Pela devolução das heranças, do duplo, do solilóquio e da maximização, foi possível identificar e devolver a gordura, o medo de que as pessoas machuquem Lírio e as crises de ansiedade aos fantasmas que faziam referência ao segredo do abuso sofrido pela avó. Nesse sentido, sugerem-se novas intervenções e pesquisas que explorem o papel da timidez na dinâmica familiar e a ansiedade social como respostas aos segredos familiares.

Finalizando, por meio da experiência oportunizada pela Escola Internacional de Terapia Transgeracional Anne Ancelin Schützenberger, foi possível verificar que a timidez e a ansiedade social de Lírio eram representantes dos conflitos transgeracionais que precisavam de esclarecimento e de consciências emocional e cognitiva para que a paciente pudesse gerar novas respostas relacionais.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Escola Internacional de Terapia Transgeracional Anne Ancelin Schützenberger, que, por meio de seus docentes, inspirou, orientou e ofereceu fontes para a organização deste trabalho.

  • FINANCIAMENTO

    Não se aplica.

DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA

Os dados de pesquisa estarão disponíveis mediante solicitação.

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Editado por

Editora de seção: Oriana Hadler https://orcid.org/0000-0001-9736-2224

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2024
  • Aceito
    20 Jun 2024
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