Acessibilidade / Reportar erro

MAPEANDO AS CONTROVÉRSIAS QUE ENVOLVEM O PROCESSO DE MEDICALIZAÇÃO DA INFÂNCIA

MAPEANDO LAS CONTROVERSIAS QUE ENVOLVEN EL PROCESO DE MEDICALIZACIÓN DE LA NIÑEZ

MAPPING THE CONTROVERSIES THAT INVOLVE HE PROCESS OF MEDICALIZATION OF CHILDHOOD

Resumo

O presente artigo tem como finalidade apresentar aspectos da discussão sobre as controvérsias presentes no processo de medicalização infantil, fruto de um estudo ainda em andamento, em um Programa de Mestrado em Psicologia1 1 Desenvolvido na Universidade Federal de São João Del Rei/MG. , orientado pela teoria Ator-Rede. Podemos observar que, no âmbito infantil, a medicalização provocou mudanças significativas, que se estendem desde o crescente aumento de seu uso até às constantes mudanças na visão de um trabalho viável com os pequenos. O brincar, visto como uma atividade não só de lazer, mas de elaboração e resolução de conflitos, está sendo, em muitos casos, relegado a um segundo plano e substituído pela medicação. Para mapear as controvérsias e entender como a rede da medicalização infantil tem sido construída, é necessário ouvir os atores envolvidos e seguir as cadeias que dão emergência a esse fenômeno.

Palavras-chave:
Medicalização da Infância; Ator-rede; Controvérsias; Despatologização

Resumen

El presente artículo tiene como finalidad presentar aspectos de la discusión sobre las controversias presentes en el proceso de medicalización infantil, fruto de un estudio, aún en marcha, en un programa de Maestría en Psicología, orientado teóricamente por la teoría Actor-Red. Podemos observar que, en el ámbito infantil, la medicalización provocó cambios significativos, que se extienden desde el creciente aumento de su uso hasta los constantes cambios en la visión de un trabajo viable con los pequeños. El juego, visto como una actividad no sólo de ocio, sino de elaboración y resolución de conflictos, está siendo, en muchos casos, relegado a un segundo plano y sustituido por la medicación. Para mapear las controversias y entender cómo la red de la medicalización infantil ha sido construida, es necesario oír a los actores involucrados y seguir las cadenas que dan emergencia a ese fenómeno.

Palabras clave:
Medicalización de la niñez; Actor-red; Disputas; Despatologización

Abstract

This article aims to present aspects of the discussion about the controversies present in the process of infantile medicalization, the result of a study, still in progress, in a Master's program in Psychology, oriented theoretically by the Ator-Rede theory. It can be observed that, in the infantile scope, the medicalization has brought about significant changes, that extend from the increasing increase of its use until the constant changes in the vision of work feasible with the small ones. Play, seen as an activity not only of leisure, but of elaboration and resolution of conflicts, is being, in many cases, relegated to the background and replaced by medication. To map the controversies and understand how the network of child medicalization has been constructed, it is necessary to listen to the actors involved and follow the chains that give emergency to this phenomenon.

Keywords:
Medicalization of Childhood; Actor-Network; Controversies; Depathologization

Tecendo a rede da controvérsia

Segundo o Fórum sobre medicalização da Educação e da Sociedade (2015Fórum sobre Medicalização da Educação e a Sociedade. (2015). Nota técnica: o consumo de psicofármacos no Brasil, dados do sistema nacional e gerenciamento de produtos controlados (ANVISA, 2007-2014). Brasília, DF: Ministério da Saúde .), atualmente, a medicalização, processo que transforma artificialmente questões do cotidiano em problemas médicos, é assunto cada vez mais abordado no cenário das políticas públicas que envolvem a saúde, a educação e a sociedade. Diversos debates, fóruns e seminários que discutem o aumento significativo do uso de medicações psiquiátricas têm sido promovidos em torno desta questão. Este aumento não diz respeito apenas aos adultos, uma vez que é alarmante o grande número de crianças que fazem uso desses medicamentos, principalmente em idade escolar, com o objetivo de aliviar ou minimizar sintomas que estariam afetando seu rendimento em sala de aula e consequentemente prejudicando o bom funcionamento das atividades escolares de um modo geral. O outro motivo para este aumento no consumo de medicamentos por parte das crianças seria a tentativa de corrigir comportamentos indesejados e que estariam colocando em risco padrões que se convencionaram chamar de normais.

As estatísticas são alarmantes. De acordo com a nota técnica deste mesmo Fórum, o consumo de Ritalina, Concerta e Venvanse, medicamentos psicoestimulantes usados para o tratamento do TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), está crescendo ano a ano, e a importação de seu princípio ativo, o metilfenidato, “que passou de 578 kg, em 2012, para 1820 kg, em 2013, um aumento de mais de 300%” (p. 4), evidencia e confirma esse aumento. De acordo com a Comissão Internacional de Controle de Narcóticos (2015International Narcotics Control Board. (2015). Report of the International Narcotics Control Board for 2014. Recuperado de http:\\www.incb.org/incb/en/publications/annual-reports/annual-report-2014.html
http:\\www.incb.org/incb/en/publications...
), este fato está diretamente relacionado ao aumento do diagnóstico e consequentemente ao erro em se fazer este diagnóstico em virtude da falta de diretrizes adequadas para estabelecê-los. De acordo com Domitrovic e Caliman (2017Domitrovic, N. & Caliman, L. (2017). As controvérsias sócio-históricas das práticas farmacológicas com o metilfenidato. Psicologia & Sociedade, 29, 1-10.), um estudo realizado no período de 2004 e 2005, feito pelo US Centers for Disease Controal, apontou que 8,4% das crianças americanas na faixa etária de 6 a 17 anos, em algum período de suas vidas já foram diagnósticas com TDAH. As práticas comerciais, como um marketing agressivo, também são apontadas como um dos pontos que favorecem o aumento do consumo.

A preocupação cresce na mesma proporção, quando se toma conhecimento de que todo esse avanço nas vendas e no diagnóstico dos transtornos não está proporcionalmente relacionado com a eficácia do tratamento, uma vez que, segundo a Anvisa (2013ANVISA. (2013). Boletim Brasileiro de Avaliação de Tecnologias em Saúde (BRATS), 23 Metilfenidato no tratamento de crianças com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Brasília, DF: Ministério da Saúde. ), o mecanismo de ação do metilfenidato não é totalmente conhecido, e os resultados do tratamento do TDAH com estimulantes à base deste princípio ativo não apresenta “qualidade metodológica” (p. 9).

Mesmo assim, a prescrição destes medicamentos continua aumentando para o tratamento de crianças e adolescentes. Analisando os dados apresentados pelo Fórum sobre medicalização da Educação e da Sociedade (2015), “a ritalina, Cloridrato de metilfenidato, registrou venda de 58.719 caixas em outubro de 2009 e 108.609 caixas em outubro de 2013, um aumento de mais de 180% em 4 anos.” (p. 6). Isto fica ainda mais sério porque, além de não se comprovar sua eficácia no tratamento, também não se conhece inteiramente sua ação no organismo, seus efeitos a longo prazo para a saúde, e as sequelas de seu uso contínuo. No mesmo boletim, há o alerta de que existem evidências de que crianças estão sendo medicadas sem necessidade ou ainda sem apresentarem sintomas do TDAH. Este dado corrobora com o que é apontado nos Anais do III Seminário Internacional sobre Educação Medicalizada de 2013, com a afirmação de que as desigualdades e as diversidades são entendidas na sociedade ocidental como transtornos ou distúrbios que deveriam ser tratadas como sendo doenças e consequentemente medicadas. Transferidos para questões médicas, os problemas de ordem social e política passaram a ser da ordem biológica e, como tal, tratados pela medicina. Com isso, os manuais de diagnósticos, os DSMs, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), utilizados para a formulação de diagnósticos dos transtornos, são apontados por diversos autores que abordaram o assunto (Aguiar, 2004Aguiar, A. A. (2004). A psiquiatria no divã: entre as ciências da vida e a medicalização da existência. Rio de Janeiro: Relume Dumará.; Freitas & Amarante, 2015Freitas, F. & Amarante, P. (2015). Medicalização em Psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz.; Whitaker, 2017Whitaker, R. (2017). Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Fiocruz .) como modelos de estigmatização, uma vez que estariam eles respondendo aos anseios de uma sociedade disciplinar, cuja preocupação está na padronização de comportamentos. Assim, por estarem diretamente a serviço de uma medicina organicista, que negligencia problemas que realmente afetam o indivíduo como um todo, os DSMs se enquadram dentro de um manual de normas e padrões de conduta e de comportamento, sem levar em consideração a diversidade e a realidade do sujeito em questão.

Segundo Freitas e Amarante (2015Freitas, F. & Amarante, P. (2015). Medicalização em Psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz.), a OMS (Organização Mundial de Saúde) define, hoje, a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença.” (p. 11). Esta definição, por si só, responderia a uma ideologia a favor de uma sociedade preocupada com a hegemonia, em que a criatividade e a produtividade seriam aliadas e justificadas a uma conformidade. Estar “completamente” bem em todos os aspectos da vida obrigaria o sujeito a uma busca constante de realização e satisfação. Além disso, poderia fazer com que as dores e os sofrimentos próprios do cotidiano fossem entendidos como patológicos e, consequentemente, passíveis de receberem tratamento, de serem medicados, pois estariam sendo considerados como transtornos.

Tal situação coloca as instituições, principalmente a escola, como uma mediadora no processo de patologização infantil, que seria o pilar necessário para a inserção da medicação na vida da criança. Posicionando-se entre a criança e os saberes médicos, os encaminhamentos, originados na instituição escolar, tornaram-se veículos de inclusão destes na indústria do adoecer e do medicar, o que mascara os conflitos evidenciados no comportamento das crianças. Estes conflitos, dentro deste discurso, são entendidos como originados mais pelo aspecto individual do que pelo político-sócio-cultural. (Collares & Moysés 1994Collares, C. A. L & Moysés, M. A. A. (1994). A transformação do espaço pedagógico em espaço clínico (a patologização da educação). Série Ideias, 23, 25-31.). Como vimos até aqui, são muitos os componentes que fazem parte dessa trama urdida em torno da patologização e medicalização infantil e discutir o fenômeno é importante para a desnaturalização do fenômeno e para a construção de novos conhecimentos.

A articulação teórica do presente trabalho se embasa nas contribuições da Teoria Ator-Rede. Desenvolvida a partir dos estudos em ciência e tecnologia, defendida principalmente por Bruno Latour, Michel Callon, John Law, entre outros, é também conhecida como Sociologia da Tradução. Para essa abordagem, toda pesquisa envolve ações de tradução, uma vez que se preocupa em investigar como atores e organizações mantêm unidos os elementos que constituem uma rede, como se mesclam e se modificam fazendo novas conexões, assumindo estabilidades provisórias ou se desfazendo. Por isso, a Teoria Ator-Rede apresenta uma perspectiva diferente a respeito do social e de como o mesmo se constrói. Ao invés de estabilizado e tomado como causa de algum fenômeno, o social é entendido em sua dinâmica e, no calor de suas controvérsias, é que pode ser explicado.

Segundo Latour (2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à teoria Ator-Rede. Salvador: Edufbba.), o social não existe a priori, não é algo definido e definível; ao contrário, é algo construído, instável, heterogêneo, formado, amalgamado, constituído de conexões, associações, alianças estabelecidas por atores humanos e não-humanos. É daí, dessas conexões, dessas alianças que se caracterizam as redes, por efeito das conexões nem sempre previstas, que emergem as associações, vocabulário que Latour prefere usar ao termo social. Seguir a controvérsia que escolhemos é como usar uma lupa para entender como as associações são performadas para produzir a rede da medicalização. O princípio de simetria que anima a Teoria Ator-Rede nos ajuda a observar o fenômeno, desconsiderando as dicotomias instaladas pela modernidade como natureza e sociedade, corpo e mente, local e global, humano e não-humano, evidenciando as articulações, as associações que se estabelecem de forma heterogênea entre os diferentes atores, neste caso, fármacos, indústria farmacêutica, psiquiatras e sua psiquiatria, DSMs, escolas, processos de aprendizagem, “distúrbios” de aprendizagem, crianças, famílias, professores, pautas institucionais, conceito de saúde, entre muitos outros “O social é uma rede heterogênea, constituída não apenas de humanos, mas também de não-humanos, de modo que ambos devem ser igualmente considerados” (Freire, 2006Freire, L. L. (2006). Seguindo Bruno Latour: notas para uma antropologia simétrica. Comum, 11(26), 46-65., p. 49). Então, não é apenas a relação em si que importa, mas também o que a rede performa. Esses vínculos, estas relações deixam rastros e é seguindo estes rastros que podemos estudar a produção dos fatos. Para Law (1992Law, J. (1992). Notas sobre a teoria do Ator-Rede: ordenamento, estratégia e heterogeneidade (F. Manso, Trad.). Recuperado de http://www.necso.ufrj.br/Trads/Notas%20sobre%20a%20teoria%20Ator-Rede.htm.
http://www.necso.ufrj.br/Trads/Notas%20s...
), se quisermos entender a mecânica do poder e da organização, devemos partir do pressuposto de que o que existe são interações e o que devemos pesquisar e estudar são os efeitos dessas interações. As questões que são formuladas se referem a como algumas dessas interações estabilizam mais que outras, conseguindo vencer e superar resistências, e como conseguem produzir reconhecimento, poder e fama. As questões que seguimos buscam descrever como a rede da medicalização se teceu, como se mantém e quais efeitos ela produz.

O método para seguir os atores

A cartografia das controvérsias foi o método escolhido para trabalhar as questões que envolveram o presente estudo. Segundo Venturini (2014Venturini, T. (2014). Mergulhando no magma: como explorar as controvérsias com a teoria Ato-Rede. Recuperado de http://www.tommasoventurini.it/wp/wp-content/uploads/2011/08/DivingInMagma.pdf
http://www.tommasoventurini.it/wp/wp-con...
), trata-se de uma versão didática da Teoria Ator-Rede, na qual os principais procedimentos são a observação e a descrição das disputas, dos debates, dos movimentos existentes em torno de assuntos que mobilizam diferentes atores. As etapas adotadas para acompanhar a controvérsia da medicalização infantil foram as sugeridas por Pedro (2010Pedro, R. (2010). Sobre redes e controvérsias: ferramentas para compor cartografias psicossociais. In A. L. Ferreira et al. (Orgs.), Teoria Ator-Rede e Psicologia (pp. 78-96). Rio de Janeiro: Nau.). A primeira etapa consistiu em buscar uma porta de entrada que possibilitasse entrar na rede e começar a seguir os atores. Neste processo, nosso primeiro contato foi com o texto “A história não contada dos distúrbios de aprendizagem” de autoria de Collares e Moysés (1992Collares, C. A. L & Moysés, M. A. A. (1992). A história não contada dos distúrbios de aprendizagem. Cadernos Cedes, 28, 31-47.), uma importante referência para esta temática. Nele, encontramos uma discussão crítica do que se convencionou chamar de distúrbio de aprendizagem, como também os vários diagnósticos atribuídos a esses distúrbios de maneira arbitrária e mal fundamentada. Por problematizar o crescente aumento do número de crianças medicalizadas em virtude desses diagnósticos, o trabalho dessas autoras possibilitou não só entrar na rede como também foi um facilitador no processo de seguir estes rastros e assim abordar outro ponto de vista a respeito desta temática.

A segunda etapa foi identificar aqueles que se constituíam como porta-vozes da rede. Uma vez que a rede é composta por inúmeros actantes humanos e não-humanos, é necessário identificar aqueles que falam pela rede, como também aqueles que se apresentam como vozes discordantes. No presente estudo, os vários actantes como a psiquiatria, a indústria farmacêutica, os Manuais de Diagnósticos, que falam pela rede provocam constantes mudanças e diversos pontos de vista. Além daqueles que atuam como defensores da medicalização, atores importantes são os próprios movimentos, tais como fóruns, pesquisas e publicações a respeito do assunto, e que deram e dão voz e espaço para os questionamentos a respeito da cientificidade dos manuais de padronização de comportamento.

A terceira etapa consistiu na busca pelos trabalhos produzidos. A partir da porta de entrada, que foi um trabalho pioneiro no registro de eventos que marcaram a problemática, procuramos mapear outros trabalhos, buscando por artigos, livros e outros tipos de produção. Para orientar este percurso, a principal questão formulada foi: “Como se dá o processo da medicalização infantil?” Para tanto, o Scientific Electronic Library Online (SciELO) foi adotado como um canal especial da busca, utilizando-se como chaves de busca termos como: “medicalização infantil”, “patologização infantil”, “TDAH”, “ator-rede e medicalização” e “diagnósticos infantis”. A partir dos artigos coletados, procurou-se em suas referências novos materiais. Outro dispositivo de busca foram as redes sociais, como o Facebook, através do indexador de busca #despatologização e #desmedicalização, o que possibilitou encontrar os grupos formados em torno de trabalhos produzidos por diversos profissionais, como seminários, fóruns e novos estudos sobre o tema.

Na quarta etapa, foi realizada a tarefa de delinear as associações através do registro e da descrição das articulações estabelecidas pelos atores, pelas inscrições encontradas na etapa anterior. Para isso, realizamos primeiro a catalogação e o fichamento do material encontrado. Através do mapeamento, foram descritas as diversas articulações estabelecidas pelos atores, sem a pretensão de encerrar controvérsias, identificar ou chegar a consensos e explicações. O objetivo é, através das nossas inscrições, da escrita, seguir os delineamentos, os novos caminhos, e descrevendo as novas relações que se estabeleciam.

Destacamos, neste trabalho, aspectos relacionados ao lugar da psiquiatria como um ator importante desta rede e sua aliança com a indústria farmacêutica e, a seguir, abordamos o lugar da criança dentro deste discurso finalizando com algumas considerações.

A psiquiatria e a farmacologia na produção da patologização e medicalização

Segundo Aguiar (2004Aguiar, A. A. (2004). A psiquiatria no divã: entre as ciências da vida e a medicalização da existência. Rio de Janeiro: Relume Dumará.), Freitas e Amarante (2015Freitas, F. & Amarante, P. (2015). Medicalização em Psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz.) e Whitaker (2017Whitaker, R. (2017). Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Fiocruz .), a história da psiquiatria está atravessada pela farmacologia, e por essa foi influenciada e modificada na sua forma de entender o tratamento do sofrimento mental. Mas antes de entendermos a psiquiatria como uma especialização a parte, ela é um fazer da medicina e foi por esta via que procurou se organizar e se firmar como uma das mais procuradas na área do conhecimento a respeito do homem e de suas vicissitudes.

Ao nos valermos das inscrições relativas aos diversos estudos feitos a respeito desta interação, não teremos dúvidas das várias tentativas que foram empreendidas para explicar o fenômeno da farmacologia e do seu já consolidado lugar entre as especialidades médicas. Em determinado momento de sua trajetória, ela se apresentou mesmo como uma mediadora poderosa, fazendo com que a história da saúde sofresse uma profunda e consistente mudança em todo o mundo. A bem da verdade, na contemporaneidade, é quase impossível não se ter em mãos e com fácil acesso medicamentos para as mais variadas dores e mal-estares. Assim, ao seguirmos estes rastros, podemos descrever o mecanismo da fabricação desta aliança.

Conforme Latour (2012Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à teoria Ator-Rede. Salvador: Edufbba.), não existem grupos, mas formação de grupos. Grupos estabilizados não nos ajudam a descrever o social. O que interessa ao pesquisador para entender como se constitui o que chamamos de social são as formações de grupos que se caracterizam pela mutabilidade, heterogeneidade e instabilidade. Eles precisam de um trabalho árduo e constante para sua sobrevivência, não são estáveis, são dotados de movimento e de mudanças, pois, do contrário, deixam de existir, e necessitam de porta-vozes que falem por eles, que os representem, e são estes porta-vozes que podem conferir durabilidade a esse agrupamento. É importante lembrar que os porta-vozes não são necessariamente ou primordialmente humanos, pois os não-humanos também podem assumir este papel. Há necessidade que sejam erguidas barreiras, que sejam delimitas fronteiras, ou seja, existe um fator de comparação com os outros agrupamentos, sendo estes considerados “antigrupos”. É uma forma também de defender o grupo da ameaça de uma provável dissolução, maneira de sobreviver às pressões de grupos adversos, antagônicos. Nesses movimentos, ficam visíveis as controvérsias que podem ser descritas pelo trabalho do pesquisador.

Dentro da formação de grupos, o que podemos observar são os vínculos e principalmente os efeitos destes vínculos, as associações, o que resulta dessas associações e, então, conhecermos como o poder é gerado. Este poder também é entendido pela TAR como resultado da concentração das associações em determinados pontos de rede. Conhecer um pouco da história dos protagonistas desta formação poderá elucidar como se deu a estruturação desse vínculo.

A psiquiatria, segundo Whitaker (2017Whitaker, R. (2017). Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Fiocruz .), teve seu início marcado pela criação da Associação de Superintendentes Médicos de Instituições Norte-Americanas para Doentes Mentais, que ocorreu em 1844. Nesta época, os médicos que trabalhavam em hospícios ofereciam uma forma de tratamento denominada “terapia moral”, movimento iniciado no século XVIII em prol de um tratamento mais humano do doente mental. O tratamento obtinha bons resultados com os pacientes até que, a partir de 1800, os hospitais começaram a receber pacientes com outros distúrbios, tais como sífilis, senilidade e doenças neurológicas para os quais o tratamento moral não apresentava resultados satisfatórios.

Em virtude desse fato, outras formas de tratamento foram introduzidas e, no final da década de 1930 e início da de 1940, os mesmos se reduziam basicamente ao coma insulínico, que consistia na aplicação de uma dose alta de insulina para provocar o coma hipoglicêmico, ministrando posteriormente glicose com o intuito de trazer o paciente de volta do coma, sendo substituído posteriormente pelas terapias convulsivas com venenos ou eletrochoques, evoluindo para um tratamento mais “inovador”, a lobotomia frontal, que consistia na destruição dos lobos frontais tornando o paciente sem reação alguma. A necessidade por buscar novos tratamentos mais eficazes levou os profissionais a recorrerem ao desenvolvimento de recursos que permitiram uma efetiva intervenção física dos pacientes. Entretanto, o confinamento de pessoas indesejadas, em virtude de seus comportamentos tidos como desviantes de um padrão, também encontrou lugar dentro dos muros hospitalares, dando origem aos primórdios da eugenia.

A eugenia teve seu fortalecimento no século XX nos meios sociais e médicos e se constituía, na prática, como um processo para se obter a “raça pura”. Para tanto, normas e padrões eram estabelecidos para se alcançar o objetivo de purificação. Aqueles que não se enquadravam dentro destas normas e padrões eram considerados uma ameaça.

No Brasil, segundo Costa (1980Costa, J. F. (1980). História da Psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Campus.), a origem da eugenia está vinculada aos intelectuais da época,que sofreram forte influência dos meios europeus. Posteriormente, este conceito passou a ser apropriado pela medicina, fato que lhe proporcionou um crescimento cada vez maior nos programas de saúde mental, tornando-se seu principal objetivo, ou seja, a higiene social da raça e a higiene mental passaram a ser entendidas como uma questão de princípios. A atuação biológica aqui se referia a um conceito de raça superior que foi estabelecida em primeiro lugar pela cor da pele (os brancos) e posteriormente ou concomitantemente aos princípios morais previamente estabelecidos.

Entretanto, a psiquiatria necessitava de mais. De acordo com Whitaker (2017Whitaker, R. (2017). Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Fiocruz .), o surgimento do Thorazine (clorpromazina) foi considerado um marco que separou a psiquiatria de antes e depois, podendo ocupar então um lugar de destaque antes reservado apenas às outras especialidades médicas.

Sem dúvida, podemos observar aqui a ação de um mediador poderoso na história da origem da associação entre a psiquiatria e a farmacologia: a medicação. Esta transformou o status da psiquiatria enquanto especialidade antes considerada inferior. Foi uma forte mudança de lugar até que começou a receber críticas, e a eficácia de seu tratamento como das medicações adotadas foi colocada em dúvida. As críticas em sua falta de cientificidade foi um ataque certeiro, e Whitaker (2017Whitaker, R. (2017). Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Fiocruz .) esclarece que esses resultados serviram apenas para que a psiquiatria fizesse uma revisão de seus conceitos e garantisse sua sobrevivência, dando origem a um grupo formado por psiquiatras que iniciaram uma revolução para trazer de volta o crescimento e a posição privilegiada que havia experimentado com a descoberta das pílulas milagrosas. Assim, vários recursos são empreendidos, sendo o primeiro deles o estabelecimento de um diagnóstico, o que provocou uma verdadeira reviravolta na principal tarefa da psiquiatria. Mesmo já utilizando de recursos medicamentosos que a indústria farmacêutica não parava de fornecer, a psiquiatria necessitava de algo que a colocasse em pé de igualdade com as outras especialidades, principalmente em se tratando de uma comprovação mais científica de seus diagnósticos. Algo mais claro, mais biomédico. Havia uma incoerência entre seu manual de diagnósticos (de orientação psicanalítica) e sua prática biológica inspiradora para o tratamento que se desenvolvia a passos largos. A psiquiatria entendeu o recado e, assim, em 1980, surge o DSM-III e o movimento de remedicalização, possibilitando legitimar uma aliança com a farmacologia já consolidada com as outras especialidades da medicina.

Mas isso não bastava. Faltava uma maior visibilidade no meio social, e outros recursos e investimentos seriam necessários para que isso ocorresse. Para Whitaker (2017Whitaker, R. (2017). Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Fiocruz .), medidas mais comerciais foram tomadas como: criação de uma editora pela APA (American Psychiatric Association) com o objetivo de transmitir os conhecimentos atuais ao maior número de pessoas; criação de uma comissão para avaliação das publicações com o objetivo de observar se os autores estariam permanecendo fieis às novas concepções do grupo; preparação de profissionais que pudessem utilizar os meios de comunicação e divulgar os trabalhos e conhecimentos adquiridos. Programas de televisão e de rádio foram criados, propagandas da eficácia dos medicamentos eram veiculadas e todos os esforços de marketing tiveram retorno mais que satisfatório: a psiquiatria biológica, com todos os esforços que até hoje não deixaram de serem investidos, passou a ter lugar de destaque entre as especialidades médicas. Mesmo que, até os dias atuais, não tenha ficado clara a origem dos transtornos mentais e que a medicina não tenha conseguido comprovar sua biologicidade, os movimentos e esforços para manter a integração com a indústria farmacêutica têm se mostrado eficazes. E cada vez mais, o DSM e suas várias atualizações, como ator que entra em cena para dar suporte teórico e técnico aos procedimentos médicos, está sofrendo alterações e ganhando investimentos dos grupos interessados.

Segundo Latour (2017), os estudos científicos precisam percorrer alguns caminhos que ele denomina de circuitos para a produção e circulação de fatos, demonstrando que não é apenas no final que podemos observar o resultado da ciência, mas que todo o circuito demonstra o seu movimento. É o que ele chama de “ciência em ação”.

Como podemos perceber pelos fatos apresentados, a medicalização se constituiu como um fenômeno em rede, derivando de um sistema circulatório que se retroalimenta, tal como ocorre em outros fatos científicos e técnicos. São cinco atividades importantes, uma vez que cada uma nutre a si e às demais. Em primeiro lugar, é necessário o que ele chamou de “mobilização do mundo”, que seria o levantamento, através de equipamentos/instrumentos, de tudo o que é necessário para que se inicie o seu trabalho de captação da realidade, de como podemos deslocar o mundo para ser estudado nos laboratórios e fazer parte do local onde se desenvolvem as controvérsias. A indústria farmacêutica, com seu aparato laboratorial para a síntese dos medicamentos, estaria mais próxima deste papel. Em segundo lugar, há a necessidade de formar um grupo que defenda essa ideia ou movimento e arregimentar pares, num processo que Latour (2002Latour, B. (2002.) How to talk about the body? The normative dimension of sciences study. Recuperado de http://bruno-latour.fr/sites/default/files/77-BODY-NORMATIVE-BS-GB.pdf
http://bruno-latour.fr/sites/default/fil...
) chamou de “autonomização”. Ninguém consegue trabalhar sozinho, precisa convencer a outros profissionais a respeito daquilo que ele quer estudar, produzir, para que se formem equipes. Todos os profissionais de dentro da psiquiatria como ainda os que faziam parte de outras especialidades, como os meios acadêmicos, as revistas científicas, outros pesquisadores, precisariam ser atraídos e convencidos deste novo projeto. Em terceiro, seriam necessárias “alianças”, mobilizando interesses de instituições e grupos que antes não se relacionavam, que funcionavam em separado por não possuírem os objetivos e interesses comuns; neste caso, os financiadores dos laboratórios e instituições de pesquisa, as indústrias farmacêuticas e toda a cadeia que se formou para dar sustentação a esse empreendimento. Essas alianças unem grupos distintos, que podem ter interesses também distintos, mas que em algum ponto encontrarão vantagens semelhantes por um deslocamento de interesses. Em quarto lugar, estaria a “representação pública”, cuja principal característica seria a mobilização de pessoas comuns para a construção de uma imagem pública que reforçasse os benefícios da utilização dos fármacos. Sem dúvida, os meios de comunicação de massa e os profissionais de marketing, os manuais de diagnósticos como os DSMs e o CID (Código Internacional de Doenças) e seus formuladores se constituem em instrumentos indispensáveis no processo de formação tanto de médicos quanto de psicólogos, reforçando a importância crucial do diagnóstico para o tratamento das demandas que surgem nos consultórios. Além desse favorecimento nas academias, temos ainda os diversos trabalhos oferecidos pelos seminários, pelos programas de televisão nos quais não é raro observamos estes profissionais esclarecendo a respeito dos inúmeros sintomas listados nas páginas dos manuais, dando suporte ao processo de medicalização. Essa representação pública reforçaria os outros circuitos, dando-lhes legitimidade e fazendo surgir mais financiamentos. E é claro que aqui também podemos pontuar interesses múltiplos para que este financiamento seja liberado. O quinto circuito Latour denominou de “vínculos e nós”, caracterizando-se pela tentativa de estabilização das controvérsias, pela conservação dos materiais, pela adesão de profissionais, colegas, instituições, pessoas que estão envolvidas, assim como o público. Aqui o trabalho será de manter por mais tempo possível a estabilização das controvérsias na tentativa de manter bem atados esses nós. Nesse esforço, encontramos, sempre em produção, todos os movimentos que faz a medicina com as constantes mudanças de seus manuais, os laboratórios com as novas medicações, os cursos de formação de profissionais com a reformulação de seus currículos, ou seja, ainda não há uma estabilização, por isso se constitui em uma controvérsia que vem mobilizando inúmeros atores. Apesar do fortalecimento dessa engrenagem, que não mediu esforços para que suas bases não fossem abaladas, vozes discordantes, entretanto, não são poucas, aquecendo cada vez mais a disputa.

A criança no discurso da medicalização

Entre estas vozes discordantes, encontramos vários estudos os quais levantam dúvidas a respeito da evolução dos distúrbios, da eficácia das medicações e da precocidade dos diagnósticos. A infância vem sofrendo um grande bombardeio com relação à utilização de medicamentos em decorrência da emissão de diagnósticos cada vez mais precoces. Para Caponi (2016Caponi, S. (2016). Vigiar e medicar - o DSM-5 e os transtornos ubuescos na infância. InS. Caponi , M. F. Vásques-Valencia , &M. Verdi (Orgs.), Vigiar e medicar: estratégias de medicalização da infância (pp. 29-45). São Paulo: LiberArs .), existe uma preocupação crescente em apontar que poderão se desenvolver no futuro patologias psiquiátricas graves, comportamentos como desvios de conduta, sofrimentos do cotidiano ou pequenas anomalias. Ou seja, denuncia que o uso da medicalização pode encontrar na infância a base para o desenvolvimento de futuros transtornos na idade adulta. Com essa mesma lógica, porém no sentido inverso, o DSM-5 traz um discurso higienista em que postula que todos os distúrbios e todos os transtornos deverão ser diagnosticados precocemente nos primeiros anos de vida. Desta forma, esta nova versão consolida a patologização e a medicalização do cotidiano da vida infantil, declarando que não existem apenas transtornos próprios de desenvolvimento da vida adulta, mas que todos eles podem ser detectados na mais tenra idade, desde que se observem as pequenas alterações do comportamento da criança.

Esse discurso de prevenção legitima ainda mais a avassaladora corrente de diagnósticos atribuídos à criança, antes mesmo que ela comece a frequentar a escola. Com isso, ela se torna objeto da investigação de uma ciência normatizadora e padronizadora. De acordo com informações obtidas na página do Fórum sobre medicalização da educação e da sociedade (medicalização.org.br), no Brasil, em abril de 2017, foi sancionada a Lei de nº 13.438 que obriga a aplicação de um protocolo ou outro instrumento desenvolvido para o mesmo fim, a toda criança de até 18 meses, cujo objetivo é a detecção precoce de aspectos e sintomas do autismo que possam colocar em risco o desenvolvimento psíquico destas crianças. Tal procedimento deverá ser realizado pelo pediatra e pela família do bebê no momento da consulta. Constatamos então a evidência da legitimação do discurso de prevenção com a finalidade de propiciar o desenvolvimento de adultos sadios. Com esse discurso, os pais perdem sua capacidade de decisão com relação aos seus filhos pequenos, não lhe cabendo mais a escolha ou a decisão de submetê-los a exames para a descoberta de doenças.

Para Caliman (2016Caliman, L. (2016). Infâncias medicalizadas: para quê psicotrópicos para crianças e adolescentes? In S. Caponi, M. F. Vásques-Valencia, & M. Verdi. (Orgs.), Vigiar e medicar: estratégias de medicalização da infância (pp. 47-60). São Paulo: LiberArs.), a performance, o desempenho e o desenvolvimento baseado em padrões rigidamente estipulados motivariam a busca por motivos externos biológicos que explicariam tal ou qual comportamento ou modos de existir fora dos padrões, alheios aos dispositivos considerados normais. Estes quadros norteiam também a vida da criança na escola. Segundo Collares e Moysés (1992Collares, C. A. L & Moysés, M. A. A. (1992). A história não contada dos distúrbios de aprendizagem. Cadernos Cedes, 28, 31-47.), “distúrbios de aprendizagem remetem, obrigatoriamente, a um problema, ou, mais claramente, a uma doença que acomete o aluno - o portador - em nível individual, orgânico” (p. 31). Nesse texto de referência, as autoras fazem uma análise crítica do histórico desses distúrbios, questionando sua origem neurológica. Segundo as mesmas, existe uma distinção entre distúrbios causados por sequelas neurológicas em decorrência de processos infecciosos, traumas, AVC com consequente perda de uma capacidade ou habilidade e aqueles para os quais não existem de fato evidências verificáveis. O que as mesmas questionam, em se tratando especificamente da dislexia (perda do domínio da linguagem escrita), por exemplo, é se este fato estaria relacionado a falta das referências orgânicas que explicassem os distúrbios, mas que o tratamento estaria levando em conta como se fossem. Ou seja, mesmo não tendo comprovação adequada da existência de fatores orgânicos que demandariam um tratamento até mesmo medicamentoso, este estaria sendo indicado, remetendo, assim, a problemas individuais, comportamentos diante de situações adversas, muitas vezes gerados por inadaptação a padrões preconcebidos. A responsabilização estaria apenas no sujeito que sofre e não em outras questões de ordem mais geral, inclusive ideológicas. Às crianças estaria atribuído o fardo do “adoecer” como ainda o de ser tratada como única fonte de todo o problema. Para Luengo (2010Luengo, F. C. (2010). A vigilância punitiva: a postura dos educadores no processo de patologização e medicalização da infância. São Paulo: UNESP. Recuperado de http://books.scielo.org/id/sw26r/pdf/luengo-9788579830877.pdf
http://books.scielo.org/id/sw26r/pdf/lue...
), “pelo fato de a escola, por força do capitalismo e da industrialização, ter-se tornado uma instituição de produção e regulação social, criou‑se a necessidade de recorrer a psicofármacos no tratamento das dificuldades escolares” (p. 60). Podemos considerar a escola como mais um actante importante para a manutenção da aliança firmada entre a psiquiatria e a indústria farmacêutica. Como mediadora entre estas e as famílias, a escola ocupou um lugar de destaque ao ser responsável pelo papel de triagem que lhe confere o mercado do adoecer psíquico e de encaminhamento aos serviços públicos de saúde toda e qualquer criança cujo comportamento não estivesse dentro dos padrões estipulados para o adequado aprendizado.

Podemos observar que, no âmbito infantil, a medicalização também provocou mudanças significativas, não só no número cada vez mais crescente de seu uso, mas na mudança que ocorreu também na visão de um trabalho viável com os pequenos. O brincar, que sempre foi visto como uma atividade não só de lazer, mas de elaboração e resolução de conflitos, está sendo, aos poucos, substituído pela medicalização. Muitos podem apontar as tecnologias como responsáveis pela substituição do brincar, mas se analisarmos mais detidamente esta questão, muitas vezes, as tecnologias podem ser um instrumento, um artifício a ser usado na mediação de uma brincadeira. Já a medicalização tira da criança essa possibilidade, uma vez que a curiosidade, a criatividade, a disposição física e psicomotora, as respostas comportamentais, tão essenciais para se levar uma brincadeira adiante, ficam prejudicadas. A medicalização inibe esta capacidade, entorpece e indisponibiliza o sujeito para a interação, mesmo mediada por equipamentos eletrônicos, com os outros da brincadeira.

Em contraposição ao campo agonístico, onde estão imersas as questões da patologização e medicalização infantil, autores de diferentes correntes, numa condição já estabilizada pelo consenso, defendem o brincar como atividade fundante para o desenvolvimento e privilegiada para a manutenção da saúde psíquica. Vygotsky (2001Vygotsky, L. S. (2001). A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes. ), para citar um desses estudiosos, faz uma interligação do ato de brincar e o desenvolvimento social/cognitivo da criança. Ao brincar, a criança constrói um mundo próprio ou ordena as coisas de seu mundo de uma maneira que lhe agrada. A brincadeira não é realizada com um intuito apenas de prazer e nem apenas como uma maneira de elaborar experiências desprazerosos que provocaram, de alguma forma, sofrimento, mas também como uma condição indispensável para o processo de aprendizagem, de amadurecimento e de crescimento. Há um investimento de afeto neste ato, portanto de seriedade e de importância no desenvolvimento psíquico da infância. Ao brincar, a criança está contando uma história, revivendo uma angústia, reorganizando internamente vivências que se tornarão lembranças e crescendo, formando-se. “A criança desenvolve-se, essencialmente, através da atividade de brinquedo.” (p. 69)

Para Rodulfo (1990Rodulfo, R. (1990). O brincar e o significante: um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Porto Alegre: Artes Médicas.), não existe nada no desenvolvimento da criança que não passe pela atividade do brincar. Esta não se constitui apenas em uma atividade despretensiosa, não ocorre como algo sem importância ou por pura ociosidade, mas faz parte do desenvolvimento, entendendo mesmo que não exista este lugar passivo da criança em relação a situações do cotidiano.

Fica evidente, portanto, a função importantíssima do ato de brincar para a resolução de conflitos e para a elaboração de situações desagradáveis e adversas em relação às quais muitas crianças reagem de forma veemente, são punidas com a pecha de desatenção e hiperatividade, frequentemente recebem diagnósticos patologizantes e acabam por ser medicalizadas com os fármacos da vez. Defendemos que a brincadeira, ao contrário, seria uma forma de tratamento, mesmo fora do contexto terapêutico, mesmo fora do olhar de um profissional. É uma forma natural de comunicar, de recuperar o papel ativo, de se refazer e de formar seu eu. Substituir este ato pelo de medicalizar traz para a criança um prejuízo severo ao seu desenvolvimento psíquico, como também ao desenvolvimento de suas habilidades cognitivas. Segundo Whitaker (2017Whitaker, R. (2017). Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Fiocruz .), ao rever trabalhos de profissionais em sua investigação, ele aponta que as medicações a base de estimulantes podem afetar a capacidade de resolução de problemas e a aquisição de conhecimentos em sala de aula muitas vezes de maneira irreversível. Existe um tempo próprio de cada um, é claro, de desenvolver-se emocionalmente e cognitivamente. As medicações retardariam este processo, uma vez que inviabilizam a participação ativa do sujeito nestas atividades. É necessário o completo engajamento da criança em todos os seus momentos, e entorpecê-la tiraria dela oportunidades únicas de se desenvolver.

Ainda, segundo este autor, entre 1988 até 1994, além das medicações indicadas para o TDAH, houve enorme crescimento nas prescrições de antidepressivos para crianças e adolescentes. Quase que triplicou o número de usuários desta faixa etária usando este tipo de medicamento. Entretanto, não ficaram completamente envoltos em mistério os resultados dos testes realizados com os antidepressivos. E, neste estudo, a maior parte dos ensaios realizados com medicamentos para uso infantil não haviam chegado a resultados satisfatórios, ou seja, não alcançaram a remissão dos sintomas, de acordo com Whitaker (2017Whitaker, R. (2017). Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Fiocruz .), embora a história tenha sido manipulada e a indústria farmacêutica, usando de estratégias comerciais, tenha apresentado outros estudos. Nem mesmo órgãos responsáveis pela fiscalização da fabricação e comercialização de drogas psicoativas conhecedoras destes resultados enganosos foram capazes de inibir seu uso, deixando por conta dos próprios usuários a decisão em usar ou não tais medicações. Acontece que, a partir do momento em que a propaganda é bem articulada e que as indicações são realizadas por pessoas de confiança dos consumidores (os seus médicos), qualquer narrativa que assuma uma postura que confronte estas afirmações vai gerar prejuízos às empresas farmacêuticas e será muito inconveniente aos seus propósitos.

Mesmo com tantos estudos e tantos alertas em relação a problemas que podem causar os remédios quando usados tão precocemente, continuam aumentando tanto o número de patologias quanto os de prescrições, ficando a criança refém dessa aliança entre a medicina e a farmacologia.

Considerações finais

Ao problematizarmos as questões relativas à psicopatologização e medicalização da infância, possibilitamos que verdades sejam desconstruídas, que novos pontos de vista sejam observados e que diferentes atores sejam convocados. São novas alianças que se estabelecem em torno da polêmica que esta prática vem suscitando. As produções que resultam destes trabalhos, destas redes, vêm alimentando novas publicações científicas, e cada vez mais informações são transmitidas por meio de inúmeros canais. É a ciência interrogando a ciência. É a ciência em ação, nas palavras de Latour. Trata-se de uma controvérsia ainda distante de seu fechamento, uma vez que uma parte da contenda está assentada em investimentos de alto custo e lucros de grupos de grande poder econômico. Mas há também um grande movimento de denúncia que vem em socorro da infância patologizada e medicalizada. Defendendo essa tendência, encontramos o questionamento sobre qual concepção de homem e de mundo estamos defendendo. Para a TAR, somos atores-rede em um mundo ator-rede, fazendo conexões inesperadas, afetando e sendo afetados pelos efeitos gerados de forma nem sempre prevista. Para Latour (2002), o corpo é essa instância mediadora que a controvérsia em questão traz para o centro do debate. A criança é afetada e concomitantemente afeta seu meio provocando ações que reverberam vida afora, deixando marcas e recebendo marcas nestas trocas que não são nada inocentes ou despretensiosas. De acordo com a Teoria Ator-Rede, não existe corpo sem afecção. Ele é formado a partir de relações que estabelece com o mundo, com os objetos, com as pessoas, com os fatos e acontecimentos. Afetar e ser afetado é deixar-se modificar como também modificar o outro, o mundo; é uma construção que se estabelece pela desconstrução porque traz um novo posicionamento, um novo olhar, um novo ponto de vista no entrelaçamento com o mundo. Entendemos que a medicalização interrompe essa cadeia, pois tem o objetivo de apassivar esse corpo, tornando-o dócil às exigências do meio. Ao medicalizar a criança, essa cadeia de múltiplas afetações é bloqueada e, portanto, silenciada. Segundo Moysés (2017Moysés, M. A. A. (2017). Avaliação: instrumento de submissão ou de respeito. In Fórum construindo vidas despatologizadas. J. C. Hadler Neto & A. N. Ferreira, (Orgs.). Belo Horizonte: Casa da Educação Física, p. 54-74.), a maneira com que nos comportamos está relacionada ao momento histórico e cultural em um corpo que está constantemente em interação com o que está a sua volta, nada determinado ou prontamente adquirido, mas onde se concretiza e onde pode ser observado uma vez que sofre influências.

Esta concepção de que, mesmo aceitando as diferenças, exista um fundo, uma base universal do que seria considerado normal, faz com que acreditemos nos diversos instrumentos para medir os comportamentos, para enquadrar os resultados e para acertar as arestas, tudo isso com o objetivo de padronizar o quanto mais possível a sociedade. Este é o significado da medicalização. Além de uma simples prescrição de pílulas ou gotas, a medicalização é um ato de transformação dos corpos que teimam em se desviar, forçando-os a retornar para seu lugar de conformidade e aceitação.

Referências

  • Aguiar, A. A. (2004). A psiquiatria no divã: entre as ciências da vida e a medicalização da existência Rio de Janeiro: Relume Dumará.
  • ANVISA. (2013). Boletim Brasileiro de Avaliação de Tecnologias em Saúde (BRATS), 23 Metilfenidato no tratamento de crianças com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Brasília, DF: Ministério da Saúde.
  • Caliman, L. (2016). Infâncias medicalizadas: para quê psicotrópicos para crianças e adolescentes? In S. Caponi, M. F. Vásques-Valencia, & M. Verdi. (Orgs.), Vigiar e medicar: estratégias de medicalização da infância (pp. 47-60). São Paulo: LiberArs.
  • Caponi, S. (2016). Vigiar e medicar - o DSM-5 e os transtornos ubuescos na infância. InS. Caponi , M. F. Vásques-Valencia , &M. Verdi (Orgs.), Vigiar e medicar: estratégias de medicalização da infância (pp. 29-45). São Paulo: LiberArs .
  • Collares, C. A. L & Moysés, M. A. A. (1992). A história não contada dos distúrbios de aprendizagem. Cadernos Cedes, 28, 31-47.
  • Collares, C. A. L & Moysés, M. A. A. (1994). A transformação do espaço pedagógico em espaço clínico (a patologização da educação). Série Ideias, 23, 25-31.
  • Costa, J. F. (1980). História da Psiquiatria no Brasil Rio de Janeiro: Campus.
  • Domitrovic, N. & Caliman, L. (2017). As controvérsias sócio-históricas das práticas farmacológicas com o metilfenidato. Psicologia & Sociedade, 29, 1-10.
  • Fórum sobre Medicalização da Educação e a Sociedade. (2015). Nota técnica: o consumo de psicofármacos no Brasil, dados do sistema nacional e gerenciamento de produtos controlados (ANVISA, 2007-2014). Brasília, DF: Ministério da Saúde .
  • Freire, L. L. (2006). Seguindo Bruno Latour: notas para uma antropologia simétrica. Comum, 11(26), 46-65.
  • Freitas, F. & Amarante, P. (2015). Medicalização em Psiquiatria Rio de Janeiro: Fiocruz.
  • International Narcotics Control Board. (2015). Report of the International Narcotics Control Board for 2014. Recuperado de http:\\www.incb.org/incb/en/publications/annual-reports/annual-report-2014.html
    » http:\\www.incb.org/incb/en/publications/annual-reports/annual-report-2014.html
  • Latour, B. (2002.) How to talk about the body? The normative dimension of sciences study Recuperado de http://bruno-latour.fr/sites/default/files/77-BODY-NORMATIVE-BS-GB.pdf
    » http://bruno-latour.fr/sites/default/files/77-BODY-NORMATIVE-BS-GB.pdf
  • Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à teoria Ator-Rede Salvador: Edufbba.
  • Law, J. (1992). Notas sobre a teoria do Ator-Rede: ordenamento, estratégia e heterogeneidade (F. Manso, Trad.). Recuperado de http://www.necso.ufrj.br/Trads/Notas%20sobre%20a%20teoria%20Ator-Rede.htm
    » http://www.necso.ufrj.br/Trads/Notas%20sobre%20a%20teoria%20Ator-Rede.htm
  • Lemos, A. (2013). A comunicação das coisas: teoria ator-rede e cibercultura São Paulo: Annablume.
  • Luengo, F. C. (2010). A vigilância punitiva: a postura dos educadores no processo de patologização e medicalização da infância São Paulo: UNESP. Recuperado de http://books.scielo.org/id/sw26r/pdf/luengo-9788579830877.pdf
    » http://books.scielo.org/id/sw26r/pdf/luengo-9788579830877.pdf
  • Moysés, M. A. A. (2017). Avaliação: instrumento de submissão ou de respeito. In Fórum construindo vidas despatologizadas J. C. Hadler Neto & A. N. Ferreira, (Orgs.). Belo Horizonte: Casa da Educação Física, p. 54-74.
  • Pedro, R. (2010). Sobre redes e controvérsias: ferramentas para compor cartografias psicossociais. In A. L. Ferreira et al. (Orgs.), Teoria Ator-Rede e Psicologia (pp. 78-96). Rio de Janeiro: Nau.
  • Rodulfo, R. (1990). O brincar e o significante: um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce Porto Alegre: Artes Médicas.
  • Venturini, T. (2014). Mergulhando no magma: como explorar as controvérsias com a teoria Ato-Rede Recuperado de http://www.tommasoventurini.it/wp/wp-content/uploads/2011/08/DivingInMagma.pdf
    » http://www.tommasoventurini.it/wp/wp-content/uploads/2011/08/DivingInMagma.pdf
  • Vygotsky, L. S. (2001). A formação social da mente São Paulo: Martins Fontes.
  • Whitaker, R. (2017). Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental Rio de Janeiro: Fiocruz .
  • Financiamento: Não houve financiamento
  • Consentimento de uso de imagem: Não se aplica
  • 1
    Desenvolvido na Universidade Federal de São João Del Rei/MG.
  • 2
    Para mais detalhes acessar: http://portal.anvisa.gov.br/resultado-de-busca?p_p_id=101&p_p_lifecycle=0&p_p_state=maximized&p_p_mode=view&p_p_col_id=column1&p_p_col_count=1&_101_struts_action=%2Fasset_publisher%2Fview_content&_101_assetEntryId=412292&_101_type=document.
  • 3
    Tradução, conceito cunhado pelo filósofo Michel Serres (1999), significa estabelecer conexões e comunicações, produzindo uma passagem entre domínios, sendo mais que apenas passar de uma linguagem a outra, de um código a outro, pois alude a um processo de mediação, enfatizando um trabalho de fronteiras. Trata-se de um espaço onde ocorrem negociações e de onde as entidades, ao entrarem em contato e se afetarem mutuamente, não saem da mesma forma como entraram.
  • 4
    Segundo Lemos (2013Lemos, A. (2013). A comunicação das coisas: teoria ator-rede e cibercultura. São Paulo: Annablume.), actante é tudo aquilo que gera ação e que produz movimento gerando diferença, podendo ser humano ou não-humano. Ele não age sozinho, pois é fruto de redes e faz parte de outras redes.
  • 5
    “Os mediadores, ..., não podem ser contados como apenas um, eles podem valer por um, por nenhuma, por várias ou uma infinidade. O que entra neles nunca define exatamente o que sai, sua especificidade precisa ser levada em conta todas as vezes. Os mediadores transformam, traduzem, distorcem e modificam o significado dos elementos que supostamente veiculam.” (Latour, 2012, p. 65).
  • 6
    No dicionário online português, a definição desta palavra remete a uma alteração patológica do corpo. Aqui, manteremos esta definição de alteração, modificação que afeta o corpo sem, contudo, marcá-la como patológica apenas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2018
  • Revisado
    24 Jan 2019
  • Aceito
    29 Jan 2019
Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: revistapsisoc@gmail.com