Resumo
A fim de analisar as narrativas biográficas de mulheres agricultoras sobre seu papel como trabalhadoras no contexto da agroecologia, desenvolveu-se um estudo qualitativo exploratório. A partir de uma abordagem etnográfica, foram realizadas observações de campo e entrevistas em uma feira agroecológica. Com a informação coletada foi realizada uma análise temática por meio de uma abordagem indutiva. Evidenciou-se que as agricultoras vivenciam desafios associados aos estereótipos de gênero, à dupla jornada de trabalho, à invisibilidade de seu trabalho e à dificuldade em ocupar cargos de gestão. Diante dos desafios cotidianos, essas mulheres implementam práticas de transformação, que geram rupturas com os papéis tradicionais de gênero.
Palavras-chave Gênero; Narrativas; Mulheres; Agroecologia
Resumen
Con el fin de analizar las narrativas biográficas de las mujeres agricultoras sobre su papel como trabajadoras en el contexto de la agroecología, se desarrolló un estudio cualitativo exploratorio. A partir de un enfoque etnográfico, se realizaron observaciones de campo y entrevistas en una feria agroecológica. Con la información recolectada, se realizó un análisis temático con enfoque inductivo. Se evidenció que las mujeres agricultoras experimentan desafíos asociados a los estereotipos de género, la doble jornada laboral, la invisibilidad de su trabajo y la dificultad para ocupar puestos directivos. Frente a los desafíos cotidianos, estas mujeres implementan prácticas transformadoras que generan rupturas con los roles tradicionales de género.
Palabras clave Género; Narrativas; Mujeres; Agroecología
Abstract
In order to analyze the biographical narratives of women farmers about their role as workers in the context of agroecology, an exploratory qualitative study was developed. Based on an ethnographic approach, field observations and interviews were carried out at an agroecological fair. With the collected information, a thematic analysis was performed using an inductive approach. It was evident that female farmers experience challenges associated with gender stereotypes, double working hours, the invisibility of their work, and the difficulty in occupying management positions. Faced with everyday challenges, these women implement transformative practices that generate ruptures with traditional gender roles.
Keywords Gender; Narratives; Women; Agroecology
Introdução
A cultura é constituída por meio dos significados e interpretações que as pessoas fazem sobre o mundo. Os significados são construídos em cenários sócio-históricos específicos, que sustentam intenções e práticas para enfrentar os desafios cotidianos (Bruner, 1991; Valsiner, 2009). Nesse sentido, o contexto rural configura-se como um cenário no qual convergem múltiplas histórias, que dão conta dos sentidos que foram construídos sobre o mundo, dentro de marcos sociais e culturais específicos (Landini, 2015; Leite & Leite, 2020). Abordar a experiência das mulheres agricultoras, que atuam no contexto da agroecologia, implica reconhecer essa diversidade.
Desde a infância, muitas mulheres do meio rural acompanham a jornada de trabalho dos pais (Herrera, 2016; Maciazeki-Gomes et al., 2019; Marques & Quaresma Da Silva, 2018). As atividades laborais na agricultura familiar são realizadas paralelamente à formação educacional, o que se torna um desafio, considerando, por exemplo, o tempo dispendido e a distância percorrida para acessar a escola em contextos rurais (Pizzinato et al., 2017). Na adultez, as mulheres agricultoras tendem a desempenhar tarefas comumente associadas a afazeres tidos como mais leves ou entendidos coletivamente como de menor importância, somados às atividades de trabalho doméstico e cuidados com a casa e família. No contexto rural, reitera-se o machismo estrutural de diferentes formas, por exemplo quando a atividade laboral feminina é considerada como ajuda ou acessória às atividades economicamente mais lucrativas. Dessa forma, quando não se reconhece o trabalho realizado pelas mulheres, sua atividade acaba sendo desvalorizada (Herrera, 2016; Marques & Quaresma da Silva, 2018; Paulilo, 1987, 2004; Santos & Merlo, 2019).
No Brasil, por meio dos processos de colonização, paulatinamente se inseriu um ideal católico, que relaciona o comportamento da mulher ao trabalho de cuidado, que por sua vez deve ser submissa e dócil (Pizzinato et al., 2016b). Por outro lado, para os homens, legitimou-se maior autonomia, ocupação do espaço público e mais possibilidades de desfrutar do lazer e do tempo livre. Essas narrativas influenciam as experiências afetivas, a vivência da sexualidade e as expectativas profissionais para mulheres e homens (Narvaz & Koller, 2006; Pizzinato et al., 2016a; Silva et al., 2019). Essas normas tradicionais associadas ao gênero acabam sendo naturalizadas, mantidas e transmitidas de geração em geração (Maciazeki-Gomes et al., 2019).
A organização capitalista dos processos de produção agrofamiliares orienta a configuração de papéis específicos de gênero dentro das famílias, o que define uma divisão do trabalho, na qual, enquanto os homens exercem atividades fora do lar, as mulheres realizam atividades domésticas e de cuidado em companhia de suas filhas (Herrera, 2016). Essas tarefas, apesar de também envolverem desgaste físico e até mesmo uma jornada de trabalho mais longa para as mulheres, são com frequência consideradas trabalho leve (Hirata 2014; Marques & Quaresma da Silva, 2018; Paulilo, 2004; Pizzinato et al., 2016b).
As mulheres também têm acesso a ocupações não agrícolas remuneradas. Porém, o trabalho doméstico, que não é remunerado e é invisibilizado, continua sendo sua responsabilidade (Santos & Merlo, 2019). Mais especificamente, quando comparadas aos homens, elas passam quase o dobro de horas realizando trabalhos domésticos e de cuidado (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 2017; Santos & Merlo, 2019). Ao assumir mais tarefas, dentro e fora de casa, evidencia-se maior fadiga e cansaço nas mulheres (Andersson et al., 2017; Dos Santos, 2016; Herrera, 2016).
No contexto rural, a rotina de trabalho das mulheres implica desgaste físico, elevado número de tarefas a serem realizadas de forma contínua e simultânea, com poucos intervalos para o lazer (Dos Santos, 2016; Herrera, 2016; Marques & Quaresma da Silva, 2018). Como consequência do limitado tempo livre, o acesso a espaços de convivência social para elas é restrito, o que constitui uma barreira para o pleno exercício de seus direitos (Santos & Merlo, 2019). Outro desafio enfrentado pelas mulheres do campo é a violência doméstica, diante da qual com frequência não contam com o apoio de uma rede de atenção, pois os serviços de saúde podem ser precários e de difícil acesso nos contextos rurais (Jalil et al., 2021; Ribeiro et al., 2021; Silva et al., 2019).
Considerando a precarização contextual da agricultura familiar, a agroecologia pode se configurar como uma alternativa para as mulheres do campo. A agroecologia é um modelo de agricultura baseado na integração e aplicação de conceitos ecológicos e sustentáveis na produção de alimentos. Questiona o atual modelo de desenvolvimento industrial (Andersson et al., 2017), se constituindo como um movimento comprometido com a luta pela justiça social, a soberania alimentar, e a redução do impacto ambiental da produção convencional de alimentos, ao mesmo tempo que valoriza os saberes tradicionais associados à agricultura (Costa et al., 2019). A agroecologia baseia-se em concepções que englobam o desenvolvimento rural sustentável, o cultivo de produtos que não degradam o ambiente, a produção de alimentos sem agrotóxicos, e o cuidado da saúde tanto dos produtores agrícolas, quanto dos consumidores (Ferreira & Cepolini, 2018).
Ainda que não seja possível homogeneizar a experiência das mulheres no contexto da agroecologia, uma vez que as singularidades marcam trajetórias específicas (Costa et al., 2020; Lindôso & Bezerra, 2021), a produção de alimentos baseada nos princípios da agroecologia, pode se configurar como uma fonte de renda econômica, e como um espaço para o protagonismo e o fortalecimento da autonomia das mulheres. A produção agroecológica favorece a comercialização em circuitos locais, como é o caso das feiras, nas quais as mulheres participam ativamente. Nessas feiras, além de gerar renda econômica com a venda de produtos agrícolas e artesanais, estabelecem vínculos com os consumidores (Cuervo et al., 2019, 2020). Nesses espaços de comercialização, as mulheres vivenciam a valorização pelo trabalho que realizam, o que contribui para fortalecer seu papel enquanto trabalhadoras e cuidadoras da saúde (Maciazeki-Gomes et al., 2016a; Gomez et al., 2016; Karam, 2004; Siliprandi, 2015).
Para as mulheres que se inserem ativamente nos movimentos sociais, sua participação tem permitido propor novas práticas de caráter mais ativo e autônomo (Lindôso & Bezerra, 2021; Masson & Bastien, 2021; Quirino & Guimarães, 2017). Os movimentos sociais agroecologistas têm viabilizado para elas a possibilidade de desempenhar papéis de destaque na vida pública, o que tem favorecido a implementação de ações em prol da equidade de gênero, a defesa dos direitos das mulheres e do bem-estar em suas comunidades (Lindôso & Bezerra, 2021; Maciazeki-Gomes et al., 2016b; Maciazeki-Gomes & Herrera, 2020; Marques & Quaresma da Silva, 2018; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, 2020; Silva et al., 2019). Porém, a inserção das mulheres rurais nos movimentos sociais e a liderança exercida por elas, acabam sendo processos difíceis, na medida em que sua participação no espaço público pode ser alvo de críticas, enquanto desafia o ideal de mulher submissa e dedicada ao cuidado do lar (Pizzinato et al., 2016b; Silva et al., 2019).
A seguir é apresentado um estudo desenvolvido no estado do Rio Grande do Sul, que se constitui como um recorte de uma pesquisa realizada pela primeira autora, como parte de sua tese de doutorado em Psicologia. O estudo buscou analisar narrativas e descrever trajetórias de mulheres agricultoras, no que diz respeito ao seu papel como trabalhadoras no contexto da produção agroecológica.
Método
Nesta pesquisa qualitativa e exploratória, foi implementada uma abordagem etnográfica (Murillo & Martínez 2010) e foram realizadas entrevistas narrativas (Jovchelivitch & Bauer, 2017; Moura & Nacarato, 2017). A observação etnográfica foi realizada entre dezembro de 2017 e março de 2020, na feira orgânica da Assembleia Legislativa, localizada na cidade de Porto Alegre/RS. A observação da feira permitiu a identificação de informantes-chave. Duas das entrevistas realizadas foram concedidas por agricultoras que trabalhavam nesta feira, que sugeriram outras cinco agricultoras para participarem do estudo. Outra das agricultoras participantes trabalhava em outra feira, da qual a pesquisadora também era frequentadora. Foram realizadas oito entrevistas. Para definir o número de entrevistas, aplicou-se o critério de saturação teórica (Fontanella et al., 2011).
Durante a realização das entrevistas, as participantes foram convidadas a narrar sua história de vida, desde a infância até o presente. Todas foram informadas sobre o procedimento da pesquisa e o consentimento livre e esclarecido lhes foi enviado virtualmente utilizando o aplicativo whatsapp, de acordo com a Resolução nº 510 de 07 de abril de 2016, que dispõe sobre a proteção dos participantes em pesquisas com seres humanos.
Dada a situação de distanciamento social, em função da pandemia causada pelo coronavírus (Covid-19), o contato presencial com as agricultoras para dar seguimento às entrevistas não foi possível. Assim, as entrevistas foram realizadas virtualmente, utilizando os recursos de vídeo chamadas, chamadas de voz e mensagens de áudio do aplicativo whatsapp. Posteriormente, as entrevistas foram transcritas e enviadas para as participantes para que pudessem revisar o conteúdo transcrito. Todas as entrevistadas concordaram com as transcrições, nenhuma acrescentou ou excluiu informações. Por fim, o processo de análise temática foi realizado por meio de uma abordagem indutiva (Braun & Clarke, 2006).
Resultados e Discussão
Por meio da análise temática foram definidas quatro categorias: Saúde, significados e desafios na produção agroecológica; Apoio social, liderança e articulação comunitária; Mulheres, gênero e trabalho; Garantia de direitos e políticas públicas. Para ilustrar cada categoria, são apresentados, a seguir, trechos das narrativas das entrevistadas. Os nomes das participantes foram alterados para proteger suas identidades.
Saúde, significados e desafios na produção agroecológica
Esta categoria refere-se aos significados atribuídos pelas agricultoras ao seu papel no contexto da produção agroecológica e na comercialização de seus produtos. De forma geral, destaca fatores-chave na construção da trajetória das participantes, como a autonomia, a construção de vínculos, o cuidado com a saúde, o interesse na construção de conhecimento e a continuidade de suas práticas nas gerações seguintes. Também destacam a obtenção de renda econômica e sua contribuição para a saúde das pessoas que compram seus produtos, conforme expresso no relato a seguir:
Eu me sinto assim privilegiada, né? Porque eu… além de eu estar oferecendo para minha família aqui, tirando, o nosso viver daqui, da agricultura, do que a gente faz, do que a gente planta. Então assim, para mim, ser uma agricultora é um orgulho. E sem contar que também a gente na agroecologia, a gente pode oferecer para as pessoas um alimento saudável, né? Que as pessoas compram e sabem que eles estão consumindo aquele alimento que nós produzimos aqui, que é livre de um agrotóxico. Ah, então é uma coisa assim ó, maravilhosa mesmo, eu me sinto orgulhosa de ser uma agricultora. De poder ser, dizer assim, eu e a minha família podemos tirar nosso sustento daqui da agricultura. (Isabela, 45 anos)
Para as entrevistadas, a participação nas feiras agroecológicas é uma oportunidade para, além de vender seus produtos, estabelecer vínculos com os consumidores e vivenciar a valorização do trabalho que realizam. Segundo estudos anteriores, esses fatores contribuem para o fortalecimento de seu papel como trabalhadoras e cuidadoras da saúde (Gomez et al., 2016; Karam 2004; Maciazeki-Gomes et al., 2016a; Siliprandi, 2015).
Margarida e Rosa descrevem sua participação nas feiras:
Bah, eu, assim ó, foi muito bom porque eu comecei a ir na feira, a vender, a conversar com as pessoas, a trocar experiência e há quatro anos já que eu estou fazendo isso e eu sou apaixonada por ir lá nas minhas feiras. Aí a gente ficou, eu para fazer as feiras e ele mais para cuidar da produção. Aí, assim ó, tudo de bom. Adoro ir lá em Porto Alegre levar meus produtos, a gente faz com muito amor e carinho. Cuidar da horta e levar lá para vender. Isso foi muito marcante. Não sei até quando eu vou aguentar porque já estou ficando de idade, mas enquanto eu tiver força eu vou continuar trabalhando na agricultura para poder levar alimento saudável para o povo da cidade. (Margarida, 37 anos)
Então, é um tipo de público que ele não busca só a comida, né? Ele busca uma comida diferenciada, né? Que aquilo não tenha veneno, né? Que seja saudável realmente. E é muito bom esse contato, porque aí a gente passa o dia inteiro lá, a gente conversa, trocamos experiências, a gente está aprendendo também, eles também estão aprendendo com a gente, né? (Rosa, 47 anos)
As entrevistadas destacaram a importância de oferecer um alimento saudável para a venda. Falaram sobre os produtos, que são resultado de um processo de cultivo segundo os princípios da agroecologia, que possibilita a produção de alimentos sem agrotóxicos, o que contribui para o cuidado da saúde de produtores e consumidores (Ferreira & Cepolini, 2018). Porém, sendo a agroecologia um movimento, cujos princípios questionam o atual modelo de desenvolvimento industrial (Andersson et al., 2017), são vários os desafios, que as agricultoras e suas famílias têm enfrentado para consolidar o seu projeto de produção, como a falta de acesso a processos de formação e a recursos financeiros. Assim foi relatado pelas entrevistadas:
As coisas começaram a declinar, né? A ir num declínio porque os governantes que assumiram já não eram mais tão apoiadores, né?... A gente vê coisas catastróficas, e no setor da agricultura familiar, principalmente agroecológica e orgânica, o cenário é mais catastrófico ainda. Então recursos a gente acabou não tendo mais, as universidades já não tendo mais recursos para fazer visitas, pra fazer cursos, pra fazer nada. (Lúcia, 26 anos)
Porque se tu vai plantar soja transgênica, uma coisa transgênica, aí tu vai ter os fazendeiros que vão te ajudar nisso. No transgênico tu sempre tem parceria. Mas como a gente queria trabalhar orgânico, queria se manter orgânico, tu não acha parceria, tu não consegue sobreviver. (Teresa, 29 anos)
Nos trechos acima, as entrevistadas destacaram as dificuldades vivenciadas no contexto da produção agroecológica, situações que refletem os desafios a serem enfrentados pelo movimento agroecológico como um todo. Isso ocorre, pois tal modelo apresenta-se como resistência diante do modelo atual de desenvolvimento e determinados regimes de produção neoliberal (Costa et al., 2019).
As participantes apontam a importância de dar continuidade à produção agroecológica. Destacaram também a necessidade de dar continuidade ao seu processo educativo, com o objetivo de ampliar seus conhecimentos e melhorar a qualidade da sua produção:
Eu comecei a cursar o curso de Nutrição. Na faculdade… uma faculdade a distância, né? Porque eu não tenho como fazer uma faculdade presencial... E é uma profissão assim, que é muito necessária nas agroindústrias, né? A gente sente muita falta disso, eu sinto muito falta de conseguir fazer as tabelas nutricionais. A gente tem uma gama muito grande de produtos, né? Então eu sinto muita falta disso. E esse serviço normalmente é um serviço caro. Então isso foi uma das minhas principais motivações, né? Mas também eu acredito que vai ser uma experiência bem interessante e bem, e que vai agregar muito ao nosso trabalho, né? Vai me trazer conhecimentos, que eu vou poder depois utilizar, tanto na agroindústria… para cada vez mais a gente melhorar a qualidade dos nossos produtos e de nosso atendimento. (Lúcia, 26 anos)
No trecho acima, a entrevistada destacou a importância de articular o saber profissional com a sua atuação no contexto rural. Essa narrativa contrasta com os resultados apresentados por Adolfo Pizzinato e colegas (2017), em relação à ideia defendida por jovens mulheres rurais, que afirmavam que, para ter acesso ao ensino superior e a boas oportunidades profissionais, seria necessário migrar do campo para a cidade. As agricultoras também falaram sobre seus planos e expectativas sobre o trabalho no campo e a continuidade nas seguintes gerações. O trecho a seguir exemplifica:
Então meu objetivo daqui uns 20 anos… é de que meus filhos estejam tocando o que eu estou fazendo hoje. Que eles tomem conta da produção e que eles estejam tocando. E que a gente também esteja bem melhor de vida, né? Que consiga melhorar cada vez mais. A tendência não é tu diminuir, é tu melhorar. Então a ideia é tu melhorar e tu conseguir continuar, com que eles dêem uma continuidade. Eles vão continuar e vão seguir o que a gente está fazendo, mas melhor. Melhor em que questão? Melhor em formado em alguma coisa, né? Que vão estar ganhando o dinheiro deles, formados, mas que vão continuar o que a gente está fazendo. Então a tendência é que melhore. Consigam ser, digamos, melhor que a gente. Consigam ter uma profissão melhor do que a da gente. Mas é continuar, sempre continuar e tentar melhorar cada vez mais. (Teresa, 29 anos)
A narrativa da participante está ligada à ideia de que a herança dos pais não é apenas a da terra, mas também a constitui a formação em uma profissão. Esta ideia pode ser reflexo da lógica da sociedade capitalista, que, de alguma forma, produz um distanciamento dos saberes e tradições locais (Maciazeki-Gomes et al., 2019).
Apoio social, liderança e articulação comunitária
Esta categoria destaca a experiência de mulheres agricultoras na luta pela terra, sua participação em cooperativas e movimentos sociais e seu papel de liderança dentro desses coletivos. As entrevistadas falaram sobre sua experiência em movimentos como o do MST1, nos acampamentos, e sobre sua chegada ao assentamento. Destacaram esses eventos como vivências importantes da sua trajetória, nas quais a solidariedade coletiva e os laços comunitários permitiram enfrentar as dificuldades:
Eu me recordo do acampamento assim, foi uma fase da minha vida muito boa, que eu aprendi muitas coisas. O acampamento, a convivência com as pessoas, as amizades que a gente fez assim. Eu tenho uma recordação assim do acampamento muito boa mesmo. Que hoje eu estou aqui em cima da minha terra, mas aquele tempo que eu passei debaixo de um barraco era sofrido, tudo mais, mas foi muito bom. Muito bom mesmo. (Isabela, 45 anos)
Com os assentamentos em volta, foi se desenvolvendo mais, depois a gente foi crescendo, teve, que eu fui lembrando, que eu fui crescendo, né? Eeee… A vizinhança era muito boa, muito amigo, por que foi muito difícil no início, ninguém tinha dinheiro, então muitas vezes faltava mmm...uma colher de açúcar tu corria no vizinho, o vizinho emprestava, tudo era um conjunto, assim, bem bom. (Liliane, 30 anos)
Dada a importância da pauta da luta pelo acesso à terra, como elemento chave de mobilização coletiva (Maciazeki-Gomes et al., 2016b), as entrevistadas sublinharam a sua participação no MST. Destacaram a importância da conquista da terra, como eixo fundamental, que permitiu superar a pobreza. Vale ressaltar que a participação das mulheres na luta pela terra tem sido muito forte, mas, segundo Lindôso e Bezerra (2021), o papel das mulheres nessa luta não tem sido visibilizado.
As agricultoras falaram sobre os efeitos positivos que a organização coletiva teve nas suas vidas. Conforme mencionado por Maciazeki-Gomes e colegas (2019), a organização em coletivos sociais, favorece a implementação de ações para melhorar a qualidade de vida tanto para si mesmas, quanto para suas famílias e a comunidade mais próxima. Sobre essa experiência, segue o relato de uma das agricultoras entrevistadas:
[Quando] ganhamos nossa terra, eu tinha treze anos de idade. Então, a partir dali a minha infância começou a mudar, da infância para adolescência com uma expectativa melhor de vida. A partir de 13 anos conquistamos nossa terra e ali a gente trabalhava em cima do que era nosso. Então foi uma conquista muito grande. Trabalhamos com agroecologia a partir daí. Então hoje tenho 41 anos, foi um marco bem grande assim, porque chegamos à conclusão de que tínhamos todas as condições de produzir o nosso alimento, assim como contribuir com alimentação da nossa comunidade, do nosso entorno, enfim, de muitas famílias, que hoje a gente consegue com a nossa alimentação limpa, sem uso de agrotóxico. (Tatiana, 41 anos)
As entrevistadas destacaram ainda seu papel de liderança dentro do MST, que tem lhes permitido acessar espaços de formação e troca de conhecimento (Quirino & Guimarães, 2017). Da mesma forma, têm fomentado o estabelecimento de vínculos, a ampliação da rede de apoio social, a participação em cooperativas e em processos de tomada de decisões. A participação das entrevistadas em movimentos sociais contribui ainda para mobilizar a reflexão sobre os papéis tradicionais de gênero, além de possibilitar o trabalho comunitário em processos de promoção da equidade de gênero e do bem-estar, resultado que coincide com o observado por Lindôso e Bezerra (2021), Masson e Bastien (2021) e com Maciazeki-Gomes e parceiros (2016b). Segue a fala de uma das entrevistadas sobre sua experiência:
Eu estou com a coordenação geral das mulheres do assentamento. Nós temos um grupo de mulheres que fazemos alguns debates, algumas atividades, alguns passeios, e hoje a coordenação está comigo.... Nós temos em torno de 50 mulheres participando do grupo, desde discutindo produção, como violência contra a mulher, e depressão, essas coisas que acabam afetando o dia a dia, né? Então nós temos um grupo ativo que, pelo whats, estamos conseguindo nos manter fortes, uma dando o suporte para a outra nesse momento que nós estamos vivendo, né? ...eu iniciei a minha coordenação com alguns cursos que eu fiz, né? Porque tu sai lá do fundo das grotas, tu não… é uma pessoa muito tímida, não se mexe muito, então tem que ter alguma forma de começar a se despertar, né? E uma das formas foi desde fazer curso de teatro, de voz, de, para começar a te expor, né? Então… e a partir dali eu fiquei seis anos na direção política do Movimento Sem Terra, eu tive a coordenação do nosso centro de formação aqui em Viamão. (Tatiana, 41 anos)
Os relatos das entrevistadas evidenciam que, o fato de elas assumirem papéis de liderança na esfera pública, não implica uma redistribuição das tarefas domésticas. Essas atividades continuam sendo de sua responsabilidade, o que implica que elas devam assumir uma dupla ou tripla jornada de trabalho (Andersson et al., 2017; Dos Santos, 2016; Pizzinato et al., 2016b; Santos & Merlo, 2019; Silva et al., 2019). Sobre essa situação segue o trecho da fala de uma das entrevistadas:
Então além dessa rotina de trabalho fora, né? na-na na cooperativa, na articulação das feiras, né? de fazer cursos e outras vezes de dar cursos, enfim, tinha ainda que chegar em casa e fazer o trabalho doméstico, né? Dividir o trabalho doméstico com o meu companheiro, mas as mulheres sempre fazem mais (risos da entrevistada), então sobrava, ãhmm, minha vida virou trabalho, né? (Giovana, 40 anos)
Essa situação reflete quanto os papéis sociais atribuídos às mulheres, ligados à esfera privada, continuam vigentes, gerando sobrecarga para elas, enquanto assumem os cuidados de casa, dos filhos, além do trabalho fora de casa (Silva et al., 2019). Sobre a participação ativa das mulheres no espaço público, uma das entrevistadas relatou como foi alvo de críticas por parte de familiares. Isso ocorre, pois ocupar o espaço público desafia o ideal de mulher submissa, dócil e dedicada ao cuidado do lar (Pizzinato et al., 2016b; Silva et al. 2019). Nesse sentido, Giovana narrou suas dificuldades:
A gente, vivendo numa sociedade patriarcal e sexista, isso não era uma tarefa… isso era uma tarefa fácil do lado de fora, da porta pra fora. Mas em casa era um outro discurso, porque tinha que convencer meu pai, especialmente, de que eu não estava, ãhm, gastando meu tempo, né? Que isso também era importante para a constituição ãh, de um ser humano, né? Então o fato de eu ser mulher, isso impactou profundamente né, na minha, na minha saída, ou nas minhas atividades ãhm sociais né? ãh, ãh, e de militância também, porque eu, como uma moça, devia ficar em casa e não ficar (risos) batendo perna na rua. Era assim que meu pai falava. (Giovana, 40 anos)
Os relatos das entrevistadas possibilitaram evidenciar as mudanças e rupturas que se configuraram no cotidiano das mulheres, como efeito de sua articulação com grupos e movimentos sociais, conforme apresentado por Lindôso e Bezerra (2021), Maciazeki-Gomes et al. (2019), Masson e Bastien (2021) e Silva et al. (2019). Porém os papéis sociais ligados à esfera privada, atribuídos historicamente às mulheres, continuam vigentes, acarretando para elas o enfrentamento às críticas por parte dos familiares, e uma dupla ou tripla jornada de trabalho (Marques & Quaresma Da Silva, 2018; Silva et al., 2019).
Mulher, gênero e trabalho
Esta categoria analisa situações associadas à história familiar e ao trabalho. As entrevistadas relataram que durante a infância e adolescência trabalharam em conjunto com os pais para garantir o sustento da família, por vezes em contextos de violência doméstica:
Ah, a minha adolescência, acho que foi marcada pelo trabalho, né? Muito trabalho. Eu não, eu não tinha assim a como os outros adolescentes que podem sair, coisa assim. E eu não. Tinha eu e a minha irmã, então a gente trabalhava muito, muito, muito. Meu pai muito… era ruim mesmo pra nós. Ele… a gente não podia, às vezes chegava um fim de semana, a gente tinha vontade de sair, ir jogar na comunidade, jogar um vôlei, uma coisa assim, meu pai não deixava. Fazia a gente ficar trabalhando na lavoura, não tinha horário pra gente ficar trabalhando. E ... é uma coisa assim, que ficou, que meio que eu tenho aquela-aquela coisa na minha mente, né? Que meu pai, ele costumava, jogava muito, então ele jogava baralho, ele saía, ia nos bares jogar e aí a gente trabalhava, trabalhava junto com a minha mãe na lavoura. Aí chegava assim, a gente, chegava o final de uma colheita da lavoura, às vezes ele pegava aquele dinheiro e saia, passava a noite toda jogando e aí voltava pra casa no outro dia sem nada de dinheiro. Aí eu lembro assim que a minha mãe ficava, né, triste. Ela não tinha as coisas aí... e ele perdia tudo, aí ele ficava bravo, ele queria descontar em nós, né? Então é uma situação assim que eu lembro da minha infância assim é, foi muito, muito ruim mesmo. (Isabela, 45 anos)
Em seu relato, Isabela descreve como, desde a infância, ela acompanhou a jornada de trabalho dos seus pais. Reflete também sobre a alta carga de atividades que tinha que assumir, o que se somava ao sofrimento psíquico, resultante das experiências de violência doméstica. Situações como essas são vivenciadas por mulheres no campo, as quais muitas vezes não contam com uma rede de serviços de atendimento, como apontado por Jalil et al. (2021) e Silva et al. (2019).
No contexto de uma sociedade patriarcal, historicamente tem sido legitimada maior autonomia para os homens em relação às mulheres, o que influencia as experiências afetivas e a vivência da sexualidade (Silva et al. 2019). Nesse sentido, Teresa relatou sua experiência:
A gente, nós fomos criados de um jeito, eu e minha irmã… meu irmão, porque era filho homem, foi criado mais solto um pouco, sabe? Mas eu e a minha irmã fomos criadas numa adolescência bem presas sabe? Nós ficávamos só em casa, não íamos em bailes, não íamos em festas, não tínhamos muitos amigos, eram poucos amigos, porque era tudo regrado, né? E guria naquela época só brincava com guria, guri não brincava com guria. Então era uma infância bem regrada. Aí eu nunca fui assim muito de sair, sabe? De ir em festa. A mãe não deixava, não deixava ir para casa de amigo, não dormia fora, nada dessas coisas. Era só em casa. (Teresa, 29 anos)
Segundo Maciazeki-Gomes et al. (2019), o início da vida adulta para algumas mulheres rurais é narrado a partir do casamento e da constituição de uma nova família. Destacam-se entre as entrevistadas, histórias de casamento e gravidez precoce, que levaram-nas a assumir, sendo ainda muito jovens, as responsabilidades associadas à vida adulta, ao cuidado dos filhos e, em alguns casos, a enfrentar situações de violência:
Eu tinha 16 pra 17 anos, aí tive que me casar cedo. Aí perdi toda aquela época boa de viver, né? Já cuidando de uma criança. Sofrendo. Eu me casei mal. O meu ex-marido era muito alcoólatra, bebia muito. Eu sofria muito. Minha, minha ex-sogra era muito ruim também, era uma família de italianos e como eu era de uma família de gente mais morena, né? Meu pai… Então. Bah, então foi assim, bem complicado esse tempo que eu passei com bebê pequeno. Eu, bah, muito ruim mesmo. (Isabela, 45 anos)
No que diz respeito aos papéis específicos, de acordo com o gênero, espera-se que as mulheres realizem atividades domésticas e de cuidado (Herrera, 2016). As entrevistadas destacaram, no contexto rural, a horta como espaço feminino, local de produção de alimentos, tanto para a família quanto para a comercialização:
A mulher, dentro do contexto da agricultura, eu vejo que ela tem um papel muito importante. Porque normalmente é a mulher, que cabe fazer a comida, né? É a mulher quem cozinha pra família, é a mulher quem cultiva a horta, né? No caso, aqui em casa, é a minha mãe, né? A matriarca. Mas normalmente é a mulher que cuida das sementes, que cuida dos cultivos da horta, que cuida da alimentação da família. Então eu vejo que ela é responsável direta pela produção dos alimentos que vão ser ofertados pra população e, principalmente, ela é a responsável direta pelo consumo de alimentos dentro da propriedade. Pela produção para o consumo interno, pela qualidade desses produtos, pela qualidade da alimentação da sua família, pela qualidade, inclusive, da saúde da sua família. (Lúcia, 26 anos)
Nos relatos das entrevistadas, evidenciou-se a falta de reconhecimento do trabalho realizado pelas mulheres, considerado menos exigente, e como uma atividade de ajuda ao cônjuge, de forma semelhante ao observado em outros estudos (Herrera, 2016; Marques & Quaresma Da Silva, 2018; Masson & Bastien, 2021; Paulilo, 1987, 2004; Santos & Merlo, 2019). Assim foi relatado pelas entrevistadas:
Porque tu tá ali, na volta da casa, com um canteiro de alface, um canteiro de beterraba, enfim. Isso quem trabalha é as mulheres. E como é que nós nos desafiamos a fazer isso, quando se tem filhos, quando… (tosse), quando se enfrenta um monte de outras tarefas que tu tens, né? E que muitas vezes não é reconhecida, né? (Tatiana, 41 anos)
a mãe ajudava. A mãe ajudava em tudo. Quando ele ia cortar pedra, ela ia cortar junto, né? Ajudava a carregar e tudo. E quando o pai ia cortar, serrava lenha, a mãe ia no mato buscar a lenha, junto de carroça, nós tínhamos uma carroça, era cavalo e carroça. A mãe ia buscar lenha junto com ele, a mãe serrava, a mãe ajudava a entregar. Então a renda vinha dos dois. A mãe sempre teve participação na renda da casa, sempre ajudou. (Teresa, 29 anos)
Em consonância com os achados de Santos e Merlo (2019), os relatos das entrevistadas permitiram observar que elas são responsáveis por desenvolver múltiplas tarefas durante o dia. Têm, consequentemente, tempo limitado para o lazer e o aproveitamento de outros espaços sociais, e a necessidade de adiar permanentemente outras atividades diferentes do trabalho cotidiano:
Acordei de manhã, tomo um café por umas 6h, e vai pra, tiro o leite, eu tenho vaca, vou tirar leite. Tiro o leite, trago para dentro, trato os porcos porque a gente tem porcos também. Temos galinhas, trato as galinhas, trato os porcos, boto água e vai para a lavoura. Vai plantar, vai capinar, vai mexer no chão, vai arrancar mato, até umas 11h, 11h eu venho para dentro porque eu tenho as crianças pequenas, né? Tenho que fazer comida. Faço meu almoço, 1 hora já estou indo para roça de novo, já estou pronta, estou indo para lavoura de novo. Umas 6h a gente para porque daí tem toda a função dos animais. Tem que tratar, tem que tirar leite, tem que buscar vaca. Daí a gente busca, faz toda essa função e arrumar as crianças. Vêm para dentro as crianças, dar banho, fazer essas funções deles dentro de casa, né? Então, agricultora é de segunda a segunda. (Teresa, 29 anos)
As histórias das entrevistadas refletem as práticas tradicionais em relação aos papéis de gênero e os significados atribuídos ao trabalho realizado pelas mulheres. Em sua perspectiva, essa atribuição de atividades parece ser naturalizada, embora algumas problematizem a divisão de tarefas no contexto doméstico. Evidenciou-se também a falta de reconhecimento e valorização do trabalho realizado por elas, como já apresentado em outros estudos (Herrera, 2016; Marques & Quaresma da Silva, 2018; Paulilo, 1987, 2004; Santos & Merlo, 2019).
Os relatos das participantes revelam a sobrecarga de trabalho que elas assumem quando, além das atividades agrícolas, são responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidado, que não é remunerado, e é um trabalho invisibilizado (Santos & Merlo, 2019). As mulheres são responsáveis pelo preparo dos alimentos, a limpeza da casa e o cuidado das pessoas, da horta e dos animais. O envolvimento delas no pomar é importante, pois são produzidos alimentos para o autoconsumo, promovendo a manutenção e a segurança alimentar das famílias (Herrera, 2016). Com isso, fica evidente que a rotina de trabalho das mulheres no campo implica desgaste físico, com poucos intervalos para o descanso e o lazer (Dos Santos, 2016; Herrera, 2016; Marques & Quaresma da Silva, 2018). Segundo Santos e Merlo (2019), devido ao pouco tempo livre, o acesso a espaços de convivência social para as mulheres é restrito, o que constitui uma barreira para o pleno exercício de seus direitos.
Garantia de direitos e políticas públicas
Esta categoria refere-se às experiências das participantes em relação ao acesso aos serviços de saúde e educação e à implementação de políticas públicas no contexto rural. A distância das instituições de ensino e a oferta limitada de serviços socioassistenciais e de saúde constituem especificidades da vida no contexto rural (Jalil et al., 2021; Pizzinato et al., 2017; Ribeiro et al., 2021; Silva et al., 2019). Assim foi relatado por Isabela:
Com meus pais, que a gente vivia numa região que a gente era, era muito pobre. A gente vivia… trabalhava muito, né, em terras de, de outros. Então eu me criei assim, ahm, bem sofrida. E aí, com o passar dos tempos, a gente foi estudar, aí, era longe, bastante. A gente caminhava muito pra ir pro colégio, era bem sofrido mesmo. Então são coisas assim, que eu… que eu lembro hoje, né? desse passado, que, que a gente sofria bastante. (Isabela, 45 anos)
As agricultoras defendem a agroecologia, tanto como forma de produção de alimentos, quanto como prática política que defende a justiça social e a vida digna. Em suas histórias, elas ressaltam a importância da mobilização comunitária e das políticas públicas, como ferramentas fundamentais para a transformação social:
A minha constituição enquanto, enquanto pessoa, né? ele, ele teve a agroecologia, o tema da agroecologia, o tema da sustentabilidade, o tema de um… de uma, de uma vida digna, de uma vida justa, de um trabalho. A agroecologia foi um norteador, o tempo todo. Porque, quando a gente pensa que na agroecologia, né? para promoção da agroecologia, para promoção de uma, de uma igualdade entre homens e mulheres no campo, a gente precisa, ãh, entender que para isso precisamos da Reforma Agrária. E para isso a gente precisa de políticas públicas para mulheres e para homens rurais, né? Ãhhhh e que para isso a gente precisa ocupar, de forma consciente o nosso território, o espaço em que estamos inseridos, né? Ãh, com a biodiversidade que nós temos e que nós precisamos continuar promovendo. Então eu acho que o nosso papel, ele é, ele é muito desafiador. E todo dia, todos os dias a gente tem uma luta árdua, e de resistência, né? Para se manter na terra, para se manter produzindo de modo agroecológico. De a gente promover um comércio justo, de a gente ter a igualdade dentro da cooperativa ou dentro dos espaços, ã, uma igualdade de homens e mulheres, né? É um trabalho muito difícil, ainda, e é um desafio cotidiano. (Giovana, 40 anos)
Como já foi salientado por Maria Costa et al. (2019), a agroecologia constitui-se como um movimento comprometido com a luta pela justiça social, a soberania alimentar, o cuidado do meio ambiente, e a valorização dos saberes tradicionais associados à agricultura, princípios que as agricultoras defendem e os quais foram apresentados nos seus relatos. As trajetórias de vida das mulheres entrevistadas refletem os significados e práticas articulados ao contexto mais amplo do território em que atuam. Destacaram a agroecologia enquanto movimento social, cujos princípios norteiam suas práticas, alicerçadas na sustentabilidade e na justiça social.
Considerações finais
Por meio deste estudo, foi possível conhecer as trajetórias de vida das participantes, quanto ao seu papel no contexto da produção agroecológica. Também foi possível abordar os significados associados ao trabalho, à família, à agricultura e ao ser mulher na comunidade.
Quanto às limitações metodológicas, evidenciou-se a dificuldade de seguir integralmente as instruções para a realização da entrevista narrativa, que indicam uma única pergunta inicial para que a pessoa entrevistada narre sua história. Foi necessário fazer perguntas complementares no percurso da entrevista. A dificuldade em seguir esta orientação metodológica pode estar relacionada ao fato de as entrevistas terem sido realizadas virtualmente.
Apesar destes desafios, o presente estudo possibilitou conhecer as trajetórias das participantes. Evidenciaram-se permanências nos papéis de gênero assumidos por elas, que enfrentam, em seu cotidiano, situações de opressão, falta de reconhecimento e pouca valorização pelo trabalho que realizam. As mulheres do campo ainda enfrentam a sobrecarga de trabalho. A sua rotina de trabalho implica maior desgaste físico, com poucos intervalos para o descanso e com pouco acesso a espaços de convivência social (Santos & Merlo, 2019). O trabalho de cuidado como responsabilidade das mulheres, contribui para a manutenção de práticas atreladas à normativa patriarcal, que destina para as mulheres as atividades conexas à esfera privada, constituindo-se narrativas e práticas que acabam sendo naturalizadas e mantidas de geração em geração (Maciazeki-Gomes et al., 2019).
A histórica invisibilização do trabalho realizado pelas mulheres, e a dupla jornada que elas assumem, contrastam com sua participação ativa em movimentos sociais. Ainda que não seja possível homogeneizar a experiência das mulheres no contexto da agroecologia (Costa et al., 2020; Lindôso & Bezerra, 2021), foram observadas propostas transformadoras orientadas para a configuração de novos papéis para as mulheres. A participação nesses espaços, e nos processos de luta e conquista da terra, como no caso da participação no MST, tem permitido a elas fortalecer sua autonomia, e acessar processos de formação e reflexão, com o potencial de facilitar a problematização dos papéis de gênero, além de promover processos de autoconhecimento e transformação pessoal. Isso possibilita configurar uma nova visão do lugar das mulheres na sociedade, facilitando a autonomia, a construção de redes sociais de apoio, a redistribuição do trabalho doméstico, as ações em prol da luta pelos direitos das mulheres e contra o machismo e a inequidade de gênero, e ocupar papéis de liderança dentro dos coletivos sociais (Maciazeki-Gomes et al., 2019; Masson & Bastien, 2021). Esses novos cenários se tornam um desafio, pois geram tensões e resistências na família e na comunidade.
Ao concluir este estudo, destacamos a importância de desenvolver mais pesquisas que abordem a vida das mulheres rurais e, a partir dessa produção de conhecimento, dar visibilidade à diversidade de narrativas e práticas que se configuram nesse contexto. Esses modos de ser e estar no mundo merecem ser discutidos como processos permanentes de construção de sentido, que dão conta de experiências histórica e culturalmente situadas (Bruner, 1991; Landini, 2015; Valsiner, 2009).
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Nota
-
1
No Brasil, existem centenas de famílias vivendo em acampamentos localizados próximos a grandes latifúndios. Esses acampamentos são liderados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST - movimento que luta pelo direito de acesso à terra (MST, 2020).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Maio 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
26 Abr 2022 -
Revisado
05 Jan 2023 -
Aceito
20 Mar 2023