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O desenvolvimento do educando como finalidade da educação: revisitando Kohlberg

Development as the aim of education: a review of Kohlberg's

O desenvolvimento do educando como finalidade da educação: revisitando Kohlberg

Development as the aim of education: a review of Kohlberg's

Júlio César Castilho Razera

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Jequié, Brasil

Com inquestionável pertinência, o espaço destinado às resenhas na maioria dos periódicos científicos é voltado para trabalhos recentes. No entanto, entendemos que existem algumas poucas obras clássicas que, motivadas por vicissitudes inerentes à relevância da temática abordada, ultrapassam os limites de tempo de sua existência e merecem novas apreciações críticas. Essa necessidade de retomada se amplia quando tais obras passam de forma quase despercebida aqui no Brasil, desde a época em que surgiram, mas ainda continuam a trazer valiosas contribuições para diferentes áreas do conhecimento. Acreditamos que esse é o caso de um dos trabalhos de Lawrence Kohlberg. Estamos nos referindo ao livro intitulado El desarrollo del educando como finalidad de la educación (título original: Development as the aim of education), escrito com a colaboração de Rochelle Mayer1 1 Kohlberg escreveu esta e outras diversas obras em parceria com colegas, orientandos e ex-alunos. (Kohlberg & Mayer, 1984). Essa é uma das obras do psicólogo americano que não chegaram a ser traduzidas para o português. Contudo, pode-se dizer que, juntamente com outras, continua a servir como referência para a área educacional em diferentes países.

Ainda que críticas tenham surgido sobre alguns dos aspectos, princípios ou ideias que aparecem em suas obras, isso não minimiza a relevância de seu legado, tornando-o ainda atual para muitos dos debates que envolvam as áreas da educação, do desenvolvimento humano e da moral. Aliás, pode-se dizer que Kohlberg, aproveitando-se de diálogos travados com outros renomados pesquisadores (Jürgen Habermas, por exemplo) e aberto a posicionamentos que acreditava fossem pertinentes, não se limitou a apenas defender-se das críticas, pois ao longo do tempo processou ajustes e aperfeiçoamentos em suas teses. Em Kohlberg (1992), podemos observar as preocupações do autor com as críticas e com o aperfeiçoamento de suas ideias.

Voltando-se especificamente para a obra de Kohlberg e Mayer (1984), os professores Jorge Preciado e Isabel Mattos, responsáveis pela tradução para a língua espanhola2 2 As traduções das citações diretas são de nossa autoria. , dizem que provavelmente seja "o texto sobre teoria da educação mais difundido em língua inglesa durante a década passada e também o mais importante trabalho sobre teoria educativa que se produziu desde 'El Proceso de la Educación' de Jerome Bruner" (Kohlberg & Mayer, 1984, p. 15). Os dois trabalhos são respostas a dois momentos diferentes dos Estados Unidos. Enquanto Bruner respondia às necessidades educativas de avançar científica e tecnologicamente, por razões de hegemonia pós-Sputinik, Kohlberg se preocupou com a evolução americana que trazia ao seu lado situações de crise e de reivindicações diversas - um quadro que, portanto, não podia mais se sustentar somente com a formação científica e tecnológica. A formação ética surge como preocupação e necessidade programática, a qual Kohlberg apresenta e defende por meio de seus pressupostos especialmente fundados teórica e experimentalmente na psicologia do desenvolvimento humano, com fortes influências piagetianas e outras (Dewey, Mead, Loevinger, por exemplo).

A retomada dessa obra de Kohlberg e Mayer não representa nenhum desejo de promover a (re)criação de um modelo pedagógico kohlberguiano, ou alternativo, ou que consista em padrão (em alguma medida, algo em torno disso até já foi tentado com e sem sucesso), mas que sua construção científica e ideológica nos sirva como subsídio para refletir e analisar nosso próprio meio educativo. Diante disso, vejamos o que depreender sobre esse importante aporte teórico.

Antes das discussões sobre os conteúdos em si, e para efeito de expor o design estrutural da obra, são constitutivos os seguintes itens: Introdução; As três correntes da ideologia educacional (Romantismo; Transmissão cultural; Progressismo); Teorias psicológicas subjacentes às ideologias educacionais; Componentes epistemológicos das ideologias educacionais; Posições de valor ético subjacentes às ideologias educacionais; A falácia da neutralidade valorativa; Os valores e a ideologia da transmissão cultural; A falácia do relativismo dos valores; Os valores e a ideologia romântica; Postulados de valor do progressismo; Estratégias para a definição de objetivos educacionais e a avaliação das experiências educacionais; A estratégia do "talego de virtudes" [receptáculo de virtudes]; A racionalidade da psicologia industrial; A estratégia filosófico-evolutiva; O desenvolvimento como finalidade da educação; Resumo e conclusões.

Logo de início, após ênfase dada à importância dos fins educacionais e defesa do papel da investigação empírica para os rumos do processo, Kohlberg e Mayer (1984) já se posicionam em prol da última das "três estratégias que prevalecem para a definição de objetivos e para relacioná-los aos fatos da investigação", ou seja: (a) dos traços desejáveis (talegos de virtudes), (b) da predição do êxito (psicologia industrial), (c) evolutivo-filosófica. Dizem: "sustentamos que a estratégia evolutivo-filosófica para obter os objetivos educacionais, que emerge dos trabalhos de Dewey e Piaget, é um marco teórico de referência que suporta a crítica lógica e é consistente com atuais resultados da investigação científica" (p. 38).

Ciente de que a escolha sobre a teoria psicológica cognoscitiva-evolutiva é uma ideologia educacional, mas de cunho racional e progressista que contrasta com as demais, Kohlberg e Mayer (1984) apresentam seus argumentos. Mais especificamente, dentre outras discussões, sustentarão que "uma noção alternativa de que a finalidade da escola deveria ser a estimulação do desenvolvimento humano é uma concepção exequível, cientificamente, eticamente e na prática, e oferece um marco de referência de uma nova ordem para a psicologia educacional" (p. 39).

Sobre as três correntes da ideologia educacional, mesmo incorrendo em reduções indesejáveis, resumiremos assim os pressupostos de ambos os autores sobre elas3 3 Kohlberg e Mayer mencionam os seguintes autores como representantes dessas correntes: Rosseau, Freud e Gessel, Neill e Summerhill, Stanley Hall (Romantismo); Bereiter e Engelmann (Transmissão cultural); Dewey e Piaget (Progressimo). :

1. Romantismo: centra-se na criança (paidocentrismo), o que vem do íntimo é o mais importante elemento do desenvolvimento; a criança possui um "eu" que se torna relevante; o "eu" é o fato primário; a escola atuaria para desenvolver e/ou controlar aquilo que vem desse íntimo.

2. Transmissão cultural: raiz na tradição acadêmica ocidental, baseia-se em transmitir o passado às novas gerações (internalização de conhecimentos, destrezas, regras)

3. Progressismo: base nas filosofias pragmáticas funcional-genéticas; educação estimula ativamente o desenvolvimento de uma estrutura não inata, em estágios cada vez mais elevados.

Porque Kohlberg e Mayer (1984) defendem esta última linha de pensamento e também porque encontramos neste trecho alguns princípios dentre os quais os leitores serão chamados a refletir conosco mais adiante, seguem outras características:

O educador progressista acentua os vínculos essenciais entre o desenvolvimento cognitivo e moral; assume que o desenvolvimento moral não é puramente afetivo e que o desenvolvimento cognitivo é uma condição necessária, ainda que não suficiente, para o desenvolvimento moral. O desenvolvimento do pensamento lógico e crítico, central para a educação cognitiva, encontra seu maior significado em um amplo conjunto de valores morais. O progressista também pontua que o desenvolvimento moral emerge da interação social em situações de conflito social. A moralidade não é nem a internalização de valores culturalmente estabelecidos, nem o desenvolvimento de impulsos espontâneos e emocionais; é a justiça, a reciprocidade entre o indivíduo e outros em seu ambiente social (p. 45)4 4 A inserção de citações diretas mais longas no corpo do texto é intencional, porque a referida obra não tem tradução para o português. Uma oportunidade utilizada, então, para difundir diretamente algumas das ideias originais dos autores. .

Das três acima, quais seriam as teorias psicológicas subjacentes? Os autores nos apresentam basicamente o seguinte: a ideologia romântica baseia-se na teoria maduracionista do desenvolvimento, a da transmissão cultural na teoria do desenvolvimento de aprendizagem associacionista ou de contingência ambiental e a progressista na teoria do desenvolvimento evolutivo-cognitivista. Construída com bases em Kohlberg e Mayer, a Tabela 1 apresenta um resumo das principais diferenças entre as três correntes ideológicas.

Uma atenção especial será dispensada aos seguintes elementos teóricos do progressismo trazidos por Kohlberg e Mayer (1984): uma maior ou mais rica estimulação conduz avanços mais rapidamente através dos estágios; um grau moderado ou ótimo de conflito ou discrepância constitui a experiência mais efetiva para a mudança estrutural; a facilitação do desenvolvimento envolve a exposição ao próximo nível mais alto de pensamento e o conflito requer a aplicação ativa do nível de pensamento que possui a criança a situações problemáticas (p.50).

Nos próximos itens que se seguem no livro, Kohlberg e Mayer (1984) discutem os aspectos éticos e de valor inseridos nas três linhas de pensamento. Argumentam contrariamente sobre o relativismo ou neutralidade que implicam os valores na educação ou na escolha de métodos e bases referenciais.

A assessoria sobre os meios não somente não pode fazer-se separada da escolha dos fins, mas também não existe para o consultor educativo maneira para evitar irradiar seus próprios critérios na escolha dos fins. O modelo de consulta neutra acerca dos valores se faz equivalente à neutralidade valorativa com a aceitação da relatividade dos valores do cliente. Mas em realidade o educador ou o psicólogo educacional não pode ser neutro neste sentido tampouco (p.59).

Das três linhas de pensamento, os autores colocam a ideologia progressista como a única a fundar-se em bases que defendem e/ou se aliam a liberalismo ético, democracia, liberdade, não doutrinação e ética universal.

A educação intelectual na visão progressista não é meramente uma transmissão de informação e de habilidades intelectuais: é uma comunicação de padrões e meios de reflexão "científica" e indagação. ... Ao expor a criança a oportunidades para a indagação científica reflexiva, o professor é guiado por princípios de métodos científicos, os quais o professor aceita como a base da reflexão racional. ... São parte de um processo de reflexão por parte do estudante e do professor.

... O problema de doutrinação está bem resolvido pelos progressistas através do conceito de democracia. Uma preocupação pela liberdade das crianças contra a doutrinação se expressa por uma preocupação pela liberdade das crianças nas tomadas de decisão. A liberdade, nesse contexto, significa democracia.

... É impossível para os professores não se comprometer em juízos de valor e decisões. Uma escola na qual o professor é neutro com relação aos valores não significa preocupação pela liberdade da criança ... Em contrapartida, ele pode criar uma escola na qual os juízos de valor do professor e as decisões que se tomem envolvam democraticamente os estudantes (pp. 74-75)

Ao passo que se encaminha para o final da (re)leitura, mesmo que o tempo tenha passado desde sua publicação original (1972 em língua inglesa e 1984 em língua espanhola), a obra de Lawrence Kohlberg e Rochelle Mayer se consolida num dos relevantes marcos teóricos para aqueles que se preocupam com a insistente busca e/ou aproximação entre educação e democracia. E mais. Sustentando-se em processos científicos de desenvolvimento cognitivo e moral (ainda que fiquem ausentes outros fatores não menos relevantes), os pressupostos de Kohlberg subsidiam uma perspectiva educacional voltada para o processo de emancipação do indivíduo - projeto de emancipação individual, com implicações para uma transformação social, em bases fundadas na racionalidade; contrapondo-se a vieses pós-modernos que tentam ganhar espaço entre nós. Como diz Lourenço (2002), a perspectiva cognitivo-desenvolvimentista de Kohlberg, entre outros aspectos, é profunda em "argumentos filosóficos, investigação psicológica e aplicação educacional", além de assumir "mais fortemente a ideia de desenvolvimento da pessoa" e estar "mais comprometida com a transformação das instituições em sociedades justas e boas" (p. 23).

Em suma, Kohlberg e Mayer (1984) é (re)leitura ainda obrigatória e provocativa de muitas reflexões para diversas áreas, especialmente a educacional.

Notas

Recebido em: 27/04/2009

Revisão em: 26/06/2010

Aceite em: 07/07/2010

Júlio César Castilho Razera é Professor do Departamento de Ciências Biológicas, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Doutorando em Educação para a Ciência (UNESP). Membro do Grupo de Pesquisa em Ensino de Ciências (UNESP) e do Grupo de Pesquisa em Formação de Professores (UESB). Endereço: Rua Eduardo Vergueiro de Lorena, 415, Jardim Planalto, Bauru/SP, CEP 17012-450. Email: juliorazera@yahoo.com.br

  • Kohlberg, L. (1992). Psicología del desarrollo moral Bilbao: Desclée de Brouwer.
  • Kohlberg, L. & Mayer, R. (1984). El desarrollo del educando como finalidad de la educación Valencia: Vadell Hermanos.
  • Lourenço, O. M. (2002). Psicología de desenvolvimento moral: teoria, dados e implicaçőes (3Ş ed.). Coimbra: Almedina.
  • 1
    Kohlberg escreveu esta e outras diversas obras em parceria com colegas, orientandos e ex-alunos.
  • 2
    As traduções das citações diretas são de nossa autoria.
  • 3
    Kohlberg e Mayer mencionam os seguintes autores como representantes dessas correntes: Rosseau, Freud e Gessel, Neill e Summerhill, Stanley Hall (Romantismo); Bereiter e Engelmann (Transmissão cultural); Dewey e Piaget (Progressimo).
  • 4
    A inserção de citações diretas mais longas no corpo do texto é intencional, porque a referida obra não tem tradução para o português. Uma oportunidade utilizada, então, para difundir diretamente algumas das ideias originais dos autores.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jun 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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