Resumo
Apresentamos neste artigo nossas considerações acerca da leitura empreendida por Deleuze em torno do pensamento estético dos artistas Carmelo Bene e Samuel Beckett. Nosso objetivo foi o de pensar, juntamente com Deleuze, na arte como uma potência de viver, isto é, um modo específico de tentar compreender os efeitos produzidos pelos objetos estéticos cujos impactos refletem em formas de subjetividade que não cessam de proliferar linhas de fuga responsáveis por escapar da normatividade dos dispositivos. Seu método de trabalho orienta-se pela perspectiva de uma composição jazzística na qual Deleuze trata de escrever sobre a arte com a finalidade de rastrear no interstício de um pensamento não conceitual os traços da diferença como estratégia política. Nossas considerações finais são dedicadas a apresentar os trabalhos de Carmelo Bene e Samuel Beckett num modo específico de se compreender a emergência de novos processos de subjetivação marcados pela filosofia da diferença.
Palavras-chave: potência de viver; Gilles Deleuze; arte
Resumen
Presentamos aquí nuestras consideraciones sobre la lectura realizada por Deleuze en el pensamiento estético dos artistas Carmelo Bene y Samuel Beckett. Nuestro objetivo era pensar junto con Deleuze, el arte como un poder de la vida, es decir, de una manera específica de tratar de entender los efectos producidos por objetos estéticos cuyos impactos se reflejan en formas de subjetividad que no dejan de proliferar líneas de fuga responsables por el escape de la normatividad de los dispositivos. Su método de trabajo es guiado por la perspectiva de una composición de jazz en el que Deleuze trata de escribir sobre el arte con el fin de realizar un rastreo de los intersticios de uno pensamiento no conceptuale de la diferencia como una estrategia política. Nuestras consideraciones finales están dedicadas a presentar el Carmelo Bene y la obra de Samuel Beckett en una manera específica de entender la aparición de nuevos procesos subjetivos marcados por la filosofía de la diferencia.
Palabras clave: potencia del vivir; Gilles Deleuze; arte
Abstract
We present here our considerations about the reading undertaken by Deleuze around the aesthetic thought of two artists Carmelo Bene and Samuel Beckett. Our goal was to think along with Deleuze, art as a power to live, like a specific way of trying to understand the effects produced by aesthetic objects whose impacts are reflected in new forms of subjectivity that do not cease to proliferate lines Trail responsible for escape from the normativity of the devices. His working method is guided by the prospect of a jazz composition in which Deleuze comes to writing about art in order to track the interstices of a non conceptual thinking traces of difference as a political strategy. Our final considerations are dedicated to present the Carmelo Bene and Samuel Beckett's work in a specific way of understanding the emergence of new subjective processes marked by the philosophy of difference.
Keywords: power of living; Gilles Deleuze; art
Introdução à potência de viver...
Ao longo de toda sua trajetória intelectual, Gilles Deleuze sempre concedera à arte um estatuto privilegiado. Muitas de suas entrevistas, ensaios e livros são dedicados a pensar o papel da arte sobre o que nós chamamos aqui de potência de viver, isto é, um modo específico de tentar compreender os efeitos produzidos pelos objetos estéticos cujos impactos se refletem - como num jogo de espelhos - em novas formas de subjetividade que não cessam de proliferar linhas de fuga responsáveis por escapar da normatividade dos dispositivos.
Isso porque não enxergamos em nenhuma das leituras empreendidas por Deleuze uma tentativa em limitar-se a avaliar as relações entre a vida e a obra de qualquer artista. Antes, sua proposta metodológica orienta-se pela perspectiva de uma composição jazzística na qual Deleuze (2010) trata de escrever sobre a arte com a finalidade de rastrear no interstício de um pensamento não conceitual os traços da diferença como estratégia política, pois, para Deleuze (2010), a arte é o procedimento por meio do qual o sujeito relaciona-se com a intensidade dos afetos.
Nesse sentido, a característica mais singular de sua escrita consiste no fato de que sua perspectiva filosófica não funciona como uma espécie de metadiscurso ou metalinguagem no sentido de se analisar determinado objeto para encontrar uma legitimação, uma condição de possibilidade que fundamente uma determinada discursividade. Para Deleuze e Guattari (1992), a filosofia não está aquém nem além, mas no mesmo nível de outros saberes. Isso significa que ela é, ante de tudo, sinônimo de produção e criação de pensamento. Da mesma forma, não devemos esperar que a analítica deleuziana procure assimilar outras epistemologias, pois existe uma distinção específica para Deleuze (2010) em relação aos processos de criação. Em O que é a filosofia? Deleuze e Guattari (1992) apontam que enquanto a ciência é responsável pela criação de funções, a política pela criação de conflitos, a arte pela criação de afetos, a filosofia seria a arte de criar conceitos.
Em especial, a atividade filosófica é criadora porque procura fazer emergir uma nova força que ainda não existira, uma singularidade outra. Isso significa que cada filósofo imprime sua marca, um registro que possui a assinatura de seu criador. Ou, nas palavras de Machado,
O pensamento filosófico é criador porque faz nascer alguma coisa que ainda não existia, alguma coisa nova, uma singularidade. E neste sentido pode-se dizer que os conceitos são assinados, têm o nome de seu criador: ideia remete a Platão, substância a Aristóteles, cogito a Descartes, mônoda a Leibniz, condição de possibilidade a Kant, duração a Bérgson. (Machado, 2010, p. 08)
Essa característica implica a elaboração de um questionamento: como Deleuze (2010) cria os seus conceitos? A elucidação dessa pergunta recai sobre o método empregado por Deleuze (2010) cujo objetivo estabelece um percurso sobre aquilo que foi pensado por outros saberes para integrar nessas reflexões os traços de sua própria filosofia. Dir-se-ia então que a estrutura do pensamento deleuziano é fortemente atravessada pelas relações que são extraídas de uma série de discursividades com uma única finalidade: afirmar a diferença em detrimento às políticas de identidade. A marca dessa filosofia da diferença, segundo Machado (2009), consiste no fato de que depois da escrita dos textos deleuzianos tornou-se possível pensar sem subordinar a diferença à identidade. Como se a diferença circulasse por si só estabelecendo-se como uma força corrosiva de elementos tais como mesmidade ou identidade. A diferença, portanto, é uma estratégia de combate perante o totalitarismo e o fascismo das manifestações identitárias. Mas, como efetivamente pode-se pensar sem que se subordine a diferença aos problemas de identidade? Para isso é necessário, segundo Machado (2010), recolher os indicativos de saberes que procuram promover um corte, uma ruptura em relação à dialética hegeliana e seus domínios do absoluto. É o que faz Deleuze (2009) ao promover, por exemplo, um estudo sobre Proust implicando-se diretamente na realização de uma análise que encontrará na Recherche original a distinção diferencial a partir da relação entre signo e sentido.1
Nosso ensaio procura apresentar as considerações realizadas por Deleuze (2010) em relação à arte a partir de um olhar desdobrado em dois momentos. No primeiro momento nos deteremos sobre a leitura deleuziana de Carmelo Bene e as possíveis correlações entre o dramaturgo italiano e a potência da literatura menor em Kafka no que corresponde à composição do que Deleuze (2010) chama de duplo sem semelhança. Já o segundo momento é dedicado a pensar as relações existentes entre o esgotado e as linhas de fuga presentes na leitura de Deleuze (2010) em torno de alguns trabalhos construídos por Samuel Beckett.
Carmelo Bene e Kafka: ou o que é um duplo sem semelhança?
Carmelo Bene foi um escritor, músico e cineasta italiano que desenvolveu uma série de trabalhos responsáveis por torná-lo uma figura de expressão no campo da estética do século XX. Em geral, suas peças procuravam imprimir uma marca sobre o trabalho original adotando um posicionamento crítico capaz de transformar sua arte num processo criativo. Já Franz Kafka foi um escritor nascido no Império austro-húngaro durante a passagem do século XIX para o século XX que desenvolveu grande parte de seus trabalhos a partir de temas como a problemática do absurdo, a violência no circuito familiar e o papel da burocracia no cotidiano das práticas sociais. Qual a relação possível entre esses dois grandes artistas?
Para que se responda com exatidão o presente questionamento, é necessário apontar as contribuições de Machado (2010) que, ao nos apresentar a operatividade da filosofia da diferença, argumenta que a aproximação possível entre Bene e Kafka denota a construção de um duplo sem semelhança na leitura sobre o objeto estético investigado através do procedimento de torção. Isso significa que Deleuze (2010), ao percorrer todos os limites de um texto para afirmar sua diferença, pensa em seu próprio nome a partir da contribuição de outros saberes, já que todo objeto estudado por Deleuze (2010) sofre pequenas ou grandes torções, pois tal qual um dramaturgo ele inscreve os papéis destinados a cada personagem na construção do seu projeto filosófico: a filosofia da diferença. Justamente por isso, o discurso é tomado como um monumento analisado por Deleuze sendo sempre modificado, violentado, produzindo, dessa forma, múltiplas duplicidades em relação ao seu sentido original.
Não seria exagero nenhum afirmar que o procedimento de torção desenvolvido por Deleuze é similar ao que ele mesmo chama provocativamente de enrabada filosófica, ou seja, um modo específico de violentar determinado personagem conceitual fazendo nascer desse estupro um filho monstruoso. Segundo Deleuze:
Mas minha principal maneira de me safar nessa época foi concebendo a história da filosofia como uma espécie de enrabada, ou, o que dá no mesmo, de imaculada concepção. Eu me imaginava chegando pelas costas de um autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e, no entanto seria monstruoso. Que fosse seu seria muito importante, porque o autor precisava efetivamente ter dito tudo aquilo que eu lhe fazia dizer. Mas para que o filho fosse monstruoso também representava uma necessidade, porque era preciso passar por toda espécie de descentramentos, deslizes, quebras, emissões secretas que me deram muito prazer. (Deleuze, 1992, p. 14)
O que está em jogo nesse contexto é a própria perspectiva metodológica do seu pensamento que atua no sentido de produzir uma inter-relação, na medida em que seu método procura desdobrar-se em torno das possibilidades de se percorrer determinado assunto elevando-o até sua última potência com a finalidade de produzir agenciamentos que estabeleçam uma conexão infinita, e é dessa maneira que emerge a especificidade de sua filosofia da diferença.
Um exemplo desse procedimento é o ensaio Um manifesto de menos no qual Deleuze (2010) interessa-se em analisar os processos criativos empreendidos por Carmelo Bene através da elaboração do conceito artístico de menor que, conforme aponta Deleuze (2010, pp. 27-28), pode ser compreendido a partir da seguinte constatação:
A respeito da peça Romeu e Julieta, Carmelo Bene diz: “É um ensaio crítico sobre Shakespeare. “Mas o fato é que CB não escreve sobre Shakespeare: o ensaio crítico é uma peça de teatro. Como conceber essa relação entre o teatro e sua crítica, entre a peça originária e a peça derivada?”O teatro de CB tem uma função crítica, mas crítica de que? Não se trata de “criticar Shakespeare, nem de um teatro dentro do teatro, nem de uma paródia, nem de uma nova versão da peça, etc. CB procede de outro modo, e é mais inovador: Suponhamos que ele ampute a peça originária. Mais precisamente: ele não chama sua própria peça sobre Hamlet de um Hamlet a mais, mas de “um Hamlet de menos”, como Laforgue. Ele não procede por adição, mas por subtração, por amputação.
Nesse contexto, dentro da crítica enunciada por Bene, o sujeito do teatro é um operador que desdobra o seu movimento a partir da subtração, ou seja, antes de tudo é necessário amputar algo para fazer emergir a proliferação de algo inesperado. E, nesse caso, deve-se extrair a representação operando como uma espécie de precisão cirúrgica para a efervescência de personagens menores. Esse é o caso de Romeu, por exemplo, que é extraído da peça originária por Bene em nome do fortalecimento da figura de Mercúrio, alguém que na nova trama se nega a morrer. Trata-se efetivamente da constituição do menor, compreendido como uma figura periférica. Nesse contexto, aquilo que é odiado e desprezado na trama original passa a se fortalecer no teatro de Bene, pois a crítica adotada por ele, segundo Deleuze (2010), implica a constituição de novas formas periféricas para a compreensão da potência do menor.
Para Deleuze (2010), o teatro de Bene é criativo porque suas peças sempre subtraem elementos originais. Desse modo, o Ricardo III de Shakespeare (1995) é de tal maneira amputado do seu sentido primeiro a ponto de os reis e príncipes - tradicionalmente representantes do Estado - serem deixados de lado em nome da emergência de Ricardo e das mulheres, cuja ambição é criar uma máquina de guerra que se opõe diretamente aos aparelhos de captura. Nessa nova leitura, os próprios contornos do teatro são deslocados e essa arte deixa de ser somente representação para se transformar em força de desterritorialização. Para Deleuze (2010), Ricardo III seria a peça em que Bene eleva a seu mais alto grau de potencialização a amputação de seus personagens.
Ao analisar Ricardo III de Carmelo Bene, Deleuze (2010) acaba ainda por ilustrar com precisão todo o contexto por meio do qual os gestos de Ricardo convergem numa variação da linguagem e seus gestos. Esse processo está diretamente relacionado na produção de uma máquina de guerra cuja perspectiva política é perpassada pela estratégia de Carmelo Bene em exprimir o poder da representação por meio da variação contínua que nada mais é do que uma linha de fuga.
Como dito anteriormente, na leitura do dramaturgo italiano todo o aparelho real é excluído em nome da focalização sobre as relações de guerra por meio das quais as mulheres, mais especificamente, entram em conflito. Aos poucos o próprio Ricardo torna-se um sujeito deformado cuja finalidade é tão somente divertir as crianças, e o que se torna importante na peça são as notas de lutas empreendidas pelo feminino.
Na realidade, Deleuze (2010) acredita que, ao realizar tal procedimento, Bene confere uma desconstrução da identidade para fortalecer figuras periféricas e menores do seu contexto originário. Em todas as peças o que é extraído são os elementos de poder, as figuras representativas ou aquilo que legitima uma hegemonia. Ao escolher amputar os elementos do poder, Bene realiza, portanto, um trabalho crítico por meio do qual o teatro deixa de ser pensado como representação para se tornar um artefato subversivo que potencializa o menor fazendo eclodir uma força que está sempre em desequilíbrio.
S.A.D.E. é outro exemplo eficaz desse processo operatório. Naquela peça, a imagem, segundo Deleuze (2010), sádica do senhor é reduzida à masturbação, já que o servo que se metamorfoseia passando a destituir o centro da representação sádica, não como uma imagem invertida, mas como autonomia perante a amputação do senhor.
Na realidade, Deleuze (2010) interessa-se em conceber a dramaturgia de Carmelo Bene pela relação entre maior e menor. Mas, dentro desse contexto, como podemos visualizar a presença desse ator menor? Um ator menor seria, para Deleuze (2010), um personagem sem passado nem futuro. Trata-se de um qualquer2 que apenas estabelece fluxos, conexões com outros espaços e possibilidades.
É importante ressaltar que no contexto de Carmelo Bene o que importa não é o começo nem o final da trama, mas o seu meio. Essa é a experiência rizomática por meio da qual maior e menor são provenientes de um devir compreendido como uma força pela qual a questão passa a ser não o passado ou o futuro de uma estrutura, mas sim a proliferação de um devir revolucionário.
Segundo aponta Deleuze (2010, p. 35), “É no meio do turbilhão que há o devir, o movimento, a velocidade, o turbilhão. O meio não é uma média, e sim, ao contrário, um excesso. É pelo meio que as coisas crescem”. Sendo assim, o meio para Deleuze e Guattari (1995) não é uma medida, mas um excesso, e é nesse excesso que as coisas tornam-se potentes, uma vez que o meio é extemporâneo, ele não é histórico nem eterno.
Para Carmelo Bene, os verdadeiros atores são os menores, pois eles fazem da intempestividade um estilo, já que, segundo a concepção deleuziana de arte, ao ator não cabe interpretar o seu tempo, mas percorrer os limites de todas as experiências possíveis.
Para explicar essa função, Deleuze (2010) recorre à metáfora do quadro. Esse quadro é o que lhe permite compreender como e por que o verbo majorar é um problema dentro da experiência do devir. Tomando o campo das artes como exemplo, a figura de Shakespeare torna-se maior quando se produz uma espécie de doutrina, um modo de vida atrelado à produção histórica a que o autor pertence.
Desse modo, a peça originária de Shakespeare seria uma representação do Império Britânico, responsável por ilustrar as estratégias de poder próprias do colonialismo ocupando, desse modo, um papel de instrumento relacionado aos aparelhos de capturas provenientes do Estado.3 Nesse contexto, o processo de maioração possui sempre relação com a normalização dos problemas do autor e da obra. Contudo, existe um traço dentro desse mesmo quadro que pode sugerir o caminho inverso, e nele Shakespeare pode se tornar menor. Desse modo, Deleuze (2010) acaba por criar um verbo: minorar. Verbo que, segundo ele, designa os modos pelos quais a amputação de um poder transforma as peças de Shakespeare numa força ativa da minoridade. Trata-se, nesse caso, de uma releitura? Absolutamente não! A questão consiste em promover um corte, por meio do qual se consegue perceber o empreendimento de Carmelo Bene como uma desconstrução da força hegemônica em nome do aparecimento de conjeturas periféricas. Carmelo Bene, afirma Deleuze (2010), acreditava que o modo de se proceder no contexto do teatro implicava outro tratamento dado aos clássicos. Trata-se de um tratamento de amputação, do contrário - por quais motivos estudaríamos os clássicos? Para sustentação de uma hegemonia? De uma representação? Os clássicos existem para serem amputados, e não para serem meramente comentados.
Deleuze (2010) ainda considera que uma língua maior é composta por uma forte estrutura hegemônica e, nesse sentido, a criação empreendida por Carmelo Bene é, para ele, uma espécie de teatro da língua. Dito de outro modo, isso significa que a analítica deleuziana sobre Carmelo Bene é menos do teatro do que da linguagem, pois é justamente por esse último elemento que ele pretende ilustrar peças e personagens que insistem em proclamar a efervescência de uma língua menor, já que Carmelo Bene acreditava - parafraseado por Deleuze (2010) - que uma escrita não é literária, nem teatral, mas uma operação cuja finalidade é produzir o estranhamento no espectador. Esse estranhamento corresponde à possibilidade do artista ser um estrangeiro no seu próprio idioma, um outsider, ou ainda, como no caso de Kafka, ser um “exímio nadador que não sabia nadar” (Deleuze, 2011, p. 12). Em A literatura e a vida, Deleuze (2011) aponta que a literatura de Kafka segue os contornos do que podemos chamar de frágil saúde irresistível, pois empreende a construção de uma escrita na qual se dilaceram os processos convencionais fazendo emergir, por meio da linguagem, um outro espaço. Nos seus mais variados desdobramentos e recortes, o espaço artístico não apresenta-se somente como uma representação, mas uma condição paradoxal que possibilita à filosofia da diferença percorrer todos os contornos dessa outra linguagem recolhendo os indicativos presentes através de uma problematização das identificações produzidas pelo acossamento dos dispositivos.
Nesse sentido, Deleuze (2010) empreende uma leitura que articula o teatro de Carmelo Bene e a literatura de Frantz Kafka circunscrita não na perspectiva dos jogos indenitários, mas sim através da variação da linguagem. É nesse sentido que o teatrólogo se aproxima do escritor e realiza um procedimento que é da ordem da extravagância, elevando a linguagem até sua última potência. Justamente por conta desse aspecto é que tanto Carmelo Bene quanto Kafka conferem à linguagem um estatuto da experiência do delírio, já que ambas percorrem novos caminhos e abrem novos horizontes pela força do estranhamento. Suas discursividades artísticas não são, portanto, da ordem da representação, mas sim do inventário da diferença.
Para entendermos melhor essa relação, é preciso aproximar Um manifesto de menos (Deleuze, 2010) ao livro publicado junto com Guattari (2014) intitulado Kafka: por uma literatura menor, no qual é defendida a tese que o conceito de menor se configura a partir de três elementos: a desterritorialização, a articulação do individual com o político e o agenciamento coletivo da enunciação. Isso porque o conceito de menor opõe-se à maioria a partir de um ponto de vista qualitativo e articulado com o devir.
Nesse sentido, enquanto que a literatura de Kafka é menor porque ela subverte a estrutura homogênea da linguagem, Bene, segundo Deleuze (2010), realiza procedimento semelhante ao fazer um teatro que desloca os efeitos da linguagem do campo semântico estrutural para o território da variação sempre contínua.
Em Ricardo III, os gestos e as vozes compõem linhas de fuga de variação, e é justamente essa a proposta política desse modelo de teatro. Trata-se de prescrever um estilo que não se efetiva pela normalização, pela codificação e pela institucionalização. Bene realiza um empreendimento político quando desloca os efeitos da representação dos conflitos pela variação entendida como elemento antirepresentativo.
Mas como podemos afirmar que a variação escapa da representação? Para que tal pergunta seja respondida de maneira adequada, é necessário compreender a variação a partir da distinção do que Machado (2010) argumenta ser, para Deleuze, o fator majoritário e o devir minoritário. Isso significa que, para Deleuze (2010), o teatro tradicional remete sempre ao fato majoritário quando institui um padrão que sublima outras questões consideradas menores. Por conta desse aspecto, o fato majoritário sempre aloca elementos de poder ou estados de dominação nos quais as vozes dos personagens principais acabam sujeitando toda trama da peça ao imperativo categórico de um sujeito estético. Já o devir minoritário atua pelos critérios das linhas de fuga, procurando sempre desviar-se do modelo padrão. Nesse sentido, o devir minoritário é antirrepresentativo porque constitui uma potência cujo elemento principal não é mais o poder, mas sim o contorno de um desejo revolucionário que se exerce pelos critérios de agenciamentos atuando como uma maquinaria que escapa aos jogos de poder, às estratégias do saber e aos processos de subjetivação.
As linhas de fuga em O esgotado de Beckett
O esgotado é o título de umas das últimas análises empreendidas por Deleuze (2010). Nela, o intelectual francês trata de investigar o método criativo presente nas peças construídas por Samuel Beckett para a televisão. Deleuze (2010) defende a tese de que existem nos escritos do dramaturgo irlandês os elementos capazes de afirmar a diferença a partir da emergência da própria noção de esgotamento, uma potência que é radicalmente oposta ao cansaço, pois Deleuze (2010) argumenta que, enquanto o cansado esgota o real, o esgotado esgota o possível. Isso significa que se o cansaço atua no sentido de produzir uma exclusão, o esgotado recusa a qualquer preferência, pois seu objetivo final é atingir a exaustão sem pretender remeter a nenhuma potência. Nesse sentido, a fórmula presente no esgotamento está relacionada ao princípio baterblyano segundo o qual o preferiria não!4 torna-se mais do que meramente uma estratégia de resistência, operando como uma prática ontológica de liberdade.
Para Deleuze (2010), Beckett esgota todo o possível quando cria um procedimento semelhante ao da filosofia da diferença apresentando, desse modo, o esgotado como um personagem desse modelo de pensamento a partir do que Machado (2010) nomeia como sendo a arte da combinatória e seus traços. Nesse processo, o que está em jogo é o próprio papel da linguagem para a filosofia da diferença, já que o esgotado produz uma realidade esgotável das palavras, uma vez que esgotar o possível significa construir uma linguagem que não para de proliferar fluxos que se alternam constantemente. Isso se refere ao fato de que, ao esgotar o possível com palavras, os fluxos se interrompem. Portanto, esgotar para Deleuze (2010) implica remeter a Outro por meio do estancamento e da interrupção.
Contudo, é necessário afirmar que, além de esgotar o possível com palavras, é preciso também esgotar as próprias palavras para fazer ecoar a necessária heterogeneidade dos fluxos. Essa questão possui relação com outros dois livros de Deleuze - Lógica do sentido (2000) e Diferença e repetição (1988) - nos quais ele elabora o conceito de Outro. Tal conceito é retomado em O esgotado (Deleuze, 2010) para se compreender uma analítica sobre Beckett no sentido de se enxergar a finalidade de seus trabalhos qual seja o processo de remissão das palavras ao Outro. Isso porque a teatralidade de Beckett ultrapassa a fronteira das zonas linguísticas para se enveredar pelos contornos da imagem. Ao atingir seu limite, a linguagem passa a ser pensada como um fora, como uma linha de fuga. Trata-se, nesse caso, de reconhecer o fato de que uma imagem de potencialidade pode superar o racional ou o pessoal - identidade - para se converter em qualquer coisa. A imagem nesse contexto é pensada como uma maquinaria ou um artefato que esvazia as instâncias normativas dos enunciados, uma vez que, para Deleuze (1990), uma imagem pura é sempre superior ao enunciado, pois a primeira sempre esvazia o segundo, e tal esvaziamento, por sua vez, remete ao espaço; entretanto, para Deleuze, trata-se sempre de um espaço qualquer cujo emblema encontra-se demarcado pela experiência cartográfica do devir.
Deleuze (2010) reconhece ainda que existem quatro funções do esgotamento em Beckett. Em primeiro lugar, o esgotado cria séries exaustivas das coisas; em segundo lugar, ele estanca os fluxos de vozes; em terceiro lugar, ele dissipa a potência da imagem e, finalmente, o esgotado extenua as potencialidades do espaço.
Por exemplo, em Quad, segundo Deleuze (2010), os movimentos são delineados num espaço qualquer e, portanto, são despotencializados. O centro seria a potência do quadrado, porém os quatro corpos exploram sempre os lados e as diagonais, jamais se encontrando. Aqui o encontro torna-se impossível graças a um leve recuo dos corpos que evitam o centro. Nesse sentido, Quad explora os limites do periférico, já que o centro é evitado a todo o momento, não existindo a convergência dos corpos, mas somente sua dispersão.
Já Trio do fantasma explora a noção de espaço de uma maneira diferente. Agora não se trata mais somente de um espaço qualquer, mas sim um lugar determinado com três potencialidades: a porta ao leste; a janela ao norte e o catre a oeste. Os movimentos da câmera se efetivam pela passagem de um espaço a outro. Entretanto, só existe o vazio nessas passagens. Outra característica da peça é a voz: ela é sempre depurada e neutra, não existindo qualquer entonação. Sabe-se que ora ela é de uma mulher, ora de um homem, ora de uma criança. Contudo, elas são sempre impessoais, não havendo como reconhecer nelas qualquer identificação de um sujeito.
O debate aberto por Deleuze (2010) em relação ao esgotado de Beckett indica uma tentativa de aproximação por parte do filósofo francês em relação à Espinosa e sua obstinação pelos ideais ascéticos, pois para Deleuze (2010) o esgotado sempre ocupará o terreno de um apriori ontológico. Nesse sentido, seria correto afirmar que o esgotamento produz uma combustão semelhante ao fervilhar de ideias e atitudes que só podem acometer o esgotado e nunca o cansado.
Justamente por conta desses aspectos é que as peças de Beckett podem ser inscritas no que Deleuze (2010) chama de combinatória como um modo específico de produzir uma estética das disjunções que não cessam de se articular. Esse infinito incessante é responsável por produzir o esgotamento e, ao fazê-lo, acaba por criar uma ruptura com qualquer preferência ou finalidade de significação, pois é preciso possuir ao mesmo tempo escrúpulos e desinteresse para ser um esgotado, e isso acontece no exato momento que, segundo Deleuze (2010), se produz uma linguagem que é capaz de efetivar-se por meio de fluxos misturáveis nos quais “A imagem não é um objeto, mas um processo (Deleuze, 2010, p. 81)”. A experiência do esgotamento é o projeto presente nessa analítica empreendida por Deleuze (2010) em relação a Beckett que procura desconstruir a ideia de arte compreendida como representação e situá-la como um ritornelo.
Considerações Finais: em torno da superfície e da porosidade do cristal...
Como apontamos neste artigo, um dos traços fundamentais do pensamento de Gilles Deleuze é seu constante diálogo com as artes num sentido geral. Por meio de análises contundentes, o filósofo francês sempre procurou enfatizar um papel de destaque aos processos de criação que envolvem a tecitura dos processos criativos de pintores, cineastas, dramaturgos e músicos que, segundo sua opinião, contribuem para formar uma espécie de mosaico da filosofia da diferença. E, se conforme aponta Deleuze (2000, p. 106), tudo se passa na superfície de um cristal, resta pois perceber que
um cristal que não se desenvolve a não ser pelas bordas. Sem dúvida, não é o mesmo que se dá com um organismo; este não cessa de se recolher em um espaço interior, como de se expandir no espaço exterior, de assimilar e de exteriorizar. Mas as membranas não são aí menos importantes: elas carregam os potenciais e regeneram as polaridades, elas põem precisamente em contato o espaço exterior independentemente da distância. O interior e o exterior, o profundo e o alto, não têm valor biológico a não ser por esta superfície topológica de contato. É, pois, até mesmo biologicamente é preciso compreender “que o mais profundo é a pele”. (Deleuze, 2000, p. 106)
Nesse contexto, resta-nos perceber a arte como uma afetação que envolve a própria ruptura em relação ao acossamento dos dispositivos de poder, das estratégias de saber e dos processos de subjetivação. Desse modo, percebe-se como para Deleuze a arte opera como uma potência, uma potência do viver, pois o que está em jogo em toda a sua porosidade discursiva são as condições de possibilidade para pensarmos outros modos de ser. Trata-se, sem sombra de dúvida, de operar a construção de uma bricolagem sobre as relações do sujeito consigo mesmo por meio dos agenciamentos e das linhas de fuga.
Esse é o caso dos trabalhos de Carmelo Bene e de Samuel Beckett que, segundo argumenta Deleuze (2010), inscrevem seus trabalhos num modo específico de se compreender a emergência de novos processos de subjetivação marcados pela filosofia da diferença e como tal perspectiva irrompe numa atividade que nos permite compreender a arte como um movimento capaz de ultrapassar a fina película que recobre os dispositivos e a biopolítica enveredando-se pelos critérios de uma relação estética que procura refletir o espelho do mundo, convertendo à própria existência em outras condições de possibilidade. Nesse sentido, a analítica estética empreendida por Deleuze é revolucionária não tanto por propor uma constatação metalinguística sobre a arte, mas por nos permitir compreender a nossa própria vida como uma obra de arte.
Referências
- Agamben, G. (2013). A comunidade que vem Belo Horizonte: Autêntica.
- Césaire, A. (1969). Une Tempête Paris: Seuil.
- Deleuze, G. (1988). Diferença e repetição Rio de janeiro: Graal.
- Deleuze, G. (1992). Carta a um crítico severo. In Conversações: 1972-1990 (pp. 11-22). São Paulo: Ed. 34.
- Deleuze, G. (2000). Lógica do sentido São Paulo: Perspectiva.
- Deleuze, G. (2009) Proust e os signos Rio de Janeiro: Forense.
- Deleuze, G. (2010). Sobre o teatro Rio de Janeiro: Zahar.
- Deleuze, G. (2011). A literatura e a vida. In Crítica e clínica (pp. 11-17). São Paulo: Ed. 34 .
- Deleuze, G. & Guattari, F. (1992). O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34.
- Deleuze, G. & Guattari, F. (1995). Mil platôs: capitalismo esquizofrenia (Vol. 1). São Paulo: Ed. 34 .
- Deleuze, G. & Guattari, F. (2014). Kafka: para uma literatura menor Belo Horizonte: Autêntica .
- Machado, R. (2009). Deleuze, a arte e a filosofia Rio de Janeiro: Zahar .
- Machado, R. (2010). Introdução. In G. Deleuze, Sobre o teatro (pp. 07-23). Rio de Janeiro: Zahar .
- Melville, H. (2008). Baterbly, o escrivão São Paulo: Cosac Naify.
- Retamar, R. F. (2000). Todo Caliban Buenos Aires: Clacso.
- Shakespeare, W. (1995). Ricardo III Porto Alegre: L&PM.
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Conforme aponta Machado (2009), o título do livro Proust e os signos (Deleuze, 2009) já indica a importância dos conceitos de signo e de sentido para uma nova leitura acerca da Recherche. Para Deleuze (2009), a estrutura da escrita proustiana a partir do contexto da multiplicidade. Desse modo, destacam-se os signos e sentidos mundanos, os amorosos, os sensíveis e, por fim, os artísticos.
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Em A comunidade que vem, Giorgio Agamben (2013), certamente influenciado pelas ideias de Gilles Deleuze, pensa a emergência, no contexto da contemporaneidade, do conceito de comunidade sem nada em comum. A partir de um longo debate político Agamben (2013) propõe o qualquer como elemento de potencialidade capaz de ultrapassar as barreiras dos dispositivos da biopolítica fixando seus horizontes de possibilidades a partir de uma experiência ética na qual o múltiplo torna-se singular.
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Cumpre aqui ressaltar as contribuições de alguns estudos decoloniais que possuem opinião semelhante aos olhares de Carmelo Bene e Gilles Deleuze. Por exemplo, os livros Todo Caliban do intelectual cubano Roberto Fernández Retamar (2000) e Uma tempestade de Aimé Cesaíre (1969), poeta caribenho, tratam de promover um corte, uma fissura na dramaturgia shakespeariana para ilustrar uma composição sobre os modos de perceber suas tramas textuais
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Trata-se aqui de uma intertextualidade presente a partir de uma possível leitura do magnífico romance escrito por Melville (2008) intitulado Baterbly, o escrivão: uma história de Walt Street. Nele, encontramos a figura do esgotado em Baterbly, um profissional que desafia os limites de toda razão e toda psicologia ao promover uma fórmula perante a capilaridade do poder: preferiria não possui relação direta com a potencialização do insólito no contexto das práticas sociais. Há que se destacar o mérito da Editora Cosac Naif em levar a cabo o projeto da fórmula baterblyana já que essa edição é semelhante a um arquivo que deve ser manuseado com a ajuda de uma espátula, o que torna a própria leitura do livro uma tarefa árdua, além de perigosa.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
2017
Histórico
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Recebido
10 Dez 2015 -
Revisado
30 Mar 2016 -
Aceito
07 Abr 2016