Open-access CAMPO DE POTÊNCIA: PISTAS PARA A PRODUÇÃO DE UMA ARMA CONCEITUAL

CAMPO DE POTENCIA: PISTAS PARA LA PRODUCCIÓN DE UN ARMA CONCEPTUAL

FIELD OF POWER: CLUES TO THE PRODUCTION OF A CONCEPTUAL WEAPON

Resumo

O artigo objetiva apresentar a proposta teórica denominada campo de potência. O conceito foi elaborado a partir de pesquisa junto a jovens que participaram de ocupações escolares no estado de São Paulo em 2015 e/ou 2016. A pesquisa teve como fundamento teórico a articulação entre a psicologia histórico-cultural e o pensamento político gramsciano. O campo de potência se configura como um instrumento psicossocial composto por três dimensões entrelaçadas e indissociáveis: potência de agir; aprendizado e desenvolvimento; práxis política. O campo de potência se caracteriza como um ambiente físico e social que favorece a produção de potência de agir; subjetividades e relações democráticas e democratizantes; e práxis política reflexiva e criativa - com caraterísticas multitudinárias. Entende-se que a ação psicossocial pautada no campo de potência possa contribuir com o fortalecimento de movimentos de luta por direitos, bem como com a atuação junto a espaços diversos como: saúde, educação e assistência social.

Palavras-chave: Movimentos sociais; Subjetividade; Psicologia política; Participação política; Movimento estudantil

Abstract

The article aims to present the theoretical proposal called the field of power. The concept was developed based on a research with young people who participated in school occupations in the state of São Paulo in 2015 and / or 2016. The research had as theoretical framework the articulation between historical-cultural psychology and Gramscian political theory. The field of power is configured as a psychosocial instrument composed of three intertwined and inseparable dimensions: power to act; learning and development; political praxis. The field of power is characterized as a physical and social environment that favors the production of power to act; democratic and democratizing subjectivities and relations; and reflective and creative political praxis - with multitudinous characteristics. It is understood that the psychosocial action based on the field of power can contribute to the strengthening of movements of fight for rights, as well as with actions in different areas such as: health, education and social assistance.

Keywords: Social movements; Subjectivity; Political psychology; Political participation; Student movement

Resumen

El artículo tiene como objetivo presentar la propuesta teórica denominada campo de potencia. El concepto se desarrolló a partir de una investigación con jóvenes que participaron en ocupaciones escolares en el estado de São Paulo en 2015 y/o 2016. La investigación tuvo como base teórica la articulación entre la psicología histórico-cultural y el pensamiento político Gramsciano. El campo de potencia se configura como un instrumento psicosocial compuesto por tres dimensiones entrelazadas e inseparables: potencia de actuar; aprendizaje y desarrollo; praxis política. El campo de potencia se caracteriza como un entorno físico y social que favorece la producción de potencia para actuar; subjetividades y relaciones democráticas y democratizadoras; y praxis política reflexiva y creativa, con características multitudinarias. Se entiende que la acción psicosocial basada en el campo de potencia puede contribuir al fortalecimiento de los movimientos de lucha por derechos, así como con acciones en diferentes áreas como: salud, educación y asistencia social.

Palabras clave: Movimientos sociales; Subjetividad; Psicología política; Participación política; Movimiento estudiantil

Introdução

O processo de elaboração e produção do presente texto foi pautado prioritariamente pelo intuito de contribuir para a práxis política de movimentos sociais e coletivos democráticos. Entendemos que a práxis é por definição unidade dialética entre teoria e prática, na qual ambos os momentos se constituem e fortalecem (Sánchez Vázques, 2007). Contribuir efetivamente para relações sociais mais justas e igualitárias certamente nos desperta mais interesse que apenas teorizar e discutir sobre elas. No entanto, como nos ensinam Karl Marx (2012), Kurt Lewin (2005) e Paulo Freire (2016) - entre outros tantos -, a produção teórica também é momento importante da própria transformação da realidade.

O artigo que se segue tem como objetivo apresentar uma proposta teórica que visa a contribuir com a atuação psicossocial junto a ações coletivas. Denominamos tal proposta como campo de potência. Sua elaboração se dá prioritariamente a partir de pesquisa junto a ocupações estudantis de instituições de ensino ocorridas no estado de São Paulo em 2015 e 2016 (Costa & Groppo, 2018; Rosa, 2019). A pesquisa citada objetivou, de forma geral, analisar o processo de práxis política de estudantes que participaram dos movimentos de ocupações. Colaboraram com o estudo dezenove (19) estudantes com idade entre 17 e 22 anos - oito (8) do gênero feminino e onze (11) do gênero masculino. No período das ocupações (2015 e 2016), tais estudantes estavam matriculados(as) em instituições públicas de ensino localizadas na capital e interior do estado de São Paulo - escolas de ensino médio e Institutos Federais (IFs). Os instrumentos de pesquisa utilizados para a produção do corpus empírico foram: entrevistas semiestruturadas, grupos focais e observações participantes. Os encontros com os(as) participantes se deram nos municípios de São Paulo, Barretos e Catanduva nos anos de 2016 e 2017.

A pesquisa foi desenvolvida tendo o materialismo histórico e dialético como fundamento teórico e metodológico (Marx, 2012; Netto, 2009). Mais especificamente, as bases teóricas da produção se deram por meio da articulação da psicologia histórico-cultural e do pensamento político gramsciano (Rosa, 2019). Entendemos que a partir da concretude das ocupações abordadas é possível elaborar uma conceituação que seja útil a outros campos e movimentos. O conteúdo que será discutido objetiva instrumentalizar psicólogas e psicólogos sociais, políticos(as) e comunitários(as), mas também pessoas em geral que participem de ações coletivas.

Seguinte à introdução, o texto é composto por uma sessão na qual é desenvolvida a ideia de instrumento psicossocial - subsídio estruturante à proposta principal. Posteriormente, são abordadas as dimensões fundantes da proposta: práxis política; potência de agir; aprendizado e desenvolvimento. Em seguida, é apresentado o conceito de campo de potência em articulação com as experiências por nós estudadas de jovens que ocuparam escolas em São Paulo em 2015 e 2016. Por fim, são traçadas algumas considerações finais sobre as possibilidades da proposta teórica.

Instrumentos psicossociais

Lev Vygotski (1997), ao escrever sobre a formação do psiquismo humano, define signos como instrumentos psicológicos. Segundo o autor, enquanto os instrumentos materiais têm como função aumentar as possibilidades de ação das pessoas sobre o mundo externo - a natureza -, os instrumentos psicológicos (signos) têm como finalidade agir sobre o comportamento do próprio sujeito ou de outros. A adoção de signos abriria uma infinidade de possibilidades de ações psíquicas e comportamentais antes impossíveis - as funções psicológicas superiores. Fernando Gonzalez Rey (2012) tece duras críticas à concepção instrumental que Vigotski adota nesse momento de sua obra. Pretendemos aqui utilizar uma noção instrumental inspirada em Vigotski, mas não nos referindo à mediação simbólica, e sim para expressar uma forma de organização relacional e situacional que produza possibilidades de comportamentos, subjetividades e interações que anteriormente seriam muito improváveis ou impossíveis.

Há vários estudos clássicos na psicologia social que abordam o poder da situação sobre comportamento humano. Por exemplo, Muzafer Sherif (1936) e Solomon Ash (1987) desenvolvem experimentos sobre influência social, nos quais buscam entender o efeito da maioria sobre as decisões da minoria. No entanto, são mais significativas para nossa proposta as contribuições de Lewin (2005), Stanley Milgram (1973) e Craig Haney, Curtis Banks e Philip Zimbardo (1973).

Kurt Lewin (2005) desenvolve uma pesquisa na qual se propõe a estudar os estilos de liderança e sua influência sobre os grupos. A partir de um experimento com grupos de jovens, o autor defende que a mudança no estilo de liderança geraria uma alteração na “atmosfera cultural do grupo”, a qual afetaria a forma dos membros do grupo se relacionarem com o líder, entre si e trabalharem nas tarefas propostas. Para Lewin (2005) o estilo de liderança e a atmosfera grupal, vinculada a tal estilo, eram o fator preponderante para a forma como os jovens se comportariam, superando até mesmo as características individuais de cada sujeito. A passagem de um grupo democrático para um grupo autoritário - e vice-versa - produziam mudanças substantivas nos comportamentos dos jovens independentemente de suas características individuais. O pesquisador ainda ressalta que o elemento fundante para a mudança de comportamento era a atmosfera grupal produzida pela liderança em suas relações concretas, e não algum tipo de propaganda ou lição moral. Segundo Lewin (2005, p. 245, tradução nossa):

deveria ficar claro que conferências e propaganda não são de fato suficientes para obter as mudanças desejadas. Por mais que esses possam parecer substanciais, se mostrarão eficazes somente quando estiverem acompanhados de uma transformação real nas relações de poder e na direção do grupo.

Haney, Banks e Zimbardo (1973) desenvolvem um estudo que ficaria conhecido como experimento da prisão de Stanford. Os pesquisadores constroem em sua universidade uma prisão simulada na qual dividem um grupo de estudantes voluntários de forma aleatória entre guardas e prisioneiros. O experimento que deveria levar duas semanas teve que ser interrompido antes da metade deste prazo, pois as relações dentro da “prisão” tornaram-se insustentáveis. Havia casos de assédios, humilhações e extremo estresse psicológico entre os sujeitos. Em entrevistas anteriores à pesquisa, não foram identificados quaisquer traços psicopatológicos ou sádicos nos estudantes, ou seja, colegas de faculdade considerados psicologicamente saudáveis transformaram-se em torturadores um dos outros em menos de uma semana. Haney, Banks e Zimbardo (1973) atribuem a brusca mudança às características da situação: espaço, vestimentas, autoridade, funções, normas etc. Evidente que tais caraterísticas situacionais impactaram de forma diferente em cada sujeito concreto, no entanto, podemos perceber como a força do contexto é poderosa na definição do comportamento humano. O próprio Antonio Gramsci (2011) escreve nas cartas do cárcere sobre suas estratégias para tentar não permitir que o ambiente da prisão fascista o transformasse. Segundo o pensador, era evidente como as pessoas encarceradas em pouco tempo mudavam em muito seu comportamento. Segundo Gramsci (1971 como citado em Ghiro, 2012, p. 63, tradução nossa):

Todo meu organismo físico e psíquico se opunha tenazmente com cada molécula sua à absorção desse ambiente exterior, mas de tempos em tempos era necessário reconhecer que certa quantidade da pressão havia conseguido vencer a resistência e modificar certa parte de mim mesmo.

Por sua vez, Milgram (1973) elabora na Universidade de Yale um experimento sobre obediência à autoridade. Em seu estudo, Milgram demonstra como em dadas condições pessoas sem traços psicopatológicos seriam capazes de realizar ações de tortura apenas como cumprimento de normas e ordens. Independentemente de suas histórias singulares, cerca de 65% dos participantes obedeceram ao experimentador e mostraram-se dispostos a aplicar um choque mortalmente perigoso em seus colegas. Evidentemente os choques eram falsos; no entanto, os resultados revelaram a real disposição da maioria dessas pessoas em agir, em um contexto específico, de forma cruel contra uma vítima indefesa. A culpabilização da vítima e o deslocamento da responsabilidade para uma autoridade ou instituição foram dois dos principais processos utilizados para explicar os resultados. Milgram (1973 como citado em Álvaro & Garrido, 2006, p. 163) conclui:

A psicologia social do nosso século [XX] nos mostra uma lição fundamental: muitas vezes não é o tipo de pessoa que é o indivíduo concreto, mas o tipo de situação que se encontra, o que vai determinar como atuará.

Realizamos essa breve revisão de estudos clássicos em psicologia social para fortalecer nosso argumento sobre o poder que determinada situação e as relações sociais nela presentes exercem sobre o sujeito. Vigotski (2000) aborda que a mudança de contexto pode levar a uma reorganização do drama subjetivo e uma alteração dos papéis sociais das pessoas. Devemos nos lembrar de que a relação entre meio e sujeito sempre se dá como vivência, ou seja, um meio específico não tem a mesma influência “objetiva” sobre qualquer sujeito (Vigotski, 2010). É na relação entre as peculiaridades das subjetividades e do contexto que se pode entender tal influência. Porém, como os experimentos demonstram, há formas de organização situacional que são eficazes em atuar sobre um campo significativo de subjetividades propiciando uma gama de comportamentos antes muito improváveis.

Assim como Vigotski propõe que instrumentos materiais e psicológicos podem propiciar possibilidades de ação antes impossíveis, defendemos que se pode utilizar dada situação social - normas, objetos, papéis, regras, espaços, sons, roupas, símbolos etc. - para tornar determinados dramas subjetivos e comportamentos mais ou menos prováveis mesmo diante das singularidades de cada sujeito.

O modelo que propomos aqui não é o da disciplina militar, no qual todos os espaços, horários e movimentos são controlados e planejados (Foucault, 1999), mas sim o da festa. As interações e comportamentos que ocorrerão concretamente são imprevisíveis em qualquer festa. No entanto, os organizadores tentam criar um ambiente favorável para que mais interações de determinado tipo - diversão, entretenimento, flertes etc. - sejam possíveis: música, iluminação, bebidas, espaço etc. Assim, mesmo diante das singularidades de cada sujeito, em uma festa se espera que a grande maioria das pessoas ali presente se divirta, conheça outras pessoas, dance - ainda que cada um ao seu modo. Não é necessário criar uma festa singular para cada pessoa, faz-se necessário que a organização da situação seja flexível o bastante para tocar uma diversidade de individualidades.

Em festas nos transformamos, nossos dramas subjetivos e papéis sociais se alteram, mas no dia seguinte voltamos a nos comportar no trabalho de forma muito parecida com a anterior. Porém, às vezes algo intenso ocorre e levamos mudanças significativas para outros ambientes. Às vezes nos apaixonamos em uma festa e mesmo no dia seguinte algo em nós ainda é muito diferente. A situação social específica da festa nos faz interagir com pessoas que em outra organização ambiental talvez nem mesmo conversaríamos, e tal interação propiciada por aquele meio “planejado” gera mudanças que podem se perpetuar em outros contextos.

Podemos usar ainda como exemplo para ilustrar a proposta uma gama de jogos juvenis que tem como finalidade produzir contatos afetivos entre os jogadores: “Verdade ou Desafio”, “Eu nunca...”, entre outros. Ao entrar no jogo, um sistema de regras específicas passa a mediar a relação entre os jogadores; tal sistema limita algumas possibilidades de ação - não posso mentir ou fugir ao desafio, por exemplo -, no entanto, aumenta em muito as possibilidades de comportamentos desejáveis naquele contexto - interações, beijos, carinhos etc. Ao entrar na brincadeira as formas de lidar com os outros são ressignificadas. As regras não determinam como serão as relações, mas abrem maiores possibilidades em direção ao campo desejável. Pensando na área da política, poderíamos talvez nos perguntar quais regras ou modos de interação em uma dada situação abririam maiores possibilidades de relações produtivas, saudáveis e democráticas.

A subjetividade é produzida a partir das relações sociais nas quais o sujeito está imerso. Assim sendo, mudanças em tais relações implicaria alterações na organização subjetiva. As transformações sociais, por sua vez, podem ser geradas pela ação intencional dos sujeitos - criando uma relação dialética e orgânica entre sociedade/relações e subjetividade. Contudo, podem-se produzir mudanças nos dramas psíquicos não apenas através de grandes revoluções, mas também a partir de organizações em contextos microssociais. Evidente que dada estrutura social e institucional limitará as possibilidades de configurações microssociais divergentes. No entanto, ainda que dentro desses limites, ações são possíveis. Por exemplo: uma ocupação escolar não é uma revolução socialista (compare Vigotsky, 2004), mas produz novas possibilidades de organizações subjetivas - ou novos “instrumentos psíquicos” para utilizar uma conceituação vigotskiana - que não precisam esperar uma revolução para se desenvolver. É possível empreender mudanças - ainda que limitadas - a partir das próprias contradições presentes no senso comum hegemônico, criar espaços e tempos que sejam instrumentais na produção de novas organizações subjetivas e relações (Colucci, 2007). Podemos entender tais espaços e tempos como instrumentos psicossociais, pois atuam, a partir de situações e relações sociais, possibilitando produções de subjetividades, comportamentos e relações. Lembremos, como Lewin (2005) demonstra, que as mudanças nos jovens não se deram prioritariamente por meio de discursos morais, mas sim a partir das mudanças concretas nas formas de interação.

Consideramos que, ainda que o pensamento gramsciano tenha como foco análises macrossociais, o marxista italiano possui significativas contribuições para a construção de nossa proposta. O pequeno sardo, que escreve boa parte de sua obra no cárcere fascista, traz grande contribuição ao pensamento político marxista (Coutinho, 2007). A partir de Gramsci (Gramsci, 2007, 2011), entende-se a política de forma ampla, ou seja, como um elemento constituinte de toda práxis humana. Assim, ações cotidianas passam a ser entendidas também a partir de sua dimensão política. A política não mais se limita ao seu sentido restrito - relações entre governantes e governados -, mas assume relevância nas relações microssociais que compõem o dia a dia das pessoas e seu senso comum.

Na luta pela hegemonia, ou seja, no combate pela direção cultural de determinado contexto histórico, faz-se necessário potencializar os elementos contraditórios já presentes na filosofia popular (Colucci, 2007; Gramsci, 2007). As potências criativas que compõem o senso comum podem produzir novas formas de pensar, ver e sentir o mundo. A partir de um senso comum transformado, novas ideologias - concepções que visam a atuar efetivamente na realidade social - podem emergir para orientar práxis políticas inovadoras. As formas de organização subjetiva são fundamentadas nas concepções de mundo presentes no contexto social e nas relações atreladas a essas, assim como possuem o poder de influenciar tais concepções. Dessa maneira, a luta por hegemonia é diretamente vinculada à produção de subjetividades em dado momento histórico.

Defendemos que os instrumentos psicossociais desempenham um papel fundamental na luta pela hegemonia em sentido gramsciano. A criação de espaços e tempos que sejam focos de resistência às relações sociais vinculadas à cultura hegemônica possibilita - a partir das contradições presentes no próprio senso comum - a elaboração de novas subjetividades, ideologias e relações. Ou seja, a luta pela hegemonia não se manifesta apenas no combate pela concepção de mundo em sua formalidade, mas também nas relações concretas vinculadas à determinada filosofia, senso comum e ideologia. As produções subjetivas e relacionais advindas da ação de instrumentos psicossociais abrem caminho para a emersão de novas formas de práxis política.

Sobre a relação entre transformação social e ação dos sujeitos, Gramsci (2007, p. 1878, tradução nossa) escreve:

Se de fato o indivíduo, para mudar, precisa que toda a sociedade tenha mudado antes dele, mecanicamente, por quem sabe que força extra-humana, nenhuma mudança jamais ocorreria. A história, por outro lado, é uma contínua luta de indivíduos e grupos para mudar o que existe em cada momento dado.

Dimensões fundantes

O campo de potência é composto por três dimensões que se interlaçam em sua produção: práxis política; potência de agir; aprendizado e desenvolvimento. Abordaremos sucintamente cada uma de tais dimensões a seguir.

A práxis política será entendida como ação intencional que visa a atuar sobre o humano enquanto ser social, ou seja, sobre relações sociais, políticas e/ou econômicas (Rosa, 2017; Sánchez Vázquez, 2007). Deve-se evidenciar que a forma de práxis a ser produzida pela atuação psicossocial proposta é criativa, reflexiva, democrática, emancipadora, focada na potência (potentia) e não no poder (potestas) (Goddard, 2011; Hardt & Negri, 2017). A produção de uma práxis política com tais características multitudinárias se dá pelo entrelaçamento de elementos de cunho cognitivo, afetivo e político - como defendem Domenico Uhng Hur e José Sabucedo (2019). Jacquelien Van Stekelenburg e Bert Klandermans (2017) são exemplos de autores que contribuem com a ação de psicólogos(as) políticos(as) sobre a práxis política ao elencar - entre outras definições - as principais motivações para o engajamento de indivíduos em protestos e movimentos sociais: motivações instrumentais, motivações identitárias e motivações expressivas.

Bader Sawaia (2014) defende a aproximação da psicologia sócio-histórica a Espinosa. Segundo a autora, o entendimento espinosano dos afetos seria de grande relevância para a construção de uma psicologia social crítica. Barusch Espinosa (2015; Deleuze, 2002) escreve que o encontro do corpo com algo que o compõe - bom encontro - aumenta a sua potência de agir e produz afetos alegres. Por sua vez, quando o corpo se depara com algo que o decompõe - mau encontro - sua potência de agir é diminuída e afetos tristes são suscitados. A concepção espinosana de afetos é profundamente política, pois sujeitos com baixa potência de agir seriam aqueles propensos à servidão enquanto aqueles cujos corpos estão potentes seriam mais aptos como sujeitos políticos ativos (Sawaia, 2014). A participação em movimentos sociais e protestos certamente depende da capacidade de se indignar e se enfurecer diante de determinadas situações consideradas injustas (van Stekelenburg & Klandermans, 2017). No entanto, a práxis política se enfraqueceria e poderia perder seu caráter emancipador se pautada apenas em afetos tristes. É necessário que bons encontros potencializem os corpos e mentes dos sujeitos, bons encontros produtores de saúde ético-política (Souza & Sawaia, 2016). Tais encontros podem ser suscitados em espaços de expressão de identidade coletiva, momentos de acolhimento mútuo, formações, místicas, situações festivas, atividades lúdicas planejadas ou não, entre outros tantos. Como escreve Michel Foucault (2010, p. 104): “Não imaginem que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo se o que se combate é abominável”.

Por sua vez, os processos de aprendizado e desenvolvimento implicam mudanças quanti e qualitativas nas relações e subjetividades dos sujeitos (Vygotski, 1997, 2004). No que se refere à nossa proposta de atuação psicossocial, defendemos a importância de construir situações em que produções subjetivas e relacionais democráticas e democratizantes sejam suscitadas, ou seja, situações que favoreçam a imersão de subjetividades mais potentes, diversas, conscientes e ativas. As transformações pretendidas são alcançadas prioritariamente por mudanças nas formas de relações dentro dos grupos. A formação teórica dos participantes é certamente fundamental, no entanto ressaltamos a importância de se constituir espaços e métodos concretamente democráticos e conscientizadores, nos quais novas produções psicossociais possam emergir (Lewin, 2005). Nesse sentido, as propostas de educação problematizadora e ação dialógica de Freire (2016), assim como as tarefas urgentes da psicologia latino-americana da libertação defendidas por Ignácio Martin-Baró (2009) e o modelo psicossocial de consciência política de Salvador Sandoval e Alessandro Silva (2016) tornam-se importantes instrumentos para a atuação do(a) psicólogo(a) político(a).

Campo de potência e ocupações estudantis

No segundo semestre de 2015, estudantes secundaristas paulistas ocuparam suas escolas contra uma proposta - do governo estadual - de reorganização que previa o fechamento de mais de noventa (90) escolas - afetando aproximadamente setenta e quatro (74) mil professores e trezentos e onze (311) mil estudantes. A ação estudantil teve como forte influência o movimento chileno que ficou conhecido como a “Rebelião dos Pinguins” (Aguilera Ruiz, 2011). Contra a reorganização escolar proposta pelo governo estadual, mais de duzentas (200) escolas foram ocupadas. Por sua vez, sob inspiração do movimento do ano anterior, ocorreram novas ocupações no estado de São Paulo em 2016. No segundo semestre, emergiu um movimento nacional de ocupações que possuía como principais pautas: a rejeição à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241 e à Reforma do Ensino Médio (MP 746). Mais de mil e cem (1100) instituições de ensino foram ocupadas por todo o Brasil em 2016. O movimento de 2015 conseguiu evitar a reorganização escolar naquele ano, porém tanto a PEC 241 como a MP 746 acabaram por ser aprovadas.

As ocupações escolares abordadas acima tiveram como pauta geral a defesa da educação pública, gratuita e de qualidade (Rosa, 2019). Segundo os(as) estudantes, as mobilizações se deram contra projetos que, por meio de medidas diversas, resultariam no sucateamento da educação pública - medidas essas de caráter predominantemente neoliberal (Corti, Corrachano, & Alves, 2018). Contra tais propostas privatistas os(as) jovens pautam o comum (Santos & Segurado, 2016). A educação pública é defendida como bem comum da sociedade brasileira e os(as) estudantes acreditam que todas e todos devem possuir tal direito. De forma geral, suas mobilizações se contrapõem a um modelo neoliberal privatista em prol de um modelo predominantemente comunitário. Além do comum se manifestar por meio das reivindicações do movimento, ele também se expressa no próprio processo de luta e organização política. As ocupações evidenciaram a diferença entre espaços públicos e espaços comuns. As instituições de ensino, ainda que públicas, possuem, em sua maioria, caraterísticas autoritárias e pouca abertura à participação dos(as) alunos(as) em sua gestão e da comunidade em suas atividades. Durante as ocupações, as instituições foram geridas coletivamente e, em muitos momentos, estiveram abertas a toda comunidade, houve um significativo processo de “comunização” do espaço. À lógica mercantil e competitiva preconizada pelo neoliberalismo, os(as) estudantes contrapõem a lógica comunitária presente nas ocupações. Segundo Santos e Segurado (2016, p. 9), o movimento se classifica entre as “novas práticas democráticas, construídas e desenvolvidas no e pelo espaço comum”.

Algumas características frequentemente vinculadas à juventude (Groppo, 2015) podem ser encontradas nos processos de ocupações pesquisados. A participação no movimento foi responsável pela constituição de diversas identidades pessoais e sociais. A ação política criou fortes laços entre os(as) jovens, assim como os(as) fez ter uma diferente imagem de si mesmos(as): na maioria dos casos estudados, uma autoimagem mais potente. A presença da tecnologia de comunicação foi marcante antes, durante e após o processo. O movimento contou com forte articulação entre espaços virtuais e reais, produzindo espaços públicos híbridos (Costa & Groppo, 2018). As ocupações também foram locais de questionamento e não adaptação aos padrões sociais hegemônicos. Os(as) estudantes tiveram oportunidade de gerir suas escolas de maneira não convencional, experimentar diferentes arranjos relacionais, praticar diferentes papéis sociais. As ações dos(as) jovens se estabeleceram como contra-hegemônicas em diversos aspectos: diferentes conhecimentos e ideias foram disseminados, mas também houve produção de afetos e relações insurgentes.

As ocupações podem ser entendidas como instrumentos psicossociais, pois, por meio de suas características situacionais, favoreceram a produção de subjetividades e relações improváveis em outros contextos. Importante ressaltar que instrumentos psicossociais não determinam práticas, relações ou produções subjetivas, mas influenciam em certas direções e favorecem dados aspectos. As características do ambiente físico e social das ocupações geraram um campo, ou seja, “uma totalidade de fatos coexistentes que são concebidos como mutuamente dependentes” (Lewin, 1951, p. 240).

Durante os processos de ocupação os(as) estudantes tiveram sua saúde física e psíquica ameaçada. Foram inúmeras situações de estresse, pressão e violência - principalmente simbólica, mas também física. Porém, os(as) estudantes foram capazes de criar momentos e espaços produtores de potência de agir e saúde. Esses momentos foram intencionalmente planejados como atividades específicas ou aconteceram espontaneamente durante o dia a dia das ocupações. Os diferentes sujeitos se sentiam potencializados em diferentes situações, o movimento foi capaz de abarcar as singularidades dos(as) jovens criando vivências promotoras de saúde. Vivências que se deram em saraus, brincadeiras, rodas de conversa, reuniões, oficinas, palestras etc. Entre outras coisas, as ocupações agiram como mecanismos de fortalecimento de processos de resiliência (Infante, 2005). Os movimentos também se comportaram como dispositivos de produção de esperança coletiva contra o estado, em que muitos(as) estudantes se encontravam, de desamparo aprendido e resignação (Seligman, 1975). Em suma, os movimentos foram capazes de se constituir enquanto campos de potência de agir e saúde ético-política.

Os(as) participantes da pesquisa relatam profundas mudanças em suas formas de sentir, pensar e agir no mundo. Segundo eles(as), participar das ocupações fez com que eles(as) se transformassem: na maioria dos casos os(as) tornou mais confiantes, mais ativos(as), mais críticos(as). A consciência política (Sandoval & Silva, 2016) dos(as) jovens foi fortalecida durante esse processo. Podemos entender as ocupações como situações sociais de desenvolvimento - definição de Vigotski (1997) - que favoreceram a produção de subjetividades e relações democráticas e democratizantes. Diante das hierarquias e autoritarismos institucionais, os(as) alunos(as) propõem espaços criativos horizontalizados. A partir dos conflitos e tensões gerados pelas ocupações, os(as) estudantes puderam fortalecer praticamente suas capacidades de diálogo, negociação e resistência. O desenvolvimento e o aprendizado dos(as) jovens não estavam entre os objetivos finais das ocupações, não constavam em suas cartas de reivindicações ou manifestos. No entanto, ao final do movimento, muitos dos(as) participantes reconhecem que as transformações que eles(as) e seus(as) colegas sofreram foram ainda mais importantes que as próprias vitórias materiais alcançadas. Assim como a promoção de potência de agir, a produção de subjetividades e relações democráticas e democratizantes se tornou um objetivo processual de fundamental importância durante o movimento. Muitos dos espaços e tempos das ocupações constituíram-se enquanto campos de democratização psicossocial.

A práxis política realizada durante as ocupações estudantis foi predominantemente criativa e reflexiva. Os(as) jovens refletiam constantemente sobre seus objetivos e repertórios. Havia uma frequente tentativa de inovar nas formas de ação e organização. Criatividade e capacidade reflexiva são características presentes também em movimentos ditos multitudinários (Hardt & Negri, 2017). Segundo Negri (2004, p. 18)

a multidão constitui um ator social ativo, uma multiplicidade que age. Diferentemente de povo, a multidão não é uma unidade mas, em contraste com as massas e a plebe, podemos vê-la como algo organizado. Trata-se, na verdade, de um ator ativo da auto-organização.

A ação política dos(as) jovens durante as ocupações negava a centralização do poder e buscava evitar a personificação de lideranças. Como proposta sempre em desenvolvimento, os(as) estudantes visavam a democratizar os processos de tomada de decisão por meio de assembleias e reuniões abertas. Tais processos deveriam não subjugar a diferença em nome da unidade, mas extrair a força e as possibilidades existentes nas singularidades e na multiplicidade. Foi marcante nas ocupações seu foco predominante na potência (potentia) e não no poder (potestas). A práxis política dos(as) estudantes foi estruturada não através de poder de dominação constituído, mas sim tendo como fundamento a potência constituinte e criativa do movimento.

Entre os(as) próprios(as) estudantes houve dificuldades para se efetivar modelos de autogestão que priorizassem a potência ao poder. A hegemonia cultural e política de organizações sociais hierárquicas e autoritárias se manifesta também no drama subjetivo dos(as) jovens militantes. O processo de instituir um espaço potente de autogestão é ao mesmo tempo o processo de se constituir enquanto sujeito potente, democrático e livre. As relações sociais e políticas se constituem dialeticamente com a produção de subjetividades e práxis. As ações dos(as) jovens durante as ocupações não apenas geram resultados políticos mais ou menos exitosos ao seu término, mas também foram responsáveis - durante seus desdobramentos - pela produção de um campo de práxis política multitudinária.

As vivências dos(as) estudantes junto ao ambiente físico e social das ocupações favoreceram: (a) aumento da potência de agir; (b) produção de subjetividades e relações democráticas e democratizantes; e (c) realização de práxis política com características multitudinárias. Contudo, isso não denota que esses ambientes estiveram isentos de maus encontros, autoritarismos ou práticas burocráticas, mas, sim, que existia prevalência daqueles elementos sobre estes. O instrumento psicossocial representado pelas ocupações é uma síntese de três diferentes campos, ou seja, é um campo de potência de agir, democratização psicossocial e práxis política multitudinária. Chamaremos a essa síntese, abreviadamente, de campo de potência1.

Três dimensões inter-relacionadas e interdependentes compõem campos de potência; são elas: potência de agir, aprendizado e desenvolvimento e práxis política. Ainda que essas três dimensões se entrelacem e se constituam mutuamente, o olhar específico a partir de cada uma delas abre possibilidades analíticas relevantes. Nas situações abordadas em nossa pesquisa, entende-se que a práxis política seja a dimensão primária. Isso se dá, pois foram questões relacionadas à práxis política que ensejaram o surgimento dos contextos de ocupação e as possibilidades de desdobramentos das outras dimensões. No decorrer dos movimentos, a primariedade das dimensões pode ter se modificado. Em dados momentos, é crível que o aprendizado, desenvolvimento e/ou a potência de agir dos(as) jovens tenham passado a ser prioritários em relação ao próprio objetivo político inicial.

Hardt e Negri (2017) defendem que as armas usadas pelos movimentos sociais e políticos podem apontar em duas direções: para dentro e para fora. Quando apontam para fora, as armas possuem a intenção de defender os(as) membros dos movimentos das várias formas de violência cometidas por seus adversários - desde guerras até a violência do preconceito e da pobreza. No entanto, as armas podem possuir características produtivas e servir, internamente, para “construir autonomia, inventar novas formas de vida e criar novas relações sociais” (Hardt & Negri, 2017, p. 270, tradução nossa). Dessa maneira, pode-se entender campos de potência como armas majoritariamente produtivas direcionadas para dentro do próprio movimento. Importante evidenciar que não estamos favorecendo uma posição passiva diante dos adversários, a luta e a resistência são fundamentais no processo de práxis política. O que se propõe é que a verdadeira força dos movimentos - inclusive a força para se defender dos mais diversos ataques - vem de sua organização interna, é resultado de seu momento criativo de produção de novas formas de pensar, sentir e agir no mundo. Os(as) estudantes utilizaram armas diversas - defensivas e produtivas - durante o movimento: desde manifestações de rua e a tomada das escolas até a realização de debates, saraus e brincadeiras. As armas dos(as) jovens não eram disseminadoras de violência e morte, mas predominantemente produtoras de potência e vida.

É possível identificar, na última década, movimentos que poderiam ser utilizados como exemplos de produção de campos de potência. Movimentos como Occupy Wall Street (USA), Los Indignados (Espanha) e a ocupação da Praça Tahrir (Egito) produziram ambientes nos quais seus membros foram capazes de criar, juntos(as), práxis política multitudinária, potência de agir e democratização psicossocial. Uma multiplicidade de características constituiu cada campo: ocupações de espaços públicos, convivência diária, autogestão, demonstrações coletivas, objetivos e emoções compartilhados, entre outras. Subjetividades poderosas - aptas a relações democráticas e ações em defesa do comum - foram produzidas em tais mobilizações. Segundo Manuel Castells (2013), esses movimentos terão como principal legado a afirmação da possibilidade de reaprendermos a conviver de uma forma verdadeiramente democrática.

Marilena Chauí2 compara as ocupações estudantis com o “maio de 68” na França. De fato, há alguns relatos sobre o movimento francês que possuem significativa semelhança com nossa proposta conceitual.

Através da transformação do meio ambiente, as próprias pessoas se transformaram. Aqueles que nunca se atreveram a dizer nada, de repente sentiam como se seus pensamentos fossem os mais importantes do mundo - e então os expressavam. O tímido tornou-se comunicativo. O desamparado e isolado de repente descobriu que a força coletiva se encontra em suas mãos. O tradicionalmente apático de repente se engajou intensamente. Uma tremenda onda de comunidade e coesão apanhou aqueles que anteriormente se achavam impotentes e isolados como se fossem marionetes dominadas por instituições que eles não poderiam compreender nem controlar. (Solidarity, 2008, pp. 48-49)

O trecho acima sobre o maio de 1968 em Paris poderia ser utilizado como uma definição prática de campo de potência. Vários outros conceitos se aproximam e se relacionam a nossa proposta. Podemos citar a ideia de “espaços livres” - free spaces - e suas variações: “havens”, “halfway houses”, “sequestered social sites”, “spheres of cultural autonomy” (Polletta, 1999; Polletta & Jaspers, 2001). Segundo Francesca Polletta (1999), os “espaços livres”, assim como seus conceitos análogos, dizem respeito a ambientes, dentro de comunidades ou movimentos, que estão fora do controle direto dos grupos dominantes, possuem participação voluntária e geram produção cultural contra-hegemônica que precede ou acompanha determinada mobilização política. Por sua vez, Shah-Shuja propõe o conceito de Zona de Desenvolvimento Proletário, o qual “se refere tanto a um espaço de luta, quanto a uma atividade (greves, manifestações, etc.), em que há atividades colaborativas e sociais que possibilitam a suspensão temporária da alienação e possibilitam relações de promoção de desenvolvimento psicológico” (Lacerda, 2009, p. 172). Também pode ser citada a proposta não definitivamente definida de Zona Autônoma Temporária (Bey, 2001). Esses diversos “conceitos-irmãos” abarcam características existentes no campo de potência, mas não se identificam completamente com ele ou entre si.

Considerações finais

Por meio do estudo da práxis política de estudantes durante movimentos de ocupações escolares, desenvolvemos a proposta conceitual de campo de potência. Tal proposta emerge a partir do concreto pensado que se constituiu ao longo de nosso trabalho. Consideramos que o campo de potência abre possibilidades analíticas e interventivas úteis para movimentos sociais e coletivos democráticos. Certamente as ocupações não podem ser utilizadas como modelos universais para ações políticas em diferentes momentos e contextos - os(as) próprios(as) estudantes já questionavam a sua pertinência em 2016. Porém, olhar para um movimento social a partir de sua capacidade de produção de potência de agir, aprendizado/desenvolvimento e práxis política pode contribuir para sua organização, elaboração de repertórios de ação e estabelecimento de objetivos processuais e finais.

Além disso, ao se entender a luta política de forma ampliada, ou seja, permeando todas as esferas sociais, deve-se assumir que não é apenas em movimentos sociais que se torna pertinente a produção de campos de potência. Tais campos podem caracterizar-se como importantes para o estabelecimento de uma nova hegemonia, a qual não será fundada apenas em conceitos cognitivamente estabelecidos, mas também em determinadas relações, roteiros subjetivos, afetos e práticas concretas. Assim, a guerra de posição travada nas trincheiras da sociedade civil pode ter o campo de potência como relevante arma. É possível estabelecer ambientes nos quais, a partir das contradições presentes no próprio senso comum, as vivências das pessoas gerem - de maneira contra hegemônica - aumento de potência de agir, democratização psicossocial e práxis política multitudinária. A organização de tais ambientes deve ser pensada segundo as singularidades de seus sujeitos e objetivos. Diferentes espaços fazem com que diferentes dimensões do campo de potência sejam priorizadas: na área da educação possivelmente o aprendizado e desenvolvimento sejam prioritários; em partidos, provavelmente a práxis política terá prioridade; assim como, em espaços de saúde, a potência de agir pode assumir protagonismo. Porém, é fundamental, seja em qual espaço for, que se entenda as três dimensões como permeadas umas pelas outras e constituindo-se mutuamente. Assim, mesmo diante de conjunturas desfavoráveis e projetos autoritários, abrem-se possibilidades para atuar cotidianamente, como escreve Freire (2016, p. 253), em prol da “criação de um mundo em que seja menos difícil amar”.

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Notas

  • 1
    O termo “potência” utilizado na definição “campo de potência” não se refere à potência de agir, a qual é apenas uma das suas três dimensões.
  • 2
    Recuperado de http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Sociedade-brasileira-violencia-e-autoritarismo-por-todos-os-lados/4/35548.
  • Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq): Processo nº 140179/2015-1 e Processo SWE: nº 205265/2017-0.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2020
  • Revisado
    28 Ago 2020
  • Aceito
    20 Set 2020
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