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Sílvia por ela mesma

I – A Estética De Uma Vida

Sílvia por ela mesma

Entrevista à Maria Helena de Mendonça Coelho

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil

Em 2001, recebi a doce incumbência de entrevistar Sílvia Lane a fim de colher dados pessoais para a coleção Pioneiros da Psicologia Brasileira. Eu já vinha convivendo com Sílvia fazia alguns anos, ela foi minha orientadora no mestrado e no doutorado e eu nunca mais pude deixar de participar do núcleo que ela coordenava. O depoimento foi gravado em sua casa, durante uma agradável e absolutamente descontraída conversa. Sílvia, transparente, autêntica, sempre coincidindo com ela mesma, relembrou fatos de sua vida, com entusiasmo, bom humor, muita satisfação e com jeito de quem tinha realizado tudo o que ela realizou como se fosse a coisa mais natural do mundo, parecendo ignorar sua importância como pioneira, revolucionária e criadora.

Mais uma vez fui convidada a participar de uma comemoração à Sílvia. Lembrei das fitas gravadas, das quais foi feita uma síntese para publicação no volume 8 da coleção. Grande parte da nossa conversa não foi publicada. Pensei em fazer com que a própria Sívia falasse. Transcrevo aqui literalmente o que ela relembrou, com o jeito só dela de contar as coisas.

O Amor pela Linguagem Começou Muito Cedo

Tem uma história interessante: quando os meus avós vieram para Brasil, o irmão do meu avô foi para os Estados Unidos, para uma cidadezinha pequena em Minnessota. Meu avô veio com a minha avó. Compraram um sitiozinho perto de Campinas. Na Suíça, pequenininha, não tinha muito futuro. Tanto é que eu tenho parentes aqui, relacionados com a minha avó, que foram para a Índia. Cada um foi para uma parte do mundo. Meu tio avô insistia muito para os meus avós irem para os Estados Unidos. Quando meu avô e minha avó foram para lá, ela estava esperando o meu pai, que nasceu nos Estados Unidos. Minha avó não agüentou... acho que ficaram uns quatro anos. Ela morria de saudades do Brasil. Eles eram do norte da Suíça. (Eu fui lá conhecer a família. Foi uma das experiências mais fantásticas que eu já tive). Daí eles vieram pra cá e aqui ficaram. Tanto é que meus avós são responsáveis por eu ser bilíngüe (eu era bilíngüe, agora não posso dizer mais que sou), porque para eu me comunicar com eles era só em alemão. Compraram outro sítio perto de Campinas, para onde se mudaram. Era uma chácara, onde passei minha infância inteira praticamente. Apesar de ser filha única... os primos se encontravam nas férias. O que mais marcou a minha infância foi essa chácara, a casa dos meus avós. A gente ia em dezembro, o Natal se passava lá; em julho, as férias eram lá... Então, nós éramos quatro capetas, sempre brincando, pintando o sete...

Meu pai acabou fugindo da escola. Começou a estudar numa escola alemã. Ele diz que foi causa da úlcera que teve, porque depois do almoço, não conseguia digerir direito. Eu sei que tanto ele quanto o tio Henrique largaram de estudar. Meu pai foi trabalhar em marcenaria, o tio, com ferro. Então, não fizeram nenhuma escola secundária. Completaram a escola primária. Muitos anos mais tarde, eles resolveram fazer Madureza porque abriu um curso na USP (Universidade de São Paulo); e meu pai começou a dar aula num curso técnico do Mackenzie (Instituto Presbiteriano) (acho que eu tinha uns três anos). Ele foi pra USP e resolveu fazer faculdade de Matemática e Física, e meu tio foi fazer Filologia Românica. Posteriormente, começaram carreira acadêmica. Eu já era nascida quando ele se formou. Tenho até o quadro da formatura. Ele não foi porque o paraninfo era o Ademar de Barros. Meu pai tinha posições assim; não aceitava o Ademar de Barros e não foi à formatura. Daí ele foi para a Engenharia do Mackenzie; fundou a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras. Se aposentou pelo Mackenzie. Foi diretor da faculdade mais de dez anos.

Meus avós eram luteranos, tanto é que eu fui batizada na igreja luterana. Meu pai foi muito avesso à igreja, não freqüentava; sempre lia a bíblia, mas nunca foi de seita. Meu tio foi fazer Teologia e se formou como pastor protestante, presbiteriano. Aí ele fundou uma igreja dissidente, porque achava que não podia existir o diabo. O demônio não podia existir. Ele dizia que era impossível existir o diabo, porque se Deus era amor, como iria criar o mal? Eu discutia religião com o meu tio, discutia filologia... meu pai sempre estudando, me ajudando. Meu tio dava aula de Filologia Românica na USP.

Eu me considero privilegiada, pela minha família. Era muito interessante porque havia muito respeito entre todo mundo, ninguém se metia na vida do outro. Minha avó foi uma figura magnífica, a mãe do meu pai, que por sinal foi minha madrinha também. Com ela eu falava alemão, um dialeto suíço. Minha mãe nasceu na Lituânia, e aquilo lá era um corredor. Ela dizia que era de origem antiqüíssima, de uma tribo, sei lá... e meu tio Henrique se interessava muito pela língua desse povo, porque era a língua mais próxima do sânscrito. Tem umas coisinhas assim; não é à toa que meu amor pela linguagem começou muito cedo. Com as invasões alemães, eles foram obrigados a aprender alemão. Era um corredor de guerra, tanto que minha mãe viveu a guerra de 14 a 18 lá. Minha terapeuta costumava dizer que eu era filha da guerra. Minha mãe veio para o Brasil com o pai, que queria fazer um negócio aqui no Brasil; ele trabalhava com pedras. Ela veio só com o pai, foi em 32; ela encontra meu pai e os dois se apaixonam. Tanto é que ela deve ter vindo no início do ano, e, em outubro, eles estavam se casando. O pai não quis deixá-la sozinha e acabou não voltando. Logo em seguida estoura a guerra, e ele saiu por este mundo afora.

Um dos irmãos da minha mãe sumiu durante a guerra de 14, ninguém soube do paradeiro dele. Teria ido pra Rússia, não souberam, e daí ficaram dois irmãos, os dois mais novos; minha mãe se correspondia sempre com eles. Eu me lembro que, em quarenta e qualquer coisa, minha mãe recebe uma carta dizendo que a mãe dela tinha morrido. Eu acho que meu avô morreu pouco tempo depois que chegou a carta. Eu sei que ele era um aventureiro fora de série. Contava histórias que foi pra China, que foi não sei para onde... era um aventureiro. Isso ele fez aqui no Brasil. Cruzou por este Brasil inteiro. Não sabía-mos onde ele estava. Quando soubemos, ele estava em Ouro Fino e tinha um parque de diversões; ficou doente e avisaram a minha mãe. Eu me lembro de o meu pai ir lá para Ouro Fino, no sul de Minas, e trazê-lo para cá. Ele estava com problema de rins muito sério, foi internado, mas acabou morrendo. Era uma figura interessante, um homem forte, contador de histórias. Minha filha Ingrid acha que a família da minha mãe devia ser de ciganos, devia ter sangue cigano, alguma coisa assim.

Minha mãe não falava nada de português. Eu nasci aprendendo alemão como língua materna. Eu sei que nós paramos de falar alemão em casa durante a guerra, eu estava com uns sete anos por aí. Se você falasse alemão na rua, estava sujeito a uma pedrada ou qualquer coisa assim. E eu, muito impressionada com a guerra toda, propus, solenemente, em casa, que achava mais importante mamãe aprender a falar português Eles aceitaram, daí passamos a falar português, mais na rua e junto dos outros. Eu estudava no Mackenzie. Meu pai era professor lá, e eu tinha direito a cursar o primário.

Minha mãe veio com neurose de guerra; eu sei que precisei dar um basta, já adolescente, porque ela contava as histórias de um medo, de um pavor que ela tinha passado durante a guerra, que me arrepiavam. Uma ocasião ela estava fugindo com a mãe e o irmão menor por uma floresta, e nisso foram cercados por soldados alemães, alguma coisa assim... foi aquele susto enorme. Eles acabaram deixando porque viram que era uma senhora com duas crianças. Mas ela tinha realmente uma neurose de guerra bem acentuada. Acho que ela tinha medo de voltar e reviver todo esse período de guerra. E eu, inclusive, desde cedo vivi o drama da segunda guerra mundial. Era um negócio que realmente me assustou. Acho que o período mais difícil da minha infância foi o período da guerra.

Enfrentando as Guerras

Quando terminei o ginásio, resolvi que ia fazer Secretariado. Como filha única, eu tinha sempre muito medo de perder meus pais. E, com esse medo, tinha que me tornar auto-suficiente, dona do meu nariz o mais cedo possível. "Se eu fizer o Secretariado eu vou ter uma profissão, não vou precisar depender de tios nem tias nem nada, se acaso acontecer alguma coisa com meus pais" . Lá fui eu fazer Secretariado no Mackenzie. Era um bom curso, uma formação geral. Acho que os melhores professores fora do ginásio que eu tive foram os do Secretariado. Uma eu não esqueço jamais, que era Anita. Ela era de origem italiana e dava estenografia. A primeira coisa que ensinava para gente era: "caia sete vezes mas levante oito" . Isso eu nunca mais esqueci.

Quando me formei em Secretariado, fui trabalhar como auxiliar de secretária no Mackenzie. Eu tinha me formado bem, me convidaram, lá fui eu. Durante aquele ano que estava trabalhando estava me sentindo insatisfeita: "Eu quero continuar estudando, eu quero continuar estudando." Estudar o quê? Esse era o grande dilema. Tinha vontade de fazer Medicina, mas a parte de pesquisa médica. Eu não queria ser médica, queria ser pesquisadora: sistema nervoso central, cérebro... Queria fazer Arquitetura, achava lindo Arquitetura. Não era Engenharia, era Arquitetura. Que outra coisa eu pensei? Fazer línguas. De repente, me bate, assim, o currículo do curso de Filosofia. Eu disse" : "Ah! Está tudo aqui, está me interessando." Teria Psicologia, Ética, Estética, História da Filosofia..." Vou prestar vestibular." Fui lá para a USP. Aí eu descobri que com o curso técnico tinha que fazer duas provas a mais: Latim e História Geral, que eram duas matérias que eu não tinha tido no Secretariado, além das disciplinas regulamentares do vestibular. Lá fui eu, e fiz o vestibular. Então, parei de trabalhar, negociei com meu pai, com meus pais: "Eu estou precisando continuar estudando. Você me dá uma mesada equivalente ao salário que eu recebo?" (que não era grande coisa) "Dou" . Lá fui eu com a minha mesadinha, estudar Filosofia. No vestibular, eu não me esqueço da prova oral com Cruz Costa. Em Latim meu tio me ajudou muito, e tive um professor no cursinho que era muito bom. Passei bem. Em Historia Geral também fui bem. O sufoco foi o Cruz Costa no exame oral. As perguntas dele..."Você é parente dos Maurer; você está querendo vir resolver problemas metafísicos, de Deus, aqui no curso?" Uma menina saiu chorando do exame... Cruz Costa me marcou assim profundamente. Principalmente foi o meu grande professor de marxismo. Fez eu ler Marx (Eu já era bem de esquerda). Nós vivíamos a ditadura do Getúlio, tinha sempre alguém do DOPS (Departamento de Ordem e Política Social). Fui tesoureira do grêmio; eu participava politicamente. O Lívio Teixeira também foi um grande professor, dava História da Filosofia e cursos monográficos de História. Com Lívio eu fiz Platão, uma ano de Platão; fiz um ano de Escolástica e um ano de Spinoza. Naquela época era tudo em francês. Meu grande susto: eu entro, no primeiro ano tinha Lógica, e com quem? Com Jules Granger. Eu anotava aquilo, meio em português, meio em francês, depois chegava em casa e deslindava toda a aula dele. Bom, devo ao Granger falar francês. De tanto ouvir, aprendi. Tive sorte porque peguei o Dante Moreira Leite; dando Psicologia Diferencial peguei a Carolina. Eu acho que nós fomos a primeira turma da Carolina Bori. Antônio Cândido; a Gilda foi minha professora também. Ele, Sociologia e a Gilda Estética. O Granger deu Estética também. Com Granger nós fizemos extracurricularmente História da Música, fomos ouvindo discos e comentando. O Granger tinha uma capacidade intelectual impressionante; foi ele que nos levou à primeira Bienal. Foi realmente um curso muito interessante, muito bom. Teve a Annita Castilho Cabral que deu Gestalt adoidado. Sei que tive que ler o Koffka inteirinho, cerca de dez livros, para resumir e apresentar num seminário. Também consegui um dez [ risada] . E Annita ficou toda entusiasmada e insistiu para que eu fosse para os Estados Unidos com uma bolsa de estudos. Era uma bolsa interessante porque você não escolhia a universidade, a universidade é que te escolhia. Então o seu currículo, o seu histórico, passava pelas universidades. E o Wellesley College me ofereceu a bolsa. O Wellesley era considerado um dos sete melhores colégios femininos dos Estados Unidos. Ficava na região de Boston. E lá fui eu... Aliás, antes de ir, fui conversar com o Cruz Costa, o que ele achava, se eu devia ir ou não; conversou comigo. Ele já era mais meu amigo. Houve uma época em que eu tive uma briga com ele porque ele vivia gozando das mulheres, todo machista. "Vocês vêm tomar chá das cinco aqui no meu curso..." e não sei quê, etc. Às vezes ofendia as meninas. A turma era equilibrada entre homens e mulheres. Quem foi meu colega de curso foi o Isaías Pessoti. Nós éramos assim unha e carne naquela época, muito amigos. O Gianotti estava uma turma na minha frente, o Rui Fausto, uma turma atrás, era da turma da Maria do Carmo. Maria do Carmo também foi contemporânea. Era uma turminha brava. Mas eu sei que o Cruz Costa disse "Olha..." (disso eu nunca vou me esquecer) "por pior que seja o seu aproveitamento, nunca se esqueça que você vai ver o Brasil com outros olhos lá de fora. Só saindo do Brasil, você vai entender realmente o que é este nosso país."

E lá fui eu. "Vamos ver como é que vejo" . E, realmente, foi uma lição. Você vê seu país de longe, você começa a valorizar uma série de coisas que você não valorizava, principalmente no confronto com a cultura americana. Eu estava no quarto ano, fiz o primeiro semestre, em setembro fui para os Estados Unidos, voltei em julho do ano seguinte e fiz o segundo semestre. Então, era para me formar em 55, me formei em 56 com a turma da Loura [ Maria do Carmo Guedes] . Também, já estava trabalhando no Centro Regional de Pesquisa. Aí houve uma história atrapalhada: Annita me mandou para os Estados Unidos para voltar e ser assistente dela. Era a proposta. Fiz a besteira de escrever para uma colega minha uma carta dizendo que eu estava aproveitando de tudo menos o curso. Aproveitei algumas coisas, mas acho que aproveitei mais os cursos de Filosofia e de Arte do que a própria Psicologia. Fui aceita em seminários avançados, que seriam seminários para o mestrado, tanto é que eles me convidaram para fazer mestrado lá. Eu parei, pensei e disse "não, aqui eu vou ser uma a mais. Acho que tem muita coisa para eu aprender e fazer no Brasil." Então resolvi voltar. Mas o fato de eu ter escrito essa carta para essa menina muito espertinha, que foi mostrar para a Annita... A Annita ficou furiosa, primeiro chamou o Isaías para ser assistente dela. Isaías sabia da minha história e se recusou: "Não, esse lugar é da Sílvia" . E essa menina assumiu. Para mim foi melhor. Saí da USP.

Chego ao Brasil, e logo em seguida o Joel Martins me chama, porque o Fernando Azevedo ia instalar o Centro Regional de Pesquisas Educacionais, vinculado ao Centro Nacional, que era dirigido pelo Anísio Teixeira. E tinha outros, na Bahia, no Rio... Nós começamos a montar um Centro Regional. Era o Joel e eu, e o Renato Jardim Moreira na Sociologia, com o Perseu Abramo. Nós quatro começamos a planejar e montar as duas divisões, uma divisão educacional e outra de Sociologia. Isso eu comecei já em setembro de 56. Era autônomo, ligado ao ministério da Educação, mas funcionava no campus da USP, onde hoje é prédio da Educação, para tentar reformular o ensino no país. Em 57 a gente começou a contratar as equipes, aí eu chamei a Maria do Carmo e mais algumas pessoas, a Célia Marques que trabalhou muitos anos no canal 2; o Isaías veio trabalhar com a gente também, e tinha a equipe toda de Sociologia, junto com o Renato e o Perseu. Fiquei até 60.

A Esportista

Nessa ocasião, eu e o Fred decidimos casar. Nós éramos amigos de infância. Fomos colegas no primeiro ano primário no Mackenzie, e sempre fomos muito amigos, desde os sete anos. A mãe dele era polonesa e o pai de família inglesa e norte-americana. Quando eu tinha 18 anos, ele queria casar, e eu dizia: "Não, eu quero estudar." Quando fui para os Estados Unidos eu estava namorando outro rapaz, um francês. Ele estava louco para casar, mas eu queria estudar, e me mandei. Depois, alguns anos depois, ele foi para França, encontrou uma ex-namorada e casou. Custava esperar um pouco mais...

Quando eu estava no Centro Regional trabalhando, comecei a namorar o Fred, reatamos. Namoramos uns quatro anos, mais ou menos, e decidimos nos casar. Os pais dele iam para a Inglaterra, e a gente poderia ficar morando na casa dele. Bom, eu não tinha experiência de serviço de casa nenhum, de cozinha, de nada. Toda vida estudando ou trabalhando. Aí eu achei que não podia manter um trabalho em tempo integral como eu tinha, que era tempo integral mesmo, eu chegava às nove na cidade universitária e saía às 6, 7 horas da noite. Como é que ia conciliar casamento e esse ritmo de trabalho? Aproveitei a desculpa do casamento e saí. Pedi demissão e caí fora. Mas eu não conseguia ficar sem fazer nada Ainda ajudei a terminar umas escalas lá com a equipe, e continuava dando aula na Cruz Vermelha, para auxiliares de enfermagem. Aí o Fred arrumou emprego em Valinhos. Em Campinas, me meti na PUC (Pontifícia Universidade Católica), lá eu conheci o Enzo Azzi. Assisti a uns cursos do Enzo Azzi e também do padre Geraldo, um homem maravilhoso e que acabou morrendo quando eu estava lá... fui me metendo... Tinha cursos de extensão... Eu fiz o Rorschach, fiz um curso com o Joel, adivinha do quê? De neurose em animais. O Joel trabalhava com animais, experimentalmente. De extensão fiz um outro do Lewin. Foi maravilhoso também. Além do curso regular tinha esses outros cursos todos.

Aí, fiz uma coisa muito gostosa que não tem nada a ver com carreira. Eu morava perto do Taquaral. Tinha um centro esportivo lá, com uma piscina lindíssima, mas não estava inaugurada ainda. E todo fim de semana, na lagoa Taquaral, morria um molequinho afogado. Eu nadava muito. Desde menina nadei muito. Meu sonho de adolescente era ser campeã de natação. Aí eu fui procurar o cara que cuidava daquele centro esportivo e propus para ele: "Escuta, você me permite e me ajuda a fazer uma coisa? Vamos catar essa molecada do bairro, vamos ensinar a nadar para que não morram na lagoa a toda hora?" Ele topou. Topou, e eu disse: "Eu preciso mais: que você fique junto comigo na piscina" , porque a piscina era de três metros, não dava pé. Então eu teria que ficar dentro da piscina, para segurar as crianças, para ensinar, e queria que ele ficasse junto. Aí nós fomos recrutando a molecadinha do bairro, tanto é que, chegava de manhã, eles passavam na minha casa e gritavam: "Vamos embora pra piscina!" E a piscina não estava inaugurada. Eu dava aula de natação. Era uma espécie de sufoco, porque não dava pé na piscina. Eu ficava ensinando o pessoalzinho a nadar. Nunca esqueço de uma menininha que tinha uns quatro, cinco anos. Ela chegava: "Tia Sílvia!" E se atirava na piscina [ risada] . Não tinha medo, também aprendeu a nadar feito peixe, aquela menininha lá. Outro caso muito interessante: veio a mãe com o menino, que tinha muita asma, bronquite, dizendo que o médico tinha recomendado que natação seria muito bom para ele; se eu deixava ele aprender comigo. "Deixo, sim" (Eu já era tida como a professora de natação do bairro). Ela deixa o menino, só que era um inferno aquela mãe perto: "Ei, cuidado..." Ultra protetora, ao ponto de eu pedir para ela não mais assistir às aulas. "A senhora deixa, ele não vai correr perigo nenhum, é melhor a senhora deixar ele tranqüilo comigo, que ele vai aprender a nadar direitinho." E aprendeu. Tanto aprendeu que, antes de eu voltar para São Paulo (fiquei dois, três anos em Campinas), a mãe foi lá em casa com o menino me agradecer, que o menino tinha deixado de ter a asma, estava dono do narizinho dele, não deixando abaixar a cabeça para mamãe [ risada] . Fiquei impressionada. "Será que eu fui responsável por essa mudança?" A mãe é que causava asma no garoto. Fui deixar de dar aula porque eu estava com um barrigão da Ingrid para nascer, a mais velha. E aí foi a inauguração da piscina, e a minha molecadinha competiu. Fez a competição de inauguração. E eu na beira da piscina, também já não dava mais pra entrar na piscina, com o barrigão. Aí foi o meu adeus à piscina, o adeus à Campinas.

Voltamos para São Paulo e o Fred passou a trabalhar na cidade universitária e continuou a estudar História Natural.

A Suave Guerreira Enfrenta Novas Batalhas

E eu precisava trabalhar. Tinha a Ingrid nenezinha. Fui procurar a Carolina, para ver se ela sabia de alguma coisa. Ela me passou as aulas da escola de enfermagem, que ela dava na USP. Aí eu tinha aulas duas vezes por semana. E ganhava alguma coisa para ajudar. A gente foi levando. Em 64, a Loura me chamou para dar aula na PUC; estavam precisando de professor de Psicologia Social e Personalidade, que era uma disciplina só. Em 65 eu começo a dar aula na PUC. Desmembrei: Psicologia Social uma disciplina e Personalidade outra, pois eu não via como casar as duas. Era a Psicologia Social tradicional, etc. E aí eu já querendo fazer uma crítica, mas era dificílimo. De novo, entra todo o aspecto ideológico. Os textos eram todos norte-americanos ou franceses essa era a literatura que nós tínhamos. O único livro em português era do Otto Kleineberg, em Psicologia Social. Então, eu me lembro que traduzi uns artigos para os alunos. Eu queria que eles saíssem a campo, fazendo pequenas pesquisas, analisando histórias em quadrinhos, entrevistando gente na rua e, com isso, discutir a teoria. Não consegui, eles encaixavam tudo dentro da teoria, priorizavam a teoria e o resultado da pesquisa era exemplo da teoria. Com os monitores, auxiliares, etc. eu conseguia até desenvolver essa crítica; mas com os alunos era dificílimo. O pessoal adorava as minhas aulas, eram aulas expositivas. Eu dava aula no prédio velho da PUC, falando, gesticulando.

Em 68, nós fizemos uma revolução. Quando eram os estudantes que estavam fazendo revolução nas universidades, nós, os professores, junto com os estudantes, propusemos uma revolução acadêmica, e quebramos o currículo. Tinha um currículo imposto de cima pra baixo. Dissemos que não; tentamos juntar teoria e prática. O curso era montado em termos de projeto de pesquisa, onde os alunos escolhiam e participavam junto com os professores. Nós estávamos ligadíssimos com o movimento na França. Aquelas chamadas de ordem deles: a igualdade, a relação democrática entre alunos e professores, a junção de teoria e prática, todos aqueles slongans... nós líamos os trabalhos que eram publicados lá. Eu sei que reformulamos esse currículo e foi uma experiência ótima para gente. Só que acabou o semestre, e foi uma ginástica incrível. Como traduzir tudo aquilo que nós tínhamos feito, agora, no currículo tradicional? Então, tínhamos que adaptar... O AI 5 (Ato Institucional nº 5) acabou com tudo. Mas o que aconteceu é que a maioria dos professores que participaram desse projeto mudou completamente a forma de ensinar. Não dava para voltar mais para as aulas expositivas, de jeito nenhum. Então, eram muito mais leituras, diálogos, discussão em sala de aula, e coisas desse tipo. Acabaram-se as aulas expositivas. E ficou muito claro, na ocasião, que na aula expositiva você impõe o seu saber aos alunos, é a sua leitura que você está impondo. E o aluno não aprendia; chegava no final do ano, fazia as provas, eu ficava decepcionada: "Puxa! O pessoal está lá, adora as aulas, não falta; na hora de fazer uma prova..." Em geral eu dava algum tema, procurando juntar teoria e prática, naquela ocasião, e eles repetiam, papagueavam, não tinha pensamento original, não tinha nada. E isso, realmente, me desanimava. E aí com 68, eu descobri a forma de obrigar o aluno a trabalhar e pensar, refletir na sala de aula. Eu nunca me esqueço: no curso tinha uma menininha, ela estava sentada assim com uma cara desanimada. Perguntei: "O que foi? Você está tão desanimada!" "Ah! Era muito mais fácil quando você dava aula e a gente ouvia do que agora. A gente tem de trabalhar na sala de aula" [ risada] . Eu disse: "Isto é aprendizagem, não papaguear o que o professor diz." Essa experiência toda foi indo, mudamos...

Aí acaba a São Bento e junta a Psicologia do Sedes Sapiente com Psicologia da São Bento, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da São Bento. Houve um decreto, ou lei, que obrigou as universidades a juntarem cursos. O Sedes resolveu vir para a PUC, e nós passamos um ano juntando as duas. O que era um curso de Psicologia na faculdade São Bento e um curso na Faculdade de Filosofia Sedes Sapiente iam se juntar para formar uma faculdade. Daí você ia ter a universidade organizada em centros. A Psicologia passaria a ser uma faculdade, e com isso se extinguiria o Instituto de Psicologia que formava especialista, quer dizer, pessoas graduadas em Psicologia ou em outras áreas. Fui chamada para dirigir a faculdade, para instalar essa faculdade nova. Era para ser um trabalho de um ano e eu fiquei dois anos, e mais, acumulando o curso de Psicologia da São Bento, que tinha que formar os últimos alunos dentro do currículo, que era de seis anos.

Eu fui a primeira diretora, nesses dois anos, por indicação da Reitoria, em seguida foi eleita a Neide Solito e como vice a Maria do Carmo Guedes. A Neide não completou o mandato porque morreu de câncer, e a Maria do Carmo assumiu; eu dava aula de Psicologia Social; Personalidade eu já tinha deixado para a Neide Solito que, na Caetano de Campos, era professora concursada dessa disciplina. Então, eu achei que era querer açambarcar muita coisa junta, fiquei só com Psicologia Social, e assumi, também, a chefia do departamento de Psicologia Social, na graduação do novo curso. Era uma faculdade organizada em departamentos. Dirigi o departamento de Psicologia Social durante um mandato ou coisa assim, aí eu fui passando não sei se fiquei um ou dois mandatos mas achei que devia passar para diante. O pós começou a funcionar em 72. Foi fundado formalmente em 71 pela Aniela Ginsberg, eu ajudando. Aniella queria continuar a pesquisa na área de Psicologia. A pesquisa, segundo o estatuto, deveria ser desenvolvida pelos departamentos, esses departamentos eram muito envolvidos com a graduação e teriam pouco tempo para pesquisa. Nossa intenção, Aniela e eu, para preservar a pesquisa, era criar um curso de pós-graduação que visaria, formalmente, a formação de pesquisadores. Já existia a pós-graduação em Psicologia Educacional, que foi fundada pelo Joel Martins. Daí, fundamos a Psicologia Social, logo em seguida, a Psicologia Clínica, pela Rosa Macedo, e havia um doutorado comum em Psicologia. Pela fundação Fullbriht, a Aniela conseguiu que o Kars Scheib viesse ficar por dois anos conosco. A primeira que fez doutorado na São Bento foi a Ana Maria Poppovic. Eu fui a terceira ou quarta. O orientador sugeria que você fizesse algumas disciplinas, alguns estudos.

Quando eu fui dar Psicologia Social na pós-graduação, comecei aquilo que tinha tentado na graduação, o pessoal fazer uma leitura crítica, num confronto com a realidade. Aí o pessoal já era mais maduro. Eu só fui deixar a graduação quando assumi o cargo de diretora do Centro de Ciências Humanas, que agregava a Faculdade de Psicologia, Faculdade de Educação, Ciências Sociais, Serviço Social. Desde a época da Faculdade, da criação da faculdade, eu participava do Conselho de Ensino e Pesquisa, fui representante docente. Participei do Conselho de Ensino e pesquisa durante mais de dez anos. E, também, eu era sempre presidente da Comissão de Pesquisa. Depois, como diretora do Centro de Humanas, eu participava como membro nato, tanto de Centro de Ensino e Pesquisa como do Conselho Universitário, além de exercer a função de vice-reitora acadêmica Com acúmulo de funções eu dava de 60 a 70 horas semanais. Tempo integral era pouco. Mas, se hoje, eu computar todo o trabalho que faço em casa, acaba dando às quarenta horas requisitadas pelo pós.

Então, foi isso, fiz esse percurso todo. A vice-reitoria acadêmica foi atribulada e acabei deixando, não sabendo mui bem por quê; basicamente porque eu defendia o curso básico com unhas e dentes. Nele, havia disciplinas como Antropologia, Psicologia... das quais participavam alunos de todos os cursos, além de disciplinas específicas. A idéia era fazer o aluno tomar consciência dele dentro da universidade. Foi o Casimiro que criou. Uma figura impressionante. Maria do Carmo também participou ativamente da criação. Era uma fã ardorosa do básico. O pessoal da graduação implicava muito com o básico. Essas disciplinas desenvolviam um espírito muito crítico nos alunos. Então, quando eles iam para a graduação, perturbavam a vida dos professores doutrinários. Começaram uma campanha para acabar com o básico, e eu defendendo. Inclusive mostrando que a turma do básico era que mais estava se titulando. A maioria dos professores do básico foi fazer mestrado, doutorado. Era um pessoal que estava se dedicando mesmo. Muito trabalho em equipe, eram equipes que trabalhavam com várias turmas. Era um trabalho muito bonito, muito bonito mesmo. E eu briguei de unhas e dentes pra não extingui-lo. Houve um grupo que fez muita pressão em cima do Luiz Wanderley, e eu acabei deixando a vice-reitoria antes de terminar o mandato. Fui pro pós e fiquei só no pós. Terminei a minha carreira administrativa. O Programa me elegeu como coordenadora, e continuei, acho que mais um ou dois mandatos; aí fui passando. Foi uma vitória que a gente conseguiu, a eleição do coordenador. De certa forma, acaba sendo um rodízio. No programa são dois anos de mandato, podendo ter reeleição. Tanto que a Bader foi reeleita. A Bader é uma boa coordenadora; acho que desta vez acertamos, com a Bader.

Mais Uma Vez a Linguagem

Eu me lembro que antes de eu defender o doutorado, um semiologista americano esteve na PUC, especialista em Chomsky, e eu fui bater uns papos com ele. Mas a teoria do Chomsky não me descia goela abaixo; essa história da língua ser inata no ser humano... Em todo caso, eu li muita coisa do Chomsky, que esse professor indicou. Também percebi que não era psicolingüística o meu forte e sim psicologia da linguagem. Então, me desvinculei da semiologia, eu estava achando que ela não me levava a nada. Me inscrevi no doutorado em 67 e defendi em 72, não tinha prazo. A gente não tinha dispensa de aula. Eu usava as minhas horas do Instituto (eu tinha uma parte do contrato no Instituto) e defendi no início de 72. Foi uma banca pesada: Joel, Dante Moreira Leite, Carolina Bori, Carmen Junqueira, e a Aniela era a orientadora. E foi nessa defesa que o Joel brincou, fez uma piada que ficou histórica: "Mas, Sílvia, afinal você trabalha com Osgood e a todo momento você está namorando o Skinner" [ risada] , porque eu criticava o Osgood quando ele falava numa mediação que era meramente teórica, e eu achava que a explicação do Skinner era muito mais lógica, muito mais concreta, materializável. Usei do Osgood a escala do diferencial semântico, não a teoria. Tentei trabalhar teoricamente independente da teoria, porque eu não aceitava a teoria de resíduo do Osgood. Mas aceitava a escala do diferencial semântico como instrumento, um instrumento precioso. E foi por isso que o Joel brincou. Eu sentia muita consistência no Skinner. Acho que era já o início de procurar o materialismo dentro da Psicologia. O Skinner não tem nada de idealista, vamos dizer assim, ele é bem materialista, mas materialista organicista, ele se interessa pelo organismo e não tanto pelo social. O grande problema do Skinner é que a História para ele é linear, ele não tem nada de dialético. Mas, de qualquer forma, o trabalho dele era bem mais consistente teoricamente do que o do Osgood. Eu nunca me considerei uma skinneriana, mas a materialidade da psicologia dele me atraiu muito. Ele impedia de você sair voando, interpretando e não sei o que mais Eu acho que com isso ele vai me dar uma base para entender realmente a Psicologia soviética, que aí é materialista, mas com uma outra concepção de História.

A grande questão da Ideologia

A questão da ideologia ficou marcando na minha cabeça. Eu vim dar essa resposta muitos anos depois, quando a gente percebeu onde estava o ideológico na Psicologia. E foi exatamente nos estudos sobre pequenos grupos. Na medida em que você considera o grupo em si, não dentro de uma cultura de uma sociedade, você naturaliza esse grupo e fala que o líder é uma figura do grupo. Não é, é condicionada por aquela cultura, por aquela sociedade. Então, você reproduz uma ideologia dominante, como sendo natural. Na hora que eu descobri isso, é que a gente deslanchou nessa outra linha mais crítica. E uma outra coisa que ocorreu na minha época de militância do grêmio: nós estávamos tentando fazer um acordo entre universitários e operariado. Então a gente tinha assembléias onde vinha o operário e os universitários. E aí eu ficava doida, porque apesar de os dois grupos, estudantes e operários, falarem o mesmo português não se entendiam, porque as palavras tinham significados afetivos diferentes. Descobri isso mais tarde. Mas esse problema também ficou na minha cabeça, tanto é que foi objeto da minha tese de doutorado. Você fala uma mesma língua, mas não necessariamente as pessoas se entendem. Os significados afetivos são diversos, muitas vezes até opostos. Isso acontecia no diálogo entre estudante e operário. Eu via isto acontecer. Então foram esses dois grandes marcos os desafios que a faculdade de Filosofia deixou para mim. Quer dizer: uma Psicologia que não fosse ideológica, vamos dizer assim, e a grande questão que era a linguagem: o que significava essa linguagem no conjunto das relações humanas, sociais etc.

O Estudo das Emoções é um Caminho Sem Fim

E, de fato, agora eu estou me dando ao luxo de fazer o que quero, ou seja, orientar pesquisas, escrever. Quero escrever, gosto de escrever, e produzir mais do que eu já vinha produzindo. Estou muito empenhada nisso e fico feliz de ver o pessoal que eu formei, principalmente a turma da graduação, Ana Bock, Odair, Graça. A Ia foi orientanda da Bader, mas também é muito próxima. Dá uma satisfação muito grande você ver essa nova geração assumindo as coisas. Eu me sinto assim muito realizada porque, puxa, tudo o que eu fiz está tendo continuidade. Eu pretendo enquanto puder... Aniela é meu modelo nisso ela com oitenta e tantos anos ainda orientava no programa. Se eu chegar até lá...

Às vezes tenho vontade de parar, mas acho que eu, sem aluno, não vou produzir muito. Sem a sala de aula, o questionamento, a orientação... Já estou bolando o que vou fazer com eles, agora quero que eles façam uma pesquisa, uma pesquisinha com grupos. Essa é uma outra coisa que eu tinha em mente fazer, pegar todos esses trabalhos, de várias turmas, e observar como se dá o processo criativo, pela narrativa das entrevistas que vocês fizeram. E ver se eu encontro um processo relativamente semelhante àquilo que o Vigotsky fala da percepção da obra de arte. E eu tenho impressão de que alguma coisa nessa linha aparece nessas entrevistas. Aquela contradição entre a forma e conteúdo é perturbadora para o artista também. Enquanto não consegue concretizar isso, ele não se sente realizado. A obra de arte seria também constituída, criada, a partir dessa contradição entre forma e conteúdo, na cabeça do artista agora. Vigotsky falou da percepção estética, de quem consome a obra de arte. Ele não vai falar da criação. O que ele vai dizer é que o Hamlet desperta a emoção artística em quem está assistindo, por essa contradição. Se você pegar o conteúdo, é horrível, trágico, horroroso, digamos assim. Mas ele dá uma forma tal, que a peça emociona artisticamente. É essa a análise que ele vai fazer do Hamlet. Ele está muito mais no consumo da arte. Essa emoção deve estar presente na criação artística. Em todas as entrevistas existe uma referência emocional. Uma emoção que perturba... Eu queria tentar sistematizar isso. Então eu fico nisso. Vou dedicar talvez mais tempo exatamente para fazer esse projeto de pesquisa, em que estou interessada. Acho que muitas dessa coisa intuitivas e não sei o quê, têm raízes em emoções e estão presentes nas culturas indígenas. Aí nós vamos poder constatar algumas coisas. O que é uma transmissão de pensamento? Será que é transmissão de pensamento ou transmissão de sentimento? Por isso mesmo, vamos aprofundar nossas pesquisas com os Xavante e com outras tribos indígenas, para ver se a gente aclara esse processo. E, seu tiver condição, vou pegar esses trabalhos todos e tentar fazer também uma sistematização, em cima de todas as entrevistas que vocês fizeram. Tem coisas interessantíssimas nas entrevistas. O estudo das emoções é um caminho sem fim.

Na tese da Bader, ela trabalha numa comunidade, com mulheres faveladas, e conversava com elas; entrevistava as mulheres a respeito da militância, da participação delas na favela e tudo mais. Elas eram de uma objetividade incrível (ela estava fazendo um trabalho auto-gestionado). E entre elas, comentavam os fatos que tinham vivido juntas e sempre entremeados de "como eu me senti bem... como eu me senti feliz... como fiquei decepcionada..." Apareciam as emoções entre elas. E aí nós nos tocamos: quando você entrevista uma pessoa, dentro da nossa cultura, as pessoas não mencionam as emoções, elas querem ser muito objetivas, descrevem fatos. Então, eu brinquei com a Bader: "Bader, de hoje em diante, não se entrevista mais ninguém sem perguntar 'o que você sentiu?'" Ela é que observou a diferença entre ela conversando com as faveladas, elas narrando para a Bader o que tinha ocorrido, e elas entre si, comentando, e comentando as emoções sentidas. E jamais tinham dito para a Bader. Quando você entrevista alguém, as pessoas não falam o que sentem, elas querem narrar os fatos tal como ocorreram. Aquilo que eu estava falando para o Marlito do sonho. Os nossos sonhos, em geral, são emoções reprimidas, segundo o Freud. Mas o índio não tem essa repressão toda. Então, o sonho tem um outro poder na vida do índio, não de soltar o inconsciente, mas de comunicação. E nós reprimimos os nossos sonhos...

Estas indagações levaram Sílvia a pensar num projeto de pesquisa com objetivo de analisar as emoções em culturas indígenas, trabalho que foi iniciado em 2003, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Em 2005, foi concedida extensão, para dar conta do desejo de Sílvia de pesquisar os sonhos dos Xavante. Atualmente, a professora Bader Sawaia coordena esse trabalho, com minha colaboração e a de Marlito de Sousa Lima, que expõe, em seguida, o processo de realização do projeto.

Maria Helena de Mendonça Coelho é psicóloga clínica; participante do núcleo NEXIN, (Exclusão-Inclusão) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Endereço para correspondência: PUC-SP, Rua Monte Alegre, 984, São Paulo, SP, 05014-001. mariahcoelho@terra.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Out 2007
  • Data do Fascículo
    2007
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