Open-access TO WORK AND TO GET A TATTOO: STRATEGIES OF DEVISING LIFE

psoc Psicologia & Sociedade Psicol. Soc. 0102-7182 1807-0310 Associação Brasileira de Psicologia Social Abstract The approach with the topic of tattoos and the conceptual dialogue with Deleuze and Guattari (1992) led us to questioning tattoos as a conceptual character in the relations between modes of subjectivation and work. We associate the discussion of these relationships to the immaterial work concept (Gorz, 2005) and liquid life in liquid-modern society (Bauman, 2007). To understand the relationship between working and getting a tattoo in this society, we have developed a cartographic study that included such notions to think about the subject that carry a tattoo alluding to their work. The analysis pointed out that tattoos as a conceptual character is both the mark on the body and a time that endures, as well as a strategy to invent life as a form of reflection, (d)enouncement, expression, strength, communication, interaction, connection, conjugation and continuance, creating opportunities for other interactions and choices. Introdução A experiência de aproximação com o tema e contexto de tatuagens e o diálogo conceitual com Deleuze e Guattari (1992) nos levou à problematização da tatuagem como personagem conceitual nas relações entre os modos de subjetivar e trabalhar. Associamos a discussão dessas relações à noção de trabalho imaterial (Gorz, 2005) e à concepção de vida líquida na sociedade líquido-moderna (Bauman, 2007). Cenas cotidianas urbanas instigaram a pensar: o que enuncia aquele que inscreve em parte visível do próprio corpo uma tatuagem claramente alusiva ao trabalho que realiza? Seria a tatuagem uma forma de expressar sentidos constituídos na sua história com o trabalho? Como essa inscrição corporal se relaciona com os questionamentos contemporâneos quanto às formas de vivermos o trabalho? Que estratégia de vida produz a tatuagem visivelmente exposta na pele e alusiva ao trabalho? Diante desses questionamentos, buscamos compreender a relação entre o trabalhar e o tatuar-se na sociedade líquido-moderna. Argumentamos no sentido de uma estratégia contra-hegemônica de viver frente aos modos de trabalhar e à vida líquida que ressaltam os prazos de validade e apontam para a obsolescência e o desapego. A escolha por esta perspectiva considera que, entre as múltiplas possibilidades, formas e motivos que constituem na atualidade o movimento de marcar o corpo com traços e cores, conforme disponibiliza parte da literatura atual (DeMello, 2000; Ferreira, 2004; Leitão & Eckert, 2004; Marques, 1997; Ramos, 2001), não encontramos a problematização da tatuagem associada a modos de trabalhar (Gorz, 2005; Grisci, 2008; Lazzaroto & Negri, 2001; Pelbart, 2000) daquele que a inscreveu no próprio corpo. Assim, pensamos que a perspectiva que aproxima tatuagem e trabalho imaterial contribui para problematizarmos a expressão de modos de viver que dizem respeito ao contexto da vida líquida vivida na sociedade líquido-moderna (Bauman, 2007). Para tanto, desenvolvemos um estudo cartográfico nos aproximando de sujeitos que, na cena cotidiana urbana, portam em parte visível do corpo uma tatuagem alusiva a seu trabalho. O trabalho partiu de uma aproximação com as pessoas que tatuam e que construíram nessa ocupação sua trajetória profissional (DeLuca, 2015). Dessa aproximação, construímos a problematização e as linhas de análise deste estudo, a serem apresentadas a partir de três eixos: os modos de trabalhar na sociedade líquido-moderna; a tatuagem na atualidade; e a cartografia. Primeiramente, dissertamos sobre os modos de trabalhar na sociedade líquido-moderna, explorando o conceito de trabalho imaterial; em seguida, apresentamos um breve panorama da temática das tatuagens no Ocidente e como foram analisadas em sua relação com o corpo, no que se encontra a subjetividade e a cultura. A problematização da tatuagem associada ao contexto contemporâneo do trabalho nos levou a constituir um campo de diálogo teórico entre perspectivas que apresentam uma crítica das relações capitalistas e os modos de subjetivação, ainda que diferenciem o modo de produção de suas teorias (Bauman, 2007; Gorz, 2005; Lazzarato & Negri, 2001; Pelbart, 2000; Sennett, 2006). Após, realizamos uma apresentação de nossa orientação metodológica com a produção da cartografia e a problematização da tatuagem como personagem conceitual, percorrendo os sentidos que emergem entre trabalho, a escolha por tatuar-se e a criação de um estilo de vida. Por fim, apresentamos nossas considerações finais, as quais contemplam reflexões quanto à tatuagem como personagem conceitual que comunica uma estratégia de vida. Trabalhar: trabalho imaterial na sociedade líquido-moderna A sociedade líquido-moderna, diz Bauman (2007, p. 7), é aquela em que “as realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos, e as capacidades, em incapacidades”. Nessa sociedade, as condições e estratégias de ação e reação envelhecem rapidamente, sem o tempo para seus autores apreendê-las, o que projeta uma vida que deve despir-se, a cada dia, dos atributos que ultrapassaram “a data de vencimento” (Bauman, 2007, p. 9). Deste contexto, vislumbramos a possibilidade de trazer à discussão algumas das novas implicações no trabalho relativas à sua imaterialidade. Tais implicações nos levam a indagar como se dá, por parte dos trabalhadores, o sentido da valorização e da articulação dos processos vitais em favor da produção que alcança a vida numa escala sem precedentes (Lazzarato & Negri, 2001; Pelbart, 2000). Por trabalho imaterial, amparadas em Gorz (2005) e Lazzarato e Negri (2001), entendemos ser aquele decorrente das transformações do capitalismo apresentado em sua face flexível e volátil, requisitando a inteligência e a mobilização de experiências de vida, a fim de dar conta de atividades não prescritas e não necessariamente conhecidas de antemão. Gorz (2005) ressalta que o trabalho imaterial não se limita ao conhecimento formal do trabalhador, requerendo suas capacidades expressivas e cooperativas e saberes que brotam da vida cotidiana, pois é aí que se desenvolvem as capacidades de improvisação e de cooperação. Ainda que, pela via da valorização do trabalho imaterial pelos atuais modos de gestão, retornem ao mundo do trabalho as capacidades cognitivo-afetivas, as quais a organização do trabalho negligenciou no modelo taylorista-fordista de produção, há de se preservar o olhar crítico. Isto pois atualmente é demandado um operário com alma (Lazzarato & Negri, 2001) ou uma vivacidade da cultura cotidiana na utilização dos saberes (Gorz, 2005). Há de se considerar, em primeiro lugar, aquilo que Hardt e Negri (2005), alertam: Não estamos querendo dizer que o paradigma da produção imaterial é uma espécie de paraíso no qual podemos produzir livremente em comum e igualmente compartilhar a riqueza social comum. O trabalho imaterial ainda é explorado sob as regras do capital, como o trabalho material. (Hardt & Negri, 2005, p. 257) Em segundo lugar, também consideramos aquilo que Gorz (2005) e Lazzarato e Negri (2001) alertam, que o desempenho relativo ao trabalho imaterial não se define na relação com a tarefa, tendo a ver com as pessoas. “O desempenho repousa sobre sua implicação subjetiva, chamada também ‘motivação’ no jargão administrativo, gerencial. O modo de realizar as tarefas, não podendo ser formalizado, não pode tampouco ser prescrito. O que é prescrito é a subjetividade” (Gorz, 2005, p. 18). O trabalho imaterial, nesse sentido, anuncia liberdades e também formas de controle e servidão a extrapolarem as previsões das antigas formas de poder (Grisci, 2008). Cabe ressaltar que a aceleração dos tempos de giro de produção e consumo de bens trouxe como consequência um estilo de vida próprio da sociedade líquido-moderna que repousa na “volatilidade e efemeridade de modas, produtos, técnicas de produção, processos de trabalho, ideias e ideologias, valores e práticas estabelecidas” (Harvey, 1993, p. 258). A volatilidade e a instantaneidade estão presentes nos atuais modos de viver e anunciam o planejamento de longo prazo como uma perspectiva cada vez mais difícil de vislumbrar frente às mudanças de mercado, demandando capacidade de adaptação e movimentação de acordo com a lógica de curto prazo, o que somente um trabalhador flexível e mutável seria capaz de acompanhar. A partir disso, argumentamos que o trabalho imaterial, ao requerer a vida que pulsa a cada instante, associa-se à lógica que elimina os ancoradouros, desconsidera as trajetórias de tipo lineares e instiga o indivíduo a abrir mão e permitir que o passado fique para trás, a fim de migrar de tarefa em tarefa, de emprego em emprego, de um lugar para o outro, como exigência apresentada à busca de colocação profissional (Sennett, 2003, 2006). Visto desse modo, o trabalhador do trabalho imaterial seria aquele a viver a vida líquida assim descrita por Bauman (2007, p. 8): “vida precária, vivida em condições de incerteza constante. A vida líquida é uma sucessão de reinícios”. Condizente com a vida líquido-moderna, o indivíduo necessita constantemente reinventar-se, demonstrando leveza, mobilidade, inconstância e rapidez de movimentos, características altamente requisitadas em contexto de trabalho imaterial, como o apresentamos aqui. Dado este contexto, refletimos quanto à aparição das tatuagens alusivas ao trabalho, já que seu caráter aparentemente fixo e irreversível nos instigou a compreender como se dá a relação delas com o trabalho imaterial. Tatuar-se: pistas de modos de trabalhar inscritos no corpo O que leva o sujeito a fixar uma imagem na pele? Quanto aos motivos de tatuar-se, os estudos elaborados a partir da temática da tatuagem indicam como possíveis respostas: a expressão identitária de determinado grupo (Marques, 1997; Ramos, 2001), a sustentação de um estilo de vida relativo à rebeldia (DeMello, 2000; Ramos, 2001; Sant’Anna, 2000), a moda vigente de cada época (Penn, 2008) e até mesmo o estigma (DeMello, 2000). As inscrições corporais tiveram um sentido instrumental ou de identidade na história, de formas diversas. A instrumentalidade, por um lado, poderia ser compreendida de diversos modos. A exemplo, citamos as inscrições na múmia Amunet, marcada com desenhos no ventre, atribuídos a rituais de fertilidade (Leitão & Eckert, 2004; Marques, 1997; Ramos, 2001), e uma instrumentalidade social, como as tatuagens Maori, que diferenciam, através dos desenhos tatuados nas faces dos homens, a quais castas pertencem e seus graus de maturidade individual (Marques, 1997; Ramos, 2001). No entanto, os motivos de inscrever uma tatuagem, principalmente nesses primórdios, são especulativos. A aproximação às tatuagens pode ser realmente entendida a partir das Navegações, que permitiram contato e consumo delas pelos ocidentais. Longe de serem considerados normais, os desenhos passaram a ser fonte de estigmatização daqueles que as carregavam no corpo (Marques, 1997; Ramos, 2001), de possibilidade de identidade entre e intra grupos (Ramos, 2001), de diferenciação com o “outro”, de designação de estilos de vida aventureiros e criminosos (DeMello, 2000) e de caracterização artística e rebeldia juvenil nos anos de 1960 (DeMello, 2000; Ramos, 2001; Sant’Anna, 2000). A tatuagem ainda carrega rótulos estigmatizantes e de status, podendo ser vista como elemento puramente estético com valor artístico e como marca de crime, por exemplo. As incompatibilidades dessas percepções foram tratadas no estudo de DeLuca (2015), que privilegiou o ponto de vista da pessoa que tatua e mostrou que a transformação relativa à forma de execução do trabalho de tatuar acarretou reconhecimento social geral. Para adentrar os possíveis motivos do tatuar-se e de seu uso, Ramos (2001) atribui as motivações contemporâneas à cultura. Ora, a relação entre cultura e corpo é inegável: é através da pele que nosso corpo fica unido em si e se une ao mundo exterior. No fim, sendo a imagem colocada entre o indivíduo e o mundo, a inscrição estará vinculada a uma cultura, conforme já demonstrou Sant’Anna ao apresentar o livro de Ramos (2001, p. 14), como uma espécie de “memória epidérmica” que não deixaria esquecer a impossibilidade de o corpo existir por si mesmo. Ramos (2001) aponta a forma pela qual, através da tatuagem, o homem poderia vencer a morte, deliberadamente, superando sua transitoriedade e mobilidade, inscrevendo suas raízes pela “necessidade da escrita, do registro dos códigos e crenças em seus suportes móveis”, como o corpo (Ramos, 2001, p. 31). Outro vínculo à tatuagem é, portanto, o corpo. Esse remonta ao entendimento do corpo como um construto social e atualizado. Nesse sentido, Manguinho (2010, p. 8) demonstra que indivíduos contemporâneos utilizam as marcas corporais para expressarem e demarcarem o corpo: é preciso modificar-se para tornar seu corpo adequado à ideia que se faz dele. Seja instrumento, cultura ou corpo, a similaridade reside na expressão do indivíduo, de si mesmo, pela invenção. Independente da sua motivação, a tatuagem é uma materialização estética do estilo de vida daquele que a detém. Por estilo de vida considera-se: Dizemos isto, fazemos aquilo: que modo de existência isso implica? Às vezes basta um gesto ou uma palavra. São os estilos de vida, sempre implicados, que nos constituem de um jeito ou de outro. Mas se há nisso uma ética, há também uma estética. O estilo, num grande escritor, é sempre também um estilo de vida, de nenhum modo pessoal, mas a invenção de uma possibilidade de vida, de um modo de existência. (Deleuze, 1998, pp. 125-126) Assim, questionamos se a inscrição de tatuagem claramente alusiva ao trabalho, em parte visível do corpo, poderia ser compreendida como estilo de vida, inserido na cultura de uma sociedade líquido-moderna. A tatuagem pode, assim, constituir pistas de diferentes estratégias relacionadas ao modo como o sujeito está vivendo a experiência de trabalho. Desse modo, decidimos seguir pelo caminho que acena à imaterialidade do trabalho, que demanda e afeta a vida sem precedentes, produzindo estilos de vida (Lazzaratto & Negri, 2001; Gorz, 2005; Pelbart, 2003) implicados entre si, e que constituem modos de ser do indivíduo, ética e esteticamente. Cartografar Ao nos aproximarmos do tema e contexto deste estudo, encontramos a cartografia como pista metodológica. Nesta perspectiva, assumimos a posição de que o sujeito e o objeto do conhecimento são constituídos no mesmo processo, pois conforme Passos e Benevides: Não há indiferença no trabalho com os conceitos quando sabemos que são operadores de realidade. Neste sentido, eles nos chegam como ferramentas. Um conceito-ferramenta é aquele que está cheio de força crítica. Ele está, portanto, cheio de força para produzir crise, desestabilizar. (Passos & Benevides, 2000, p. 77) Nesse percurso, encontramos no conceito de personagem conceitual (Deleuze & Guattari, 1992) a interlocução para acolher nossas interrogações a respeito de como produzir uma análise a fim de compreender a relação entre trabalhar e tatuar-se na perspectiva de inventar a vida na sociedade líquido-moderna. Para Deleuze e Guattari (1992, p. 93), o personagem conceitual possibilita constituir um olhar que amplia a análise da experiência de indivíduos para constituir, dessa experiência, um processo de acompanhar os “acontecimentos do pensamento”. Sendo a figura que comunica e transita em um plano do pensamento, o personagem conceitual auxilia na leitura de territórios conceituais pelos quais percorre, tendo, em seus traços, a época e o meio histórico em que aparece, apresentando e comunicando aquilo que está em potência, constituindo-se num modo de viver. Quando nos deparamos com a presença da tatuagem associada aos modos de trabalhar, nossa atenção vai cartografando os movimentos que produziram essa relação, indagando quais elementos foram construindo essa experiência. A cartografia busca acompanhar as relações próprias a cada situação, problematizando um modelo reprodutor de metodologia a partir da abertura para pensar também os modos de produzir conhecimento. Não basta entregar-se à experiência, é preciso construir um modo de operar o processo de invenção, acompanhando as diferenciações que fazem surgir o processo de inventar e inventar-se no problema de pesquisa (Lazzaroto, 2009). A atenção do cartógrafo, segundo Kastrup (2007, p. 21), acessa “elementos processuais provenientes do território - matérias fluidas, forças tendenciais, linhas em movimento - bem como fragmentos dispersos nos circuitos folheados da memória”. No que diz respeito à tatuagem, é a “memória epidérmica”, conforme expressa Sant´Anna (2001). Na composição da cartografia, o conhecimento que se produz não resulta da representação de uma realidade preexistente, mas também não se trata de uma posição relativista, pautada em interpretações subjetivas e realizadas apenas do ponto de vista do pesquisador (Kastrup, 2007). Para além de uma diferença de grau que vê apenas a mesma coisa numa perspectiva ampliada da escala de reprodução, como ter ou não tatuagens, ou ainda, ter mais ou menos tatuagens, passamos a indagar o movimento do tatuar-se na singularidade de um modo de ser e em determinadas circunstâncias - neste caso, uma micropolítica das relações com o trabalho imaterial na sociedade líquido-moderna. Algo se passa no movimento desses sujeitos que enuncia determinadas relações do modo de viver o trabalho, o que pode colocar em jogo outros modos de expressão e toda uma espécie de problema de ordem política, estética e ética. Buscamos Guattari e Rolnik (1986) para afirmar que a micropolítica a ser analisada consiste em alcançar outras montagens da produção de desejo que agencia a vida, compreendendo que tipo de investimentos sociais vão sendo produzidos. Estamos diante de um modo de vida que ainda hierarquiza quem concebe e quem executa, que disciplina as áreas de conhecimento para definir o lugar de visibilidade social, que faz do não acesso ao trabalho o sinônimo de ausência de um lugar existencial. Pensar a singularidade da forma pela qual o ato de tatuar-se se agencia no modo de pensar o próprio trabalho possibilita analisar a diferença na multiplicidade que a vida nos faz experimentar. No processo de cartografar a tatuagem como personagem conceitual, buscamos nos instalar na duração desse movimento e passamos a experimentar a imanência do que se vive: “como fazer para nos descolar dos pontos de subjetivação que nos fixam, que nos pregam na realidade dominante?” (Deleuze & Guattari, 1996, p. 22). Com essa indagação, os autores propõem que é preciso pensar o corpo em suas conexões, experimentando passagens e distribuições de afetos, intensidades que demarcam territórios e desterritorializações, com medidas à maneira de um “agrimensor”. Com apoio em Weber, Grisci e Paulon (2012, p. 855), cabe lembrar que: A cartografia não pressupõe o cumprimento de etapas subsequentes, como desenvolver primeiro a coleta de dados para depois analisá-los e, em seguida, realizar a escrita. Na cartografia, entrar, habitar e conhecer o território, bem como analisar, sentir e relatar se desenvolvem concomitantemente. Daí porque também não se fala em levantar dados, mas em produzi-los. O cartógrafo não coleta dados. Estes são colhidos, da mesma forma que um semeador colhe o que planta. Ao produzir uma pesquisa nessa perspectiva, produz-se mais que informações “sobre” outros sujeitos, produz-se com eles, produzimo-nos subjetivamente. Tendo isso em vista, buscamos uma aproximação ao contexto das experiências do tatuar-se nas cenas do cotidiano. Para tanto, estabelecemos contato com o campo da tatuagem por meio de visitas semanais a um estúdio situado na cidade de Porto Alegre, pelo período de seis meses no ano de 2014. A partir do contato com o campo, convidamos para entrevistas quatro indivíduos que atenderam o critério de portar tatuagem alusiva ao trabalho em parte visível do corpo: uma nutricionista, uma designer gráfica, uma estilista e um crítico gastronômico. A partir dessa aproximação ao contexto, surgiu a necessidade de conhecer as histórias de trabalho associadas à tatuagem, o que nos levou a propor um plano de produção de dados por meio de entrevistas individuais. A composição dessa estratégia metodológica dialoga com a perspectiva que discutem Tedesco, Sade e Caliman (2013, p. 303) ao proporem que entrevista na cartografia visa ao “acesso à experiência em suas duas dimensões, de forma e de forças, de modo que a fala seja acompanhada como emergência na/da experiência e não como representação”. Elas ocorreram de modo a propiciar a fala e reflexão da vida tendo em vista o percurso profissional e os motivos da inscrição no corpo de tatuagem relativa ao trabalho. As entrevistas foram gravadas e transcritas, e as tatuagens fotografadas pela própria entrevistadora, conforme consentimento dos/as entrevistados/as. A nutricionista porta um conjunto de frutas e legumes no braço esquerdo, tatuado em 2011, e um coração visceral no braço direito, em 2013. A designer gráfica porta um desenho autoral nas costas, tatuado em 2011, e um par de lápis no antebraço direito, tatuado em 2012. A estilista tem uma tesoura para corte de tecidos tatuada na perna esquerda, desde 2012; e o crítico gastronômico, por sua vez, um garfo e uma faca tatuados no antebraço direito, desde 2013, conforme é possível visualizar na Figura 1. Figura 1: Desenhos das tatuagens, da esquerda para direita: Nutricionista (conjunto de frutas e coração visceral); Estilista (tesoura de corte de tecidos); Gourmet (talheres); e Designer (desenho autoral e par de lápis) Dando continuidade ao processo cartografar, o material produzido foi analisado através do diálogo conceitual com as histórias de criação de cada tatuagem, considerando os modos de subjetivar que as experiências singulares enunciam no movimento de trabalhar e tatuar-se. Nesse processo, identificamos as articulações entre os modos de enunciar essas experiências, as quais foram organizadas na conjugação de verbos que contam essas histórias de trabalho tatuadas. O processo analítico dessa cartografia foi orientado pela proposição da tatuagem como personagem conceitual que possibilita acompanhar a estratégia de relacionar a tatuagem com o trabalho na vida líquido-moderna. Tal análise das enunciações em nomeações verbais (refletir, (d)enunciar, expressar; resistir, comunicar, interagir; conectar, conjugar, continuar) permite problematizar os sentidos que criam um estilo de vida nas relações que emergem entre trabalho e a escolha por tatuar-se. Inventar: vidas contadas e histórias tatuadas Tendo apresentado o referencial teórico que nos permitiu refletir sobre a tatuagem claramente alusiva ao trabalho daquele que a carrega e percorrendo um caminho cartográfico para compreender o que o ato de tatuar-se enuncia, apresentamos as análises a partir dos movimentos que emergem do personagem conceitual tatuagem nas experiências acompanhadas. Ao percorrermos essa produção de dados, encontramos três movimentos no modo de expressar essa emergência, cujo mapa analítico constitui três arranjos verbais: (a) refletir, (d)enunciar, expressar, que trata da tatuagem como campo de problematizar uma experiência de trabalho e buscar formas de marcar para si o que se passa com a vida neste acontecimento; (b) resistir, comunicar, interagir, que indica a problematização sobre o trabalho na vida como processo permanente que envolve as relações com o outro e o contexto; (c) conectar, conjugar, continuar, que faz emergir um diálogo com os modos de viver a partir da percepção de que a tatuagem constitui um território que faz durar um campo de problematização do estilo de vida em construção. Assim, apresentamos as análises enunciadas como arranjos verbais, pois entendemos que os verbos permitem conjugar e acompanhar os sentidos que criam um estilo de vida nas relações que emergem entre trabalho e a escolha por tatuar-se. Tal mapa da análise não é causal ou linear, pois indica os movimentos de invenção tanto daqueles/as que ouvimos quanto das reflexões que discorremos. Refletir, (D)Enunciar, Expressar A reflexão sobre o próprio trabalho se impõe, sendo que o modo como os sujeitos vivenciam esse cotidiano indica que um trabalho imaterial invade suas vidas, como explicado pela designer: “então meu dia não sei muito bem quando ele vai terminar. Ele pode terminar as sete, pode terminar meia-noite. Como pode não terminar. Basicamente sempre passo o dia inteiro no trabalho”. A começar, os sujeitos tinham outras tatuagens antes de fazerem aquelas alusivas a seus trabalhos. Já tendo a proximidade com o ato de tatuar-se e a partir da reflexão sobre a própria vida - e o próprio trabalho -, os/as entrevistados/as decidiram marcar o corpo em momentos também marcantes de suas vidas profissionais. “Eu acho que a tatuagem marca momentos. Sorte daqueles que têm uma tatuagem que já foi tatuada pelo tempo. E que tá desbotada assim. A tatuagem sempre vai contar uma história de uma etapa da tua vida” (excerto da entrevista com gourmet). Todas as tatuagens surgiram em momentos de marcos profissionais, nos quais trabalho e vida pessoal se mostraram claramente imbricados. Aí foi mais quando eu comecei a ter a ideia da tatuagem. Eu fiz ela quando eu estava saindo da empresa, na minha última semana lá. (excerto da entrevista com estilista) Pelo o que eu trabalho, acho que tem a ver, no que eu acredito. De parte humana, de saúde, de rendimento. Eu sou atleta também, né. O coração visceral eu resolvi fazer porque eu acho que [coração é a última tatuagem feita]. É que eu trabalho muito com isso, com saúde, com frequência cardíaca, e eu sou muito, eu acho que se esse parar, parou, entendeu? Eu sou muito caixa de órgãos. Eu acho que a gente é uma caixa de órgãos, entendeu? Tem finitude, mas eu acho. Então eu acredito que todos os dias tu tens que, que tá saudável. Se a gente é uma caixa de órgãos, e vai parar, depende do nosso estímulo. Então tu tens que buscar sempre uma alimentação equilibrada, entendeu. (excerto da entrevista com nutricionista) Assim, “a vida já não é produzida nos ciclos de produção que estão subordinados ao dia de trabalho, ao contrário, a vida é que infunde e domina toda a produção” (Hardt & Negri, 2005, p. 387). Com isso, vamos percebendo que nessas trajetórias de vida o ato de tatuar-se envolveu a passagem por um processo reflexivo que vai constituindo um modo de estabelecer a relação com o trabalho, com o corpo, com o tempo, em um constante devir (Deleuze & Guattari, 1996). No caso do gourmet, ao narrar o dia em que cozinhava, encontramos o acontecer deste movimento: relata que, em certo momento, virou-se e viu a imagem dos talheres à mesa, o que o levou a uma reflexão sobre seu trabalho e seu momento de vida. Nesse instante, ele fotografou o que viu e decidiu tatuar o que sentiu. Apesar de ninguém da família gostar de tatuagens, ele salienta que “precisava fazer” para marcar esse momento de vida, “do sair de casa, de ter o apartamento, de estar casado” e, principalmente, do trabalho, o qual enunciou e marcou essa passagem. Um processo em que estabelece com o trabalho um marco, sendo que a atividade passa a ser algo para além dos muros de uma empresa ou, mesmo, de uma ocupação: “Não é só uma escolha da minha vida, é uma vocação. Então o que quer que seja que eu venha a fazer amanhã ou depois, eu quero sempre me lembrar de onde eu vim” (excerto da entrevista com gourmet). Encontramos a expressão do desejo da “memória epidérmica” (Sant´Anna, 2001) que contempla a reflexão em relação a esse trabalho que se mostra em conflito: um conflito que lança um movimento de criar outras estratégias nessa relação. A reflexão relativa ao trabalho também se fez presente para a designer. Ela conta que teve dificuldades em lidar com as críticas ao seu trabalho de ilustração, anterior ao atual. Com isso, refletiu e concluiu que o que gostava de fazer era trabalhar com o desenho como uma profissão. E aí foi isso que me motivou fazer. Isso é meio que a gente tem fases, pontos na vida da gente que a gente se encontra. Se descobre. E esse foi um dos pontos: tá, é isso que eu vou fazer, é isso que eu amo, é isso que eu vou encarar. (excerto da entrevista com designer) Na continuidade de sua história, percebemos o processo de reflexão a respeito da experiência com o seu trabalho em ilustração e como foi sendo ampliado para o campo da direção de arte e criação. A troca de locais de trabalho e a reflexão sobre como sua criação ia ao encontro do que desejava fazer em sua vida foi (d)enunciando seu modo de se relacionar consigo e com o outro, superando o sentimento de ser julgada. Como ela diz, uma forma de “se aceitar, de se encontrar” e que, agora, a permite destacar seu vínculo vocacional com o trabalho, dizendo “Amo o que faço. Amo de paixão o que eu faço”, seja na direção de arte, seja na ilustração, atividade que realiza sempre que o tempo permite. A experimentação da tatuagem como personagem conceitual vai sendo evidenciada nos percursos dessas histórias que engendram o trabalho com a invenção de um estilo de vida. O tatuar-se expressa e dá forma ao movimento que enuncia uma escolha e, ao mesmo tempo, mantém o processo de reflexão num plano do pensamento. A tatuagem vinculada às histórias de trabalho aparece, portanto, como expressão da potência de vida que possibilitou experimentar os conflitos das trajetórias profissionais e fazer dessa experiência um exercício que se constitui como modo de vida. A percepção da tatuagem é nomeada como marco de momentos de virada ou de compreensão quanto àquilo que o trabalho passa a significar à medida que há uma apropriação de sua atividade e de seu modo de ser. O processo que possibilitou essa construção de análise do trabalho envolveu posicionamentos desses/as trabalhadores/as nas experiências que foram produzindo sentidos que orientaram suas escolhas, conforme compartilha a Nutricionista em seu relato. Ela destaca o modo como uma antiga chefe não aceitava que aparecesse parte de sua tatuagem, mesmo usando o jaleco. Ao sair desse local de trabalho, resolveu tatuar um conjunto de frutas e legumes e faz questão de mostrá-la em seu trabalho atual, buscando mudar a percepção de nutricionista e a relação que as pessoas estabelecem com a tatuagem. O trabalho passa a (d)enunciar afetos, assim como a busca de uma forma de expressão desse jogo de forças que ecoa no ato de tatuar-se. Nesses arranjos, refletir, (d)enunciar e expressar encontram-se imbricados nas histórias que afirmam o exercício de tatuar-se como desdobramento de estratégias que compõem um modo de vida. Resistir, Comunicar, Interagir O ato de tatuar-se não se encerra com a tatuagem feita. A tatuagem não é uma resposta, mas um movimento, uma contínua indagação - é um personagem conceitual. Nessa medida, o processo de tatuar-se permite tanto uma resistência aos modos de trabalhar anteriores dessas pessoas como a possibilidade de interação com outros modos de trabalhar, perceber e escolher. Dessa forma, é um jogo de forças e fluxos estabelecidos em movimento, como efeitos que se atualizam na experiência que vai compondo a vida e desafiam esses indivíduos a criar formas para acolher suas interrogações. Nesse percurso é evidenciada a relação com o trabalho nas histórias dos/as quatro entrevistados/as, produzindo um processo reflexivo que leva a um posicionamento de mudança de local de trabalho e de tipo de atividade, de modo de valorizar o que fazem. Podemos pensar que o ato de resistir aciona o conhecimento que o trabalhador tem de si e suas capacidades expressivas e cooperativas, saberes que brotam da vida cotidiana e que Gorz (2005) aponta como o trabalho imaterial. Nesta experiência, identificamos o olhar crítico do trabalhador utilizando seus saberes para resistir ao processo de apropriação capitalístico dos atuais modos de gestão. Nesse contexto, a tatuagem emerge. Nada a ver com a empresa. É literalmente a essência da profissão. É o que eu faço independente do lugar onde eu estiver. Eu acho que a primeira coisa é orgulho. Porque como é um desenho que eu fiz, as pessoas tão vendo e dizendo: ai que bonito! Cara, tu ficas muito feliz. A pessoa não sabe que fui eu que fiz, não tá dizendo aquilo porque ela quer me agradar, ela realmente achou aquilo bonito. É refletir tudo o que eu sou em um desenho, meio que profissionalmente, as escolhas que eu fiz, então é muito legal assim tu ver, é meio que a pessoa tá dizendo como tu é legal. As duas [desenho autoral e lápis] refletem o que eu faço. Mas essa de uma forma muito mais essa aqui é muito mais pessoal, porque é um desenho que eu fiz. Então ela tem muito mais essa entranha minha assim. É muito mais eu numa tatuagem. Como se fosse meu trabalho e eu. E essa aqui [lápis] é muito mais o trabalho em si, do que necessariamente eu. (excerto da entrevista com designer) Com isso, a tatuagem comunica o reconhecimento de um trabalho que faz sentido, o qual é tomado pelo sujeito tatuado, que se reconhece como autor do que inventa e produz. Ao mesmo tempo, a tatuagem convoca à interação com o outro, como um ponto de paragem que interpela a lógica de passagem característica da sociedade líquido-moderna, numa rejeição da visão temporal dominante relativa à liquidez que remete ao aqui e agora, como o relato da Nutricionista sobre os diversos momentos em que pessoas a pararam na rua para questionar sobre suas frutas. Essa interação está fora de um roteiro preestabelecido em que se pergunta e responde pelas convenções, pois acontece no acolhimento ao movimento de afetar e afetar-se que leva a contar a história de si entre sentidos que foram criando o singular contorno de cada tatuagem dos/as entrevistados/as. Dessa forma, a tatuagem como personagem conceitual aparece em comunicação e trânsito, identificando o indivíduo para si e para os outros e causando os pontos de interação em uma sociedade ininterrupta, evidenciando o movimento de criação recíproca entre o indivíduo e o seu trabalho e entre o indivíduo tatuado, o seu trabalho e o outro. Portanto, a interação marca como a tatuagem, aparentemente individual, acontece num ato de criação recíproca. Com ela, não só o indivíduo acolhe a si, mas traz o outro para esta paragem - e vice-versa. Conectar, Conjugar e Continuar O personagem conceitual é compreendido como um processo que se situa no plano do pensamento e, como tal, promove movimentos de análise às interrogações produzidas no cotidiano vivido. Portanto, o personagem conceitual tatuagem constitui tanto a forma e o espaço marcados no corpo como o tempo que conecta continuamente passado, presente e futuro numa história de trabalho que afirma um modo de vida. Os desdobramentos que se criam e recriam estão, continuamente, por vir. É possível compreender isso na produção de sentidos que vai sendo atualizada no movimento da tatuagem que poderá contemplar dúvidas, questionamentos, outras reflexões e arrependimentos, provenientes das interações. No caso da Designer, ela conta como a tatuagem representa o que ela queria na época e, por isso, não há como se arrepender. A Nutricionista também continua: Mas faz parte do meu corpo agora. E quem tem tatuagem colorida é estranho porque, às vezes, as pessoas ficam olhando assim, e quem tem não se dá mais conta que tem. Eu não me dou conta que eu tenho tatuagem. E aí todo mundo “báh”, e eu “aham”. Porque já faz parte, já é meu braço, não é uma tatuagem, é meu braço. (excerto da entrevista com nutricionista) Na conexão, a Nutricionista, através da tatuagem, conjuga e continua sua existência, singularizando seu trabalho e vida através do desenho no braço. Portanto, a tatuagem conjuga outras questões da vida além do trabalho: se torna um modo de vida, um estilo, com toda essa produção de linhas de diagramas que resistem aos programas que modelam como se “deve ser”. Instalar-se sobre um trabalho já existente e ver as possibilidades que ele oferece, vivenciá-las e assegurar conjunções de fluxo “para ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra” (Deleuze & Guattari, 1996, p. 24), continua a estratégia de inventar a vida. De fato, singularizar é luxo nos tempos que correm! Ainda mais no mundo das páginas diárias, fabricado por essa máquina cuja função é exatamente inversa: produzir indivíduos deslocáveis ao sabor do mercado e, para isso, precisando interceptar seu acesso aos processos de singularização. Isso sim, sem dúvida, adapta-se perfeitamente aos tais "tempos que correm". (Guattari & Rolnik, 1986, p. 39) Aos tempos líquidos da sociedade líquido-moderna, conforme Bauman (2007). O ato de tatuar-se, ao não se encerrar na tatuagem em si, conecta, conjuga e continua como personagem conceitual não dissociado da sociedade em que transita. Considerações finais Contextualizados em um tempo e espaço tidos como líquido-modernos (Bauman, 2007), os quais detêm um tipo de trabalho imaterial que invade vidas, problematizamos este cenário a partir do vislumbre de indivíduos que transitavam com seus trabalhos expostos na pele. Para tanto, tratamos a tatuagem como um personagem conceitual (Deleuze & Guattari, 1992) e procedemos a análise à luz das orientações metodológicas da cartografia. Deste trabalho de idas e vindas, seja do objeto de pesquisa como dos sujeitos, traçamos apontamentos finais a serem expostos neste último momento. Em primeiro lugar, expomos observações metodológicas, posto a coerência da cartografia utilizada com um personagem que transita em um território. O território marca distância e, segundo Deleuze e Guattari (1996), marca uma distância crítica que não é uma medida, mas um ritmo que reagrupa forças e reorganiza funções. As paradas no tempo e no espaço do processo de tatuar-se que buscamos cartografar marcam um território que cria interlocuções com o personagem conceitual tatuagem possibilitando passagens de afetação do vivido e enunciando uma estética de existência. Assim, cartografar não se trata do que aconteceu, mas do que vem acontecendo na composição desta pesquisa à medida que vamos acompanhando a tatuagem como personagem conceitual que movimenta os elementos da nossa problematização. Para Deleuze e Guattari (1997), singularizar-se implica o exercício de movimentos que marcam um território existencial, sendo que esse território marca uma distância crítica que não é uma medida, mas um ritmo que reagrupa forças e reorganiza funções da experiência que vivemos e a que desejamos dar duração de nos tornarmos quem somos. Nesse exercício, há uma busca de matérias de expressão formadas por elementos heterogêneos que vão tomando consistência, como escrever, desenhar e narrar. Essas matérias vão desenhando um território que pertencerá ao sujeito que as traz consigo ou que as produz. São assinaturas que não indicam pessoas, mas a formação ao acaso de um domínio e a criação de um estilo. A assinatura “é a marca constituinte de um domínio, de uma morada” (Deleuze & Guattari, 1997, p. 123). Em segundo lugar, nas histórias cartografadas, a tatuagem associada ao trabalho possibilita que o corpo contemple aquilo que o sujeito reflete, (d)enuncia, expressa, resiste, comunica, interage, conecta, conjuga e continua, numa relação do sujeito com o trabalho, consigo e com os outros. Assim, se tangibiliza a ideia de que “quando olhamos os corpos, percebemos que não estamos apenas diante de uma multidão de corpos, mas compreendemos que cada corpo é uma multidão” (Negri, 2003, p. 170). A tatuagem problematizada como personagem conceitual possibilita analisar como o ato de tatuar-se associado à experiência de trabalho gera a reflexão do indivíduo consigo e das relações estabelecidas com o outro, na busca de um processo de invenção. Nesse sentido, a subjetividade é manufaturada pelo sujeito, sendo essencialmente social, “assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares” (Guattari & Rolnik, 1986, p. 33). Guattari e Rolnik (1986) colocam que tal subjetividade oscila entre dois extremos: de um lado, a alienação e opressão e, de outro, a expressão e criação. A tatuagem como personagem conceitual traz consigo o movimento desta experimentação dos sujeitos entre modos de ser, resistir e singularizar-se. Assim, o primeiro arranjo verbal explorado, qual seja, refletir, (d)enunciar e expressar, demonstra a formação dessa memória epidérmica, primordialmente pela reflexão e (d)enúncia, bem como seu engendramento para a expressão de um estilo de vida que faça sentido - inseridos em uma sociedade líquido-moderna e em um tipo de trabalho imaterial. Desse primeiro arranjo, que permitiu a reflexão e expressão de uma denúncia, o indivíduo, agora suportado por um personagem que o acompanha, pode resistir, comunicar e interagir - segundo arranjo verbal apresentado. A resistência, principalmente através de mudanças nas vidas contadas, lapida um personagem que transita e transforma-se, comunicando conceitos e interagindo em dado território. Nesse arranjo, salientamos a possibilidade que a tatuagem traz de, dada a fluidez e rapidez características da sociedade líquido-moderna, simplesmente desencadear o parar. As paradas no tempo e no espaço das vidas contadas pelos/as entrevistados/as vão marcando a formação de um território com as passagens de afetação do vivido, enunciando uma estética de existência que tem como morada o contorno de uma tatuagem. O ato de tatuar-se não se resolveu previamente, foi acontecendo no desenrolar da experiência e segue em devir nas relações que o sujeito trava consigo, com o outro, com os modos de viver contemporâneos. Nessa produção desejante, é desenhada a composição de uma tatuagem que conta a vida e, nesse caso, que parece indicar uma estética. Deleuze e Guattari (1992, p. 222), ao discutirem o pensamento no plano da composição na arte, evidenciam que “trata-se sempre de liberar a vida lá onde ela é primeira, ou de tentar fazê-lo num combate incerto”. Em suma, a tatuagem singulariza, mas não se faz sozinha. Por outro lado, coletiviza, inserindo o indivíduo em um território, em um estilo de vida, ou em uma cultura. Trata-se da oscilação entre forças paradoxais que coexistem no processo de produção de subjetividade. Dessa forma, o terceiro arranjo demonstra a continuidade do tatuar-se, que não finda em si, nem como processo, nem como objeto. A tatuagem configura-se em trânsito e faz sentido à vida do sujeito, de acordo com o cenário que contempla. Em trânsito, a tatuagem, como personagem, conecta e conjuga estilos de vida. O personagem tatuagem torna-se (e transforma-se em) um intermediário entre o sujeito consigo mesmo, com o outro e com o contexto da sociedade líquido-moderna. Assim, é por intermédio da tatuagem que o sujeito “faz sentido” ou “inventa” seu trabalho e a vida, refletindo sobre ambos, compreendendo-os e expressando-os. De um lado, a tatuagem marca o momento, o sujeito, o trabalho, a vida, fixando o movimento e criando pontos de paragem nesse fluxo. Por outro, a tatuagem em si transita espacial e temporalmente, transformando-se e transformando as interações de que participa. Com tudo isso, pode ser uma estratégia de inventar a vida para fazer sentido e “abrilhantar” o próprio trabalho, dado o desejo que agencia a vida (Guattari & Rolnik, 1986), como uma “materialização” de estilos de vida - neste caso, um trabalho imaterial tão imbricado às vidas que invade e transborda a pele, objetivamente. Assim como os arranjos verbais apresentados neste estudo mostraram-se imbricados, pensamos que estudos futuros, em perspectiva longitudinal, poderão vir a apresentar outros arranjos, igualmente imbricados, que continuarão a dizer da estratégia de inventar a vida. Além disso, acreditamos que outros elementos do cotidiano também poderiam ser cartografados como personagens conceituais que transitam e expressam conceitos. Referências Bauman, Z. (2007). Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Bauman Z. 2007 Vida líquida Rio de Janeiro Jorge Zahar Deleuze, G. (1998). Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34. 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