RESENHA
Os caminhos da psicologia comunitária na América Latina
The paths of community psychology in Latin America
Emylio César Santos da Silva; Zulmira Áurea Cruz Bomfim
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil
Resenha deMontero, M. & Serrano-Garcia, I. (2011). Historias de la Psicología Comunitaria en América Latina: Participación y Transformación, Buenos Aires: Paidós.
A guinada dada pela Psicologia Social na América Latina rumo a uma Psicologia Social crítica e comprometida com a transformação de uma realidade marcada pela pobreza, desigualdade social, econômica e cultural tem contribuído fortemente para a construção de uma práxis cujo enfoque seja a mudança no panorama atual e a criação de uma Psicologia Social Comunitária latino-americana que difere da que se constituiu nos Estados Unidos e Europa (Góis, 2004; Nepomuceno, Ximenes, Cidade, Mendonça, & Soares, 2008).
A necessidade de se ter a Psicologia preocupada com a investigação e compreensão de temas implicados com a realidade de nossa terra e nossa gente, dentro de uma perspectiva histórico-sócio-ambiental-cultural de compromisso com a justiça, a igualdade e a dignidade reafirmam o seu aspecto de ciência e profissão que não são de neutralidade nem isenção, e cuja articulação entre teoria, metodologia, pressupostos epistemológicos e éticos se convertam para uma prática em busca da autonomia, emancipação e superação de desigualdades sociais.
Dessa forma, a influência do pensamento de autores de diversos campos do conhecimento científico tem contribuído para o desenvolvimento e consolidação de uma psicologia comunitária, cuja introdução de uma metodologia de pesquisa-ação é caracterizada pela preocupação com as questões específicas da problemática latino-americana. Dentre eles podemos citar: Paulo Freire, Orlando Fals Borda, Silvia Lane, Martín-Baró, Maritza Montero e Leonardo Boff, entre outros. (Arendt, 1997).
No que diz respeito à formação e aperfeiçoamento profissional, a criação de programas de pós-graduação, periódicos, núcleos de trabalhos e entidades como as associações de psicologia social ao longo de toda a América Latina vem ampliando a divulgação de trabalhos e aproximando as diversas Psicologias Comunitárias ameríndias, contribuindo dessa forma para o fortalecimento da área.
Nesse sentido, a obra Historias de la Psicología Comunitaria em América Latina: Participación y Transformación é bastante oportuna. Lançado em 2011 pela Editora Paidós, o livro é uma compilação de trabalhos que relatam o desenvolvimento da Psicologia Comunitária (doravante denominada PC) pelo continente. As organizadoras, duas renomadas pioneiras da PC, Maritza Montero e Irma Serrano-Garcia, nos apresentam trabalhos que detalham registros importantes sobre como se pratica, pesquisa e ensina a PC em cada país.
O resultado da difícil empreitada de selecionar estas experiências é um livro que contempla diversos relatos cuja preocupação fundamental foi a de compartilhar o que tem sido construído em cada país. As autoras lamentam a ausência de qualquer tipo de relato vindo do Panamá, ao mesmo tempo em que não mencionam o Haiti como possível colaborador.
Na introdução chamam a atenção ao leitor para a visão estereotipada e estereotipadora que se tem da América Latina ao ser vista como um continente que congrega nações "que conparten uma lengua, se conportan de maneira parecida y que suele asumirse como um todo homogéneo" (p.23), ignorando o fato de que, apesar de existirem duas línguas dominantes, existem centenas de outras línguas e culturas ainda presentes no extenso território, e que essa negação contribui para o que chamaram de "invisibilização" e empobrecimento da nossa diversidade.
Em seguida, fazem um breve relato de como surgiu a ideia de reunir as experiências em cada país, através de uma convocatória feita a diversos pesquisadores com os quais as mesmas mantinham algum contato ou a programas de graduação em psicologia cujo enfoque dado à PC estivesse presente na formação. Acrescentam ainda alguns aspectos relevantes presentes nos trabalhos, como a diversidade das origens da PC em cada país, ao mesmo tempo em que, apesar de tantas divergências, tem em comum a preocupação com as pessoas que vivem em situação de pobreza, injustiça e opressão social, e como essa relação influencia na constituição da identidade da(o) psicóloga(o) comunitária(o).
Tendo como autores Saúl Ignacio Fuks e Antonio Ismael Lapalma, o primeiro capítulo apresenta um panorama da Psicologia Comunitária na Argentina. A extensão territorial e a diversidade cultural existentes no país foram apontadas como desafios encontrados em se conseguir registros confiáveis sobre as experiências existentes. Outros aspectos interessantes apresentados dizem respeito à origem da PC nesse país, cuja formação teórica e prática advieram da psicologia clínica de base psicanalítica, e sobre algumas intervenções a que foi submetida devido aos golpes de estado acontecidos entre os anos de 1970 e 1980 e que colocaram a PC como subversiva.
Segundo Javier Mendoza Pizarro e Mercedes Zerda Cáceres, na Bolívia a PC surge em meados dos anos de 1980 como forma de reação a programas de universidades e ONGs instituídas no país, num movimento de insatisfação às três alternativas teóricas ensinadas no país (psicanálise freudiana, behaviorismo skinneriano e abordagem centrada na pessoa proposta por Carl Rogers) até então. Assim como em vários outros países latino-americanos, a PC emerge dentro de um contexto de ditadura militar, hiperinflação e grandes dificuldades econômicas e com a necessidade de se construir uma psicologia pautada em responder a demandas de um país pobre, subdesenvolvido, mas com um grande potencial de construção de uma tecnologia psicológica a partir da participação de grupos organizados.
O terceiro capítulo, escrito por Maria de Fátima Quintal de Freitas, apresenta aos leitores aspectos importantes da trajetória de construção e consolidação da Psicologia Social Comunitária no Brasil em pouco mais de quarenta anos, através de seus conhecimentos, práticas e perspectivas. Do mesmo modo que em vários outros países, no Brasil também emergiu de universidades. A autora comenta sobre o paradoxo que foi o surgimento de cursos de psicologia em duas cidades brasileiras, Rio de Janeiro e São Paulo, onde, por um lado, se tinha o acesso privilegiado a estes primeiros cursos do país, ao mesmo tempo em que se tinha um enorme conglomerado populacional urbano em situação de miséria e marginalidade social. A partir daí a autora narra um pouco do que ocorreu na PUC de São Paulo com a participação decisiva de Silvia Lane na produção teórica e prática da PC, do trabalho de criação de associações científicas de claro compromisso ético-político-social, como a Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) no ano de 1980 e do percurso da PC em vários estados e universidades brasileiras.
No capítulo seguinte, Mariane Krause, Andrea Jaramillo, Verónica Monreal, Héctor Carvacho e Alex Torres revisam condições históricas marcantes que contribuíram para o surgimento da PC no Chile, como: (a) os processos sociopolíticos vividos pelo país como motivadores de processos de participação popular, (b) a influência da psicologia crítica latino-americana e (c) por ocasião de seu exílio, o impacto que a estadia de Paulo Freire teve no modo de compreensão e desenvolvimento da prática comunitária no país.
Os capítulos cinco (Carlos Arango Cálad e Nelly Ayala Rodríguez) e seis (Teresita Cordero Cordero) mostram um pouco da trajetória da PC, ao mesmo tempo em que apontam questões e desafios que a PC vem enfrentando na Colômbia e Costa Rica.
Mayreli Carreño Fernández nos apresenta no sétimo capítulo os movimentos comunitários e a PC em Cuba a partir de uma reflexão histórica que questiona a existência de uma práxis da PC no país e de como essa práxis vem se desenvolvendo ao longo do tempo. O texto contextualiza os antecedentes aos primeiros anos da Revolução, a grande crise econômica iniciada nos anos de 1990, mostra o surgimento da PC a partir do currículo da Universidade de Havana e os desafios que se tem enfrentado, como a falta de sistematização da práxis e o escasso intercâmbio de experiências, que dificultam o aprimoramento do corpo teórico-metodológico que facilite a atuação.
O recente surgimento da PC no Equador é o enfoque dado por María José Boada Suraty e María Irene Mañana Rezano no oitavo capítulo. Já Nelson Portillo traz notas sobre o desenvolvimento da PC em El Salvador, que, segundo ele, transita entre a descontinuidade e o protagonismo histórico, marcado pela influência libertária de autores como Paulo Freire, Fals Borda, Gerrit Huizer e Martín-Baró.
No décimo capítulo, Vilma Duque Arellanos, María Luisa Cabrera Pérez Armiñan, María García de Villagrán e Olga Alicia Paz Bailey apresentam a PC na Guatemala, surgida como forma de enfrentamento dos efeitos de uma longa história de violência, opressão e exclusão social. A seguir, María Esther Artiles Milla aponta aspectos relevantes sobre os desafios e perspectivas da PC em Honduras, com ênfase no programa governamental de saúde mental comunitária.
A informalidade da PC no México é o tema do décimo segundo capítulo, escrito por F. H. Eduardo Almeida Acosta e Jorge Mario Flores Osorio. Os autores fazem uma contextualização da PC no país a partir de alguns antecedentes históricos e apresentam vários exemplos de atuação, como o movimento das mulheres indígenas, a participação da PC no desenvolvimento rural do México, os trabalhos de saúde comunitária, realizados pelo Instituto Nacional de Psiquiatria, dentre outros.
Sobre a experiência da Nicarágua, Jasmina Solís, Gustavo Pineda e Sandra Ivete Zuñiga Briceño nos informam como se ensina, investiga e pratica a PC nesse país, iniciada na década de 1980 acompanhando o Movimento Comunal Nicaraguense (MCN), movimento de organização comunitária cuja problemática era a promoção do diálogo comunitário e o desenvolvimento de bairros populares de Manágua.
Panambi Rabito López e Waldina Soto fazem uma reflexão sobre as práticas e ações da PC e as colocam como sendo um novo desafio para a psicologia no Paraguai. No capítulo quinze, Tesania Velázquez, Rosa María Cueto Saldívar, Miryam Rivera Holguín e Roxanna Morote Ríos esclarecem que a PC no Peru é uma disciplina em construção, a despeito de esse ser um país "con una historia de acción colectiva y de intervención comunitária" (p.337).
No capítulo seguinte, Lorna D. Torres López, Josephine Resto-Olivo, Irma Serrano-García e Soélix M. Rodríguez Medina apresentam um pouco da história, práticas e caminhos ao longo de três décadas da psicologia social-comunitária porto-riquenha. Mostram a trajetória a partir dos precedentes históricos, a inclusão da disciplina em programas de graduação, o modelo teórico utilizado e a inclusão de uma tabela com vários títulos de teses e dissertações publicadas sobre o tema no país.
No capítulo dezessete, Josefina Zaiter mostra os antecedentes sócio-históricos e as perspectivas da PC na República Dominicana que têm contribuído basicamente em três áreas de atuação: (a) nas políticas públicas do sistema de saúde, (b) na formação profissional dentro do meio acadêmico e (c) na execução de planos de ação em ONGs. A seguir, Víctor Alberto Giorgi, Alicia Raquel Rodríguez Ferreyra e Susana Rudolf Macció nos falam sobre a herança e as rupturas da PC no Uruguai e a relação com a sua história, que foram didaticamente divididas em cinco fases.
O décimo nono e último capítulo, que tem como autoras Maritza Montero e Maribel Gonçalves de Freitas, trata da PC na Venezuela, pondo em foco a história da práxis para a mudança social. Apresentam os antecedentes históricos para a PC no país, de como essa se insere no campo acadêmico, exemplos práticos da atuação, além de estabeleceram uma relação direta da PC com a pobreza, mostrando que a PC na Venezuela se posiciona politicamente no sentido de fortalecer a democracia.
Sem sombra de dúvidas a obra analisada contribui efetivamente para a compreensão do atual contexto em que se encontra a PC na América Latina. Os relatos detalhados mostram como a PC está incluída nas mais diversas matrizes curriculares, além de oferecerem ao leitor de maneira integrativa a contextualização histórica ao mesmo tempo em que mostram o panorama atual da PC em cada país, sendo, portanto, uma obra recomendada pelos autores desta resenha para estudiosos da área da Psicologia Comunitária, como pesquisadores, estudantes e professores de graduação e pós-graduação. Boa leitura.
Recebido em: 16/02/2012
Aceite em: 24/02/2012
Emylio César Santos da Silva é Psicólogo, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará - UFC. Aluno bolsista da FUNCAP. Email: emylios@gmail.com
Zulmira Áurea Cruz Bomfim é Psicóloga e professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Tem Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade pela Universidade de Brasília (UnB) e doutorado em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Especialista em intervenção socioambiental e investigadora em Espaço Público e Regeneração Urbana pela Universidade de Barcelona. Endereço: Avenida da Universidade, 2762, Benfica, Fortaleza/CE, Brasil. CEP 60020-180. Email: zulaurea@uol.com.br
- Arendt, R. J. J. (1997). Psicologia Comunitária: teoria e metodologia. Psicologia: Reflexão e Crítica, 10(1). Acesso em 27 de setembro, 2011, em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79721997000100003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
- Góis, C. W. L. (2004). Psicologia Comunitária. Universitas Ciências da Saúde, 2(1), 277-297.
- Montero, M. & Serrano-Garcia, I. (2011). Historias de la Psicología Comunitaria en América Latina: participación y transformación. Buenos Aires: Paidós.
- Nepomuceno, L. B., Ximenes, V. M., Cidade, E. C., Mendonça, F. W. O., & Soares, C. A. (2008). Por uma psicologia comunitária como práxis de libertação. Psico (PUCRS), 39(4), 456-464.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
14 Maio 2013 -
Data do Fascículo
2013