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CAMPAINHAS, LETREIROS, LUZ DE POLÍCIA: SOBRE SER NEGRO, GAY E FILHO DE FAMÍLIA INTER-RACIAL

CAMPANAS, LETREROS, LUCES DE LA POLICÍA: SER NEGRO, GAY E HIJO DE UNA FAMILIA INTERRACIAL

BELLS, SIGNS, POLICE LIGHTS: BEING BLACK, GAY AND SON OF AN INTERRACIAL FAMILY

Resumo

Este estudo teve como objetivo compreender as vivências de racismo e homofobia narradas por um jovem negro, gay e filho de família inter-racial, e as repercussões em sua constituição psíquica. Estudo qualitativo, transversal e exploratório, tendo como delineamento metodológico o estudo de caso. Foi utilizada entrevista em profundidade, cujos conteúdos foram submetidos à análise temática indutiva e interpretados à luz do referencial teórico dos estudos de raça e subjetividade, sob um olhar interseccional. Os resultados obtidos permitiram identificar efeitos emocionais dos atravessamentos entre racismo estrutural e homofobia, cujas repercussões psíquicas levaram a processos de embranquecimento, negação da identidade racial, comprometimento da autoestima e objetificação do corpo do homem negro homossexual. Refletiu-se, por fim, sobre a necessidade da formação de profissionais de psicologia em questões étnico-raciais, para adequado manejo de tais demandas e não reprodução de violência discriminatória.

Palavras-chave:
Relações étnicas e raciais; Racismo; Homossexualidade; Relações familiares; Sofrimento

Resumen

Este estudio tuvo como objetivo comprender las experiencias de racismo y homofobia narradas por un joven gay negro e hijo de una familia interracial, y las repercusiones en su constitución psíquica. Estudio cualitativo, transversal y exploratorio, con un diseño metodológico de estudio de caso. Se utilizó una entrevista en profundidad, cuyos contenidos fueron sometidos a análisis temático inductivo e interpretados a la luz del marco teórico de los estudios de raza y subjetividad, bajo una perspectiva interseccional. Los resultados obtenidos permitieron identificar efectos emocionales de cruces entre racismo estructural y homofobia, cuyas repercusiones psíquicas llevaron a procesos de blanqueamiento, negación de la identidad racial, autoestima comprometida y objetivación del cuerpo del hombre negro homosexual. Finalmente, reflexionó sobre la necesidad de formar profesionales en Psicología en temas étnico-raciales, a fin de atender adecuadamente tales demandas y no reproducir la violencia discriminatoria.

Palabras clave:
Relaciones étnicas y raciales; Racismo; Homosexualidad; Relaciones familiares; Sufrimiento

Abstract

This study aimed to understand the experiences of racism and homophobia narrated by a young black gay man and son of an interracial family, and the repercussions on his psychic constitution. This is a qualitative, cross-sectional, exploratory study, with the case study as a methodological design. An in-depth interview was used, whose contents were subjected to inductive thematic analysis and interpreted in the light of the theoretical framework of race and subjectivity studies, under an intersectional perspective. The results obtained allowed to identify emotional effects of crossings between structural racism and homophobia, whose psychic repercussions led to whitening processes, denial of racial identity, compromised self-esteem and objectification of the black homosexual male body. Finally, it reflected on the need to train psychology professionals in ethnic-racial issues, in order to properly handle such demands and not reproducing discriminatory violence.

Keywords:
Ethnic and racial relations; Racism; Homosexuality; Family relationships; Suffering

Introdução

Projeto nação Brasil: miscigenação e embranquecimento

Com o avanço tecnológico da genética e dos estudos da Antropologia no século XX, demonstrou-se que não existe comprovação biológica ou cultural que determine hierarquizações entre grupos, culturas e sistemas políticos (Guimarães, 1999Guimarães, Antônio Sérgio Alfredo. (1999). Racismo e anti-racismo no Brasil. Editora 34.). Ocorre que, mesmo diante da inoperacionalidade de seu conceito e ausência de respaldo científico (Munanga, 2004Munanga, Kabengele (2004). Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In Programa de educação sobre o negro na sociedade brasileira. EDUFF. Recuperado de https://repositorio.usp.br/item/001413002
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), raça enquanto categoria social ainda é utilizada para diferenciar, hierarquizar e subjugar diferentes grupos marcados fenotipicamente (Guimarães, 1999).

O racismo, portanto, é entendido como um sistema de crença na hierarquia racial, cujo embasamento se dá a partir de supostos aspectos intelectuais, morais, físicos e culturais (Munanga, 2004Munanga, Kabengele (2004). Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In Programa de educação sobre o negro na sociedade brasileira. EDUFF. Recuperado de https://repositorio.usp.br/item/001413002
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), sendo a noção de raça um conceito essencialmente político, socialmente construído e inter-relacionado ao contexto histórico e às relações de poder (Almeida, 2018Almeida, Silvio Luiz (2018). O que é racismo estrutural? Letramento.; Bethencourt, 2017Bethencourt, Francisco (2017). Racismos: Das cruzadas ao século XX. Companhia das Letras.).

Desse modo, a questão racial é elemento estrutural para entender a construção do Brasil como projeto de nação. De acordo com Azevedo (1987Azevedo, Célia Maria Marinho. (1987). Onda negra, medo branco. Paz e Terra.), a configuração social brasileira pós-abolição da escravatura fez com que a elite da época se deparasse com a “mancha negra” da população. Diante do temor de uma possível retaliação da população negra e da urgência pela construção de uma nacionalidade brasileira, Azevedo (1987Azevedo, Célia Maria Marinho. (1987). Onda negra, medo branco. Paz e Terra.) descreve que a solução encontrada pela elite branca foi a construção da política de imigração europeia no final do século XX, baseada no ideal de embranquecimento e no racismo científico da época.

O objetivo do incentivo à imigração europeia era o desaparecimento do negro por meio da “salvação” do sangue europeu, cujo resultado final seria o homem ariano ideal adaptado às condições brasileiras (Carone, 2012Carone, Iraí (2012). Breve histórico de uma pesquisa psicossocial sobre a questão racial brasileira. In Iraí Carone & Maria Aparecida Bento (Orgs.), Psicologia social do racismo (pp. 13-23). Vozes.; Nascimento, 2017Nascimento, Abdias (2017). O genocídio do negro brasileiro. Perspectiva.). A miscigenação, portanto, foi construída no Brasil como estratégia racista de embranquecimento da população, de acordo com um modelo branco e europeu (Munanga, 2004Munanga, Kabengele (2004). Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In Programa de educação sobre o negro na sociedade brasileira. EDUFF. Recuperado de https://repositorio.usp.br/item/001413002
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).

Uma das principais marcas/consequências da ideologia de embranquecimento e da associação da negritude a estereótipos negativos é a tendência da população de ascendência africana a se distanciar da classificação racial enquanto “negro” (Schucman & Fachim, 2016Schucman, Lia Vainer & Fachim, Felipe Luis. (2016). A cor de Amanda: identificações familiares, mestiçagem e classificações raciais brasileiras. Interfaces Brasil/Canadá, Revista Brasileira de Estudos Canadenses, 16(3), 182-205.). Para Moura (1988Moura, Clóvis (1988). A sociologia do negro brasileiro. Ática.), ao adotar o branco europeu como superior e tipo ideal, e o negro como inferior na hierarquia de prestígio racial, concebeu-se uma escala hierárquica de valores na qual o grupo aceito socialmente seria o mais próximo do branco, enquanto que o mais desvalorizado seria aquele que se aproxima do negro.

Considerando esses pressupostos, um dos processos responsáveis pela reprodução da negação da identidade negra é a socialização racial, entendida como a transmissão dos valores atribuídos socialmente à noção de raça, identidade, relações e hierarquia de status (Frabutt, Walker, & MacKinnon-Lewis, 2002Frabutt, James M., Walker, Angela M., & MacKinnon-Lewis, Carol (2002). Racial socialization messages and the quality of mother-child interactions in African American families. Journal of Early Adolescence, 22(2), 200-217.). Como a primeira instituição incumbida da socialização racial de seus membros, a família é o agente responsável pela manutenção ou desconstrução dessa hierarquia de privilégios baseada nos atributos de raça (Banuth & Santos, 2016Banuth, Raquel Freitas & Santos, Manoel Antônio (2016). Vivências de discriminação e resistência de uma prostituta negra. Psicologia: Ciência e Profissão, 36(3), 763-776. https://doi.org/10.1590/1982-3703002862015
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).

Famílias inter-raciais, racismo e produção de sofrimento

Estudos têm mostrado a complexidade que reveste as relações em famílias inter-raciais e o processo de racialização a que são submetidos seus filhos. Schucman (2018Schucman, Lia Vainer (2018). Famílias inter-raciais: tensões entre cor e amor. EDUFBA.) aponta que um dos principais efeitos psicossociais do racismo dentro de famílias inter-raciais é o mecanismo de negação da identidade racial de seus filhos negros, assim como a tentativa de embranquecimento e a reprodução da violência psicológica por meio da propagação do discurso racista no meio familiar.

Fanon (2008Fanon, Frantz (2008). Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA.) afirma que um dos impactos psicossociais do racismo nos negros é a não aceitação da sua autoimagem, o que resultaria em uma assimilação subjetiva da ideologia do branqueamento. O autor designa como “máscaras brancas” a tentativa de fuga, por parte do negro, das características estereotipadas associadas negativamente à população negra na sociedade ocidental. No mesmo sentido, Souza (1983Souza, Neusa Santos (1983). Tornar-se negro. Graal.) descreve que esse anseio pela brancura repercute em processos dolorosos de auto-rejeição e desejo de embranquecimento.

Sobre o processo da auto-negação, Nogueira (1998Nogueira, Isildinha Baptista (1998). Significações do corpo negro. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano, Universidade de São Paulo, São Paulo. Recuperado de http://www.ammapsique.org.br/baixe/corpo-negro.pdf
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) afirma que, entre pais negros, cujo funcionamento psíquico é regulado por um ideal de ego branco, ocorre a projeção sobre os filhos daquilo que eles próprios não puderam ser: brancos. Considerando esse argumento, acredita-se que estas conclusões podem ser expandidas também para pais brancos, com a correção de que a projeção sobre o filho não seria de algo percebido como faltante em si mesmo, mas justamente a procura de encontrar sua condição enquanto branco refletida em seu filho, rejeitando sua negritude.

Ocorre que, mesmo diante da comprovação dos efeitos emocionais do racismo, das consequências do projeto ideológico brasileiro de embranquecimento e da existência de 31% de uniões no país entre pessoas que se auto-classificam como pertencentes a raças diferentes (IBGE, 2010Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. (2010). Censo demográfico 2010. Autor.), ainda há poucos estudos na área da Psicologia que se proponham a investigar as hierarquias raciais nas famílias brasileiras (Schucman, 2018Schucman, Lia Vainer (2018). Famílias inter-raciais: tensões entre cor e amor. EDUFBA.). Para a autora, a escassez de investigações científicas sobre relações familiares inter-raciais e efeitos psicossociais é entendida como reflexo da relação paradoxal entre pesquisa e sociedade.

Masculinidades, negritude e sexualidade

Para refletir sobre as dinâmicas existentes em famílias inter-raciais brasileiras, contudo, é preciso levar em consideração que todo sujeito é constituído a partir da intersecção de diferenças e desigualdades (Pinho, 2004Pinho, Osmundo (2004). A guerra dos mundos homossexuais: resistência e contra-hegemonias de raça e gênero. In L. F. Rios, V. Almeida, R. Parker, C. Pimenta, & V. Terno (Orgs.), Homossexualidade: produção cultural, cidadania e saúde (pp. 127-133). ABIA.). Proposta por Crenshaw (2002Crenshaw, Kimberlé (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas , 10(1), 171-189. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011
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), a interseccionalidade é a ferramenta teórica que investiga os atravessamentos de opressão, discriminação e dominação, uma vez que estes sistemas aos quais os sujeitos estão subordinados moldam suas vivências e os lugares sociais que eles ocupam.

No presente estudo, pretendemos examinar as repercussões subjetivas das construções de gênero e sexualidade sobre a existência de homens negros, marcada por estereótipos coloniais e escravistas sobre seu corpo, estética e sexualidade (Santos, 2014Santos, Daniel (2014). Ogó: Encruzilhadas de uma história das masculinidades e sexualidades negras na diáspora atlântica. Universitas Humanas, 11(2), 7-20. https://doi.org/10.5102/univhum.v11i1.2923
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). Estudar masculinidades, no entanto, não equivale a pesquisar sobre homens. O conceito de masculinidade está relacionado, na realidade, a processos de configuração de práticas (Connell, 2000Connell, Raewyn (2000). The men and the boys. University of California Press.) e agenciamentos identitários (Baptista-Silva, Hamann, & Pizzinato, 2017Baptista-Silva, Gabriela, Hamann, Cristiano, & Pizzinato, Adolfo. (2017). Marriage in prison: identity and marital agencies in a LGBT wing. Paidéia (Ribeirão Preto), 27(Supl.1), 376-385. https://doi.org/10.1590/1982-432727s1201702
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).

Para Connell (2000Connell, Raewyn (2000). The men and the boys. University of California Press.), as masculinidades permitem que a maioria dos homens receba dividendos da subordinação patriarcal sobre as mulheres. No entanto, diante da dinâmica dos processos históricos, é pertinente retomarmos o questionamento formulado por Conrado e Ribeiro (2017Conrado, Mônica & Ribeiro, Alan Augusto Moraes (2017). Homem negro, negro homem: masculinidades e feminismo negro em debate. Revista Estudos Feministas, 25(1), 73-97. https://doi.org/10.1590/1806-9584.2017v25n1p73
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): seriam todos os indivíduos que vivem a masculinidade beneficiados por esses dividendos da mesma forma?

O processo de escravização, exploração e tráfico humano dos povos africanos no período colonial no Brasil gerou projeções imagéticas sobre homens negros de modo a caracterizá-los como “exóticos, irracionais, fetichistas, bárbaros, incivilizados, desprovidos de razão, inteligência, humanidade e cultura” (Santos, 2014, p. 8Santos, Daniel (2014). Ogó: Encruzilhadas de uma história das masculinidades e sexualidades negras na diáspora atlântica. Universitas Humanas, 11(2), 7-20. https://doi.org/10.5102/univhum.v11i1.2923
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). Visto como um ser animalesco e mercadoria de valor, construiu-se um arquétipo zoomórfico sobre o homem negro, como pode ser observado na obra Nordeste, de Gilberto Freyre (2004Freyre, Gilberto (2004). Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste no Brasil. José Olympio.), na qual o sociólogo branco afirma que o boi e o negro escravizado eram os alicerces vivos da civilização brasileira do açúcar.

Além disso, junto à vistoria sobre o corpo negro enquanto objeto a ser precificado (“peça”, no jargão racista da época), o olhar branco também carregava um caráter de erotização e fetiche sexual. No século XIX, o médico psiquiatra brasileiro Nina Rodrigues (1933, p. 153Rodrigues, Raimundo Nina (1933). As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Editora Guanabara.) afirmou que “a sensualidade do negro pode atingir então às raias quase das perversões sexuais mórbidas”. Sobre essa representação, Fanon (2008Fanon, Frantz (2008). Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA.) afirma que a visão colonial fixou o homem negro em seu genital e em sua suposta potência sexual.

Para Faustino (2014Faustino, Deivison Mendes (2014). O pênis sem o falo: algumas reflexões sobre homens negros, masculinidades e racismo. Cultura Acadêmica.), a especificidade do racismo está justamente no fato de que, sendo os corpos negros alvo sistemático do ódio e do extermínio branco, não há como esconder a marca de diferenciação oriunda do processo da escravidão. Dentre as representações e estereótipos racistas sobre masculinidades negras herdados desse período histórico podemos destacar o caráter da hiper-virilidade e do super-masculino, a hiper-sexualização, a agressividade e o anti-intelectualismo (Faustino, 2014Faustino, Deivison Mendes (2014). O pênis sem o falo: algumas reflexões sobre homens negros, masculinidades e racismo. Cultura Acadêmica.).

Assim, sendo essa a condição de existência definida pela colonização e hegemonia branca, o homem negro que não corresponder a tais expectativas e não apresentar tais atributos pode vivenciar intenso sofrimento psíquico por não performar os estereótipos racialmente construídos (Faustino, 2014Faustino, Deivison Mendes (2014). O pênis sem o falo: algumas reflexões sobre homens negros, masculinidades e racismo. Cultura Acadêmica.). Homens negros gays, homens negros que não apresentem excelente desempenho físico e esportivo, que não tenham um pênis tal como é veiculado exaustivamente em livros e filmes pornôs (Pinho, 2012Pinho, Osmundo (2012). Race fucker: representações raciais na pornografia gay. Cadernos Pagu, 1(38), 159-195.), entre tantos outros clichês estigmatizantes, são condenados à invisibilidade, ao desajustamento e à inferioridade (Faustino, 2014Faustino, Deivison Mendes (2014). O pênis sem o falo: algumas reflexões sobre homens negros, masculinidades e racismo. Cultura Acadêmica.)

Veiga (2018Veiga, Lucas Motta (2018). As diásporas da bixa preta: sobre ser negro e gay no Brasil. Revista Tabuleiro de Letras, 12(1), 77-88. https://doi.org/10.35499/tl.v12i1.5176
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) afirma que há uma dupla experiência subjetiva de sofrimento para aqueles que vivenciam a masculinidade negra e a homossexualidade em uma sociedade heteronormativa, branca, masculina e cisgênera. O autor nomeia como “afeto-diáspora” a sensação de não pertencimento de pessoas negras em sociedades racistas como a brasileira, construídas a partir da retirada forçada de povos africanos de seu território de origem em direção a uma sociedade “anti-negra” e estruturada pela hierarquia racial.

Para homens negros e homossexuais, por sua vez, a segunda experiência afetiva de diáspora ocorre com a descoberta da sexualidade (Veiga, 2018Veiga, Lucas Motta (2018). As diásporas da bixa preta: sobre ser negro e gay no Brasil. Revista Tabuleiro de Letras, 12(1), 77-88. https://doi.org/10.35499/tl.v12i1.5176
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). Em um país onde a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado, e a cada 28 horas uma pessoa LGBT é morta, os corpos e desejos desses indivíduos, a quem o autor chama de “bixas pretas”, são relegados à abjeção, ao desamparo e não acolhimento que os tornam facilmente alvos de violência física e subjetiva, inclusive dentro de seu núcleo íntimo e familiar (Veiga, 2018Veiga, Lucas Motta (2018). As diásporas da bixa preta: sobre ser negro e gay no Brasil. Revista Tabuleiro de Letras, 12(1), 77-88. https://doi.org/10.35499/tl.v12i1.5176
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).

Sob essa perspectiva analítica, entende-se que, assim como não há somente uma masculinidade, também não há uma única masculinidade negra. A recente crítica ao pensamento fixo e hegemônico sobre a noção de masculinidade referenciada em um modelo de homem branco, ocidental, heterossexual, cisgênero, classe média, cristão, urbano e não periférico, entre outros qualificadores (Faustino, 2014Faustino, Deivison Mendes (2014). O pênis sem o falo: algumas reflexões sobre homens negros, masculinidades e racismo. Cultura Acadêmica.; Risk & Santos, 2021Risk, Eduardo Name & Santos, Manoel Antônio dos (2021). Formações discursivas sobre homossexualidade e família homoparental em telenovelas brasileiras.Psicologia: Ciência e Profissão ,41(No. especial 3), e189811. https://doi.org/10.1590/1982-3703003189811
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), denuncia um modo de ser no mundo que é forjado por meio de um violento processo de negação do outro (Veiga, 2018Veiga, Lucas Motta (2018). As diásporas da bixa preta: sobre ser negro e gay no Brasil. Revista Tabuleiro de Letras, 12(1), 77-88. https://doi.org/10.35499/tl.v12i1.5176
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).

A norma homem-branco-cis-hétero produz um efeito colonizador e extrativista sobre as subjetividades entendidas como “fora do padrão”: colonizadora, pois se impõe violentamente sobre o outro, e extrativista, por sugar a energia vital de quem está fora desta norma imposta por meio de processos coercitivos de subordinação (Veiga, 2018Veiga, Lucas Motta (2018). As diásporas da bixa preta: sobre ser negro e gay no Brasil. Revista Tabuleiro de Letras, 12(1), 77-88. https://doi.org/10.35499/tl.v12i1.5176
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).

Desse modo, considerando a negritude e a homossexualidade como marcadores sociais da diferença, este estudo teve como objetivo compreender as vivências de racismo e homofobia narradas por um jovem negro, gay e filho de família inter-racial, e as repercussões incorporadas em sua constituição psíquica.

Percurso metodológico

Trata-se de uma investigação fundamentada na abordagem de pesquisa qualitativa e que adotou como delineamento metodológico o estudo de caso (Stake, 2000Stake, Robert E. (2000). Case studies. In Norman K. Denzin & Yvonna S. Lincoln (Eds.), Handbook of qualitative research (pp. 435-454). Sage.). Maykut e Morehouse (1994Maykut, Pamela & Morehouse, Richard (1994). Beginning qualitative research: a philosophic and practical guide. Routledge Falmer Press/Taylor & Francis.) definem pesquisa qualitativa como uma abordagem flexível, que busca apreender os sentidos da complexidade que configura a subjetividade nas narrativas das experiências humanas, circunscrevendo sentimentos, pensamentos, emoções e aspectos biopsicossociais das vivências investigadas.

Segundo Ludke e André (1986Lüdke, Menga & André, Marli E. (1986). Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. EPU.), a pesquisa qualitativa pode assumir vários formatos, destacando-se o estudo de caso e o método etnográfico. O emprego do estudo de caso como delineamento metodológico utilizado na pesquisa em Psicologia deve observar alguns cuidados, considerando as especificidades do campo e os objetivos da investigação (Yin, 2010Yin, Robert K. (2010). Estudo de caso: planejamento e métodos (A. Thorell, trad., 4ª ed.). Bookman.).

Assim, esse delineamento foi privilegiado neste estudo por permitir lançar um olhar em profundidade para determinadas situações ou experiências de vida, visibilizando a compreensão dos processos de produção de subjetividade. Com essa preocupação, seguimos as considerações gerais e orientações práticas recomendadas por Peres e Santos (2005Peres, Rodrigo Sanches & Santos, Manoel Antônio dos (2005). Considerações gerais e orientações práticas acerca do emprego de estudos de caso na pesquisa científica em Psicologia. Interações: Estudos e Pesquisa em Psicologia, 10(20), 109-126. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/inter/v10n20/v10n20a08.pdf
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) para o emprego de estudos de caso na pesquisa científica em Psicologia.

Participante

O caso que constitui o presente estudo foi extraído de um corpus produzido no contexto de uma pesquisa cujo objetivo era compreender as repercussões psíquicas do racismo a que são submetidos filhos/as oriundos/as de famílias inter-raciais. Os critérios de inclusão foram: ter no mínimo 18 anos, autodeclarar-se negro e ser oriundo de família constituída por casal inter-racial. O participante deste estudo optou por se identificar pelo nome fictício de Caio Eduardo, tinha 23 anos e era estudante universitário.

Instrumentos

Foram utilizados os seguintes instrumentos: (a) Ficha de caracterização sociodemográfica, para colher informações tais como idade, escolaridade, religião, estado civil e configuração familiar. (b) Entrevista em profundidade: escolhida por favorecer a livre expressão do entrevistado, valorizando seu modo singular de construir suas narrativas acerca de suas experiências, com atenção às vivências de transição, relações familiares, relacionamentos afetivo-sexuais e estratégias utilizadas para enfrentar os desafios decorrentes das questões étnico-raciais e de orientação sexual. (c) Diário de campo, que consiste no registro complementar de observações sobre o comportamento do participante durante a entrevista.

Procedimento

Coleta e análise de dados

No preparo do campo de pesquisa, acionamos nossa rede pessoal para levantarmos indicações e contatos de potenciais participantes. No convite para que colaborassem com o estudo foram detalhados os termos e condições da participação. A partir da primeira entrevista, foram indicados outros nomes, e assim sucessivamente, por meio de “bola de neve”. Após os esclarecimentos iniciais, a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), demos início à coleta de dados, realizada em um único encontro, com duração de 1h55min. A entrevista foi realizada em sala reservada, na moradia do entrevistado, respeitando sua escolha e conveniência.

O procedimento utilizado para a coleta de dados foi a entrevista aberta e em profundidade, a partir da questão disparadora “Conte-me sobre a relação com seus pais”. A entrevista foi conduzida de forma livre, privilegiando-se as associações do participante em relação aos acontecimentos por ele considerados relevantes em seu enfrentamento do racismo no decorrer de sua trajetória de vida e de acordo com o objetivo da pesquisa.

O material audiogravado foi transcrito na íntegra e literalmente pela pesquisadora, compondo o corpus de análise deste estudo. Após uma inspeção preliminar, os relatos foram organizados. O exame do corpus se baseou na proposta da análise de conteúdo temática indutiva (Braun & Clarke, 2006Braun, Virginia & Clarke, Victoria. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2), 77-101.). A análise se deu por meio da articulação entre as narrativas e os estudos de raça e subjetividade, na confluência de perspectivas psicológicas, sociológicas e históricas, tendo como eixo ordenador as interseccionalidades.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, sob o registro CAEE 11767319.1.0000.5407, processo 3534 689.

Resultados e Discussão

A partir da articulação com a produção científica sobre a temática do racismo na contemporaneidade, buscamos tecer reflexões sobre as experiências narradas, atentos às repercussões subjetivas na vida do participante de nosso estudo.

Ao entrarmos em contato com o material que compõe o corpus de pesquisa nos sentimos convocados a olhar para as vivências de Caio Eduardo de um modo mais particularizado, diante da intensidade afetiva e da consciência reflexiva presentes em suas narrativas quanto aos efeitos emocionais da intersecção entre raça e sexualidade em sua constituição psíquica. Diante de sua potência narrativa, consideramos que esse material solicitava uma análise aprofundada para ser compreendido, o que em nosso entendimento justifica a proposição de um estudo de caso individual.

Família e questão racial: corpo, cor e não-lugar

Filho mais novo de dois irmãos, Caio Eduardo tinha 23 anos e cursava o ensino superior no momento da entrevista. Em cerca de duas horas, foram poucos os momentos em que se fez necessário introduzir alguma questão ou intervenção em meio à conversação, tal a fluidez de sua fala. A densidade dos relatos, assim como a urgência em ser ouvido ditaram o ritmo e o caminhar da entrevista.

Oriundo de uma família na qual a mãe é branca e o pai negro (“meu pai é negro retinto, minha mãe é bem clara”), Caio conta que o casamento de seus pais nunca foi bem aceito pela família materna, formada por descendentes de italianos e espanhóis. O mesmo ocorreu na família paterna, composta somente por pessoas negras.

Ao referir-se ao seu núcleo familiar, descreve seu pai como um homem introspectivo, que “não chora” e não demonstra afeto. Apesar de o pai ter cursado o ensino superior completo, entende que o racismo se restringe aos atos nos quais a discriminação racial se faz explícita, o que, na opinião de Caio, sempre foi um impeditivo para que o pai compreendesse a necessidade de se posicionar criticamente ao lado dele, filho, contra o racismo velado reproduzido por sua mãe.

Sobre a relação com sua mãe, Caio se emocionou quando tratou desse assunto, afirmando que era uma questão delicada e difícil de abordar. Segundo ele, sua mãe nunca compreendeu de fato o que é racismo, chegando a lhe dizer que era “impossível” que ela pudesse ser racista em algum momento, pois, afinal, é casada com um homem negro. Além disso, assim como o marido, ela também reconhece o racismo somente na ordem do explícito, no que é dito e externalizado. Ocorre que é justamente na dimensão do não dito que Caio situa suas vivências de racismo provocadas por atitudes e atos da mãe.

Não tem um dia que eu fale com a minha mãe que ela não fala sobre meu cabelo, não tem um dia! É como se aquilo incomodasse ela tanto... Minha mãe já falou muitas coisas horríveis sobre o meu cabelo... bombril... você entende? Ela fala que está feio, que é para cortar, que está pegando pó, o tempo inteiro. Todas as expressões racistas, mas mais veladas, ela utiliza, só que, assim, ela utiliza como se não fosse racismo, como se fosse uma brincadeira.

Esse excerto descreve a existência, no meio familiar, da associação do cabelo crespo de Caio a algo sujo e, portanto, supostamente suscetível a “acumular poeira”. Para Grada Kilomba (2019Kilomba, Grada (2019). Memórias de plantação. Cobogó.), essa lógica de pensamento está presente na associação de corpos negros à segregação racial. A ideia de sujeira pressupõe uma determinada noção de ordem, uma vez que não há algo sujo a priori, mas sim algo ou alguém inserido em um sistema de ordenação cujo pertencimento não lhe é destinado.

Kilomba (2019Kilomba, Grada (2019). Memórias de plantação. Cobogó.) ilustra esse sistema de ordenação excludente ao comparar a imagem de uma colher depositada em um prato e uma colher em cima de uma toalha. Na primeira situação, a colher não é vista como sujeira; na segunda, é vista como um objeto que pode sujar a toalha. Assim, pensando as relações raciais hierárquicas, a invenção do branco enquanto referencial universal a ser seguido e cultivado em sociedade confina aqueles que não correspondem a essa imagem idealizada em posições inferiores de direito, cujas atribuições não estão na ordem do belo, limpo e, muito menos, do humano.

Na narrativa de Caio, quando ele assumiu seus cabelos crespos perante a família, há um prenúncio de rompimento com o ideal de brancura projetado sobre ele. A reação materna é de desconforto e repulsa, anunciada por meio de suas “brincadeiras” ofensivas. O que Caio descreve é o processo de deslocamento desse lugar imposto dentro de uma estética branca para uma retomada de controle sobre sua autoimagem, e as consequentes mobilizações afetivas que isso desencadeia em seu ambiente familiar, especialmente o incômodo de sua mãe gerado pela mesma lógica de branqueamento e apagamento dos corpos negros que vigora na sociedade.

Para além das intenções, voluntárias ou não, dos familiares, tais comportamentos discriminatórios contribuem para a manutenção das significações negativas atribuídas à experiência de ser negro no Brasil. Uma das consequências da propagação desse ideário racista e eugenista na intimidade familiar é o desencadeamento de processos autodestrutivos na constituição da subjetividade das pessoas negras. Em relação a essa dimensão, Caio descreve episódios de auto-rejeição e negação de sua identidade negra como um dos efeitos suscitados pelo convívio com parentes brancos que ostentam abertamente discursos racistas.

Eu já cheguei a usar pregador no nariz pra tentar afinar. Eu tentava tomar o menos de sol possível pra ver se ficava mais branco. Foram situações, assim, muito complicadas, muito complicadas. Como eu tinha esse sentimento de negação, eu não me aceitava, era uma revolta, eu tentava ser o menos negro possível, sabe, ser menos.

A psicanalista Isildinha Nogueira (1998Nogueira, Isildinha Baptista (1998). Significações do corpo negro. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano, Universidade de São Paulo, São Paulo. Recuperado de http://www.ammapsique.org.br/baixe/corpo-negro.pdf
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) afirma que é quase impossível que o negro consiga e queira identificar-se entre os seus, dada o constante bombardeamento da subjetividade negra com atribuições negativas, pejorativas e inferiorizantes sobre si mesma. Kilomba (2019Kilomba, Grada (2019). Memórias de plantação. Cobogó.) afirma que pode ser instaurado no sujeito negro um medo de se identificar com a imagem ameaçadora construída socialmente em torno do ser negro. O sentimento de revolta de Caio, de se sentir injustiçado por ter a negritude como morada de seu próprio corpo, denuncia a dimensão dos efeitos devastadores da violência do racismo.

Para Souza (1983Souza, Neusa Santos (1983). Tornar-se negro. Graal.), o processo de tomada de consciência do racismo pelo sujeito negro inscreve em seu psiquismo uma marca de perseguição ao seu corpo-próprio. Ele passa a “controlar, observar, vigiar este corpo que se opõe à construção da identidade branca que ele foi coagido a desejar” (Souza, 1983, p. 6). No mesmo sentido, Kilomba (2019Kilomba, Grada (2019). Memórias de plantação. Cobogó.) descreve a experiência psicológica do racismo como um trauma indizível, para o qual não se encontram símbolos adequados para expressá-lo, recorrendo-se então à tentativa de externalizá-lo em seu corpo.

A todo momento, a produção discursiva do entrevistado é permeada por explicações sobre como cada episódio por ele descrito decorreu dos desdobramentos de determinados atravessamentos de sistemas de discriminação. Sendo o seu núcleo familiar um campo de condensação desses sistemas, a relação com seus parentes mostrou-se fundamental na narrativa de Caio. Para ele, o fato de seu pai nunca o ter apoiado nos conflitos raciais vivenciados dentro da família o fez sentir-se sem uma base de apoio. Sobre sua mãe, afirma ter mais dificuldade em lidar com os episódios recorrentes de racismo produzidos por ela.

Por mais que ela tenha me gerado muitos traumas, muitos traumas, muita coisa que, assim, eu trabalho até hoje na terapia, ela é minha mãe… não tem como eu simplesmente [ignorar], sabe? É difícil, não tem como eu simplesmente pegar e falar: “não, não vou te amar”. Não tem como, é uma coisa que vai além, eu não consigo não amar minha mãe, por mais que ela me faça sofrer, sabe? Eu não consigo, é um sentimento... Então, a minha vida é isso.

Caio descreve que, em seu núcleo familiar, teve de aprender a manejar o conflito entre amor e sofrimento provocado por sua mãe, revelando, por meio dessa ambivalência afetiva, uma grave problemática gerada por um ambiente permeado pelo racismo. O entrevistado afirma que, por vezes, chegou a questionar se a mãe realmente o amava como filho, o que nos alerta para a constatação de que a visão supremacista branca, que propaga o ódio ao povo negro, ganha uma proporção tal que a hierarquização racial consegue se sobrepor aos afetos familiares.

O entrevistado relata sua dificuldade em lidar com as questões emocionais que emergem em decorrência de vivenciar o racismo dentro de sua família:

É muito complicado, porque a gente sofre racismo na rua e a gente tenta buscar apoio na família, aí você sofre racismo na família também. Então, é por isso que a gente não se sente pertencente, porque parece que nenhum lugar é bom.

A sensação de não pertencimento foi uma das dimensões mais destacadas nas narrativas de Caio. O desconforto reaparece sob diferentes roupagens subjetivas, marcado por vestígios de vivências e sentimentos de quem sente ocupar um lugar ambíguo na família, o que faz o participante se perceber dividido entre a experiência de pertencer e o sentimento de ser pária. Isso guarda relação com as diversas violências que atravessam os corpos negros de modos sutis ou ostensivos, em decorrência do racismo estrutural (Almeida, 2018Almeida, Silvio Luiz (2018). O que é racismo estrutural? Letramento.). No contexto sociocultural brasileiro, marcado por profunda desigualdade de direitos e oportunidades, é destinado ao sujeito não-branco, não-heterossexual, não-masculino, não-cisgênero, e a todas outras formas de existência que se situam à margem do normativo, o lugar de outro inferior e abjeto.

Para Veiga (2018Veiga, Lucas Motta (2018). As diásporas da bixa preta: sobre ser negro e gay no Brasil. Revista Tabuleiro de Letras, 12(1), 77-88. https://doi.org/10.35499/tl.v12i1.5176
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), quanto mais marcas fora do padrão estabelecido por uma sociedade racista e patriarcal um indivíduo possuir, mais atravessamentos violentos ele receberá ao longo de sua trajetória de vida. Isso nos faz reiterar a urgência de nos atermos às diferentes experiências de subjetivação produzidas pelas interseccionalidades, tal como se observa na coexistência entre negritude e homossexualidade.

O que quer o homem negro e homossexual?

Enquanto homem negro, homossexual e filho de um relacionamento inter-racial, Caio afirma que o racismo sistêmico experienciado desde o núcleo familiar, junto aos atravessamentos da homofobia, repercutiram e ampliaram o que ele chama de “traumas psicológicos”, experiências de sofrimento que minaram sua autoestima e senso de amor próprio.

O entrevistado conta que, em sua adolescência, poucas vezes ele se aproximou de outros meninos na escola, pois entendia que a imagem que eles faziam dele era de um sujeito ameaçador e violento, devido às figuras pejorativas e desqualificadoras socialmente associadas aos homens negros (Kilomba, 2019Kilomba, Grada (2019). Memórias de plantação. Cobogó.). Na tentativa de mascarar sua sexualidade, Caio conta que chegou a se aproximar de algumas meninas, buscando seguir a cartilha da masculinidade hegemônica, inspirado na conduta de alguns amigos brancos. Todavia, segundo ele, as respostas das meninas diante de suas investidas eram de repulsa e rejeição.

Quando eu tentava dar em cima das meninas para tentar esconder minha sexualidade, eu recebia respostas muito cruéis. Eram respostas, assim, como se eu não fosse gente. Isso contribuiu muito para minha autoestima ficar mais baixa, para eu não me enxergar como uma pessoa bonita e não querer ser uma pessoa negra.

As sucessivas tentativas de mascaramento de sua orientação sexual levam Caio a adotar performances de heterossexualidade compulsória, reguladas pela heteronormatividade como ideal de conformidade social (Gaspodini & Falcke, 2018Gaspodini, Icaro Bonamigo & Falcke, Denise (2018). Sexual and gender diversity in clinical practice in Psychology. Paidéia (Ribeirão Preto), 28, e2827. http://dx.doi.org/10.1590/1982-4327e2827
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; Lira & Morais, 2020Lira, Aline Nogueira & Morais, Normanda Araujo (2020). Psychosocial adjustment profiles of gay and lesbian individuals involved in marital relations: A cluster-based analysis. Paidéia (Ribeirão Preto), 30, e3013. https://doi.org/10.1590/1982-4327e3013
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; Marques & Sousa, 2016Marques, Filipa Daniela & Sousa, Liliana (2016). Portuguese older gay men: pathways to family integrity. Paidéia (Ribeirão Preto), 26(64), 149-159. https://doi.org/10.1590/1982-43272664201602
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; Santos, Brochado Júnior, & Moscheta, 2007Santos, Manoel Antônio dos, Brochado Júnior, José Urbano, & Moscheta, Murilo dos Santos (2007). Grupo de pais de jovens homossexuais.SMAD: Revista Eletrônica Saúde Mental, Álcool e Drogas, 3(2). Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-69762007000200002&lng=pt&tlng=pt
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). No entanto, enquanto homem negro diante de mulheres brancas, ele se depara com a repulsa sustentada pelo imaginário anti-negro dos brancos.

A sensação de “não ser gente” remete ao que Ribeiro e Faustino (2017Ribeiro, Alan Augusto Moares & Faustino, Deivison Mendes (2017). Negro tema, negro vida, negro drama: estudos sobre masculinidades negras na diáspora. Revista Transversos, 10, 163-182. https://doi.org/10.12957/transversos.2017.29392
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) afirmam como humanidade criada pelo esquema colonial-patriarcal: um valor positivo que é conferido somente ao sujeito branco e masculino. Se “ser humano” é sinônimo de ser um homem branco, ao negro restaria se conformar com o desejo de também estar munido dessa brancura, entendida como passaporte para a humanização em uma sociedade racista.

Nesse processo de ataque à construção de sua autoimagem de homem negro, Caio afirma que os episódios de racismo que sofreu ao longo da vida contribuíram para que ele recusasse sua própria beleza e, consequentemente, a de outras pessoas negras. Em decorrência disso, o entrevistado conta que deixou de buscar envolvimentos amorosos e sexuais, bloqueando o desenvolvimento de sua afetividade e sociabilidade. Ele relata que somente depois que entrou na universidade que pôde experimentar seu primeiro beijo e primeiro namoro, e foi nesse contexto que notou um padrão recorrente em seus parceiros: todos os homens com quem se relacionava eram brancos.

Por exemplo, os meninos de que eu gostava eram brancos, porque se eu não conseguia ver beleza em mim, como eu ia ver beleza no outro? Isso foi uma coisa que me marcou demais, eu realmente tinha muita dificuldade.

Esse excerto de fala evidencia o desdobramento dos efeitos subjetivos que o racismo pode provocar na construção da autoimagem da pessoa negra e na configuração de sua afetividade. Ao corromper o senso de amor próprio do sujeito, o racismo mina uma das bases da constituição da autoestima e, consequentemente, afeta a forma de amar o outro (Veiga, 2018Veiga, Lucas Motta (2018). As diásporas da bixa preta: sobre ser negro e gay no Brasil. Revista Tabuleiro de Letras, 12(1), 77-88. https://doi.org/10.35499/tl.v12i1.5176
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).

Nota-se, assim, uma progressão de episódios subjetivos de racismo na narrativa de Caio. A sensação de não pertencimento e a lacuna afetiva vivenciada em seu núcleo familiar, no qual a reprodução do racismo contaminou as bases de sua imagem de si, somada à violência racista sofrida nas demais relações em sociedade, contribuíram para que Caio deixasse de identificar seu corpo negro e o de seus semelhantes como territórios de afeto. A partir desta premissa, o entrevistado passou a reconhecer somente em homens brancos a possibilidade de se sentir acolhido e amado, direcionando seus investimentos libidinais. Essa disposição afetiva, no entanto, chocou-se com a visão racista prevalecente no contexto social em relação a homens como ele, negros e homossexuais.

Os homens brancos te enxergam como objeto sexual, eles esperam que você... Você é um homem negro e gay? Então você tem um papel a seguir. Você está ali pra servir. A maneira que eles falam com você em aplicativo de relacionamento é uma coisa, assim, que você fala… chega a ser desumano, porque eles realmente acreditam que a gente não seja uma pessoa. Então, eu fui muito fetichizado, eu tive muito problema com isso.

Sobre os atravessamentos do racismo e da homofobia, Veiga (2018Veiga, Lucas Motta (2018). As diásporas da bixa preta: sobre ser negro e gay no Brasil. Revista Tabuleiro de Letras, 12(1), 77-88. https://doi.org/10.35499/tl.v12i1.5176
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) afirma que a exotização e fetichização são marcadores atribuídos a um não-lugar ocupado por homens negros e gays no imaginário coletivo. Para o autor, dentro da economia de desejos que modula essas relações, há somente a dimensão corporal a qual esses homens são reduzidos, na qual o seu valor de humanidade é esvaziado e preenchido pelo fetiche sobre sua performance sexual e o tamanho de seu pênis, o que imprime a marca de animalização nos corpos negros e alimenta a criminalização de sua existência.

É nesse sentido que Veiga (2018Veiga, Lucas Motta (2018). As diásporas da bixa preta: sobre ser negro e gay no Brasil. Revista Tabuleiro de Letras, 12(1), 77-88. https://doi.org/10.35499/tl.v12i1.5176
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) se refere à existência dos homens negros como “bixas pretas”, uma vez que o olhar branco e cis-heteronormativo os aprisiona em uma demarcação de objetificação e hipersexualização herdada do período escravocrata, perpetuando as relações de dominação colonial. Megg Oliveira (2017Oliveira, Megg Rayara Gomes (2017). O diabo em forma de gente: (r)existências de gays afeminados, viados e bichas pretas na educação. UFPR.) descreve como o termo “bicha preta” é construído particularmente enquanto uma cópia degradada da homossexualidade branca, pois para a autora há maior grau de tolerância e passabilidade aos termos “homossexual” e gay, os quais não coincidentemente são associados aos homens que carregam o semblante da brancura e da não feminilidade - ou seja, os não afeminados. Em contrapartida, recaem sobre os homens negros os atributos mais pejorativos e obscenos: o ser bicha, o ser viado. Essa dinâmica interseccionalizada pela raça e orientação sexual demonstra a sutileza dos mecanismos de opressão que demarcam o lugar de desrespeito e violência em que o homem negro e gay é alocado dentro da estratificação racializada da sexualidade.

Em sintonia com essa explanação, Caio discorre sobre a maior tolerância que é concedida aos homens brancos gays. Ademais, o entrevistado descreve o desconforto que pode acompanhar um relacionamento com outro homem negro, pois o olhar externo lançado sobre eles é tensionado pelas múltiplas violências do racismo e da homofobia.

Você ser branco, você meio que ganha um cartão de passabilidade, porque as pessoas parecem que elas te olham de uma maneira totalmente diferente, sabe? É como se você fosse mais aceitável, por mais que a sociedade ainda seja homofóbica, você ser gay branco parece ser menos penoso. Porque ser um gay negro é como se você andasse com diferentes letreiros, coisas que te denunciam, está te mostrando ali, campainhas, luz de polícia, como se a gente andasse com isso. Primeiro, eu acredito que as pessoas olham pra gente como criminosos, o olhar delas a princípio não é um olhar homofóbico, mas racista. Primeiro, as pessoas não percebem que a gente é um casal. É aquela coisa: mais de um negro junto, eles acham que é quadrilha. Pessoas negras não podem andar juntas. Se você anda sozinho é trombadinha, se anda em grupo é quadrilha. Então, dois negros juntos? Eles já acham que tem alguma coisa errada, vão assaltar... Depois que percebem que a gente é um casal, aí piora.

Assim, Caio afirma que o primeiro atravessamento desvalorativo que seu corpo recebe é o do racismo, isto é, o fato de ser uma pessoa negra convoca, antes de tudo, o olhar racista dos outros. Seu valor é desconsiderado, sua importância é diminuída. A afirmação de Fanon (2008Fanon, Frantz (2008). Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA.) de que o negro não é um homem, mas um homem negro, dialoga com o que Faustino (2014Faustino, Deivison Mendes (2014). O pênis sem o falo: algumas reflexões sobre homens negros, masculinidades e racismo. Cultura Acadêmica.) alega sobre o fato de que homem negro sempre terá de enfrentar as expectativas negativas criadas sobre si a partir de um imaginário coletivo racista, mesmo que esteja empenhado em construir outras significações possíveis para sua corporeidade.

A homofobia, por sua vez, é uma camada a mais, que se acumula sobre o que antes era a condenação de sua imagem, passando também a estigmatizar e violentar o seu modo de existir e sentir no mundo (Braga, Santos, Farias, Ferriani, & Silva, 2018Braga, Iara Falleiros, Santos, Manoel Antônio dos, Farias, Marilurdes Silva, Ferriani, Maria das Graças Carvalho, & Silva, Marta Angélica Iossi Silva (2018). As múltiplas faces e máscaras da heteronormatividade: violências contra adolescentes e jovens homossexuais brasileiros. Salud & Sociedad: Investigaciones en Psicologia de la Salud y Psicologia Social, 9(1), 52-67. https://doi.org/10.22199/S07187475.2018.0001.00003
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; Nascimento, Scorsolini-Comin, Fontaine, & Santos, 2015Nascimento, Geysa Cristina Marcelino, Scorsolini-Comin, Fabio, Fontaine, Anne Marie Germaine Victorine, & Santos, Manoel Antônio dos (2015). Relacionamentos amorosos e homossexualidade: revisão integrativa da literatura. Temas em Psicologia, 23(3), 547-563. http://dx.doi.org/10.9788/TP2015.3-03
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). Para Faustino (2014Faustino, Deivison Mendes (2014). O pênis sem o falo: algumas reflexões sobre homens negros, masculinidades e racismo. Cultura Acadêmica.), o homem negro gay é visto com um duplo traidor, pois estaria supostamente sendo infiel tanto à sua raça quanto à sua masculinidade. Em outras palavras, o homem negro não-heterossexual não pode ser reconhecido nem como homem, por ser negro, nem como um homem negro, por não estar de acordo com as prescrições determinadas pelo padrão dominante de masculinidade.

O enlace afetivo entre dois homens negros gays, portanto, é recebido duplamente pelas projeções das figuras racistas e homofóbicas que compõem o imaginário social coletivo brasileiro, criminalizando e violentando seus corpos, desejos e afetos.

Racismo e sofrimento psíquico: o que a psicologia tem a ver com isso?

Diante da recorrência de processos emocionais dolorosos, Caio menciona que buscou psicoterapia para entender melhor como tais questões afetam sua subjetividade. No entanto, defrontou-se com o olhar racista da profissional sobre suas vivências e experiências.

A minha terapeuta era uma mulher branca, com quem eu ia tratar essas questões familiares e, de verdade, ela não compreendia o que eu falava para ela, ela não conseguia conceber, e para mim foi uma questão muito complicada porque ela chegou a dizer que, talvez, eu estava projetando um racismo que eu vivi na minha infância na atualidade, como se o racismo que eu vivo hoje não existisse. Para mim, foi uma questão muito complicada, porque eu cheguei a pensar que eu estava ficando louco.

O que o entrevistado descreve nessa fala ilustra a reprodução e manutenção do racismo sistêmico construído em sociedade e reproduzido dentro de um setting terapêutico. Quando um profissional da Psicologia ignora as questões étnico-raciais e nega as experiências de racismo a que estão submetidas as pessoas negras, apontando processos internos como a causa de suas vivências dolorosas, está usando de seu prestígio e autoridade científica para endossar - e mesmo reeditar ou criar novas formas de racismo em sua prática profissional.

Na prática clínica é preciso estar alerta para o perigo de fazer interpretações de queixas de racismo como projeção, paranoia, distorção cognitiva, expressão de autopiedade ou falta de motivação e determinação pessoal. Isso é comum na experiência de profissionais que não têm uma formação adequada sobre questões étnico-raciais, o que pode levar à culpabilização de pessoas negras pelo racismo do qual elas são vítimas e alvo preferencial (Tavares & Kuratani, 2019Tavares, Jeane Saskya Campos & Kuratani, Sayuri Miranda de Andrade. (2019). Manejo clínico das repercussões do racismo entre mulheres que se “tornaram negras”. Psicologia: Ciência e Profissão , 39, 1-13. https://doi.org/10.1590/1982-3703003184764
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). No mesmo sentido, Veiga (2019Veiga, Lucas Motta (2019). Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Fractal: Revista de Psicologia, 31(nspe.), 244-248. https://doi.org/10.22409/1984-0292/v31i_esp/29000
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) pontua que um dos efeitos perversos do fato de as subjetividades negras serem sistematicamente ignoradas nos cursos de graduação em Psicologia é o racismo cometido por profissionais da área.

A afirmação de Caio de que sua experiência pessoal com psicoterapia o levou a se questionar sobre seu funcionamento mental demonstra a gravidade de se negligenciar o racismo e outros sistemas de desigualdade no exercício da escuta psicológica. Reitera-se, portanto, o que Veiga (2019Veiga, Lucas Motta (2019). Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Fractal: Revista de Psicologia, 31(nspe.), 244-248. https://doi.org/10.22409/1984-0292/v31i_esp/29000
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) afirma como sendo um dos desafios urgentes para a Psicologia: a compreensão de que o sofrimento psíquico não se configura na ordem da intimidade, mas sim na esfera política. Desse modo, a prática de escuta qualificada deve ser indissociável da habilidade de ouvir o mundo que o produz.

Considerações finais

Finalizamos este estudo, em primeiro lugar, saudando todos/as aqueles/as que trazem em si a negritude e a homossexualidade, assim como outros modos de sentir e existir que não correspondem ao imperativo heteronormativo. A afirmação da identidade negra e não heterossexual carrega a potência de conter o que há de mais genuíno na experiência da alteridade: amar o seu povo e a quem se deseja. A sociedade em que vivemos não permite brechas para ser quem se é e, portanto, afirmar essa identidade à margem do padrão hegemônico é uma manifestação grandiosa de viver o que há de mais íntimo e sagrado: a conquista do respeito a si próprio, sem retroceder em seu desejo.

Este estudo propiciou uma análise densa sobre as dimensões subjetivas da experiência de um homem negro e gay, marcada pelos atravessamentos do racismo e da homofobia em um país cujo ideal de embranquecimento estrutura as relações construídas socialmente, e cujos índices de violência contra a população LGBTQIA+ são cada vez mais alarmantes.

O exame das dinâmicas raciais encontradas neste estudo demonstrou que, enquanto instituição inscrita na tecedura social, a família reproduz processos hierárquicos e opressivos que não são exclusivos de sua intimidade; pelo contrário, revelam-se como um microcosmo da realidade de sistemas de opressão e intersecções violentas e discriminatórias que são reproduzidas para a manutenção de privilégios sociais. A dimensão emocional da existência do racismo no núcleo familiar inter-racial, por sua vez, perpetua-se em dolorosas vivências psíquicas que afetam a autoimagem, o senso de amor próprio, a identidade racial e o modo de se relacionar afetivamente, comprometendo o laço de pertencimento.

Dentre as dinâmicas destacadas, chamamos a atenção para a relação materna do entrevistado, que compartilhou angústias geradas pela ambivalência entre amor e sofrimento. Tais relatos nos levaram a constatar que o racismo está tão intrinsecamente envolvido na construção dos afetos no âmbito familiar que modulam as formas de se relacionar e amar o outro, mesmo que esse outro seja seu filho.

O convívio com o tensionamento racial, portanto, é um imperativo incontornável, considerando-se o fato de que a família é um componente permanente da história do indivíduo. O ideário político de embranquecimento e a repulsa em relação aos corpos negros vigoram desde o projeto de fundação da nação e moldam os vínculos primordiais da constituição psíquica do sujeito em uma sociedade multirracial.

Junto às significações pejorativas e ofensivas atribuídas ao ser negro, a cisheteronormatividade que regula as relações sociais introduz um novo possível alvo aos ataques à existência dos homens negros que se relacionam com outros homens. A objetificação, hipersexualização, fetichização e desumanização dos homens negros gays inscrevem novas dinâmicas de perseguição dos corpos negros, as quais se somam à condenação de seus afetos. Suas vivências são construídas a partir dessa dupla margem, de onde deverão enfrentar a repulsa e criminalização de suas existências pela norma hegemônica que legitima o padrão branco, masculino, hétero e cisgênero.

Por fim, as reflexões produzidas pela investigação da trajetória de Caio Eduardo fornecem um imperativo ético-político para o campo da Psicologia. Não há mais espaço para abrigar profissionais que ignorem as questões étnico-raciais, assim como as de gênero, classe, sexualidade e demais marcadores sociais de diferença. É preocupante o cenário em que alguns profissionais de saúde mental têm atuado como agentes reprodutores do ciclo de violência e opressão social, o que indica a necessidade de investimento na qualificação apropriada.

Como sugestão para estudos futuros recomenda-se investigar o fenômeno das masculinidades negras na perspectiva de outros delineamentos de pesquisa e grupos sociais, incluindo gênero (mulheres negras e homo/bissexuais, homens e mulheres trans e pessoas não binárias ou de gênero fluido), corpos que convivem com o HIV ou com deficiências, pessoas em situação prisional, entre outras pautas identitárias da agenda de pesquisa. Espera-se que este estudo possa contribuir para a ampliação de novos horizontes de investigação, a partir dos questionamentos suscitados naqueles/as que desfrutarem de sua leitura.

Referências

  • Almeida, Silvio Luiz (2018). O que é racismo estrutural? Letramento.
  • Azevedo, Célia Maria Marinho. (1987). Onda negra, medo branco Paz e Terra.
  • Baptista-Silva, Gabriela, Hamann, Cristiano, & Pizzinato, Adolfo. (2017). Marriage in prison: identity and marital agencies in a LGBT wing. Paidéia (Ribeirão Preto), 27(Supl.1), 376-385. https://doi.org/10.1590/1982-432727s1201702
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  • Aprovação, ética e consentimento: O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, sob o registro CAEE 11767319.1.0000.5407, processo 3534 689.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Dez 2020
  • Revisado
    05 Maio 2021
  • Aceito
    10 Maio 2021
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