Resumo
Este artigo trata do tema da colonialidade e das Clínicas do Trabalho a partir de uma pesquisa realizada junto a professoras da rede pública de educação básica. Aborda-se a questão desde uma perspectiva da Clínica da Atividade, indicando a proposição de um conceito-ferramenta que chamamos de Estilizações Marginais, o qual indica um processo experimentado por pessoas negras em seu ofício em virtude da operação de estratégias da branquitude. Defende-se, neste estudo, a aposta em uma Clínica Antirracista do Trabalho.
Palavras-chave: Clínicas do trabalho; Colonialidade; Racismo; Relações Raciais; Trabalho
Resumen
Este artículo aborda el tema de la Colonialidad y las Clínicas del Trabajo a partir de una investigación realizada con profesores de la red pública de enseñanza básica. La cuestión es abordada desde la perspectiva de la Clínica de la Actividad, indicando la proposición de una herramienta-concepto que denominamos Estilizaciones Marginales, que indica un proceso vivido por las personas negras en su profesión debido a la operación de estrategias de blancura. Defendemos la apuesta por una Clínica del Trabajo Antirracista.
Palabras clave: Clínica del trabajo; Colonialidad; Racismo; Relaciones raciales; Trabajo
Abstract
This article deals with the theme of coloniality and the Work Clinics from a research conducted with teachers of the public basic education system. The issue is approached from the perspective of the Activity Clinic, indicating the proposition of a concept-tool that we call Marginal Stylizations, which indicates a process experienced by black people in their craft due to the operation of whiteness strategies. With this study, we defend the bet on an Antiracist Work Clinic.
Keywords: Work clinics; Coloniality; Racism; Racial relations; Work
“O que incomoda é ficar apenas para o negro fazer esse debate”
(Participante da pesquisa)
Colonialidade e desafios ao campo das clínicas do trabalho
O sistema colonial e a escravização produzem sujeitos marcados pela raça e justificam a exploração dos povos autóctones, caracterizados como corpos sem mundo e sem-terra. O processo de colonização deu um novo desenho aos países, colocando os colonizadores em posição central e os demais (colonizados) à margem, destinadas à exploração (Mbembe, 2017).
Pelas narrativas oficiais, as sociedades democráticas (a dos povos colonizadores) são pacíficas, diferentes das sociedades selvagens (povos colonizados) (Mbembe, 2017). Aos povos colonizados foi negada a humanidade, sendo vistos como os outros - corpos marcados como sendo opostos aos dos colonizadores, corpos animalizados, sendo a raça o determinante das posições sociais nas colônias (Fanon, 1968).
Nesse contexto colonial, o racismo estabeleceu a hierarquia das raças e, consequentemente, das culturas. Nesse mecanismo, será afirmada a superioridade branca ocidental sobre a inferioridade dos povos africanos, e, por meio de práticas violentas, retira-se dos povos colonizados sua dignidade e seu legado histórico (Gonzalez, 1988). O racismo foi peça fundamental nos sistemas coloniais, pois afirmou a superioridade do colonizador sobre o colonizado, tendo a ideologia do branqueamento um funcionamento estratégico.
Franz Fanon (1968) menciona quanto o conceito do dispositivo colonial será garantidor da manutenção do colonizado em um estado de tensão permanente, pois o mundo do colonizador é um lugar hostil. Porém, o colonizado foi dominado, mas não domesticado, dessa forma, aqui se apresenta a potência para a resistência a esse processo.
Achille Mbembe (2014, p. 232) traz a seguinte afirmação:
[m]as o farrapo humano não deixa de ter vontade. Em si, só sobram os seus órgãos. Mas sobeja também a palavra, último sopro da humanidade devastada, mas que, até às portas da morte, recusará ser reduzida a um monte de vianda, a morrer de uma morte indesejada: ‘Eu não quero morrer desta morte’.
Assim, será pela recusa de ser domesticado e de aceitar passivamente a sua desumanização que o negro escravizado fará ao processo de escravização. Angela Davis (2016) menciona o quanto as mulheres negras participaram ativamente das estratégias de resistência, como fugas, revoltas e organização de aulas de alfabetização noturna para os escravizados.
Outro aspecto relevante a ser pontuado é que faz parte do racismo infantilizar aqueles que são colocados no lugar de subalternos (Gonzales, 1984), porém, sublinhamos que subalterno não é o sujeito que não tem voz, mas aquela pessoa que é sistematicamente falada pelo desejo do outro (Souza, 2018). Como uma faceta do racismo, destacamos o imaginário da “mulher negra raivosa” (hooks, 2015) incapaz de estabelecer um discurso racional, fazendo-se necessária a interlocução das mulheres brancas.
Essa mesma estratégia, de posicionar o povo negro como incapaz, também será mencionada por Mbembe (2014) para a manutenção da raça branca como a que possui a razão e a civilidade. Na lógica colonial, a raça servirá para avaliar os sujeitos, classificando-os hierarquicamente e legitimando o uso da violência contra as supostas raças inferiores.
A raça será entendida como um “conjunto de propriedades fisiológicas visíveis e de características morais discerníveis” (Mbembe, 2014, p. 156). É por essa razão que o negro será visto como selvagem, violento, hiper sexualizado e de condições cognitivas limitadas. Será pelo sistema colonial que os conceitos ‘África’ e ‘negro’ irão se imbricar, misturando-se e complementando-se enquanto local que é próprio para ser invadido e explorado e que possui sujeitos que serão corpos-combustíveis (Mbembe, 2014).
É necessário entender o racismo como algo estrutural nas sociedades coloniais, ou seja, o racismo operará como uma episteme na busca de construir:
legitimar, no plano das ideias, uma prática, e uma política, sobre os povos não-brancos e de produção de privilégios simbólicos e/ou materiais para a supremacia branca que o engendrou. São esses privilégios que determinam a permanência e reprodução do racismo enquanto instrumento de dominação, exploração e mais contemporaneamente, de exclusão social em detrimento de toda evidência científica que invalida qualquer sustentabilidade para o conceito de raça. (Carneiro, 2005, p. 29)
Em imersão pela discussão do tema do trabalho e das organizações, Maria Aparecida Bento (2002) afirma que não se pode tratar da temática sem falar também de relações raciais. O debate racial não pode ser um assunto negligenciado ou secundário, tendo em vista a forma como o racismo se apresenta em nossa sociedade: um racismo estrutural.
Entender o racismo como estrutural é tomá-lo como um organismo presente nas tramas sociais em uma constante reatualização das suas formas, buscando sua perpetuação. Por ter essa característica, ele atinge a população negra das mais diferentes maneiras, tais como: os maiores índices de desemprego, menores salários, aumento constante nas mortes dos seus jovens, entre outras. Ressalta-se que todas essas manifestações de violência racista têm um mesmo mecanismo: reafirmar uma posição de subalternidade aos negros, para reatualizar um desejo de extermínio.
O que configura essa posição de subalternidade? Primeiro, é importante ressaltar que a subalternidade não está relacionada a uma identidade, mas a uma posição (Silva & Oliveira, 2018) marcada pela impossibilidade de falar e de ser escutado, como uma interdição imposta pela branquitude. Assim, o sujeito subalterno é aquele que sempre é falado, pois ter o poder de falar e de ser escutado é romper com a subalternidade.
Lourenço Cardoso (2010) menciona que a branquitude é uma construção social não homogênea e em constante reatualização. O autor aponta a pertinência de se diferenciar os conceitos de ‘branquitude crítica’ (que se caracteriza pela desaprovação do racismo de maneira pública) e ‘branquitude acrítica’ (defende que ser branco é estar numa condição especial, superior hierarquicamente a todos os não-brancos). Embora a branquitude não seja uma construção homogênea, há nela um aspecto comum: a posição de privilégio que o branco tem nas sociedades racistas, tomado como sinônimo de ideal de ser humano, uma vez que não é marcado pela raça (Cardoso, 2010).
Pensando nesse mecanismo de manutenção dos negros e das negras em uma posição de subalternidade, o conceito de ‘dispositivo de racialidade’ (Carneiro, 2005) se mostra relevante, pois nos auxilia a entender o quanto a cor da pele opera como um elemento estruturador das relações raciais, que articula saberes, poderes e modos de subjetivação. Por esse dispositivo, o estatuto da humanidade é afirmado como branco e os demais são demarcados como não-brancos. Assim, a raça posiciona as desigualdades ao promover privilégios à branquitude e a subalternidade ao povo negro.
Entender a dinâmica do dispositivo de racialidade nos dá pistas para sustentarmos a relevância de racializar as problemáticas das Clínicas do Trabalho, pois aponta que a raça posiciona os sujeitos e, se ampliarmos a discussão, a raça posiciona os trabalhadores no ofício.
Quando propomos o debate sobre colonialidade e desafios ao campo das Clínicas do Trabalho referimo-nos à necessidade de colocarmos problemas na esfera da dinâmica do trabalho, da subjetividade e da saúde de um modo preciso: por meio da experiência do trabalho como atividade, ou seja, por meio do que se passa quando, nas situações cotidianas, é necessário gerir a distância sempre presente entre Trabalho Prescrito e Trabalho Real. Quando necessitamos renormatizar o meio (Schwartz, 2000), quando mobilizamos elementos subjetivos e cognitivos para agir, envolvendo tudo aquilo que pensamos em fazer e fazemos, o que pensamos em fazer e não fazemos, o que sonhamos em fazer (Clot, 2010), é nesta perspectiva precisa que nos interessa analisar processos que envolvem racialidade e experiência do trabalho.
Assim, valemo-nos, sobremaneira, da abordagem da Clínica do Trabalho chamada Clínica da Atividade, proposta por Yves Clot e colaboradores (Clot, 2006, 2010), sobre a qual nos deteremos na próxima seção deste artigo, explorando, de modo especial, os conceitos de atividade, de gênero e de estilo para produzir ferramentas analíticas no campo clínico do trabalho, a partir do entendimento de que, através da experiência laboral, opera o dispositivo da racialidade em variadas facetas.
Por ora, para fins da presente seção, ocupamo-nos de posicionar que as Clínicas do Trabalho, especialmente aquelas que nos chegam ao Brasil informadas pelas referências europeias - sobretudo francesas1 -, se desenvolvem em meio ao privilégio epistêmico (Grosfoguel, 2016). É por este privilégio que determinados conhecimentos se tornam hegemônicos, assumindo uma posição de universal e neutra, desqualificando os demais conhecimentos que se produzem por outros corpos. Assim, racializar é nomear o quanto essas produções, supostamente universais, são saberes localizados e produzidos, na sua maioria, por homens brancos europeus.
Conforme Tadeu Souza, José Damico e Emiliano David (2020, p. 6), “é necessário romper com o tecido socio epitelial da branquitude, seu mega corpo narcísico e negacionista que inclui todas as subjetividades que se nutrem dos privilégios que dele advém”. Nesse sentido, racializar as Clínicas do Trabalho é afirmar o quanto esse campo teórico se sustenta em uma racionalidade branca, pois como bem escreveram os autores citados, “racializar é, portanto, um exercício político-discursivo que mapeia essa produção negada pela branquitude” (Souza, Damico, & David, 2020, p. 5).
No momento em que entendemos o racismo no Brasil como um racismo estrutural (Almeida, 2018), no âmbito do trabalho atualiza-se e dificulta-se o acesso e a permanência em determinadas posições profissionais por práticas de violência racista que, de tão naturalizadas, tomam contornos de um racismo cotidiano. Além disso, quando pessoas negras permanecem, há movimentos de impedimento a determinadas contribuições ao ofício, perpetradas pela branquitude.
Eleger professoras negras colocando em análise o ofício docente, no estudo em questão neste artigo, decorreu do fato de acreditarmos na potência do enfrentamento cotidiano às práticas de violência racista que se imiscuem por entre decisões operatórias do trabalho. Grada Kilomba (2019) nos auxilia a visualizar essa violência que as mulheres negras vivenciam diariamente em sua vida, e faz com que tenham que afirmar e sustentar constantemente o seu direito à existência.
Lélia Gonzalez (1984) também contribui com o debate sobre esse tema, com a sua discussão sobre a maneira como o corpo da mulher negra é permanentemente capturado para permanecer na posição de mulata (hipersexualização), de babá ou de doméstica (subserviência) e nos lembra que a violência racista, a todo momento, atravessa as relações que se estabelecem, logo, está presente também nas relações de trabalho. De acordo com os registros do Programa SOS Racismo da ONG Maria Mulher (Oliveira, Meneguel, & Bernardes, 2009), as denúncias de violência racista no trabalho aparecem com maior prevalência.
Enfrentar a colonialidade na esfera do ofício docente nas escolas faz-se, por nós, no lastro do entendimento de que o eurocentrismo não consiste em uma questão estritamente geográfica, como diz Walter Mignolo (2017), e sim epistemológica. Assim sendo, precisamos criar outras vias para nossos percursos cognitivos quando se trata de realizar análises clínicas do trabalho, sobretudo atentando para os modos como colocamos os problemas para e na análise. Precisamos transformar os termos da conversa, diz Mignolo (2017), e não apenas seu ‘conteúdo’, de modo que perguntamos: como formulamos nossas problemáticas de pesquisa? Por onde se colocam os problemas? De que modos apresentamos os termos do problema em nossas pesquisas no âmbito Clínico do Trabalho.
Se o cultivo do ofício (Clot, 2013) pede funcionamento coletivo, funcionamento esse que se sustenta quanto mais diferença suportar, o que dizer quando, na dinâmica dos processos de trabalho, as existências negras são negadas, bem como suas contribuições às estratégias de ofício?
Apresentando as Clínicas do Trabalho e a Clínica da Atividade
As Clínicas do Trabalho são práticas que propõem pensar as relações laborativas através da tríade trabalho-subjetivação-saúde (Barros & Amador, 2018). Elas são compostas por diversas abordagens, sendo que, no Brasil, há todo um movimento singular na maneira de pensá-las. Ressalta-se, nesse sentido, a própria dimensão da racialização do debate clínico do trabalho, a qual força a colocação de problemáticas que envolvem a dimensão racial no trabalho, dimensão essa com fortes nuances na realidade brasileira, marcada por uma história escravocrata. Nesse sentido, essas clínicas não constituirão uma única escola de pensamento, mas mantêm em comum os seguintes aspectos: interesse pela ação dos coletivos de trabalhadores, o trabalho entendido como atividade, a preocupação com o sofrimento no trabalho e a compreensão da dimensão constitutiva do trabalho (Silva & Ramminger, 2014).
A potência das Clínicas do Trabalho está em possibilitar a problematização do instituído e ter a capacidade de produzir novos territórios ‘no’ e ‘pelo’ trabalho (Barros & Amador, 2018). Dessa forma, as Clínicas se afirmam como políticas ao proporem analisar como se dão os arranjos por meio da subjetividade-saúde-poder-dominação-violência laboral que perpassarão e irão compor a experiência do trabalho.
A Clínica da Atividade nasce a partir dos estudos de Clot (2013), que entende o trabalho como atividade, propondo, a partir disso, o conceito de trabalho como ofício, o qual não deve ser entendido apenas como uma prática ou uma profissão, mas como uma “discordância criativa” (Clot, 2013. p. 6) entre suas quatro instâncias: pessoal, interpessoal, transpessoal e impessoal. O autor ressalta que o ofício não está localizado em nenhuma das instâncias, uma vez que o encontramos no trânsito entre elas por onde, em funcionamento coletivo, se fortalece.
As dimensões pessoal e interpessoal estariam relacionadas à atividade sempre como uma ação dirigida e não repetível. A transpessoal seria a dimensão que é atravessada por uma história coletiva, perpassando diferentes gerações. A impessoal estaria relacionada ao âmbito da tarefa, estando mais distante da atividade efetiva. O autor pontua que a história coletiva desenha os gestos possíveis ou impossíveis, ao fixar as fronteiras móveis do ofício, além de possibilitar que cada trabalhador possa acessar ou criar o gesto. Ele menciona que é na potência das histórias e das memórias coletivas que cada trabalhador tem a garantia de agir no presente e ter uma perspectiva de agir no futuro (Clot, 2017).
Para o autor, o ofício se mostra como um paradoxo: não pertence a nenhum trabalhador, mas cada um é responsável por ele. O ofício tem uma arquitetura que permite que suas instâncias - pessoal, interpessoal, transpessoal e impessoal - interajam entre si. Assim, cabe a cada trabalhador, com seus pares, mantê-lo em pé, ao cultivar o debate a respeito da qualidade do trabalho. Fazer o ofício é não perder de vista que ele é movimento, é atividade. Dessa maneira, tomar o conceito do trabalho pela atividade consiste em entender que trabalhar é ter que se haver constantemente com essas variabilidades que são próprias do trabalho.
No âmbito da Clínica da Atividade é importante ressaltarmos que atividade é distinta de ação, pois a atividade se expressa no intervalo entre o trabalho prescrito e o trabalho real (Cunha, Fischer, & Franzoi, 2011). Por trabalho prescrito, entendemos um conjunto de condições e exigências que dizem como o trabalho deverá ser realizado, incluindo condições físicas (espaço físico, materiais necessários) e prescrições (normativas, protocolos).
Desse modo, entender o trabalho como atividade implica analisá-lo não apenas como a realização da tarefa, mas também como aquilo que não se fez, aquilo que se desejou fazer, conforme afirma Clot (2001 citado em Osório, 2010), no escopo da Clínica da Atividade. Enfim, estar em atividade consiste na gerência de todo esse embate, cuja realização representa a ação possível dentro dessa disputa/conflito que acontece a cada ato laborativo (Brandão, 2012). Quando tomamos a ideia do trabalho como atividade, estamos falando de um trabalho que não é uma repetição automatizada, mas um ato que se dá no encontro com o trabalho e com os trabalhadores, que nos convoca a tomar decisões ampliando o poder de ação dos trabalhadores e das trabalhadoras.
Para colocarmos o problema que nos interessa acerca da dimensão racial presente na experiência do trabalho como atividade, valemo-nos de outro conceito-chave no escopo da Clínica da Atividade: o conceito de gênero profissional. O gênero, neste caso, se configura como um conjunto de condutas coletivas que unem e distinguem, de maneira dinâmica, os trabalhadores de determinado ofício (Morschel et al, 2011). Isso funcionaria como repertório esperado dentro de uma determinada profissão. Como uma espécie de senha conhecida apenas por aqueles que pertencem ao mesmo fazer laboral, permite que eles saibam o que devem fazer sem que haja necessidade de reespecificar a tarefa cada vez que ela deva ser feita (Clot, 2010). De acordo com a conceituação de gênero profissional, os trabalhadores, uma vez fazendo parte do ofício, poderiam acessar esse repertório coletivo que, de alguma forma, liga os trabalhadores a uma história coletiva e possibilita a segurança para agir. Já o processo de estilização, associado ao de gênero, possibilita que ele se atualize e se renove de acordo com os tensionamentos das variabilidades inerentes ao ato de trabalhar. Assim, o gênero profissional se caracteriza por sua flexibilidade na busca de manter o ofício vivo.
Retomando a pergunta lançada no final da seção anterior, “o que dizer quando, na dinâmica dos processos de trabalho, as existências negras são negadas, bem como sua contribuição ao ofício?”, juntamos uma outra: como se dá a dinâmica de contribuição e reconhecimento das professoras negras à história do ofício?
Foi essa pergunta que nos levou, no percurso da pesquisa, à proposição do termo Estilizações Marginais, que se mostrou como uma estratégia desenvolvida pelas docentes negras na direção da feitura de um ofício docente antirracista.
Estilizações Marginais
O trabalho como ofício possui como marca a sua reinvenção, porém, ao longo do estudo realizado com docentes negras da educação básica da rede estadual, o ofício, ao qual elas pertencem, mostrou-se fortemente sustentado por lógicas e práticas ancoradas na branquitude, fazendo com que o gênero profissional e suas estilizações reafirmem e reatualizem práticas racistas.
Professoras negras mencionam que precisam aprender - podemos dizer, acessar o gênero profissional - em meio aos constantes boicotes de seus pares. As estilizações também não parecem estar a salvo das práticas racistas. De acordo com as narrativas das professoras negras, as estilizações ocorrem através de embates quando se trata de trazer para dentro do gênero profissional o debate racial no enfrentamento do racismo, sendo possível em meio à tessitura de estilizações marginais.
Como percebemos, há uma engrenagem da branquitude que busca barrar/interditar as estilizações do gênero profissional docente que enfrentam práticas e lógicas ancoradas na branquitude. Assim, precisamos questionar os valores e os discursos racistas no âmbito do ofício docente, os quais tentam posicionar essas estilizações como subalternas em relação às demais estilizações em uma transgressão individual que não agrega valor para o coletivo de trabalho.
Para Clot (2010), as transgressões estariam relacionadas com a despotencialização do gênero profissional, aprisionando os trabalhadores na rigidez de prescrições esvaziadas de funcionalidade. Já a estilização consiste na vitalidade do gênero profissional, potência transformadora do ofício.
Como se entende que esses deslocamentos propostos e efetuados pelas professoras negras no ofício docente são brechas para a renovação e para a expansão do poder de ação do trabalho docente e dos educadores, nomeamos esses movimentos como Estilizações Marginais. Acreditamos também que tentar localizar as estilizações realizadas pelas professoras negras como transgressões individuais implica contribuir para a continuidade do ofício docente ancorado em valores racistas, desqualificando suas contribuições ao ofício docente. Segue o relato de uma professora:
[q]uando eu fui procurar as minhas colegas de linguagem eu fui procurar a questão da literatura afro-brasileira né… me fiz de pamonha e fiz bem assim: e cheguei… porque realmente eu não tive na faculdade, é… o que eu sabia né, tem isso também… eu tinha… eu não sou da era das cotas nas universidades então… eu me formei um ano antes das cotas começarem… na graduação eram pouquíssimos colegas negros, eram dois, três… não tinha a lei, me formei antes da lei, então depois da graduação eu fiz por conta própria cursos na lei, né… algumas formações pela universidade mesmo e… sempre com amigos do movimento negro também … mas a questão de se voltar à literatura negra mesmo eu não tinha feito… e aí eu perguntei né: o que que é isso aqui? O que que é a literatura afro-brasileira? O que vocês dão? Onde que tá o livro, o material? E a professora de literatura disse assim: ah… assim oh, lá na semana da consciência negra, a gente chama o pessoal da capoeira e tem umas comidas típicas… bem assim, né… e aí putz… e aí hoje eu falo que eu até agradeço isso que ela fez, porque ela me obrigou a ir atrás disso e é com isso que eu trabalho hoje.
No desenrolar dessa conversa, da qual o trecho acima foi extraído para compor esta escrita, a professora menciona que, após esse fato vivenciado por sua colega, ela buscou uma especialização ofertada pelo UNIAFRO2, o qual se mostrou um espaço possível para se estabelecer um debate sobre a atividade docente em relação a determinadas dimensões do fazer cotidiano. A discussão sobre o trabalho docente e sobre como criar meio para realizá-lo levando em consideração demandas referentes ao debate racial, desejado para o espaço da escola, desloca-se para outros espaços, na busca por produzir práticas docentes que perturbem as engrenagens racistas na escola.
Por que falamos em ‘estilizações marginais’? Sob influência do conceito de margem, de Grada Kilomba (2019), que aponta como local de opressão e resistência, pensamos que estilizações marginais se referem a um modo peculiar de estilizar o gênero protagonizado por pessoas negras. Trata-se de um modo de luta e resistência, mas que também afigura todo um percurso de deslocamentos necessários tendo em vista as operações da branquitude por meio do ofício.
Nesse sentido, ocupar a margem implica a possibilidade de traçar problematizações que não seriam apontadas por quem ocupa o centro (sujeitos não marcados pela raça). Desse modo, no encontro com as professoras participantes e suas narrativas, notamos que a estilização do gênero profissional docente acontece em meio a um embate de forças, do qual resultam estilizações marginais que não compõem os valores da branquitude, mas que são potentes para possibilitar novos discursos e práticas no trabalho docente.
O que parece ser uma característica dessas estilizações marginais são os meios pelos quais elas se articulam para se afirmarem. Parecem ser estilizações em constantes deslocamentos, a fim de construir uma pluralidade de espaços possíveis para existirem (chão de escola, espaços de formação de professores, entre outros), em busca da vitalização do ofício docente.
Pesquisadora: E quando tem que pensar a semana da consciência negra é algo que toca só pra ti ou teus colegas participam. Como é que fica isso?
C: Acontece uma coisa muito estranha, assim: porque eu sempre… eu sempre… eu nunca esperei por ninguém pra fazer, eu fui fazendo... e aí a coisa foi tomando uma proporção porque os alunos já me cobram ‘o que que vai acontecer?’. E eu sinto que alguns colegas já se aproximam de mim: ‘o que que tu vai fazer?’ Porque eles querem se inserir, mas oh… é tu que vai organizar. Eu nem falei nada, mas é assim, oh… é tu que vai conduzir. Então fica tudo nas minhas costas, como se não fosse uma coisa de todos… é… sou eu que tenho que pensar, organizar … ‘oh, eu quero participar, mas tu vai ter que me dizer o que eu tenho que fazer’… não pode ser uma coisa deles, sabe… é muito estranho… parece que é algo que não diga a todos, é algo a mim... é muito estranho.
Este trecho de diálogo aponta aquilo que as professoras participantes deste estudo mencionaram diversas vezes: o quanto o tema do debate racial não é algo da responsabilidade de todos os profissionais da escola. Portanto, estilizações marginais são produzidas dentro do gênero profissional docente, como uma estratégia, para perturbar os valores, os discursos e as práticas racistas presentes no âmbito do trabalho docente. Seria quase como que um gênero dentro do gênero.
Uma das professoras participantes explica qual a percepção dela em relação ao modo como seus pares acolhem os movimentos que elas realizam na direção de reinventar o ofício docente:
[e] aí, claro, né, agora falando da questão dos colegas, que isso gera um incômodo, porque a partir que tu começa a se aproximar dos alunos dessa forma, algumas pessoas não gostam… se sentem incomodadas…sentem-se com ciúmes, sei lá eu… como definir esse sentimento, mas às vezes eu percebo, por exemplo… sempre na consciência negra eu oportunizo alguma coisa diferente na semana… então era assim, inicialmente, todos os dias daquela semana eu pensava alguma coisa, um convidado diferente, por exemplo, sabe… e já aconteceu, ali no turno da noite, do convidado estar lá, o Manoel Soares pra conversar com os alunos, e uma colega não entrou no salão… ela simplesmente ficou na sala dos professores. Então, a gente vai percebendo assim... né… no silêncio, nas ausências, né… então não aconteceu esse embate, nem nada direto de falar ‘ah, não quero’, mas assim… ‘não vou… vou ficar aqui’. Puxa, uma presença superimportante, um debate super maravilhoso, um bate-papo com os alunos… alunos que eu nunca tinha visto se manifestar, se manifestam nessas oportunidades... então, o quanto o professor está perdendo… mas ele tá ali, talvez seja um ato de protesto dele… a gente sente assim, não sei se é, mas a gente sente assim.
O silêncio e o silenciar: essas duas estratégias se apresentam como práticas de racismo no trabalho docente. Ambos se intercalam entre o movimento de não-falar e o de não-permitir que se fale, bem como a recusa, por parte dos colegas, em escutar a respeito das questões raciais como temática do currículo escolar. Visualizamos, então, pelas narrativas das professoras, o quanto essa posição de silêncio dos seus pares se ampara em um comportamento de ausência, isto é, o ausentar-se como uma manifestação de recusa em compor o trabalho que estava acontecendo e, além disso, uma recusa na estilização que se tecia naquele momento, ou, ainda, uma recusa em renunciar aos valores da branquitude.
O interessante de se concentrar a atenção nesse relato é que, mesmo com a recusa de alguns colegas em participar dessas atividades planejadas para se discutir a respeito das questões raciais no ambiente escolar, a professora não recua e segue na direção de construir novos modos de exercer a docência. Ela permanece tecendo estilizações marginais face ao real, para o qual o exercício da docência a convoca, em direção a um fazer que a orgulhe e que ela reconheça como um bem-fazer da docência.
Uma outra professora participante da pesquisa traz o seguinte relato em relação às atividades propostas para a Semana da Consciência Negra na escola em que atua, bem como o modo como uma colega reage a essa ação:
[o] pessoal da filosofia né, trabalhando com a lei né… daí eles pediram pra mim né, porque eu uso turbante né, eu gosto de usar turbante, se eu poderia dar uma oficina… eu disse tá… tava assim… era aquele entusiasmo, sabe… que legal, não vai começar nada do zero, já tem uma trajetória, e realmente foi muito bonito ver toda a escola trabalhando com a lei. Só que… o que que aconteceu (risos) … no dia 20, que era o dia mais importante, eu não estava na escola mas acabei participando do conflito, essa professora de literatura que disse que a semana da consciência negra era capoeira e samba né, ela - é uma professora branca - ela foi a única professora da escola que não quis participar da atividade né… mas assim, era obrigatório, tá… e... ela se negou a ir, trancou a turma na sala e deu prova (risos) pros alunos não irem, sabe (risos)…
Silêncio, silenciar, ausência, recusa, impedimento: essas parecem ser maneiras de reatualização do pacto narcísico da branquitude (Bento, 2002) no âmbito do trabalho docente, na tentativa de que as professoras negras não façam estilizações que contradigam os valores da branquitude. Nessas narrativas das professoras, a branquitude como interdição atua e busca, constantemente, meios para barrar a estilização dessas educadoras negras no ofício docente. Para isso, utiliza diversas estratégias, tais como: desqualificação (“para trabalhar a lei basta na Semana da Consciência Negra fazer uma apresentação de samba e de capoeira”); ausência (“todos estavam no salão para ver a palestra do convidado, mas uma colega ficou na sala de aula”); e interdição (“trancou os alunos na sala de aula e deu prova para que eles não participassem das atividades da Semana da Consciência Negra”).
Todas essas estratégias mencionadas acima não aconteceram em meio a um debate sobre as práticas de trabalho - o que seria um terreno potente para se estabelecer uma discussão a partir da análise da atividade desses professores - mas como atos assumidos por professores e aceitos pelo coletivo, como um mecanismo de continuidade do pacto narcísico da branquitude. Assim, percebemos o quanto essas atuações, por mais que tenham sido tomadas por um docente apenas, mostram-se como uma manifestação em defesa dos valores da branquitude que sustentam o ofício docente.
Em meio a todos esses mecanismos da branquitude operando na tentativa de interditar e/ou constranger as estilizações que perturbem as engrenagens racistas presentes no ofício docente, as professoras negras seguem em movimento, pois produzem deslocamentos na direção de se manterem agindo e renovando o ofício docente. No trecho abaixo, esse embate toma materialidade:
Então tu sente que há um incômodo das pessoas, mas como a gente… ah, sei lá… foi um espaço que a gente conquistou e vocês vão ter que nos engolir! Vocês achando legal, concordando ou não, as pessoas estão ali. Sabe… então estão tendo que aceitar. Sabe… e se tornou um objeto muito bacana, muito visado, então a gente percebe que algumas pessoas ficam incomodadas, mas isso não vem diretamente, fica muito assim, sabe… no olhar… ah! No silêncio! No silêncio a gente consegue perceber muitas coisas…. Mas isso vai acontecendo.
“Vocês achando legal, concordando ou não, as pessoas estão ali”. Essa frase aponta a arena em que se faz o ofício docente, ou seja, um espaço de embate, de disputa de forças, onde os valores da branquitude e seus mecanismos de opressão e seus movimentos de resistência se tecem a todo momento em que decisões operatórias do trabalho são tomadas. Entretanto, é por entre silêncios, olhares e ausências, que as professoras negras seguem estilizando o gênero profissional docente em direção a práticas antirracistas. Elas procuram tecer estilizações marginais de extrema potência para construir o ofício docente.
No outro ano eu já estava na especialização, fiz duas. Uma na UNIAFRO e fiz ‘Territórios negros na história’. E quando eu fiz territórios negros, o Z., que é professor de história da escola e é amigo do D., somos amigos, fez comigo. Então, o Z. é mais velho, assim… já é um senhor né, ele foi me colocando a par desses conflitos raciais aqui da escola e eu fui baixando a bola, porque o que que acontece… acho que agora eu vou entrar mais no que tu queres saber, assim… que é esse ambiente hostil onde eu trabalho. Que é um ambiente racista…. que o racismo aparece de diferentes formas, mas né… essa disputa do currículo é um campo de luta que a gente não tá ganhando, sabe… eu fico muito de fiscal do livro didático, de tudo né.
É nesse ambiente racista que essa professora segue, para tecer estilizações marginais, traçar trajetórias, para se manter agindo no trabalho. Como ela disse, o currículo é um campo de disputa marcado pela hegemonia dos saberes produzidos pela branquitude. Assim, que estratégias ela aciona para seguir agindo no trabalho docente e tecendo estilizações?
Dei uma baixada de bola… tô muito dentro da academia, querendo falar cientificamente, racionalmente essa questão que eu vejo como racismo estrutural, ele é científico, ele é planejado, ele é estruturado. Só que a gente, o outro lado que são as relações étnico-raciais, isso é muito difícil…
A professora aponta que sua estratégia para seguir agindo e se manter normativa em meio ao exercício da docência consiste em ancorar sua discussão no âmbito do trabalho docente pelo viés científico, além de traçar um enfrentamento ao racismo estrutural baseado em epistemologias que não dialoguem com os valores da branquitude. Francisco Silva e Patrícia Oliveira (2018) mencionam a importância de priorizarmos epistemologias que tragam as vozes dos subalternos nos seus escritos.
Parece que esse movimento que a educadora faz, ao mencionar a busca do debate de enfrentamento ao racismo, com base em saberes científicos, aproxima-se da ideia de descolonizar os saberes. E, pela descolonização dos saberes, abrimos a possibilidade de se produzirem novas questões no âmbito do ofício docente. Portanto, na colocação de problemáticas marginais capazes de tecer práticas antirracistas no exercício da docência, podemos possibilitar que a instância transpessoal do ofício docente se desenvolva em direção a novos modos de exercer a docência que não estejam aliançados com os valores da branquitude.
Meu aluno da história propôs para a direção uma formação de professores que foram só 5 professores (silêncio) … e foi bem difícil porque a pessoa que foi lá, que era uma líder comunitária, ela foi cheia de boa vontade e teve toda a resistência dos colegas. Uma coisa que meio pra mim: dos meus colegas eu desisti, sabe...eu desisti porque pra eles é confortável seguir pensando de forma racista, sabe, porque senão eles vão ter que desacomodar muitas outras coisas que eles não querem, né: machismo, homofobia…que é muito grande. Agora, com os alunos não, com esses eu tenho... Por esse percurso que a gente tem, a gente fica um ano inteiro juntos né.
O trecho acima traz o quanto esses movimentos de recusa dos pares aos movimentos de renovação do ofício docente produzem afetações despotencializadoras para o trabalho docente e para as professoras e professores. Porém, esses encontros despotencializadores que se tecem face ao real do trabalho tensionam a educadora a traçar uma nova rota, para se manter normativa.
Assim, no encontro com as afetações que se produzem na sala de aula, é possível que estilizações marginais tenham passagem. É importante pontuar que, quando a professora menciona uma desesperança com os seus pares e uma impossibilidade de composição com eles, entendemos que ela aponta a impossibilidade de tomar parte nos valores da branquitude que eles defendem. Além disso, ela deixa a pista de que a relação que se tece é de resistência em meio a valores, práticas e discursos antirracistas e da branquitude. É através desse constante embate que acontece a tessitura do ofício docente, o que coloca instigantes questões do ponto de vista da tríade trabalho-subjetividade-saúde, para o desdobramento de novas análises.
Pela afirmação de uma Clínica do Trabalho Antirracista
Na direção de fortalecer o debate racial no âmbito do trabalho é pertinente problematizarmos como as questões raciais são tomadas, ou não, enquanto problemáticas Clínicas do Trabalho. Importa analisar como as questões de raça vêm sendo consideradas por meio da experiência do trabalho como atividade, trazendo ao debate as estratégias criadas para se manterem trabalhando e agindo no trabalho, ainda que em meio às tentativas de constrangimentos que podem ocorrer através de práticas e discursos racistas, como desqualificar, humilhar, silenciar e invisibilizar. Práticas que se recusam a reconhecer as peculiaridades de investimento no ofício por parte de trabalhadoras e trabalhadores negras e negros.
Ao longo dos encontros com as docentes participantes do estudo, pudemos perceber que a ausência do debate racial em Clínicas do Trabalho aponta para a atuação do pacto narcísico da branquitude (Bento, 2002) no âmago do ofício docente, tornando-o terreno fértil para reatualizações de violência racista.
Pudemos constatar que a violência racista no âmbito laboral constrange o poder de ação das professoras por meio de práticas de deslegitimação da contribuição das docentes negras ao gênero da profissão, posicionando suas estilizações marginais, como transgressões individuais. As estilizações marginais se mostraram cruciais para as professoras negras, pois é por meio delas que as educadoras se reconhecem no ofício docente, na busca de um trabalho bem-feito, um reconhecer-se em sua atividade (Clot, 2010).
Conforme as educadoras as praticam, elas afirmam a pertinência de um exercício da docência comprometido com a luta antirracista e não com os valores da branquitude. O que parecia uma pista mostrou-se pertinente: o tensionamento das Clínicas do Trabalho na direção de um fazer comprometido com uma prática antirracista.
Propor o debate racial em Clínicas do Trabalho é se comprometer com um fazer clínico que escute, veja e problematize as práticas de violência racista que conformam o cotidiano do trabalho e do próprio ofício. Visibilizar a questão racial e a violência racista cotidiana no trabalho como uma problemática clínica do trabalho demanda construir junto com os trabalhadores e as trabalhadoras negros e não negros estratégias de engajamento na luta antirracista, visto que esse é um embate que não deve ser exclusivo dos trabalhadores e das trabalhadoras negras.
Sabemos que o trabalho pode se tornar um processo de adoecimento quando não permite uma expansão do poder de ação dos seus trabalhadores, e os aprisiona em tarefas esvaziadas de funcionalidade, que se sustentam no cultivo de afetos tristes - como o que se produz em relações no trabalho que atualizam práticas racistas. As engrenagens racistas presentes no ofício docente tentam barrar as estilizações que perturbam a maquinaria racista do gênero profissional docente, visando, assim, que a renovação do ofício docente se mantenha aliançada com os valores da branquitude. Apontar esse mecanismo racista que compõe o ofício docente só é possível quando nos propomos à feitura de uma Clínica da Atividade comprometida com a luta antirracista.
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Notas
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1
Psicossociologia francesa, entre nós. Contudo, destaca-se também a produção latino-americana no âmbito da Saúde do Trabalhador a qual possui uma forte orientação marxista, reunindo campos distintos, porém limítrofes, de saber, tais como Saúde Coletiva, Medicina e Psicologia Social, entre outras. Tratou-se, na América Latina, de enfrentar problemas colocados pela expansão do capitalismo e por suas condições de trabalho explorando, ainda, as peculiaridades dessas questões em contextos de ditadura, mas que, contudo, mantiveram certo silêncio em relação às desigualdades relativas à raça.
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2
Curso de Aperfeiçoamento ofertado pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul — UFRGS, com apoio da Secretaria de Educação a Distância e do Centro de Formação de Professores da UFRGS. O curso se propõe a ser um instrumento para a teorização e proposição de ações que transformem o cotidiano das relações inter-raciais na escola.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Out 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
28 Jul 2023 -
Aceito
22 Set 2023