Resumo:
Neste artigo, partimos de uma preocupação com a Contrarreforma Psiquiátrica em curso no Brasil para tratar das relações entre a morte e o Hospício. Operando com a abordagem teórico-metodológica da cartografia, tomamos como principais referências textos elaborados por pessoas que estiveram internadas em Hospitais Psiquiátricos entre os séculos XX e XXI, abordando questões de gênero, raça e classe de maneira encarnada. As articulações entre a morte e a cultura manicomial se apresentam, desde os escritos da experiência, na desvalorização da vida, no suicídio, no assassinato, no abuso do eletrochoque e dos medicamentos, no abandono, na cronificação e no silenciamento dos corpos hospiciados. O Hospício se mostra aqui como mais uma peça da necropolítica brasileira, fazendo com que o retorno do seu fortalecimento nos convoque a agir, como ensina o Movimento Antimanicomial, novamente em direção a uma sociedade sem manicômios.
Palavras-chave: Hospitais Psiquiátricos; Morte; Literatura; Saúde Mental; Movimento de Luta Antimanicomial
Resumen:
En este artículo, partimos de una preocupación por la Contrarreforma Psiquiátrica en curso en Brasil para abordar las relaciones entre muerte y Manicomio. Operando con el enfoque teórico-metodológico de la cartografía, tomamos como referencias principales textos escritos por personas que estuvieron internadas en Hospitales Psiquiátricos entre los siglos XX y XXI, abordando cuestiones de género, raza y clase de manera corporeizada. Las articulaciones entre muerte y cultura del manicomio se presentan, a partir de los escritos de la experiencia, en la desvalorización de la vida, el suicidio, el asesinato, el abuso de electroshocks y medicamentos, el abandono, la cronificación y el silenciamiento de los cuerpos hospitalizados. El Manicomio se muestra aquí como una pieza más de la necropolítica brasileña, haciendo que el retorno de su fortalecimiento nos llame a actuar, como enseña el Movimiento Antimanicomial, una vez más hacia una sociedad sin manicomios.
Palabras clave: Hospitales Psiquiátricos; Muerte; Literatura; Salud Mental; Movimiento de Lucha contra el Manicomio.
Abstract:
In this article, we start from a concern with the Psychiatric Counter-Reform underway in Brazil to address the relationship between death and the Asylum. Operating with the theoretical-methodological approach of cartography, we take as main references texts written by people who were hospitalized in Psychiatric Hospitals between the 20th and 21st centuries, addressing issues of gender, race and class in an embodied way. The articulations between death and asylum culture are presented, from the writings of experience, in the devaluation of life, suicide, murder, abuse of electroshock and medication, abandonment, chronification and silencing of hospitalized bodies. The Asylum is shown here as another piece of Brazilian necropolitics, making the return of its strengthening call us to act, as the Anti-Asylum Movement teaches, once again towards a society without asylums.
Keywords: Psychiatric Hospitals; Death; Literature; Mental Health; Anti-Asylum Movement
Alerta: conteúdo sensível
Não quero morrer, não; quero outra vida Lima Barreto (2010, p. 58)
No dia 04 de fevereiro de 2019, foi publicada a Nota Técnica nº 11, que visa à apresentação de uma “Nova Política Nacional de Saúde Mental” (Nota Técnica n. 11/2019, p. 4). Lançada no começo do mandato presidencial de Jair Messias Bolsonaro, essa nota compila portarias e resoluções que vinham sendo publicadas desde o final de 2017 - sob o mandato presidencial de Michel Temer, resultado da destituição da então presidenta Dilma Rousseff - e que apontam para um sentido contrário às políticas de cuidado comunitário preconizadas pela Reforma Psiquiátrica brasileira. Desde antes, algumas medidas já vinham sendo questionadas pelo Movimento Antimanicomial, que começavam a dar pistas do retrocesso que vem sendo chamado de Contrarreforma Psiquiátrica (Cruz, Gonçalves, & Delgado, 2020). A Nota Técnica nº 11, entretanto, é um marco desse processo por alguns motivos.
O texto é categórico ao afirmar que “a desinstitucionalização não será mais sinônimo de fechamento de leitos e de Hospitais Psiquiátricos” (Nota Técnica n. 11/2019, p. 5). Com a implantação da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei n. 10.216/2001), os manicômios vinham, efetivamente, sendo pouco a pouco extintos (Amarante, 1995), de modo que a nota cita como preocupante a escassez de leitos, sendo a nova meta o aumento de seu número. Sem questionar o modo como os serviços públicos de atenção psicossocial em liberdade vêm sendo sistematicamente sucateados, essa preocupação é justificada no texto por alguns dados que apontam um cenário que é supostamente “fruto direto dos equívocos de fechamento de leitos psiquiátricos no Brasil, nas últimas duas décadas principalmente” (Nota Técnica n. 11/2019, p. 5). Falta de saúde mental como falta de Hospício: forjando essa relação de causalidade, a nota afirma ainda que, “após nove anos, o valor pago pelas internações em Hospitais Psiquiátricos foi atualizado” (Nota Técnica n. 11/2019, p. 4).
É nas brechas da Lei nº 10.216/2001 que esse pacote de reformulações, decidido de maneira autoritária, rompendo com uma tradição de décadas de participação social na elaboração das políticas de saúde mental, encontra espaço para os interesses de associações profissionais médicas e serviços particulares que lucram com internações psiquiátricas (Maluf, 2020). Entre outros pontos, a nota anuncia que os Hospitais Psiquiátricos, agora também incluídos na RAPS, devem ser modernizados, que não há impedimento legal para a internação de crianças e adolescentes, que o Ministério da Saúde passa a financiar a compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia e que a redução de danos deixa de ser a estratégia de tratamento oficial para o uso de álcool e outras drogas, que passa a ter a permanência em abstinência como objetivo (Nota Técnica n. 11/2019). A Nova Política Nacional de Saúde Mental definitivamente não é antimanicomial.
Partindo principalmente de Michel Foucault (2006), o Hospício é frequentemente descrito como uma instituição disciplinar, criada em torno do século XIX, que objetivaria, com o avanço do capitalismo industrial, corrigir medicamente as anormalidades para adequar os corpos individuais ao funcionamento social hegemônico e para regulamentar a vida das populações, participando da tecnologia biopolítica. Sem negar esse aspecto, igualmente crucial, aqui nos interessa cartografar a experiência da dimensão necropolítica (Mbembe, 2016) dessa operação, que produz, através de um conjunto de técnicas, não necessariamente a recuperação e a assimilação, mas o abandono e a aniquilação. Nossa tarefa é investigar como o Hospício também faz parte de uma gestão política da morte, como forma de deixar e fazer morrer. Com efeito, autores como Erving Goffman (2015) e Franco Basaglia (2010) já apontaram a internação psiquiátrica como um processo de mortificação. Desde ao menos março de 2020, com a pandemia da Covid-19, causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), a morte e o isolamento social se tornaram problemas de ainda maior relevância acadêmica, nos fazendo questionar não só como políticas de saúde podem ser contraditoriamente projetadas para promover a morte, mas ainda como podemos conceber o isolamento social, importante medida de contenção da pandemia, como uma técnica de tratamento em saúde mental.
A abordagem teórico-metodológica deste estudo - elaborada no próprio percurso, não como esqueleto a ser aplicado - é inspirada na cartografia (Rolnik, 2016), que nos permite acompanhar com sensibilidade a constituição e a destruição de territórios existenciais, nos limiares entre micro e macropolítica, tendo como critério fundamental o grau de abertura para a vida. Como composição de encontros entre diferentes vozes, a cartografia absorve fontes de qualquer procedência desde que deem passagem às intensidades do corpo, como os escritos da experiência da estadia no Hospício com os quais este trabalho se desenha. É nessa direção que elaboramos uma cartografia da experiência da morte na internação psiquiátrica através dos escritos de Lima Barreto, Maura Lopes Cançado, Albertina Borges da Rocha, Stella do Patrocínio, Austregésilo Carrano Bueno e Rodrigo de Souza Leão - pessoas que estiveram internadas em Hospitais Psiquiátricos no sudeste e no sul do país entre os séculos XX e XXI - para problematizar as transformações contemporâneas nas políticas brasileiras de saúde mental. Aproximando-nos da história vista de baixo e da perspectiva de pacientes (Huertas, 2013), procuramos rachar a “pedra sepulcral do silêncio”, como Louis Althusser (1992, p. 25) nomeou a internação psiquiátrica, tratando essas narrativas não como confissões clínicas, mas como uma rede de referências potentes para pensarmos questões científicas e sociais.
Na contramão de uma leitura patologizante, a experiência, narrada em primeira pessoa, vem sendo afirmada pelos feminismos, especialmente negros, chicanos e decoloniais, em sua força não somente política, mas também epistemológica, pondo em xeque a universalidade do sujeito do conhecimento (Miñoso, 2020). Como assinalou a Carta de Bauru, escrita em 1987 pelo Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, “o manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres”.1 Por isso, em afinidade com estudos contemporâneos na área (Pereira & Passos, 2017), situamos os marcadores sociais que se inscrevem nas relações entre corpo e Hospício para que uma atenção à interseccionalidade, como elaborada pelo feminismo negro, nos possibilite encarnar as experiências aqui narradas.
O título é uma costura de fragmentos - aos modos criativos de Arthur Bispo do Rosário - dos nomes de dois livros: Hospício é deus(Cançado, 2015) e Cemitério dos vivos(Barreto, 2010). O próprio artigo é tecido não só como uma trama de trechos de escritos da experiência, mas também como uma experiência ele mesmo, na medida em que busca, mais do que informar um conteúdo, suscitar uma abertura à sensibilidade. Nesse sentido, as citações diretas ao longo do texto têm importância por seu efeito poético, considerando a capacidade, como dizia Antonin Artaud (2006) “que têm as palavras de criar ... uma música segundo o modo como são pronunciadas, independentemente de seu sentido concreto, ... de criar sob a linguagem uma corrente subterrânea de impressões” (p. 37). A não-linearidade entre as citações, aqui textualizada pela travessia entre estilhaços de temporalidades e espacialidades diversas, busca responder a uma exigência da própria ruptura propiciada pela experiência irreconciliável da passagem como paciente pelo Hospício. Isso permite a formulação de um arranjo não-individual e extra pessoal entre caminhos que se cruzam e distanciam - um texto coletivo que possa cumprir seu propósito como declaração de recusa radical das políticas de morte que nos assombram e do projeto manicomial que está ganhando novas forças no Brasil.
Vidas sem valor
No dia 14 de julho de 2017, Mário Travassos foi morto na Clínica da Gávea, Hospital Psiquiátrico particular no Rio de Janeiro. Chegara um dia antes, transferido de outro hospital. Morreu em tentativa de fuga. Várias foram as versões. Os plantonistas disseram à mãe, Luíza, que ele bateu com a cabeça. Mário tinha 39 anos de idade. Em nota divulgada, a Clínica da Gávea disse que ele morreu ao ser interceptado pela equipe. Mário era músico, tecladista e compositor. A família, indignada, procurou a polícia - a gravação das câmeras de segurança foi recuperada, mostrando um enfermeiro e um técnico de enfermagem carregando seu corpo imobilizado, com o rosto voltado para o chão. Luíza conta que Mário era um menino gentil; tomava remédios para ansiedade e fazia terapia, mas era sua primeira internação - seu corpo foi encaminhado pela clínica para o Instituto Médico Legal, sem identificação, antes que a própria família soubesse do ocorrido. De acordo com o delegado Daniel Rosa, a morte foi por asfixia - colocaram o joelho nas costas de Mário Travassos e deixaram a sua cabeça de frente para um travesseiro durante um minuto e cinco segundos, sufocando a tentativa de fuga.2
“Sinto-me sufocada. Em estado depressivo, sem nenhuma coragem para reagir” - é assim que Maura Lopes Cançado (2015, p. 139) começou o dia 08 de janeiro de 1960. Maura já estava há mais de dois meses “na seção Tillemont Fontes, Hospital Gustavo Riedel, Centro Psiquiátrico Nacional, Engenho de Dentro, Rio. Isto em linguagem clara quer dizer mesmo hospício” (Cançado, 2015, p. 27). Escrevia um diário da internação. Nessa data o ar no Hospício estava pesado, insuportável. Ainda nos primeiros dias, Maura registrara que sentia “medo. Minha vida não é importante, não sou imprescindível a alguém. Ao contrário: consideram-me inútil, até perniciosa. Socialmente não tenho nenhum valor” (Cançado, 2015, p. 37).
Internado pelas mãos da polícia no Hospital Nacional de Alienados, no Rio de Janeiro, Lima Barreto também escreveu um diário da sua estadia no Hospício. Mesmo que não tivesse mantido registro dessa internação, nunca poderiam apagar da sua memória as humilhações que sofreu ali, nem que cem anos vivesse: “Não por elas mesmo, que pouco valem; mas pela convicção que me trouxeram de que esta vida não vale nada, todas as posições falham e todas as precauções para um grande futuro são vãs” (Barreto, 2010, p. 82). E quando houve um incêndio no refeitório, em outra internação de Maura naquele mesmo Hospício, nenhuma guarda apareceu. Depois que os bombeiros apagaram o incêndio, uma guarda comentaria, rindo: “Fiquei no portão esperando para ver o que acontecia. Vir aqui dentro, eu? Só subi depois de passado o perigo. Morressem vocês, que são loucas” (Cançado, 2015, p. 73).
“Por que você não morre?”, a pergunta surgia a Rodrigo de Souza Leão (2019, p. 34), a certa altura de seu romance sobre uma internação psiquiátrica, chamado Todos os cachorros são azuis, publicado originalmente em 2008. Era assim que, de vez em quando, pensava Lima - às vezes queria matar nele mesmo todo desejo, aniquilar aos poucos a vida e desaparecer: “Esta passagem várias vezes no Hospício e outros hospitais deu-me não sei que dolorosa angústia de viver que me parece ser sem remédio a minha dor. Vejo a vida sem trova e sem saída” (Barreto, 2010, p. 83). Lima Barreto era escritor, anarquista, negro e amante dos livros. Teve que abandonar os estudos quando seu pai enlouqueceu. Como homem da família, precisava sustentá-la. Com tudo isso se endividou e bebia para se distrair. Acabou indo parar pela segunda vez no Hospício em 1919, após passar a noite vagando pelas ruas do subúrbio em delírios alcoólicos. Então ele se perguntava: “Por que a riqueza, ... coisa que, desde menino, nos dizem ser o objeto da vida, da nossa atividade na terra, não é também a causa da loucura?” (Barreto, 2010, p. 68). Tinha lá dentro um desejo vago de morte, de um aniquilamento maior do que a morte, de ver a vida esgotar-se. Certo dia, no Diário do Hospício, terminou seu registro assim:
Ontem, matou-se um doente, enforcando-se. Escrevi nas minhas notas: “Suicidou-se no Pavilhão um doente. O dia está lindo. Se voltar a terceira vez aqui, farei o mesmo. Queira Deus que seja o dia tão belo como o de hoje”. Não me animo em dizer: venceste, Galileu; mas, ao morrer, quero com um sol belo, de um belo dia de verão! (Barreto, 2010, p. 84)
O suicídio, para Maura, parecia de fato uma solução. Apesar de não se ver tentada a ele como antes, durante a internação, pensou seriamente em matar-se como a única maneira de sobreviver. Maura Lopes Cançado (2015) nasceu no interior de Minas Gerais, São Gonçalo do Abaeté. Desde criança, sabia que ia morar na cidade grande quando crescesse. Era branca e rica. Não se sentia bem uma menina. Entrou para um aeroclube aos 14 anos, onde se sentia bem, portando-se como um rapazinho. Casou-se com um aviador de 18 e logo se decepcionou. Aos 15, viu-se com o casamento desfeito e um filho sem pai. Foi quando tudo começou a ficar penoso - passou “a sofrer com brutalidade os reflexos do condicionamento imposto a uma adolescente numa sociedade burguesa” (Cançado, 2015, p. 24). Quando finalmente foi a Belo Horizonte estudar, não foi aceita no colégio e era expulsa de todos os pensionatos por conta do casamento frustrado. Pensou pela primeira vez em se matar. Os homens se aproximavam violentamente, as mulheres ditas de boa família a evitavam. Estigmatizada, aos 18 anos se internou pela primeira vez. Só depois é que foi viver no Rio de Janeiro, conseguindo trabalho no Jornal do Brasil.
Austregésilo Carrano Bueno (2004), o Austry, na narrativa da sua primeira internação no Sanatório Bom Recanto, em Curitiba, 1974, contou que seu amigo Rogério estava muito cansado dessa história de entrar e sair do Hospício por ser usuário de drogas. Rogério já havia sofrido muito, seus vinte e dois anos pareciam trinta - achava melhor tomar uma overdose do que voltar a ser internado nesses espaços que só fazem maltratar. Essas palavras doíam no íntimo de Austry. Rogério queria colocar um fim nesse martírio. Depois de diversas reinternações em diferentes lugares, Austry passou a compartilhar desse sentimento.
“Ah! Meu Deus! Que alternativa! E eu não sei morrer” (Barreto, 2010, p. 129) - escrevia Lima. Foi quando tudo ficou amarelo e Rodrigo viu Arthur Rimbaud, uma alucinação sua amiga que estava internada com ele, tentando se enforcar:
Pra que isso, Rimbaud? Deixa que detestem a gente. Deixa que joguem a gente num pulgueiro. Deixa que a vida entre agora pelos poros. Não se mate, irmão. Se você morrer, não sei o que será de mim. Penso em você pensando em mim. Rimbaud, tudo vai ficar da cor que quiser. Aqui não dá pra ver o mar. Mas você vai sair daqui.
Tudo ficou verde da cor dos olhos do meu irmão Bruno e da cor-do-mar. Do mar. Rimbaud ficou feliz e resolveu não se matar. (Leão, 2019, p. 35)
A morte e o pesadelo
Stella do Patrocínio (2001, p. 64), de dentro da Colônia Juliano Moreira, Núcleo Teixeira Brandão, aonde chegou em 1966 e de onde nunca mais sairia viva, sabia que o Hospício é um lugar de morte:
Dias semanas meses o ano inteiro Minuto segundo toda hora Dia tarde a noite inteira Querem me matarOra, desde a sua estadia em um sanatório na Tijuca, trancafiada em um quarto em condições deploráveis, Maura já ouvira contar que efetivamente doentes são mortos/as3 no Hospício. E quando ficou internada no Instituto de Psiquiatria do Centro Psiquiátrico Nacional, não era um ouvir contar. Era a seção do Hospício destinada aos casos mais agudos, em que “o número de negras era bem maior que o de brancas” (Cançado, 2015, p. 196) e as guardas eram más e relapsas, maltratando e xingando as doentes. Foi ali que, certa noite, à hora do banho, no banheiro, Maura e duas amigas, Nair e Eva, viram horrorizadas uma guarda batendo em uma “doente catatônica”. Ela morreu no dia seguinte. De repente, Rodrigo perguntou:
O que é a morte, mãe? A morte é uma novela da Globo, filho. ... Foi morto hoje no hospício da cidade o cidadão Temível Louco. O mesmo que atazanou a população do município por 15 anos. Para alguns, foi enforcado. Para outros, teve um ataque cardíaco. Desliga a tevê. É isso o dia todo. (Leão, 2019, pp. 49-50)Foi quando Austry encostou em um canto do muro, “observando aquele cenário de filme de terror” que era o Sanatório Bom Recanto - ou pelo menos aquele pavilhão, já que os que podiam pagar eram transferidos para os apartamentos: “Não sabia o que fazer... tudo ao meu redor, não! não estava acontecendo, era um pesadelo, meu Deus! Aquelas pessoas não eram reais... eu tinha que acordar!...” (Bueno, 2004, pp. 54-55). E anos depois, já no Hospital Psiquiátrico São Gerônimo, arredores de Curitiba, não mais observava - ele mesmo formava, com os outros hospiciados, “no conjunto, um magnífico cenário de filme de terror, oferecendo ao público cenas jamais captadas pelas câmeras de cinema. Só quem esteve lá poderia descrevê-las” (Bueno, 2004, p. 151). Como Lima, que, cem anos vivesse, jamais esqueceria as humilhações que sofreu no Hospício (Barreto, 2010), Austry teria que aprender a viver
com psiquiatra aplicando-me eletrochoque, enfermeiros fechando portas, comprimidos dados aos quilos diariamente. As idas ao pátio para esquentarmos nossas pulgas e muquiranas. Tudo aquilo tinha sido um sonho horrível, e eu me esforçava para esquecer. Só que, na realidade, nunca esqueceria. E com ele teria que aprender a viver. (Bueno, 2004, p. 128)
Eletrochoque e medicamentos
No rol dos ditos tratamentos, o abuso do eletrochoque e a sobremedicação dos/as hospiciados/as podem figurar entre as práticas manicomiais de morte. O livro de Austry, Canto dos malditos, começa com um “poema das 4 horas de espera para ser eletrocutado”:
Seqüelas não acabam com o tempo. Amenizam. ... Nó na garganta, choro estagnado, revolta acompanhada de longo suspiro. Ainda hoje, anos depois, a espera é por demais agoniante. Horas, minutos, segundos são eternidades martirizantes. ... É ser condenado à morte várias vezes. Quem disse que só se morre uma vez? ... A espera está acabando. Ouço barulho de rodinhas. A todo custo, quero entrar na parede. Esconder-me, fazer parte do cimento do quarto. Olhos na abertura da porta rodam a fechadura. Já não sei quem e o que sou. Acuado, tento fuga alucinante. Agarrado, imobilizado... escuto parte do meu gemido. Quem disse que só se morre uma vez? (Bueno, 2004, epígrafe)Enquanto isso, Albertina Borges da Rocha (2012), a Beta, foi juntando anotações em seus cadernos ao longo da vida. Com o que escreveu montou um livro: Meu convívio com a esquizofrenia. Ela contava que, desde que concluiu o primário, aos 11 anos, trabalhando como babá, precisou insistir muito para continuar os estudos - sua mãe criava as filhas para serem boas mães e esposas. Beta queria mais, queria estudar, trabalhar fora de casa, e insistiu na sua “teimosia em desobedecer conceitos estabelecidos” (Rocha, 2012, p. 44). Ela está viva. É branca e mora no Rio de Janeiro. “Considerada uma moça arrojada e muito livre ... num bairro do subúrbio da Central do Brasil - o Encantado” (Rocha, 2012, p. 35), casou-se e teve dois filhos - até que aos 34 anos de idade, em 1964, foi internada pela primeira vez, em crise, e a partir daí mais tantas vezes.
Algumas das suas anotações eram não só sobre os medicamentos, mas sob o efeito mortificador deles: “Segundo dia que eu me lembro de estar enterrada. Este remédio deixa a gente muito zonza... será que preciso de tanto remédio?...” (Rocha, 2012, p. 60). Tomara três pela manhã e sentia-se fraca e com muito mal-estar. Esses remédios receitados aos montes davam-na tanto desânimo que tiravam toda a ação, “dormia dia e noite... é como se tivesse morrido e não vi nada” (Rocha, 2012, p. 76). Com o tempo, Beta se pôs a pensar que esse negócio de “engole o remédio ou se não ficar direito vai tomar choque é duro, mas vai ter que ser mudado. É preciso começar a falar agora, senão vai passar nunca. Do Brasil do futuro nós já somos o Brasil do presente” (Rocha, 2012, p. 79). Começou a questionar constantemente:
A razão da ciência tem que ser repassada, pensava eu. ... Com os psicotrópicos, também sempre achei que os médicos teriam que tomar mais cuidado, necessitando com urgência verificar os efeitos colaterais dessas drogas que causam desconforto e sofrimento para o doente. Quem encontrou um doente impregnado vagando como zumbi, dentro das enfermarias, sabe do que estou falando. (Rocha, 2012, pp. 104-105)
É por isso que Stella dizia:
Fico completamente curada se eu não tomar remédio Não tomar injeção não tomar eletrochoque Eu não fico carregada de veneno Envenenada (Patrocínio, 2001, p. 150)Conversando com Rogério, no Sanatório Bom Recanto, Austry disse uma vez que “eles deveriam dar choques nesses goiabões cagados e não na gente” (Bueno, 2004, p. 93). Foi internado pela primeira vez ainda adolescente, pelas mãos de seu pai, quando a família descobriu que ele fumava maconha, em pleno AI-5 da Ditadura Militar. Austry era branco e “cabeludo”, como na época eram chamados os maconheiros nas manchetes sensacionalistas dos jornais. Cresceu um adolescente revoltado, “como a maioria dos adolescentes de classe pobre. Vendo tudo, querendo tudo e não tendo nada” (Bueno, 2004, p. 20). Lá dentro, o que lhe revoltava era não ter tido ao menos uma consulta com o médico antes de começarem as intervenções - bastou a palavra do pai para anotarem na ficha que era maconheiro, o que para o psiquiatra era motivo suficiente para eletrochoque e remédio. Goiabões ou goiabas era como eram chamados os que ficavam no canto dos malditos - que dá título ao seu livro - do pequeno pátio murado. Rogério, que naquele momento já passara por mais internações, respondeu:
- E quem garante que eles não estão desse jeito, se cagando, por causa desses choques? desses medicamentos mal administrados? desses desleixos de profissionais ... que simplesmente nos empilham aqui dentro e nos entopem de medicamentos? Quem são os responsáveis por eles estarem ali, naquele canto, reduzidos a verdadeiros mortos-vivos? A gente poderia fazer muitas perguntas. E as respostas - não seria tão difícil achá-las. Mas quem se preocupa com um monte de indivíduos que já foram até abandonados pelas famílias? A quem importa um monte de inúteis? (Bueno, 2004, pp. 93-94)
O tempo foi passando e Austry no Hospício - eletrochoque, remédio, eletrochoque, remédio - reduzido a morto-vivo, já não sentia nada:
flutuava, entrando no ostracismo. A família toda ... veio para uma visita. Assustaram-se com o autômato que encontraram. ...
Os novatos já me chamavam de crônico. ... Os do canto não me repudiavam mais. ... Minha vontade não existia mais. Não sentia nada. Era como uma folha seca. Fazia tudo que me mandavam. ...
De goiaba, os novatos já me chamavam (Bueno, 2004, pp. 116-118)
Era Austry agora o goiaba, vagando como zumbi no canto dos malditos - um doente impregnado. A quem importa um monte de inúteis? E quem disse que só se morre uma vez?
Abandono e cronificação
O abandono no Hospício mata dia por dia. Quando Austry pôde sair desse lugar “desconhecido e perigoso, do qual muito poucos voltam”, deu-se conta de que poderia ter se tornado para sempre “um dos malditos que não voltaram, e nunca voltarão. Ou, mais provável, estar morto” (Bueno, 2004, p. 123). Enchia Lima de angústia pensar que podia acabar assim: “Se me demorar mais tempo, ainda, ficarei completamente abandonado, sem cigarros, sem roupa minha, e ficarei como o Gato e o Ferraz, que aqui envelheceram ... Aceito todos os fins mas não permita Deus que o tenha um destes” (Barreto, 2010, p. 95).
Maura sabia de casos em que os/as doentes ficam abandonados/as para sempre dentro do Hospício. No Hospital Gustavo Riedel, no Centro Psiquiátrico Nacional, ficou muito amiga de Nair, “surda-muda” e inteligentíssima, a quem Maura não podia crer que considerassem psicopata: “Sua família a mantém aqui por um desses casos inexplicáveis de incompreensão humana. Então contaram um drama ao médico, arranjaram amigos influentes - prenderam-na como doida. (Não é o único caso aqui dentro.)” (Cançado, 2015, p. 78). Não era mesmo o único - dona Auda, como tantas mulheres, tinha sido internada ali porque Oscar, seu marido, ameaçou “trazer-me para este hospício se eu continuasse fazendo maluquices. ... Mas sabe, aqui parece que a gente fica pior, não acha? Eu era completamente diferente ... Agora sou uma boba. Nem sei falar, não vê?”. Maura respondeu que não, que nada. Mas dona Auda insistia que sim: “Pensa que eu não sei?”. Sim, dona Auda - “sei que sabe disto e muito mais. Se só temos uma vida, quantos anos a senhora perdeu desta vida. Vinte e tantos anos de ----, de quê? A quem pediremos conta do seu tempo roubado?” (Cançado, 2015, p. 167). Por mais delicadas que sejam as famílias, dizia Maura (Cançado, 2015, p. 52), “terminam se cansando dos parentes loucos, a morte deles sendo mesmo um alívio. É importante este lado da coisa. Mais importante ainda é a humildade imposta ao doente crônico”.
É por isso que Rodrigo tomava Haldol, “para não ter nenhuma ilusão de que morrerei louco, um dia, num lugar sujo e sem comida. É o fim de qualquer louco” (Leão, 2019, p. 16). Rodrigo de Souza Leão (2019, p. 46) era um “louco light, versão diet”, apesar do seu “problema com o chip ser punk demais” - era um rapaz branco, gozado pelos médicos por ser gordo. Chorava por não ter emprego, mulher, filhos, por estar sozinho. Mantinha blogs de poesia, fazia entrevistas e era escritor. No romance, fora internado em uma clínica particular por ter quebrado a casa toda. Rodrigo engoliu um grilo - “Isso é coisa de homem, achar que foi pego por um grilo?” (Leão, 2019, p. 42). Rodrigo engoliu um chip - “que faz com que eu faça tudo isso, até o que não quero” (Leão, 2019, p. 33). Teve o primeiro ataque aos 15 anos, chegando a passar por uma internação na Clínica da Gávea, a mesma em que Mário Travassos morreu. E a manhã daquele dia o devorava enquanto, de dentro do Hospício, escrevia o seu próprio obituário: “É melhor deixar tudo pronto. Alguém pode esquecer que eu morri” (Leão, 2019, p. 80). Rodrigo morreu internado, em 2009 - não se sabe em que circunstâncias.
Nós, que aqui estamos, nunca esqueceremos que um dia, em 1962, Stella caminhava pela rua Voluntários da Pátria, na zona sul do Rio de Janeiro, de vestido azul, sapato preto, óculos escuros e uma bolsa branca com um dinheirinho dentro para pegar dois ônibus até Copacabana. Caminhava ao lado do Luís, que passou no bar, comeu e não pagou uma refeição para Stella. Ao passarem pela porta, ela perdeu os óculos - parece que ele deu um bofetão na cara dela pros óculos pularem no chão. Caíram no chão, Stella e os óculos. Stella do Patrocínio (2001, p. 66) - “uma nega preta e crioula”, como a viriam chamar no Hospício - tinha então 21 anos de idade. Era empregada doméstica - lavava, passava, engomava, encerava, cozinhava em “casa de família”. Enquanto chorava, veio uma dona
e me botou pra dentro do Posto do Pronto Socorro perto da Praia de Botafogo, e lá, eu dentro do Pronto Socorro, ela me aplicou uma injeção, me deu um remédio, me fez um eletrochoque, me mandou tomar um banho de chuveiro, ... e aí chamou uma ambulância assistência e disse: “carreguem ela”, mas não disse pra onde, “carreguem ela”... ela achou que tinha o direito de me governar na hora, me viu sozinha, ... estou aqui como indigente, sem ter família nenhuma, morando no hospital. (Patrocínio, 2001, p. 49)
Nessa “família de cientistas” (Patrocínio, 2001, p. 67) em que agora estava, não ganhava pagamento nem ordenado. Presa no interior dessa construção nova que se transformaria em seu mundo, em sua realidade, era ali onde passaria as próximas décadas e de onde ela nunca mais sairia - até que o Hospício e a morte se infiltrassem, pouco a pouco, em seu próprio nome:
Meu nome verdadeiro é caixão enterro Cemitério defunto cadáver Esqueleto humano asilo de velhos Hospital de tudo quanto é doença Hospício (Patrocínio, 2001, p. 118)E Stella não foi a única. “Das sete da manhã às seis da tarde”, entre as doentes do Centro Psiquiátrico Nacional, “o pátio existe, sufoca, mata, oprime” (Cançado, 2015, p. 159). Dona Dalmatie, enfermeira ali dentro, contou a Maura que conheceu Maria da Graça no pátio. Ela ficava sentada em um canto, suja e triste. Não respondia quando falavam com ela - dizia convictamente ser uma caveira. Maria da Graça era linda, mineira e preta. Estava abandonada ali dentro. Quando dona Dalmatie passou a conversar com ela, tornando-se uma grande amiga, se não se extinguiu de todo seu sentimento de rejeição, deixou ao menos de se considerar caveira. Mas Maura continuava a se perguntar
quantas doentes, jogadas no pátio, devem se sentir caveira, vermes e coisas piores. ...
Se o médico nos vê conversando, mostra-se entusiasmado e diz: “Estão sendo bem tratadas, estão felizes”. Mas e as “caveiras” do pátio? Menos de dez por cento deixam o pátio. (Cançado, 2015, p. 165)
Hospício é cemitério
Enquanto, para Maura, no Centro Psiquiátrico Nacional, “o hospital era um túmulo” (Cançado, 2015, p. 71), Lima, no romance Triste fim de Policarpo Quaresma (1993) descreveu o Hospital Nacional de Alienados como uma “sepultura em vida, um semi-enterramento ... Antes uma boa morte, diziam” (Barreto, 1993, p. 59). Seu romance inacabado sobre o Hospício, intitulado justamente Cemitério dos vivos(Barreto, 2010), narra a história da internação psiquiátrica de um personagem chamado Vicente Mascarenhas, baseado em sua experiência. Foi com a escrita de Lima que aprendemos essa grafia, Hospício, com letra maiúscula. O pátio da Seção Pinel, a seção dos pobres, em que grande parte dos doentes era de “pigmentação negra”, onde tudo era de uma pobreza sem par, remetia Vicente Mascarenhas a uma “morte em vida” - era um “cemitério dos vivos” (Barreto, 2010, p. 212).
Também no diário, Lima afirmava que, sequestrado no Hospício, com suas divisões de classe e vestuário, ele só via um cemitério: “uns estão de carneiro e outros de cova rasa” (Barreto, 2010, p. 90). No Hospital Psiquiátrico São Gerônimo, Austry dizia que, entre os crônicos, “alguns eram verdadeiros zumbis, saídos de alguma tumba” (Bueno, 2004, p. 150). Quando dava nove horas da noite, remédios nas mãos, ele e os outros eram mandados “todos para suas covas” (Bueno, 2004, p. 100). Pois que no Hospício, como dizia Maura, os dormitórios “são cemitérios, onde se guardam passado e futuro de tantas vidas. Cemitérios sem flor e sem piedade: cada leito mudo é um túmulo, e eu existo entre o céu e esta dormência calada” (Cançado, 2015, p. 75). Certo dia, Rodrigo olhou o horizonte e o céu veio se abrindo: “Por que o azul do céu é tão azul aqui no hospício? ... A natureza é tão linda e lembra um cemitério” (Leão, 2019, p. 44).
E quando Maura foi ao pátio com Isabel, ocorreu-a novamente pensar na tranquilidade dos cemitérios - como ela diz, a toda família pode ser confortador, ou ao menos tolerável, visitar o túmulo de um/a parente, mas estava certa de que nenhuma resistiria visitar o pátio do Hospício. Enquanto isso, notava que a parede do pátio continha várias inscrições que pareciam ser de dona Auda: “Hospício + Bidu Sayão + Cemitério + Auda A. A. + Cemitério + Hospício + + + + +” (Cançado, 2015, p. 159). Era por isso que Rodrigo dizia que “ou eu saio morto, ou eu saio pior” (Leão, 2019, p. 55). Por delicadeza, perdeu sua vida - procurava “no obituário todo dia meu nome. Já decidi: não quero ir ao meu enterro. Como será o céu dos objetos?” (Leão, 2019, p. 70).
Cultura manicomial
Qual é a diferença, se perguntava Rodrigo, entre tratar com loucos/as ou com gente normal? - “Com quantos paus se faz a canoa da realidade? Com quantos morteiros se afunda o barco das coisas?” (Leão, 2019, p. 92) Para Vicente Mascarenhas, o corpo hospiciado, especialmente o negro e pobre, não é mais tido “na conta de gente, é um náufrago, um rebotalho da sociedade, a sua infelicidade e a desgraça podem ainda ser úteis à salvação dos outros” (Barreto, 2010, p. 245). Os/as que perturbam, contestam e combatem a estabilidade da realidade, “essas ‘verdades únicas’ que foram fincadas a qualquer custo pelos interesses de poucos” (Bueno, 2004, p. 182), antes de serem reconhecidos/as como transformadores/as, são simplesmente taxados de loucos/as. Como diria Rodrigo, “quantas coisas os governos fazem para destruir a vida dos que incomodam” (Leão, 2019, p. 28).
O Hospício cultiva a morte, mas é ao mesmo tempo algo que cultivamos através de nossas práticas, inclusive além dos muros - o Hospício é uma cultura. É a isso que Austry, que se tornou militante do Movimento Antimanicomial, nomeou “cultura manicomial”:
Práticas criminosas e torturantes se transformaram em culturas. A “cultura manicomial” é uma versão desastrada de interpretação do que é normal para mim e para a sociedade preconceituosa que me domina.
Essa cultura manicomial ... nos restringe a uma única interpretação e gera rejeição e terríveis preconceitos. O diferente deve ser isolado, escondido dos olhos sensíveis da sociedade, não deve incomodar os familiares e principalmente envergonhar a comunidade...
Como solução rápida ... confinam os debilóides, os inúteis, os anormais, as bestas humanas, os idiotas, os doentes mentais, os mongolóides, os epilépticos, os negros, os subversivos, os cabeludos, os punks, os transviados, os prostitutos, os pobres, os mendigos... Os diferentes! (Bueno, 2004, p. 168)
Para Austry, é através das práticas que cultivamos e enraizamos o Hospício - esse retângulo botânico de classificação e diagnóstico, esse campo de batalha, como dizia Michel Foucault (2006). A avalista do Hospício, de acordo com Austry, é nossa própria omissão. É também pelo nosso comodismo, pela nossa conivência que esse “sistema manicomial” se perpetua - a isso chamamos de paz, em nome de uma “bandeira vil” (Bueno, 2004, p. 78):
Esse caos ... apresenta um histórico que nos prova que os únicos beneficiados foram os donos de hospitais psiquiátricos particulares - os “empresários da loucura” -, hoje ricos e com suas famílias milionárias. Essas fortunas psiquiátricas foram conquistadas graças a falcatruas econômicas, ao confinamento, à dor, ao sangue e à morte de milhares de cidadãos brasileiros ... uma dívida de toda a sociedade. (Bueno, 2004, p. 171)
Foi de Hospício que Mário Travassos morreu.
Considerações finais
Hospício é esse pesadelo, um sonho horrível, filme de terror, cova, túmulo, tumba, sepultura - cemitério em que os corpos são medicados, impregnados, envenenados, eletrocutados, agoiabados, cronificados - humilhados, martirizados, condenados - governados, oprimidos, reduzidos - agredidos, agarrados, imobilizados, sequestrados, carregados, jogados, empilhados, enterrados, abandonados, esquecidos - sufocados, hospiciados. Os corpos hospiciados se tornam suicidáveis, morríveis, matáveis. O Hospício produz corpos como objetos, autômatos, caixões, enterros, defuntos, cadáveres, esqueletos, caveiras, zumbis, mortos - cemitérios. O Hospício produz corpos como hospícios.
Essa prática de governo dos corpos por uma cultura da morte ultrapassa o Hospício. A tecnologia manicomial é apenas mais uma peça nessa “engrenagem brutal” (Cançado, 2015, p. 11), no país que mais mata pessoas LGBT no mundo.4 No país que está entre os que mais matam mulheres violentamente no mundo. No país em que a maior parte dos homicídios é contra pessoas negras, em que os jovens negros são os principais alvos. No país que patologizou os quilombos, assim como o uso de drogas criminalizadas. No país em que as mortes por Covid-19 estão sendo desigualmente distribuídas, dependendo da raça, do território e da classe social. No país que se tornou insensível às mortes. No país que nos patologizou e matou para construir-se como país, a toda essa gente traidora e dissidente de um corpo nacional que idealizaram para nós.
Essa política de morte é uma herança de um regime escravocrata de exploração, expropriação e estupro. É uma herança cultivada, que se perpetua pelas práticas, de uma história de colonização e desmatamento das terras, de genocídio contra as bruxas, os povos indígenas e os animais. Mas nossa história é também a potência de toda resistência e recusa a essas formas de morte e mortificação, da insistência desobediente em viver na multiplicidade e nas metamorfoses do mundo. É o que nos possibilita e convoca a agir, como ensina o Movimento Antimanicomial, novamente em direção a uma sociedade sem manicômios.
Como sabemos, isso não é só história. Nada disso acabou. Quantas vezes não nos pegamos sem conseguir acreditar no que está acontecendo, como se não passasse de um pesadelo, um sonho horrível, um filme de terror? Essa é a Contrarreforma Psiquiátrica. Internação e lucro. O Hospício está sendo reinserido como horizonte no Brasil, junto ao crescimento das Comunidades Terapêuticas, em um governo ao mesmo tempo conservador e neoliberal, aliado dos/as empresários/as da loucura e de associações médicas reacionárias, e que construiu sua campanha como uma propaganda de morte, tendo a arma como gesto preferido das mãos e a bandeira nacional como estandarte. Em nome da saúde, da normalidade, da razão, da ordem, da modernidade e da civilização. Em nome da paz. Esse pesadelo, esse sonho horrível, esse filme de terror - é hoje, é aqui. Brasil é um cemitério. Hospício é Brasil.
Referências
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Notas
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1
Link para a Carta de Bauru: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/05/manifesto-de-bauru.pdf.
-
2
Sobre a morte de Mário Travassos: https://oglobo.globo.com/rio/funcionarios-de-clinica-onde-musico-morreu-sao-indiciados-por-homicidio-22475486; https://oglobo.globo.com/rio/foi-homicidio-acusa-mae-de-musico-morto-em-clinica-na-gavea-21602917.
-
3
Utilizamos a flexão de gênero “o/a” para indicar afirmações mais gerais, evitando o uso do genérico masculino. Nas citações diretas, foi mantida a grafia original das referências. O Hospício, entretanto, produz e organiza diferenças através, entre outras técnicas, de uma separação espacial entre homens e mulheres. Por isso, na maior parte das vezes, mesmo em citações indiretas, foi mantida a grafia original das referências para enfatizar o caráter generificado da internação psiquiátrica.
-
4
Durante a inspeção nacional em Hospitais Psiquiátricos de 2018, “muitos relatos apontaram violações, despreparo, preconceito e discriminação em relação à orientação sexual e à identidade de gênero” (Conselho Federal de Psicologia, 2019, p. 293).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Abr 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
31 Maio 2022 -
Revisado
02 Set 2023 -
Aceito
16 Set 2023