Resumo
O convívio em moradia estudantil revela desafios nas relações entre seus moradores e destes com o espaço que, então, habitam. O objetivo deste artigo foi o de apresentar os principais desafios de ser morador nesse contexto, compreendendo as sociabilidades e as relações com o lugar. Este estudo constitui-se, a partir de uma abordagem qualitativa, em uma pesquisa de intervenção participativa, com observação participante e entrevistas semiestruturadas. Os sujeitos da pesquisa apontaram a moradia como espaço que amplia a qualidade de vida e viabiliza laços de amizade, permitindo-lhes apropriar-se do lugar como lar. É na dimensão das sociabilidades que, comumente, encontram-se desafios como negociar rotinas, privacidade e organização do espaço e convivência com diferenças culturais, o que resulta situações de conflito. É relevante conhecer caminhos que contribuam para ações coletivas, formação de redes de apoio e mediações frente situações de vulnerabilidade e conflitos.
Palavras-chave Moradia estudantil; Sociabilidade; Pesquisa participativa
Resumen
Vivir en viviendas para estudiantes revela desafíos en las relaciones entre sus residentes y entre ellos y el espacio que habitan. El objetivo de este artículo fue presentar los principales desafíos de ser residente en este contexto, comprendiendo las sociabilidades y las relaciones con el lugar. Este estudio se constituye, desde un enfoque cualitativo, en una investigación de intervención participativa, con observación participante y entrevistas semiestructuradas. Los sujetos de investigación señalaron que la vivienda como un espacio que potencia la calidad de vida y posibilita lazos de amistad, permitiéndoles apropiarse del lugar como hogar. Es en la dimensión de la sociabilidad donde comúnmente se encuentran desafíos, como las negociación de rutinas, la privacidad y la organización del espacio y la convivencia con las diferencias culturales, lo que resulta en situaciones de conflicto. Es importante conocer formas que contribuyan a acciones colectivas, formación de redes de apoyo y mediación en situaciones de vulnerabilidad y conflictos.
Palabras clave Vivienda estudiantil; Sociabilidad; Investigación participante
Abstract
Living in student housing reveals challenges in the relationships between residents, as well as their interactions with the space they inhabit. The aim of this article was to present the main challenges of being a resident in this context, understanding the sociability and relationships with the place. This study is constituted, from a qualitative approach, in a participatory intervention research, with participant observation and semi-structured interviews. The research subjects indicated housing as a space that enhances the quality of life and enables bonds of friendship, allowing them to appropriate the place as a home. It is in the dimension of sociability that challenges commonly found, such as negotiating routines, privacy and organization of space and coexistence with cultural differences, which results in situations of conflict. It is important to know ways that contribute to collective actions, formation of support networks, and mediation in situations of vulnerability and conflict.
Keywords Student housing; Sociability; Participatory research
Introdução
Entrar na universidade é considerado um momento de mudanças e adaptações marcantes na vida de jovens que estão iniciando a fase adulta e se deparam com conflitos, decisões e escolhas que terão repercussões na sua trajetória de vida (Assis & Oliveira, 2010). Segundo levantamento nacional, a maioria dos(as) graduandos(as), cerca de 86% dos(as) estudantes, encontram alguma dificuldade que interfere significativamente na sua vida ou no contexto acadêmico. Entre as dificuldades que mais afetam os(as) universitários(as) estão: a falta de disciplina de estudo (28,4%); as dificuldades financeiras (24,7%); a carga excessiva de trabalhos estudantis (23,7%) empatada com os problemas emocionais (23,7%); e o tempo de deslocamento para a universidade (18,9%) (Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis [Fonaprace], 2019).
Como parte do cenário universitário, integrando o Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), lançado em 2010, as moradias estudantis integram um conjunto de ações de assistência estudantil que visam contribuir para a permanência de estudantes de baixa renda matriculados em cursos de graduação presencial das instituições federais de ensino superior (IFES). No cotidiano das moradias são retratados diversos desafios pertinentes à convivência coletiva, como questões relacionadas à privacidade, situações de vulnerabilidade social e estigmas associados ao local (Berlatto & Sallas, 2008; Garrido, 2015; Paiva & Mendes, 2001; Sousa & Sousa, 2009). O público que ocupa as moradias é proveniente de outras cidades, sem condições financeiras de se manter e, em sua maioria, sem rede de apoio social, e a ocupação desses espaços se torna fundamental para redução da evasão no ensino superior e para melhoria no desempenho acadêmico (Lacerda & Valentini, 2018; Maranhão, 2016), bem como contribuem para a diminuição dos efeitos das disparidades sociais e econômicas presentes no meio acadêmico (Sobrinho, 2010).
Estudantes encaram a experiência na moradia como oportunidade de aprendizagem para além do conhecimento acadêmico, pois exercitam formação política, habilidades sociais e treino à tolerância diante dos enfrentamentos e sofrimentos vivenciados (Garrido, 2015; Sousa & Sousa, 2009). Trata-se de um espaço de formação, que pode vir a proporcionar experiências no campo político e social, tendo em vista o convívio com posicionamentos políticos os mais diversos, pessoas com histórias de vidas completamente distintas e oriundas de contextos sociais e culturais igualmente diversos (Costa & Oliveira, 2012).
Compreender o cotidiano em moradias universitárias pode ser um marco importante para que se encontrem caminhos para a construção de redes de solidariedade e de apoio social nesses espaços e, assim, possam contribuir para melhorias das condições psicossociais e enfrentamento de dificuldades vivenciadas na moradia e no contexto universitário. Entende-se que o apoio social pode ressaltar aspectos positivos das relações interpessoais, por meio do compartilhamento de informações, do auxílio em momentos de crise e da presença em eventos sociais, além de ser significativo fator psicossocial no aumento da confiança pessoal, da satisfação com a vida e da capacidade de enfrentar problemas (Andrade & Vaitsman, 2002; Canesqui & Barsaglini, 2012).
A experiência de viver em moradia universitária vem acompanhada de compartilhamento de histórias de vida, valores, gostos, disposições pessoais que se chocam ou se reconhecem desde o momento da chegada e primeiros contatos com demais colegas que vivenciam a mesma condição (Berlatto & Sallas, 2008). Diante desse panorama, esse espaço pode ser reconhecido como campo para estudo das sociabilidades de jovens universitários(as), uma vez que se caracteriza como local em que convivem diversos grupos sociais, com cargas culturais distintas e que têm nesse local uma das bases da sua vida social durante o período universitário. Sociabilidade se compreende como o fenômeno amplamente relacionado aos processos interativos, representativos e simbólicos, relacionados às experiências vividas que se constroem a partir das interações sociais (Fantinel, 2016).
Assim, ser universitário(a) em moradia universitária situa estudantes em dilemas que estão na fronteira entre individual e coletivo, entre habitar e morar. As fronteiras entre individual e coletivo estão relacionadas às negociações cotidianas para se preservar a privacidade e a convivência pacífica diante do compartilhamento de espaços, o qual inclui, na maioria das situações, quarto, cozinha, lavanderia, locais de estudo e lazer. A moradia torna-se lugar social de exercício de novas sociabilidades, no qual a individualidade de cada morador(a) vai sendo construída diante da grande proximidade espacial uns em relação aos(às) outros(as) e aos ajustes para que sejam mantidas as distâncias necessárias (Berlatto & Sallas, 2008).
Sobre a fronteira entre morar e habitar, fatores como temporalidade para permanecer no espaço e familiaridade e segurança atribuídas ao local e às suas relações podem contribuir para que moradores(as) se sintam ou não pertencentes ao espaço. Habitar implica ativamente um processo de apropriação e de significação dos lugares, que se constrói a partir da interação entre os lugares, as pessoas e os significados construídos ao longo do tempo, dentro e fora daquele espaço. Assim, ao fazer parte daquele lugar, a pessoa pode se reconhecer como parte dele (Gonçalves, 2002). No entanto, pela condição de ser um lugar de passagem, com dinâmicas socioespaciais complexas, regras institucionais e repleto de diferenças culturais, a moradia “pode favorecer uma maior dificuldade em uma real apropriação do espaço com a construção de ‘laços de morada’ - de uma relação com os outros e com o mundo por afinidades afetivas e novas trajetórias comuns” (Gemelgo & Barros, 2015, p. 810).
Compreender os desafios enfrentados na convivência e no compartilhamento de espaços na moradia pode contribuir para elucidar as tramas relacionais e socioespaciais viabilizadoras ou limitadoras do habitar, trazendo o incitamento de tornar o local promotor de saúde e de redes de apoio. Nessa direção, o presente artigo tem como objetivo compreender os desafios de ser residente em moradia universitária e seus desdobramentos sobre os sentidos que esse lugar passa a ter para seus(suas) moradores(as) diante da condição de partilhar espaços, seguir as regras institucionais e criar estratégias de sociabilidade. Entende-se que o espaço se transforma em lugar quando seus habitantes nele organizam o seu modo de viver e atribuem significados a esta organização, ou seja, reconhecem a sua legitimidade para localizar ações, expectativas, esperanças, afetos e possibilidades (Cunha, 2008).
Esse artigo integra os resultados da tese de doutorado de uma das autoras do artigo, cujo objetivo foi compreender as condições psicossociais vivenciadas por estudantes de moradia estudantil e os impactos produzidos na dinâmica institucional da moradia e da universidade.
Método
O estudo foi realizado a partir de uma pesquisa-intervenção participativa, tendo as etapas da pesquisa sido planejadas ao longo do estudo, com participação direta dos(as) participantes. Essa proposta de pesquisa permite que todos(as) aqueles(as) que estão implicados(as) em um campo conduzam e sejam levados(as) por ela, em sua processualidade, sem ao certo saber onde se vai chegar (Chassot & Silva, 2018).
A pesquisa de campo foi realizada na moradia estudantil de uma universidade pública do sul do Brasil, mas algumas etapas e alguns encontros também ocorreram no espaço universitário, a partir da disponibilidade e intencionalidade dos(as) participantes. Sobre a moradia, trata-se de uma instituição formada por cerca de 157 residentes, todos(as) estudantes de cursos de graduação, dos sexos masculino e feminino. A moradia está situada nas proximidades do campus principal da universidade. Seus estudantes se abrigam em quartos divididos entre duas pessoas, com áreas compartilhadas por até quatro pessoas, como banheiro e cozinha. Também há espaços coletivos, como área verde externa, horta, lavanderia, hall de entrada, salas de convivência e de estudos. Integra a moradia também espaço destinado aos estudantes do Programa de Apoio Emergencial de Permanência (PAEP), responsável por disponibilizar vagas para estudantes que aguardam a finalização do cadastro ou os resultados dos editais de auxílio, em extremas condições de vulnerabilidade social (sem laços sociais, sem renda, sem local para morar).
A pesquisa integra um projeto de extensão que teve suas atividades realizadas entre 2015 e 2018, cujo objetivo era desenvolver ações de promoção da saúde em moradia universitária, com a participação dos estudantes e da equipe técnica, a partir de demandas indicadas por seus participantes. Inicialmente, foi mapeado o interesse dos(as) universitários(as) em construir conjuntamente as ações do projeto; em etapa seguinte, algumas atividades foram desenvolvidas. Dentre elas, estão a participação em assembleias; as reuniões com a equipe técnica da Pró-reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE), responsável pela gestão da moradia; o diagnóstico situacional (mapeamento de problemas enfrentados na moradia estudantil); o planejamento de ações e atividades na moradia, a partir de demandas advindas dos moradores; os encontros sistemáticos na moradia universitária com estudantes; e o planejamento de atividades a serem desenvolvidas na moradia.
Os resultados do presente artigo partiram das observações e impressões registradas em diário de campo de uma das autoras do artigo, em sua participação ativa nas etapas do projeto (reuniões, eventos, oficinas e assembleias), e das entrevistas semiestruturadas realizada com nove moradores(as), no período entre 2016 e 2017. Participaram das entrevistas estudantes que estavam há pouco tempo na moradia (cerca de seis meses), estudantes com maior tempo de permanência (três anos ou mais) e moradores(as) que atuavam no conselho estudantil da moradia. Também foi realizada entrevista com moradora do PAEP que aguardava resultado do edital de vagas da moradia. A proposta do estudo era compor os dados com a diversidade (tempo de permanência, curso de graduação, sexo, idade, cidade de origem) que acompanha a realidade da moradia.
Sobre a entrevista, foi formulado um roteiro de perguntas a respeito da experiência de ser estudante universitário e residente naquela moradia estudantil, do processo de entrada na universidade e na moradia universitária, das redes de apoio e principais desafios/dificuldades enfrentados na moradia. Em seguida, eram apresentadas 10 fotos de espaços coletivos da moradia, fotografias tiradas pela pesquisadora e que correspondiam a espaços coletivos que se destacaram nos primeiros encontros do projeto pelos(as) moradores(as), por diferentes motivos (espaços de conflitos, locais de lazer, porta de entrada da moradia, lugar mais usado pelos moradores). A pesquisadora solicitava que os(as) moradores(as) escolhessem duas a três fotos e estes(as) contavam sobre o motivo da escolha e a relação que tinham com esses locais. As fotografias, neste caso, foram utilizadas como recurso para induzir ao pesquisado(a) a buscar ele/ela mesmo(a) a informação que fará avançar a reflexão científica (Berlatto & Sallas, 2008) e no cumprimento dos objetivos do estudo.
Para a etapa de análise dos dados, foi utilizado o modelo da teoria fundamentada, uma proposta de análise sistemática aplicada em estudos de abordagem qualitativa. Nesse modelo, a teoria está assentada na construção dos dados, no intuito de acrescentar novas perspectivas ao entendimento do fenômeno (Charmaz, 2009), ou seja, possibilita gerar explicações a partir da compreensão das ações de indivíduos e/ou grupos em um determinado contexto diante do enfrentamento de problemas ou situações sociais vivenciadas. O processo de codificação que definiu a estrutura analítica envolveu uma etapa de denominação de cada palavra, linha ou segmento de dado e, posteriormente, uma fase focalizada e seletiva, na qual se formaram os códigos mais significativos e as categorias analíticas.
O presente estudo obteve aprovação no Comitê de Ética submetido na Plataforma Brasil e a participação na pesquisa aconteceu diante do livre aceite dos(as) participantes e do cumprimento da leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Resultados e discussão
Entre morar e habitar, entre o individual e coletivo: considerações sobre a moradia estudantil como lar
A partir da chegada na moradia, inicia-se uma nova etapa na vida desses(as) universitários(as): novas relações, novo lar e uma série de desafios frente à convivência com seus(suas) colegas e às regras institucionais que validam a permanência na moradia. Nessa inserção, torna-se fundamental a construção de uma relação com o espaço que possibilite aos sujeitos a organização de rotinas para obterem bom desempenho acadêmico e condições de vida saudáveis, assim como novas formas de lidar com as adversidades que podem surgir.
Como aspectos positivos associados ao lugar, ao longo da pesquisa, estudantes mostraram que a proximidade com o campus universitário e a boa estrutura física da moradia são quesitos que favorecem o melhor aproveitamento de tempo e a melhoria da qualidade de vida frente a situações de instabilidade vivenciadas em experiências anteriores, que colocavam em risco a permanência na universidade e outras situações de vulnerabilidade. Sinalizaram também que, a partir do acesso à moradia, passaram a ter mais conforto e liberdade, por exemplo, por conta de regras mais flexíveis para receber visitas e por entender que a moradia cumpria a função de lar, mesmo que de forma temporária e sendo um espaço institucional, ou seja, de caráter público:
Acontece isso, eu cheguei na moradia, foi o lugar que eu entendi que era o meu espaço, todos os lugares que eu pagava o aluguel eu tinha sempre uma pessoa incomodando: tu tens que fazer isso, não pode receber visita … aqui na moradia foi aonde eu entendi, nossa, esse espaço é meu, eu tenho direito, eu vou usufruir, e aí eu comecei a entender melhor (Participante 1)
Do trecho apresentado destacamos que, ao longo dos encontros do projeto, foi possível perceber o reconhecimento da moradia como espaço que resulta da conquista e da luta de estudantes universitários(as) por mais direitos, sendo benefício que abarca a perspectiva da inclusão social e educacional. Bader Sawaia (1995) afirma que a sensação de “meu lugar” produz o que chama de “calor do lugar”, o que corresponde à segurança que se produz em determinado local e um sentir-se gente entre pares, por ser ponto de referência de direitos e conquista da cidadania, onde se torna possível partilhar experiências de sobrevivência. No caso da moradia, torna-se marcante a valorização da conquista da vaga, por ser de fundamental importância para que alunos(as) em situação de vulnerabilidade permaneçam na universidade e, posteriormente, ampliem as oportunidades de trabalho e ascensão social (Sobrinho, 2010). Assim, estudantes relatavam que a partir do acesso à moradia foi possível ter estabilidade para seguir se dedicando aos estudos, em alguns casos, sem ter que conciliar trabalho e vida universitária, acarretando maior aproveitamento da vida acadêmica e mais chances de finalizar a graduação.
Destaca-se, também, o relato de participante sobre o sentimento de orgulho por pertencer ao espaço, acompanhado, mais uma vez, do sentimento de estar em casa: “eu falo, assim, e com orgulho, porque tem que ser criado uma identidade, assim, a primeira coisa que, é a minha casa ali … Uma coisa que é legal é que você acaba conhecendo muitas pessoas, eu tenho vários amigos ali” (Participante 3). O trecho demonstra, ainda, que a moradia se torna local que possibilita a formação de laços sociais e do sentimento de pertencimento ao espaço, conforme foi narrado pelo entrevistado. O orgulho de fazer parte desse lugar é um processo que permite entender a sensação de segurança, uma certa familiaridade que as pessoas passam a ter ao viverem em um dado local, além de evidenciar os valores, as referências, os vínculos e os afetos construídos entre as pessoas (Jerônimo & Gonçalves, 2013).
Por outro lado, foram recorrentes relatos de moradores(as) sobre situações em que a moradia tem sido associada a lugar de problemas e conflitos. Por isso, alguns(as) moradores (as) evitavam falar que residiam na moradia, criar laços sociais ou mesmo não se reconhecer como parte do lugar. No caso da moradia, marcas sociais e estigma associado ao espaço são características relacionadas ao lugar social que se ocupa, já que a moradia de estudantes é reconhecida como abrigo para universitários(as) em condição socioeconômica “menos privilegiada” (Berlatto & Sallas, 2008). Isso inclui expressões como “alunos-problema” ou “drogados”.
Como estratégia utilizada para promover mudanças sobre esses discursos, moradores (as) que buscam valorizar a moradia como espaço coletivo e de formação convidam colegas de curso e amigos(as) universitários(as) para conhecer o espaço da moradia, usufruir dos espaços de estudo, participar de eventos culturais, na tentativa de desmitificar preconceitos e mitos recorrentes. Tais atitudes corroboram com ações de apropriação do espaço, ao entendê-las como parte de um movimento que envolve a ação-transformação do sujeito e do espaço e a identificação simbólica relacionada a aspectos afetivos, interativos e cognitivos, atribuindo qualidades do entorno às suas atividades e identidades (Pinheiro & Silva, 2018).
Um dos sinais dessa apropriação era observado quando, ao longo dos encontros do presente projeto, os(as) universitários(as) se referiam à moradia como “casa” e demonstravam construir um sentimento de pertencimento ao espaço. A casa é o lugar de onde o sujeito pode partir numa caminhada em busca de sua sobrevivência e que possibilita encontros com outros sujeitos, formando novos vínculos e redes sociais. No caso dos(as) moradores(as) aqui estudados, essa apropriação ocorre no momento da vivência universitária. Sendo assim, os(as) residentes acabam por fazer do “espaço de habitação o ‘lugar a que pertenço’” (Franco & Stralen, 2012, p. 406), ou seja, espaço que produz segurança para seguir rumo a novas conquistas e objetivos de vida.
Apesar dos desafios que envolvem a convivência intensa e o compartilhamento de espaços, os relatos mostram tentativas por parte dos(as) moradores(as) de desenvolver uma certa familiaridade com o lugar ao passar do tempo, incorporando rotinas e atividades que são atribuídas, de maneira geral, ao lar. Assim, em certas situações descritas, percebe-se que moradores(as) passam a habitar o espaço e sentir-se parte dele. “Habitar seria ‘estar em’, permanecer no mundo em um lugar familiar” (Franco & Stralen, 2012, p. 405).
Um outro elemento fundamental da discussão sobre pertencer ao espaço diz respeito ao desejo de residentes de que seus/suas colegas reconhecessem a importância do compartilhamento de objetivos e do desenvolvimento de ações no espaço que tivessem alcance para o coletivo. Ou seja, além de reconhecer a moradia como lar, traziam a necessidade de construir ações que a valorizassem como espaço coletivo e promovessem benefícios a todos(as). As fronteiras entre individual e coletivo e os dilemas para a participação social em prol da própria moradia e da melhoria do espaço são destaque nos relatos a seguir:
Eu sinto que as pessoas, de certa forma, elas não valorizam aquilo ali como um espaço coletivo. As pessoas chegam ali: “beleza, ganhei minha vaga, que se dane, se rale”! Não sei, é uma impressão, talvez seja uma impressão que eu tenha, não dá pra generalizar também, mas acredito que, em muitos casos, é isso (Participante 3)
A dificuldade em construir ações que contribuam para a coletividade e a conservação do espaço em que convivem foi apontada como um dos principais desafios vivenciados no cotidiano da moradia. Em parte, alguns participantes atribuíram uma ausência generalizada de um olhar coletivo no local, que estava relacionada à forma como os(as) novos(as) moradores(as) são recebidos: já na chegada, no acolhimento, pelo modo como se desenvolve a relação com a PRAE, faltam esclarecimentos sobre regras e condições de vida no local, sobre critérios para escolha do quarto, como também estão ausentes incentivos para boa convivência coletiva. Outra moradora destaca que a própria configuração física da moradia é apontada como favorecedora de posturas mais individualistas, a partir do conhecimento de experiências e condições socioespaciais de outras moradias no Brasil. Em geral, os/as participantes destacam o pouco envolvimento em prol da coletividade na moradia e avaliam que tal postura repercute na forma como os(as) moradores(as) cuidam do espaço, fazem uso dos ambientes coletivos e pouco se envolvem para reivindicar melhorias das condições locais.
Em tentativas de ações coletivas para melhoria de ambientes como lavanderia, horta, sala de estudos, assim como em reuniões e assembleias para deliberar ações em benefício local, os(as) estudantes mais participativos(as) costumam contar com pouco envolvimento dos(as) demais colegas. Em algumas situações, este fica restrito aos integrantes do conselho de moradores. Assim, a necessidade de ações coletivas, em especial, está relacionada à mediação de problemas locais (de convivência, de gestão e aqueles relacionados a questões psicossociais) e na melhoria da organização e conservação dos espaços. Sobre este último aspecto, uma moradora lembra a importância de associar a moradia a um espaço educativo, como local que possibilita oportunidades de aprendizado e ações relacionadas ao conhecimento aprendido na universidade, de forma que esse tipo de ação poderia contribuir para melhorias da casa, produzindo mudanças e valorização do local:
Eu acredito muito que a moradia é um espaço educativo, formativo, não sei, que os estudantes deveriam ser mais conscientes do seu próprio aprendizado na universidade, eu vejo que aqui eles acabam achando, assim: “ah eu não sou responsável, eu estou aqui só pra dormir, tomar banho e comer” (Participante 1).
O trecho destaca, também, um olhar ampliado da participante para o papel da moradia na vida nos seus/suas moradores(as), incluído, seu potencial educativo, político e social. Foi partido dessa perspectiva que o projeto de extensão buscou desenvolver iniciativas de valorização de ações que pudessem ampliar a convivência coletiva e redes integradas de apoio. Surgiram ações de sensibilização aos aspectos positivos da moradia (cartazes, caixinha de sugestão na recepção); acolhimento para novos moradores; divulgação e incentivo de atividades desempenhadas pelos próprios moradores (bazar, grupos de oração, aulas de ioga, atividades na horta comunitária); e a divulgação de eventos e da rede de serviços disponíveis na universidade e na cidade, principalmente, para os(as) novos (as) moradores(as).
Por meio das narrativas e ações realizadas pelo projeto, foi possível compreender as experiências dos moradores com o espaço que passam a habitar a partir do acesso à moradia, suas afeições e identificações pelo lugar construídas ao longo do tempo, como também os desafios para despertar a coletividade entre colegas. O espaço é produto e produtor das relações sociais, o que leva à discussão - abordada a seguir - quanto ao processo de construção de vínculos e aos desafios relacionados à convivência e às sociabilidades possíveis, fundamentais para compreender como se dá a integração entre as pessoas, como também das pessoas na dinâmica com o seu espaço e nele.
Desafios de ser morador: do estudante solitário ao estudante solidário?
“Há uma pluralidade nas relações do homem com o mundo, na medida em que responde à ampla variedade dos seus desafios” (Freire, 1994, p. 48). É possível responder de diferentes maneiras diante de novas experiências de vida, novas relações e novos espaços que passamos a habitar, pois a pluralidade se dá diante da própria singularidade de cada sujeito e nas suas ações no mundo. Para universitários(as) que residem em moradia estudantil, estar longe da família, de amigos e da cidade de origem, enfrentar dificuldades financeiras e acadêmicas estão entre as situações comuns vivenciadas por eles/elas e que demandam novos modos de organizar sua rotina e novas experiências de vida. Em relação às experiências e aproximações entre as histórias de vida dos(as) moradores(as), destaca-se o seguinte o trecho:
São pessoas de vários lugares, pessoas de fora daqui, são pessoas que estão longe da família, né, aí cada uma com o seu problema financeiro diferente, porque se você entra aqui é porque sua condição socioeconômica não é boa, não é a das melhores. Aí, por exemplo, você acaba tendo conflitos pessoais, culturais, bem forte porque algumas pessoas, por exemplo, a questão da limpeza é uma questão muito subjetiva aqui, você não pode dizer que não está limpo uma coisa que a pessoa limpou (Participante 1).
Conviver com a diversidade é condição intrínseca à moradia, pois a instituição recebe estudantes de várias regiões do país e intercambistas de outros países, que, em geral, permanecem menor período, mas passam a residir na moradia. Na visão de residentes, “sofrimento, exclusão, humilhação, e a diversidade, é muitas vezes, enfrentar um outro tão diferente que assusta” (Sousa & Sousa, 2009, p. 12). Evidencia-se a dificuldade de compreender a riqueza da diversidade e a discriminação como limitadora de tal perspectiva, o que traz à tona desigualdades sociais (Parker, 2013). Essa condição aparece ao longo da pesquisa por meio de relatos de episódios de discriminação, por exemplo, pela condição de ser nordestino ou nortista, ou por pertencer a uma religião de matriz africana. Segundo moradores, essas manifestações vinham por meio de piadas, críticas e comentários direcionados a sotaque, hábitos e costumes. Atitudes consideradas racistas também apareceram como marca da trajetória de alguns(as) moradores(as), evidenciando a presença de assimetrias estruturais, conflitos sociais e tensões culturais que não podem ser desprezadas nos estudos sobre a sociabilidade (Maia, 2001). Para Anna Paula Vencato (2014), é importante retomar a diferença pela ideia de riqueza, para que sejam produzidos contextos com relações mais democráticas e baseadas na valorização da diversidade, tendo em vista que hierarquias e opressões promovem a manutenção da desigualdade.
Ao ampliar o olhar para o entorno da moradia, destaca-se que o próprio espaço universitário ainda vem sendo lugar de experimentação de racismo e outras formas de discriminação, em especial para alunos(as) que acessaram a universidade pelas políticas de ações afirmativas (Sayão, 2016), público que compõe grande parte das moradias estudantis. Em levantamento recente do Fonaprace (2019), cerca de 5% dos(as) estudantes responderam que, dentre os motivos que os levaram a pensar em abandonar a universidade, estão dificuldades decorrentes de assédio, bullying, perseguição, discriminação ou preconceito. Em levantamento anterior, estudantes responderam que, em algum momento, enfrentavam dificuldades decorrentes de conflitos de valores ou religiosos, discriminações e preconceitos. Entre 7% e 11% deles citaram passar por discriminações e preconceitos nos locais onde estudam (Fonaprace, 2016). Acende-se o alerta para que o espaço universitário encontre caminhos para desconstruir concepções preconceituosas e amplie espaços de diálogo com a diversidade étnica, racial, cultural, espacial e social que passa a integrar o espaço (Scherer-Warren & Delesposte, 2016).
Seguindo na apresentação dos desafios em torno da experiência de ser morador(a), as narrativas abordaram como grande desafio vivenciado, quase que de forma unânime, as questões que envolvem a convivência com colegas de quarto com que compartilham o dormitório, cozinha e banheiro, incluindo, as negociações cotidianas para organização de rotinas, privacidade e ocupação do espaço físico. São com essas pessoas que os conflitos costumam ser mais comuns, pois, mesmo vivendo condições similares de vida, nem sempre estão garantidas proximidades e afinidades na convivência ao longo do tempo de permanência.
Tais resultados se aproximam, também, daqueles apresentados em pesquisas realizadas em outras moradias universitárias brasileiras, Negociar privacidade, aspectos de limpeza/organização e hábitos pessoais, além de compartilhar espaços de comer, dormir, estudar, namorar e descansar são apontados como desafios cotidianos de quem habita a moradia, sendo ainda apontadas como dificultadoras as mediações ocorrerem com colegas desconhecidos, ou seja, pessoas com as quais passam a conviver a partir daquele momento, sem que haja qualquer laço social (Gemelgo & Barros, 2015). Sobre os impactos da experiência de residir em moradia, destaca-se a pesquisa de Edleusa Nery Garrido (2015), cujos resultados apontam que as mudanças negativas nos domínios pessoal e social são atribuídas, predominantemente, ao barulho, à ausência de privacidade, à concentração de um número elevado de pessoas por quarto ou por moradia, ao estigma de ser morador e à distância da família.
Para alguns moradores(as), a moradia estudantil é a primeira experiência que têm de sair de casa, ficar distante do convívio familiar, sair de cidades pequenas e passar a viver no espaço urbano de uma cidade maior, enfrentar desafios nos processos de adaptação e de convivência coletiva. Por outro lado, parte deles(as) relata já ter vivido experiências anteriores de morar em espaços coletivos e passar por situações de maior vulnerabilidade. Eles(as) enfatizam a importância de ocupar esse espaço e, ao mesmo tempo, as dificuldades de seguir regras e aceitar algumas negociações postas para melhor convivência. Diante disso, moradores(as) ressaltam como vulnerabilidades vivenciadas e experiências anteriores interferem nas possibilidades de negociações entre eles/elas:
Eu acho que… acho que a experiência de conviver com estranho, estranho, assim, no sentido que nós viemos de lugares diferentes, famílias diferentes, costumes diferentes, uns mais, é, com o espírito mais pacífico, outros mais revoltados com tudo e com todos, pra mim está sendo uma experiência, assim, ótima (Participante 4).
Em estudo sobre sociabilidades em moradia estudantil, Fábia Berlatto e Ana Luiza Sallas (2008) apresentaram que as negociações são postas a todo momento: quem vai ocupar qual espaço no quarto, modos de comunicar regras e limites, assim como conciliar interesses individuais e coletivos. Algumas saídas encontradas pelos residentes para partilhar a convivência são marcadas pela imposição de regras e hierarquias postas pela condição de ser morador mais antigo, de pertencer ao conselho gestor da moradia, de estar matriculado em curso com mais status social ou pela ausência de reconhecimento da condição de coletividade. Alguns estudantes abordaram que, a depender do curso de graduação no qual o(a) morador(a) está matriculado(a) e o seu status social correspondente, havia maior dificuldade na convivência e no diálogo: “porque existe muito ego, uns querendo se… é uma questão dos próprios cursos, uns achando que são mais que… em relação aos outros” (Participante 4).
Tal situação retratada diz respeito ao prestígio social que ainda se perpetua dentro e fora do cenário universitário no tocante a alguns cursos acadêmicos, em geral aqueles que historicamente tiveram vagas ocupadas quase que exclusivamente por jovens da elite social e econômica, sendo o trecho apresentado revelador de desigualdades ainda evidentes no meio acadêmico. Como saída, tida como a mais comum quando não há sucesso nas negociações ou ocorrem recorrentes conflitos, está a solicitação frente à administração para mudança de quarto. No caso dos(as) entrevistados(as), a maioria já tinha trocado de quarto pelo menos uma vez, sendo uma das soluções encontradas entre estudantes e gestão para mediar conflitos.
Apesar de ter sido mencionado como lugar que proporciona relações de amizades e vínculos, ao serem perguntados(as) sobre quem são as pessoas que recorrem diante de uma dificuldade ou problema mais sério, poucos relatos apontaram colegas de moradia entre aqueles que estavam em sua rede de apoio. Ao contrário, a rede de apoio mencionada estava fora da moradia, em alguns casos, fora do próprio espaço universitário. Resultado semelhante foi encontrado por Berlatto e Sallas (2008), que constataram que moradoras de casa de estudante não construíam ligações fortes umas com as outras e, geralmente, retornavam para sua cidade após concluir o curso. Aquelas que moravam em cidades mais próximas, em geral, costumavam passar os fins de semana com a família, não havendo muito espaço para vínculos entre moradoras. Nesse sentido, caminhos que promovam novos modos de produzir afetos e redes de apoio no espaço da moradia se mostram relevantes desafios para aqueles(as) que buscam melhorias para as condições de vida nesse cenário, tendo em vista que a pobreza de relações sociais constitui fator que pode contribuir para diversas formas de adoecimento (Andrade & Vaitsman, 2002).
Ainda no campo das sociabilidades, conflitos e situações de violência foram lembrados ao longo das entrevistas. Apesar da descrição como acontecimentos pontuais, costumam promover grandes repercussões na casa, pois em algumas situações as mediações acontecem pelos(as) próprios(as) moradores(as) ou por funcionários(as) da moradia. Foram relatadas agressões físicas entre colegas de quarto, agressões entre casais e situações de ameaça. Em geral, agressões e conflitos mais graves acontecem quando extrapolam os limites da boa convivência, em que já houve algum tipo de mediação feita pelo conselho de moradores ou pela administração e, mesmo assim, a situação persiste:
A maior parte dos conflitos começa pequena, assim, sabe, o fulano que não quer limpar o quarto, o ciclano que traz visita que ficam fumando maconha dentro do quarto. Então, aí, como não se tem um… como não se tem uma… uma recepção de orientação (Participante 9).
Segundo moradores(as), os conflitos mais graves surgem das dificuldades vivenciadas no dia a dia da moradia, por ausência de mediações na fase inicial do conflito e condições de vida marcadas por histórias de violência e vulnerabilidade. O impacto provocado pelos conflitos e pelas situações de violência leva moradores(as) a manifestarem sofrimento psíquico, enfrentarem situações de constrangimento e queda no rendimento acadêmico, colocando em jogo a própria permanência na moradia.
No campo das pesquisas sobre a saúde em moradias estudantis, é percebido que a experiência de viver em moradias universitárias pode provocar impacto sobre a saúde dos estudantes e condições que propiciem sofrimento psíquico (Osse & Costa, 2011; Shaikh & Deschamps, 2006). No contexto apresentado, amplia-se a necessidade de demandas por políticas de assistência estudantil que incluam projetos e ações relacionados a dinâmicas relacionais, regras de convivência, gerenciamento dos espaços e condições psicossociais que emergem no cotidiano das moradias universitárias.
Vivenciar situações de violência e outras formas de vulnerabilidades pode expressar potenciais de adoecimento ou não adoecimento que estão relacionados a cada um dos indivíduos que se situa em um conjunto de condições (Ayres, França, Calazans, & Saletti Filho, 2009). É nesse sentido que a discussão será finalizada com a reflexão de uma residente que questiona se a moradia poderia ser considerada um lugar saudável. Ela manifesta uma certa preocupação com os(as) colegas que silenciam suas dores, que adoecem nesse lugar e com aqueles(as) que não suportam esse tipo de convivência e acabam desistindo de continuar morando lá. Mas, ao mesmo tempo, avalia que, diante das dificuldades de alguns, poderiam surgir iniciativas para melhorar as condições de vida naquele lugar. Integrar forças para ampliar as potencialidades locais, portanto, pode contribuir para que novos sentidos possam ser atribuídos ao lugar, fortalecendo laços sociais e novas formas de se apropriar do espaço.
Considerações finais
Em meio às dinâmicas e às transitórias relações construídas pelos(as) moradores(as), é possível se deparar com condições de vida similares e singulares, que ora se aproximam, ora estão distantes entre si, ora partilham bons momentos e ações em prol do coletivo, ora atuam na lógica do “cada um por si”. Alguns(as) conseguem permanecer pelo tempo que precisam, alguns(as) nesse processo adoecem, outros(as) não conseguem permanecer e buscam outras saídas para continuar na universidade.
Em meio aos desafios, moradores(as) conseguiram, ainda, olhar para o espaço que habitam e revisitar potencialidades desse lugar, considerar a moradia como seu lar, criando esforços para superar estigmas e vulnerabilidades vivenciados no local e na sua trajetória de vida. No entanto, são elencadas como dificuldades o pouco envolvimento coletivo, a falta de cuidado com os espaços e algumas situações desconfortáveis na convivência coletiva, como ausência de privacidade, diferenças culturais e conflitos.
Ao mesmo tempo, a moradia foi lembrada como local de garantia de direitos frente às lutas sociais e a um processo de inclusão educacional em que são possíveis respiros de liberdade frente a regras institucionais, laços sociais frente a disputas por vagas.
O lugar é múltiplo, as relações são ambíguas, seja com o lugar, seja com o(a) colega com que divide o quarto. Ainda precisam lidar com as repercussões do imaginário social sobre o lugar - o qual cumpre o propósito formal das políticas de assistência estudantil - que se restringem a “problema”, “drogas”, “pobreza” e “violência”, sendo estas marcas de exclusão que revestem o processo de inclusão. Tal situação atravessa a vida dos(as) moradores(as) e os/as desafia a trilhar novos sentidos na sua trajetória como integrantes desse espaço, com disponibilidade para investimento afetivo ao lugar, apropriação do espaço e cultivo de laços sociais.
Instaura-se o debate sobre uma dimensão silenciada da vida universitária, em que a inclusão na universidade não pode se dar apenas pela garantia do acesso, mas deve acontecer de forma ampliada, dando condições aos universitários residentes de permanecer, frequentar espaços mais saudáveis e estimulando a participação/gestão coletiva. Os desafios de ser morador(a) são muitos, diários, históricos, afetivos, políticos e precisam estar em pauta no cenário universitário. Para tanto, novos estudos e intervenções podem aprimorar a discussão sobre a promoção da saúde e a atenção psicossocial no âmbito das moradias estudantis, encontrando caminhos que ampliem as práticas de cuidado e a prevenção das diversas formas de adoecimento, dos conflitos e da violência que estão presentes nesse cenário.
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Financiamento
DRS - Bolsa Produtividade CNPq - 2. LOJ - Bolsista do(a) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES
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Consentimento de uso de imagem
Não se aplica.
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Aprovação, ética e consentimento
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina, em 2016, parecer de nº 1.767.905.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
31 Jul 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
17 Ago 2020 -
Revisado
12 Fev 2023 -
Aceito
28 Abr 2023