Resumo:
O presente artigo tem como objetivo analisar as relações entre a produção de subjetividade e a crise neoliberal, tomando como referência as contribuições de Gilles Deleuze e Félix Guattari, Maurizio Lazzarato, Antônio Negri e Michael Hardt sobre o tema. Para tanto, apresentamos alguns dos principais conceitos relativos ao modo como Deleuze e Guattari compreenderam a subjetividade e sua produção em relação ao paradigma capitalista vigente. Em seguida, analisamos as figuras subjetivas produzidas pela crise neoliberal, apresentadas por Negri e Hardt e as possibilidades de resistência ou desvio frente às formas dominantes de subjetividades produzidas pelo capitalismo.
Palavras-chave: Esquizoanálise; Produção de Subjetividade; Capitalismo; Sociedade de Controle; Resistência.
Resumen:
Este artículo tiene como objetivo analizar las relaciones entre la producción de subjetividad y la crisis neoliberal, tomando como referencia los aportes de Gilles Deleuze y Félix Guattari, Maurizio Lazzarato, Antônio Negri y Michael Hardt sobre el tema. Para ello, presentamos algunos de los principales conceptos relativos con la forma en que Deleuze e Guattari entendieron la subjetividad y su producción en relación con el paradigma capitalista actual. A continuación, analizamos las figuras subjetivas producidas por la crisis neoliberal, presentadas por Negri y Hardt y las posibilidades de resistencia o desviación frente a las formas dominantes de subjetividades producidas por el capitalismo.
Palabras clave: Esquizoanálisis; Producción de Subjetividad; Capitalismo; Sociedad de Control; Resistencia.
Abstract:
This article aims to analyze the relationship between the production of subjectivity and neoliberal crisis, taking as a reference the contributions of Gilles Deleuze and Félix Guattari, Maurizio Lazzarato, Antônio Negri and Michael Hardt on the topic. To this end, we present some of the main concepts related to the way Deleuze and Guattari understood subjectivity and its production in relation to the current capitalist paradigm. Next, we analyze the subjective figures produced by neoliberal crisis, presented by Negri and Hardt and the possibilities of resistance or deviation in the face of the dominant forms of subjectivities produced by capitalism.
Keywords: Schizoanalysis; Production of Subjectivity; Capitalism; Control Society; Resistance.
Introdução
A respeito da relação entre as crises do capitalismo e a produção de subjetividades, Félix Guattari e Suely Rolnik (2005) enfatizam que não se trata mais de pensar apenas ao nível das crises cíclicas do capitalismo, mas sobretudo na crise dos modos de sentir, das relações sociais e dos modelos de vida que estão em imanência com as constantes crises econômicas do capitalismo. Essas crises não se situam apenas ao nível das relações sociais, estando presentes também nas formações do inconsciente: “Trata-se de uma crise dos modos de subjetivação, dos modos de organização e de sociabilidade, das formas de investimento coletivo de formações do inconsciente” (Guattari & Rolnik, 2005, p. 191).
No livro “Signos, Máquinas, Subjetividades”, o filósofo e sociólogo italiano Maurizio Lazzarato, inspirado no pensamento de Guattari, afirma que a univocidade entre economia política e economia subjetiva se justifica em virtude da impossibilidade de separar os processos políticos, econômicos e sociais dos processos de subjetivação, na medida em que o capitalismo produz subjetividades “do mesmo modo como a indústria automobilística lança uma nova linha de carros” (Lazzarato, 2014, p. 14).
Para o autor, além das constantes crises econômicas, vivemos também uma crise dos modos de subjetivação que tem gerado um estado de depressão generalizada, denominada pelo autor como o “mal do século”. Tais crises têm desencadeado um sentimento geral de fracasso econômico, social e político, assumido pelo homem endividado e “empreendedor de si mesmo”, nos termos de Michel Foucault (2008) sobre o neoliberalismo.
Em consonância com o pensamento dos autores citados, os filósofos Antonio Negri e Michael Hardt (2014) são emblemáticos ao sustentarem que a crise neoliberal e a crise da produção de subjetividades são equivalentes e destacam quatro modelos ou figuras subjetivas produzidas pela crise: o endividado, o mediatizado, o securitizado e o representado, que serão melhor explicitadas no decorrer do texto.
Nosso objetivo aqui é o de analisar as relações entre a produção de subjetividades e o capitalismo contemporâneo, destacando os efeitos nocivos de tal relação e promovendo no campo da psicologia o importante debate sobre os problemas sociais, econômicos e políticos, enquanto tecemos uma reflexão sobre as possibilidades de desvio ou resistência frente às figuras subjetivas produzidas pela crise neoliberal.
Nesse sentido, consideramos pertinente apresentar a noção de subjetividade com a qual trabalharemos neste texto. Para tanto, optamos pelo referencial teórico da esquizoanálise, em primeiro lugar, porque estabelece rupturas importantes com a noção de subjetividade enquanto essência ou interioridade psíquica reduzida ao indivíduo ou a uma suposta natureza humana. Em contrapartida, a perspectiva esquizoanalítica propõe um descentramento da questão do sujeito para pensar uma subjetividade processual, produzida por múltiplos componentes heterogêneos: políticos, sociais, culturais, econômicos, éticos, artísticos, tecnológicos, midiáticos etc. Em segundo lugar, por possibilitar uma compreensão dinâmica e mutável dos modos de produção de vida, permitindo-nos acompanhar tais processos de produção na atualidade e, especificamente, a produção de subjetividades em um mundo globalizado, dominado pelo capital e pelas novas tecnologias e redes sociais, lembrando, nesse sentido, a afirmação de Guattari e Rolnik (2005, p. 26) de que a subjetividade atualmente é mais valiosa que o petróleo.
Produção de subjetividade
Em consonância com o filósofo empirista David Hume, Gilles Deleuze (2012), em Empirismo e Subjetividade, contrapõe-se ao cogito cartesiano “Penso, logo existo”, que supõe a anterioridade do sujeito pensante para apreensão do dado, e defende a tese humeana sobre o primado da experiência, afirmando, ao contrário, que o sujeito é que se constitui no dado, ou seja, na experiência, e, portanto, só pode ser compreendido enquanto efeito ou invenção. Mas o que é o dado? Deleuze (2012) apresenta a definição de dado para Hume com sendo “o fluxo do sensível, uma coleção de impressões e de imagens, um conjunto de percepções. . . é o movimento, a mudança, sem identidade nem lei” (p. 101). Essa coleção de elementos, através do princípio de associação, se une na imaginação, não enquanto faculdade, mas enquanto uma “... sucessão movimentada de percepções distintas” (Deleuze, 2012, p. 101), formando o Hábito.
Deleuze (2012) afirma que a partir do princípio de causa e efeito, Hume buscou mostrar que os hábitos são constituídos na experiência através da repetição de casos semelhantes que chegam à imaginação, permitindo, assim, que se possa inferir sobre a existência de um objeto a partir da existência de outro. Por exemplo, se nos aproximamos de uma chama e sentimos calor, todas as vezes que nos aproximarmos novamente de uma chama, esperaremos a mesma sensação de calor. A repetição, portanto, faz com que o sujeito se constitua no dado enquanto hábito, ao mesmo tempo em que ultrapassa esse dado por meio da crença e da invenção.
Do dado infiro a existência de outra coisa que não está dada: creio. César está morto, Roma existiu, o sol se erguerá amanhã, o pão nutre. Na mesma operação, ao mesmo tempo, julgo e me ponho como sujeito: ultrapassando o dado. Afirmo mais do que sei. ... Nesse sentido, o sujeito reflete e se reflete: daquilo que o afeta em geral, ele extrai um poder independente do exercício atual, isto é, uma função pura, e ele ultrapassa sua parcialidade própria. Por isso tornam-se possíveis o artifício e a invenção. O sujeito inventa, ele é artificioso. É esta a dupla potência da subjetividade: crer e inventar. (Deleuze, 2012, pp. 99-100)
Nesse sentido, o Hábito é pensado enquanto uma contração ou síntese do tempo pois, ao contrair a repetição dos instantes e formar uma crença, estabelece-se uma relação determinante com o futuro. “O hábito é a raiz constitutiva do sujeito e, em sua raiz, o sujeito é a síntese do tempo, a síntese do presente e do passado em vista do futuro” (Deleuze, 2012, p. 109).
Na obra Diferença e Repetição, no capítulo intitulado “A Repetição para si mesma”, a questão do Hábito é retomada por Deleuze (2009) como a primeira síntese do tempo, seguida de outras duas: síntese da Memória ou Duração, em referência à filosofia de Henri Bergson, e síntese da Repetição no Eterno Retorno, pensada a partir da influência de Friedrich Nietzsche. A noção de subjetividade para Deleuze está intimamente atrelada à ideia de tempo. Contudo, não se trata do tempo cronológico linearmente organizado em passado-presente-futuro. Em Deleuze, o tempo se apresenta emaranhado, labiríntico, “não mais um círculo do tempo, porém um turbilhão, já não uma ordem do tempo, mas uma variação infinita, nem mesmo uma forma do tempo, mas um tempo informal, plástico” (Pelbart, 2004, p. XXI).
Na síntese do Hábito, o tempo é compreendido enquanto uma impressão derivada da contração dos instantes sucessivos e independentes, constituindo o presente vivido, vivo. Ao presente “pertence o passado e o futuro: o passado, na medida em que os instantes precedentes são retidos na contração; o futuro, porque a expectativa é antecipação nesta mesma contração” (Deleuze, 2009, p. 108). É nesse sentido que o Hábito, enquanto primeira síntese do tempo, resulta na repetição da Diferença, pois neste nível da constituição subjetiva, a repetição do Hábito “nada muda no objeto que se repete, mas muda alguma coisa no espírito que a contempla” (Deleuze, 2009, p. 107). A síntese do Hábito, embora constituinte, é considerada passiva, na medida em que ainda não há um “Eu” ou sujeito, ela “não é feita pelo espírito, mas se faz no espírito que contempla, precedendo toda memória e toda reflexão” (Deleuze, 2009, p. 108). Mais precisamente, a ideia de contemplação e de espírito está relacionada a um protossujeito ou sujeito larvar, pois a síntese passiva comporta vários níveis enquanto constitutiva da subjetividade:
Somos água, terra, luz e ar contraídos, não só antes de reconhecê-los ou de representá-los, mas antes de senti-los. . . Ao nível desta sensibilidade vital primária, o presente vivido já constitui no tempo um passado e um futuro: este futuro aparece na necessidade como forma orgânica da expectativa; e o passado da retenção aparece na hereditariedade celular. (Deleuze, 2009, p. 110)
A noção de Hábito é fundante para Deleuze ao ponto de afirmar: “Nós somos hábitos, nada mais que hábitos, o hábito de dizer Eu. . . Talvez não exista resposta mais surpreendente para o problema do Eu” (Deleuze, 2016, p. 342).
Se o Hábito é a fundação do presente vivo e do sujeito larvar, a Memória ou Duração é o fundamento do tempo e do Ser e é apresentada por Deleuze (2009) como a segunda síntese do tempo. Se na primeira síntese o passado e o futuro são dimensões do presente, na segunda síntese é o presente e o futuro que aparecem enquanto dimensões do passado. Deleuze (2009) encontra esta outra temporalidade na filosofia de Bergson, mais precisamente no seu conceito de Duração, que em resumo remete a um tempo que dura em si mesmo, tempo do vivido, intensivo e heterogêneo e que comporta simultaneamente o passado e o presente.
O hábito é a fundação do tempo, o solo movente ocupado pelo presente que passa. Passar é precisamente a pretensão do presente. Mas o que faz que o presente passe e que aproprie o presente e o hábito deve ser determinado como fundamento do tempo. O fundamento do tempo é a memória. (Deleuze, 2009, pp. 117-118)
Conforme Deleuze (2009), na Duração a memória não é voluntária ou representativa, não está relacionada a um presente antigo, mas a um passado que nunca foi presente, um passado puro e, portanto, Virtual1; em outras palavras, mesmo heterogêneos, passado e presente coexistem e se atualizam concomitantemente, resultando num paradoxo. A noção de um passado puro que dura simultaneamente ao presente, fazendo-o passar, pode ser de difícil compreensão, pois acreditamos que o passado é aquilo que já não é, que deixou de ser, mas, neste caso, o presente é que passa, que a cada instante era, enquanto o passado é: “... não vamos do presente ao passado, da percepção à lembrança, mas do passado ao presente, da lembrança à percepção” (Deleuze, 1999, p. 49). Em outras palavras, o passado conserva a si mesmo, sendo o presente o próprio passado em seu estado mais contraído.
a única subjetividade é o tempo, o tempo não-cronológico apreendido em sua fundação, e somos nós que somos interiores ao tempo, não o inverso. Que estejamos no tempo parece um lugar comum, no entanto é o maior paradoxo. O tempo não é o interior em nós, é justamente o contrário, a interioridade na qual estamos, nos movemos, vivemos e mudamos. (Deleuze, 1990, pp. 103-104)
A noção do Eterno Retorno de Nietzsche2 é resgatada por Deleuze para pensar a terceira síntese do tempo: Repetição do Eterno Retorno. Nessa síntese, Deleuze (2009) mostra como as sínteses anteriores, do Hábito e da Memória ou Duração, se dirigem ao tempo futuro como potência inventiva e criadora. Para tanto, o autor afirma que é necessário pensar não mais em termos de fundação ou fundamento e ir ao encontro de “um sem fundo, a-fundamento universal que gira em si mesmo e só faz retornar o porvir” (Deleuze, 2009, p. 131). A Repetição na terceira síntese caracteriza-se pela repetição do eterno retorno, mas não do retorno do mesmo, do semelhante, pois o que retorna é o novo, a Diferença. Aqui, a noção de Repetição, antes de ser pensada como conceito da reflexão, é a própria condição da ação, é “o que é produzido, o absolutamente novo, é, por sua vez, apenas repetição, a terceira repetição, desta vez por excesso, a repetição do futuro como eterno retorno (Deleuze, 2009, p. 130).
Com a terceira síntese do tempo, Deleuze (2009) apresenta um “Eu” rachado, destruído, dissolvido e dessubjetivado pela forma vazia de um tempo fora dos eixos, enlouquecido, caótico e que afirma somente a Diferença e o Devir.
O eterno retorno não pode significar o retorno do idêntico, pois ele supõe, ao contrário, um mundo (o da vontade de potência3) em que todas as identidades prévias são abolidas e dissolvidas. Retornar é o ser, mas somente o ser do devir. O eterno retorno não faz “o mesmo” retornar, mas o retornar constitui o único Mesmo do que devém. Retornar é o devir-idêntico do próprio devir. Retornar é, pois, a única identidade, mas a identidade como potência segunda, a identidade da diferença, o idêntico que se diz do diferente, que gira em torno do diferente. Tal identidade, produzida pela diferença, é determinada como “repetição.” (Deleuze, 2009, p. 68)
A repetição no Eterno Retorno não tolera o devir igual ou devir semelhante, pois afirma a potência própria da Diferença e, como síntese do tempo, é capaz de fazer rachaduras, produzir brechas para o futuro e toda sua novidade. Em relação às sínteses anteriores, do Hábito e da Memória ou Duração, a Repetição no Eterno Retorno é considerada a mais importante para Deleuze (2009), pois é ela que permite a abertura para a Diferença pura, para o novo e liberta tanto o ser quanto o pensamento das amarras da identidade e da representação. É a partir da Repetição no Eterno Retorno que podemos “outrar”, devir outro, e devir aqui não possui qualquer relação com a imitação ou com o querer ser como o outro, e sim com a criação do inédito, do impensado, do totalmente novo.
Se o que repete é sempre o Ser do Devir e a Diferença absoluta, não podemos mais conceber a ideia de um sujeito prévio, fixo, imutável, com predomínio de uma identidade consciente. Ao contrário, a subjetividade é, simultaneamente, tempo e criação, e se processa no campo do coletivo, das multiplicidades e dos fluxos intensivos. O tempo e a Diferença passam a constituir o plano da incessante variação e transmutação da vida.
Guattari afirma: “A subjetividade, de fato, é plural, polifônica ... E ela não conhece nenhuma instância dominante que guie as outras instâncias segundo uma causalidade unívoca” (Guattari, 1992, p. 11).
O autor reconhece que a psicanálise de Freud assumiu um importante papel ao questionar o sujeito cartesiano e o império da razão, evidenciando com a noção de inconsciente a impossibilidade de totalização do Eu (ego). Entretanto, dentre os problemas encontrados na psicanálise, destaca-se a proposição das fases do desenvolvimento (fase oral, fase anal, fase genital, período de latência) como estruturas universais da subjetividade e, especificamente, na psicanálise lacaniana, o inconsciente enquanto determinante da estruturação psíquica, detentor da verdade a respeito do sujeito e da representação de si, calcado sobre as bases de um desejo enquanto sinônimo de falta.
Deleuze e Guattari, principalmente em O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (2010), propõem uma leitura diferente do inconsciente e do desejo desenvolvidos por Freud. De modo sucinto, o inconsciente para esses autores não está fundado no complexo de Édipo formado por representações; não é teatro de representações, mas usina, produção maquínica com base em componentes heterogêneos e materialistas, ou seja, faz parte da realidade social e está presente nas relações interpessoais.
Ou ainda, de acordo com Guattari (1992), mais do que voltado para o passado, o inconsciente é um campo de imersão do desejo no social, nas composições atuais, é algo a ser constantemente produzido. Nessa concepção, o homem é considerado uma máquina desejante, conectado ao funcionamento de todas as outras máquinas do mundo: “O que há por toda a parte são máquinas, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com as suas ligações e conexões. Uma máquina-órgão está ligada a uma máquina-origem: uma emite o fluxo que a outra corta” (Deleuze & Guattari, 2010, p. 7).
Em contraposição à noção de estrutura, os autores defendem a ideia de máquina ou de processos maquínicos na produção de subjetividades. Convém salientar que o conceito de máquina aqui não possui o sentido mecânico ou mesmo orgânico, como um organismo fechado, isto é, funcionalmente determinado, pois são processos ativos, abertos a mudanças e em constante movimento. “A mecânica é um sistema de ligações em cadeias de termos dependentes. A máquina, pelo contrário, é um conjunto de ‘vizinhança’ entre termos heterógenos independentes” (Deleuze & Parnet, 1998, p. 127) que produz a realidade.
O desejo para a esquizoanálise não é constituído pela falta, pois é processual, producente da realidade no social, e daí a denominação produção desejante. Não falta para o sujeito o objeto, mas o sujeito é que falta ao desejo, pois é este que o produz, não havendo, pois, sujeito determinado, mas sempre em produção na realidade social (Deleuze & Guattari, 2004).
São os agenciamentos do desejo que produzem o real. É o agenciamento entendido enquanto conexão e simbiose que constitui as relações entre os corpos e os enunciados. Assim, o desejo é pensado na esfera da produção, como elemento essencial na produção da própria realidade, e não ao nível da representação de um sujeito desejante.
De modo que o campo de atuação da esquizoanálise não são as representações do sujeito e de seus objetos, como, por exemplo, as representações das relações neuróticas na família, conforme a psicanálise, e sim as linhas ou lineamentos que atravessam os sujeitos e os grupos. Mais precisamente, a esquizoanálise elege como foco o intermeio das relações, e não propriamente as representações, como na psicanálise (Freud), que as toma como a realidade psíquica do sujeito. O “intermeio4” aqui é tomado como espaço e dispositivo das relações, de invenção, de produção, ou de reprodução e impedimento do fluxo da produção desejante. Assim, a esquizoanálise prioriza a potência inventiva que está no intermeio das relações, mais precisamente, em seus processos.
Para Deleuze e Guattari (1995) existem três conjuntos de linhas que auxiliam a pensar a produção de realidade e de subjetividades:
As linhas duras nos compõem através do estabelecimento de dualidades sociais, que nos estratificam, no sentido forte do termo. São as grandes divisões na sociedade: rico ou pobre, trabalhador ou vagabundo, normal ou patológico, homem ou mulher, culto ou inculto, branco ou negro, etc. As linhas maleáveis possibilitam variações, ocasionando desestratificações relativas. E as de fuga representam desestratificações absolutas, no sentido em que rompem totalmente com os limites das estratificações estabelecidas. (Cassiano & Furlan, 2013, p. 372)
As linhas de segmentaridade dura são, pois, caracterizadas pelo controle e normatização através de processos molares (grandes unidades e divisões); as linhas de segmentaridade maleável são como quanta (significado que Deleuze e Guattari tomam da física) de desterritorializações, expondo pequenas fissuras e deslocamentos; e as linhas de fuga representam ruptura e desestratificação absoluta com os estratos que fixam a produção desejante.
Como lembram os autores, todos os tipos de linhas atravessam nossas relações, produzindo diferentes realidades, e, portanto, é necessário ter prudência na experimentação de cada atravessamento, evitando quer uma desterritorialização absoluta que possa colocar em risco a vida, como é o caso do abuso de drogas, quer o esmagamento do desejo ou o aprisionamento da vida nos excessos de estratificação, como é o caso da normatização.
Produção da subjetividade capitalística
Conforme adiantamos, segundo Guattari e Rolnik:
A concepção de desejo no campo social, que Deleuze e eu tentamos desenvolver, tende a questionar a ideia de que o desejo e a subjetividade estariam centrados no indivíduo e resultariam, no plano coletivo, da interação dos fatos individuais. Partimos mais da ideia de uma economia coletiva, de agenciamentos coletivos do desejo e da subjetividade que, em algumas circunstâncias, alguns contextos sociais, podem se individualizar. (Guattari & Rolnik, 2005, p. 232)
A individualização do desejo, como centrado em um eu interiorizado, serializado e registrado é uma operação característica do capitalismo, a qual produz o que Guattari convencionou nomear “subjetividade capitalística”.
Nas sociedades capitalistas, a produção de subjetividade tem sido um dos mais importantes modos de produção, constituindo-se como matéria prima para as demais produções, pois o lucro capitalista não se concentra mais apenas nas relações de mais-valia, mas principalmente nos processos de subjetivação, na medida em que a máquina capitalística produz “... aquilo que acontece conosco quando sonhamos, quando devaneamos, quando fantasiamos, quando nos apaixonamos e assim por diante” (Guattari & Rolnik, 2005, p. 22).
A hegemonia do capitalismo atual alcança não só a dimensão da produção da economia mundial, mas também a produção da subjetividade para conservar sua reprodução. Este sistema é o que Guattari nomeia “Capitalismo Mundial Integrado” (CMI).
O CMI afirma-se, em modalidades que variam de acordo com o país ou com a camada social, através de uma dupla opressão. Primeiro, pela repressão direta no plano econômico e social - o controle da produção de bens e das relações sociais através de meios de coerção material externa e sugestão de conteúdos de significação. A segunda opressão, de igual ou maior intensidade que a primeira consiste em o CMI instalar-se na própria produção de subjetividade: uma imensa máquina produtiva de uma subjetividade industrializada e nivelada em escala mundial tornou-se dado de base na formação da força coletiva de trabalho e da força de controle social coletivo. (Guattari & Rolnik, 2005, p. 39)
A principal estratégia do CMI consiste em investir no controle da vida, não só em seus aspectos biológicos, assim como sucedeu-se no início da era do Biopoder apresentada por Foucault (2008), mas sobretudo na captura dos fluxos caóticos e desterritorializados, em outras palavras, na apropriação de tudo que é diferente, do que lhe escapa, que ainda não foi registrado ou codificado por um sistema dominante. Esse modo de funcionamento próprio do capitalismo contemporâneo é denominado por Deleuze e Guattari (2010) como Axiomática Capitalística.
Em resumo, o capitalismo contemporâneo não opera a partir dos binarismos e dualismos próprios do regime de soberania, ao contrário, sua missão principal é se apropriar de toda heterogeneidade, toda diferença, flexibilizando todas as fronteiras, outrora rígidas, incorporando-as na lógica da acumulação flexível e transformando-as em produtos e mercadorias. Mas, se a engrenagem de captura falha, instalam-se os regimes mais duros de repressão e dominação para conter o fluxo da produção desejante (Deleuze & Guattari, 2010).
Em se tratando da produção de subjetividades, o capital, através das representações, se efetua nos corpos e os captura em ordem de significância, atribuindo-lhes uma identidade ou um rosto que os torne reconhecíveis aos poderes instituídos.
Contudo, o capitalismo ou qualquer outro sistema dominante não consegue capturar por completo a Diferença Absoluta enquanto solo das variações inerentes do tempo e da transmutação da vida. Assim, a produção desejante e o radicalmente novo continuam a repetir, afirmando o Devir, pois o Ser não devém, ele é o próprio Devir, é a incessante produção do novo absoluto.
Deleuze e Guattari (1997) distinguem dois modos pelos quais a subjetividade é produzida e operada no capitalismo, a saber, a sujeição social e a servidão maquínica. Na sujeição social, o homem estabelece uma relação de usuário com a máquina, preservando uma separação entre ambos, porém permanecendo assujeitado a ela. É a individuação e a personificação do seu funcionamento, como as distinções sujeito-objeto, capitalista-trabalhador, produtor-consumidor. A servidão maquínica se dá quando os homens são peças constituintes do funcionamento da máquina unidade superior (o Capital), na qual a distinção entre sujeito-objeto, capitalista-trabalhador, produtor-consumidor não faz mais sentido; assim, as ações, afetos, conhecimentos e relações são postos para trabalhar para a mesma máquina de produção de valor sem que haja singularidade.
Na servidão maquínica, o indivíduo não é mais instituído como um sujeito individuado, um sujeito econômico (capital humano, empresário de si mesmo) ou como um cidadão. Ao invés disso, ele é considerado uma engrenagem, uma roda dentada, uma parte componente do agenciamento empresa, do agenciamento sistema financeiro, do agenciamento mídia, do agenciamento Estado do bem-estar social e de seus equipamentos coletivos (escolas, hospitais, museus, teatros, televisão, internet etc). (Lazzarato, 2014, p. 28)
Conforme Lazzarato (2014), é exatamente na intersecção desses dois movimentos heterogêneos e complementares que se dá a produção de subjetividade no capitalismo. Ou seja, enquanto a sujeição social é responsável por produzir e distribuir lugares e papéis dos atores sociais na sociedade capitalista, na servidão maquínica o ser humano é considerado peça de uma grande engrenagem que o extrapola, e constitui com as máquinas tecnológicas verdadeiros sistemas homens-máquinas, os quais agem sobre os níveis pré-individuais e supraindividuais, desconfigurando o “indivíduo”.
As figuras subjetivas do capital
Na obra Declaração: isto não é um manifesto, os filósofos Antonio Negri e Michael Hardt (2014) afirmam que o triunfo do neoliberalismo e suas crises afetaram a vida do ponto de vista econômico e político, mas também, e principalmente, em relação à produção de subjetividades. Os autores elencaram quatro figuras subjetivas: endividado; mediatizado; securitizado e representado.
No mundo contemporâneo não é difícil encontrar a figura subjetiva do endividado, pois claramente, e de modo generalizado, tornou-se um “estilo de vida”. Atrelada aos padrões de consumo, mas também às situações de sobrevivência, a dívida configura-se como um imperativo, ditando o ritmo de trabalho das pessoas, que normalmente envolve rotinas exaustivas e uma indiscernibilidade cada vez maior entre horário de trabalho e horário livre.
Conforme os autores, a dívida exerce um papel moral, despertando um sentimento intenso de responsabilidade e culpa em relação ao ato de dever. Além do efeito moralizante, a dívida, a trabalho da produção capitalista, ao individualizar a responsabilidade e as dificuldades financeiras, intensifica nas pessoas o princípio do empreendedorismo de si mesmas, desencorajando qualquer projeto coletivo para a mudança social.
A figura subjetiva do endividado vem à tona na transição das sociedades disciplinares para as sociedades de controle, pois “O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado” (Deleuze, 2006, p. 224).
Para Deleuze, o poder na era do controle é disperso em rede planetária, age de forma difusa, sutil e diluída, não se faz mais por via da hierarquia, tornando-se, então, ilocalizável, ensejando ações não mais verticalizadas, como nos tempos da disciplina, mas horizontais e descentralizadas.
Na sociedade de controle, o capitalismo opera por duas vias a fim de produzir modos de existir ou subjetividades: a desterritorialização e a reterritorialização. De modo sucinto, a desterritorialização enquanto processo de subjetivação implica deixar de consumir subjetividade de um jeito para consumir de outro. A reterritorialização, por sua vez, sugere a recomposição de um novo território, de uma nova forma de produzir e consumir subjetividade. “A reterritorialização consistirá numa tentativa de recomposição de um território engajado num processo desterritorializante” (Guattari & Rolnik, 2005).
Quando os autores falam em “consumir subjetividade”, é crucial compreender que não se trata de “uma subjetividade do tipo “recipiente” em que se colocariam coisas essencialmente exteriores, as quais seriam “interiorizadas” (Guattari & Rolnik, 2005, p. 34). Trata-se, antes, de reconhecer a atuação dos múltiplos componentes na produção de subjetividade, alguns inconscientes, outros mais voltados para a dimensão do corpo, do poder, da lei, da polícia etc.
Para Negri e Hardt (2014), a figura do mediatizado surge da intensificação global dos modelos de interação e conectividade, induzindo o consumo passivo de uma enorme quantidade de informação produzida pela indústria da mídia. Os autores lembram-se de uma entrevista de Deleuze concedida a Negri, sobre o esvaziamento da linguagem e da comunicação nas sociedades de controle: “Talvez a fala, a comunicação, estejam apodrecidas. . . É preciso um desvio da fala. Criar foi sempre coisa distinta de comunicar. O importante talvez venha a ser criar vacúolos de não-comunicação, interruptores, para escapar ao controle” (Deleuze, 2006, p. 217).
Em uma configuração de sociedade em que se é forçado a se exprimir a todo o momento e sobre tudo, Negri e Hardt (2014), em consonância com o pensamento de Deleuze, consideram importante o direito de nada dizer, de experimentar o silêncio, para, então, fazer existir o pensamento.
Se uma das principais operações do capitalismo consiste em explorar as potências produtivas dos corpos, as habilidades de comunicação, criação e inventividade, despotencializando suas relações afetivas, para os autores é necessário que o mediatizado, pleno de informações mortas, consiga produzir informação viva.
Como possibilidade de alcançar tal mudança, os autores retomam as postulações de Marx a respeito dos camponeses que, em meados do século XIX, não conseguiam atuar como classe, ao contrário do proletariado. A principal explicação sugerida por Marx a essa situação, e citada pelos autores, é a de que, diferentemente do proletariado, os camponeses careciam de estar juntos, fisicamente, nas fábricas. O “estar juntos” para Negri e Hardt (2014) vai além da possibilidade de compartilhamento de informações e ideias, mas principalmente, da possibilidade de partilhar afetos políticos.
Os autores citam como exemplo as ocupações e acampamentos que ocorreram em 2011 na cidade de Nova York, denominadas “OccupyWallStreet” para alertarem que “O Facebook, o Twitter, a Internet e outros tipos redes sociais de comunicação são úteis, mas nada consegue substituir o estar junto de corpos e a comunicação corpórea, que é a base da inteligência e da ação política coletiva” (Negri & Hardt, 2014, p. 32).
A importância da criação e compartilhamento de afetos políticos como modo de resistência, frente às investidas capitalísticas, se aproxima do pensamento guattariano em relação à possibilidade de um tempo “pós-mídia”.
tal evolução maquínica não pode ser julgada nem positiva nem negativamente; tudo depende de como for sua articulação com os agenciamentos coletivos de enunciação. O melhor é a criação, a invenção de novos Universos de referência; o pior é a mass-mediatização embrutecedora, à qual são condenados hoje em dia milhares de indivíduos. As evoluções tecnológicas, conjugadas a experimentações sociais desses novos domínios, são talvez capazes de nos fazer sair do período opressivo atual e de nos fazer entrar em uma era pós-mídia, caracterizada por uma reapropriação e uma ressingularização da utilização da mídia. (Guattari, 1992, p. 14)
A possibilidade de criação e partilha dos afetos políticos, assim como da experimentação de uma era pós-mídia, estão inevitavelmente ligadas à necessidade de agenciar o que Guattari denominou “processos de singularização”.
Há dois extremos entre os quais as pessoas, grupos e até mesmo instituições oscilam ao experienciar a produção de subjetividades: “uma re1ação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete a subjetividade tal como a recebe, ou uma re1ação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade” (Guattari & Rolnik, 2005, p. 42).
No caso da figura subjetiva do mediatizado, é necessário romper com o consumo passivo de valores, estilos de vida e ideais de felicidade tão propagados pelas várias plataformas de conectividade e interatividade, evitando os efeitos individualizantes, serializantes e empobrecedores, característicos da subjetividade capitalística.
Deleuze, na entrevista Controle e Devir (2006), afirma que não há nada de universal no capitalismo a não ser o mercado, e que não existe qualquer Estado que não esteja totalmente comprometido em gerar riqueza e miséria, e principalmente produzir subjetividades enquanto misérias humanas.
Os processos de subjetivação, em indivíduos ou coletividades, são potentes na medida em que escapam aos saberes e práticas instituídos e dominantes, e se efetivam através de uma espontaneidade rebelde. Para Deleuze (2006) uma sociedade se caracteriza por suas linhas de fugas, ou seja, pelo que escapa, que foge, que não está codificado porque é inventivo e é a própria resistência.
Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. . . É ao nível de cada tentativa que se avalia a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo. (Deleuze, 2006, p. 218)
O terceiro tipo subjetivo proposto por Negri e Hardt (2014) refere-se ao “securitizado”.
Na contemporaneidade, as cidades são espaços fragmentados, fomentando o isolamento. Os enormes edifícios construídos a ferro, grades, câmeras de vigilância, alarmes e uma vasta gama de artifícios inventados pelo homem, na tentativa de esquivar-se das incertezas, são os abrigos, as ocas, os buracos (mesmo que arranha-céu) onde a sociedade se esconde, fugindo dos espaços públicos. Em tempos nos quais tudo vem até nós, para que sair de casa? Os meios de comunicação de massa tornaram-se ágeis em manipular desejos, oferecendo qualquer serviço por apenas um clic, e, com efeito, gerando um enorme banco de dados contendo todo tipo de informações sobre pessoas, grupos, empresas etc.
Apoiados nos postulados de Foucault5, os autores explicitam que as pessoas são tratadas como presidiárias não só dentro de suas casas, como também nos espaços públicos, na medida em que os dispositivos de vigilância estão a postos no exato momento em que se sai pela porta de casa para fazer uma simples caminhada pela rua. Tudo e todos estão sendo monitorados o tempo todo.
O securitizado vive com medo em relação a uma combinação de punições e ameaças externas. O medo em relação aos poderes dominantes e sua polícia é um fato, mas mais importante e eficaz é o medo de outras e desconhecidas ameaças perigosas: um medo social generalizado. (Negri & Hardt, 2014, p. 39)
Na tentativa de lidar com o medo exacerbado, o securitizado se torna, ao mesmo tempo, o objeto da segurança (presidiário, vigiado), mas também o sujeito da segurança (guarda, vigia), pois “o medo justifica oferecer de modo voluntário seus olhos e sua atenção alerta a uma máquina de segurança aparentemente universal” (Negri & Hardt, 2014, p. 34).
O medo enquanto investimento subjetivo do capitalismo contemporâneo, infiltrado nas tramas de controle mais sutis do cotidiano, despotencializa os modos de existência, tornando as pessoas cada vez mais individualizadas e afoitas por consumir todo e qualquer tipo de dispositivo de segurança propagado pelo mercado da sociedade de controle.
A administração de uma grande segurança molar organizada tem por correlato toda uma microgestão de pequenos medos, toda uma insegurança molecular permanente, a tal ponto que a fórmula dos ministérios do interior poderia ser: uma macropolítica da sociedade para e por uma micropolítica6 da insegurança (Deleuze & Guattari, 2004, p. 94)
O medo se define pelo temor de perder a falsa sensação de segurança afiançada pelos sistemas molares, binários e identitários, que sobrecodificam e dominam, mas prometem garantir a ordem (Deleuze & Guattari, 2004). É neste sentido que os autores provocam: “o desejo pode ser determinado a desejar sua própria repressão no sujeito que deseja (daí o papel da pulsão de morte na junção do desejo e do social)” (Deleuze & Guattari, 2010, p. 143)
Na obra Espinosa - Filosofia prática, Deleuze (2002) afirma que os afetos ou afecções que vibram nos corpos possibilitam a diminuição ou o aumento da potência de agir e da energia vital e o corpo se define pela capacidade de afetar e ser afetado, produzindo encontros bons ou ruins. Pode-se dizer que, diante de um bom encontro, as afecções produzem amor, alegria e maior potência de agir no mundo, mas, ao contrário, diante de um encontro ruim, sente-se a produção de afetos tristes e a diminuição da energia vital.
Inspirado em Espinosa, Deleuze (2002) acredita que mais importante do que considerar um ser pela sua capacidade de pensar - o que remeteria diretamente ao cogito cartesiano - é defini-lo pela sua possibilidade de afetar e ser afetado, pois só assim pode-se medir sua energia vital ou sua potência de existir no mundo.
Nesse sentido, o medo exacerbado pode ser considerado um afeto triste que diminui a potência de agir no mundo:
Vivemos em um mundo desagradável, onde não apenas as pessoas, mas os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar afetos tristes. A tristeza, os afetos tristes são todos aqueles que diminuem nossa potência de agir. Os poderes estabelecidos têm necessidade de nossas tristezas para fazer de nós escravos. O tirano, o padre, os tomadores de almas, têm necessidade de nos persuadir que a vida é dura e pesada. Os poderes têm menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar, ou, como diz Virilio, de administrar e organizar nossos pequenos terrores íntimos. (Deleuze & Parnet, 1998, p. 50)
Por fim, a última das figuras subjetivas elencadas por Negri e Hardt é a figura do representado. Para os autores, a noção de representação política seria por si só um obstáculo para a democracia, na medida em que a “representação é em si mesma, por definição, um mecanismo que separa a população do poder, os comandados daqueles que comandam” (Negri & Hardt, 2014, p. 43).
O representado é aquele que deixou de ser ativo na vida política, pois diante do cenário constante de corrupção, desmantelamento das organizações sindicais e dos acordos políticos de nível global que são concretizados sem qualquer representação dos Estados-nação, o representado se vê sozinho na luta pela transformação social.
Nas eleições, o voto, longe de constituir-se como ato democrático, acaba atestando a impotência e alienação das pessoas e coletivos na decisão do rumo de suas próprias vidas e toda a questão política acaba recaindo no lugar desolador e polarizado do “me representa” ou “não me representa”.
Considerações finais
A subjetividade capitalística requer a extração do desejo e da potência subjetiva para os mecanismos de opressão e normatividade, primando pela estabilização e pacificação contínua das forças, da Diferença e das intensidades dos encontros.
Negri e Hardt (2014) acreditam que um dos caminhos para alcançar a verdadeira democracia é revoltar-se, rebelar-se, destruir as figuras subjetivas produzidas pelo capitalismo, pois essas já se encontram esgotadas e despotencializadas. É necessário criar novos modos de produzir subjetividades, mais coletivos, mais singularizados, que irrompam em novos modos de existir no mundo.
Nesse sentido, a produção de novos processos de subjetivação está intimamente imbricada com o Devir e, mais especificadamente, com o Devir minoritário. O Devir produz a si próprio, não é da ordem da filiação e nem da dependência, e sim da ordem da aliança. Funciona como um rizoma, sem começo, nem fim, mas com um meio pelo qual ele se alastra, portanto, não podemos pensar em Devir enquanto processos de regressão ou progressão, pois não é serialista e nem arborescente. O Devir se dá por expansão, propagação e contágio, mas este contágio não possui a noção de filiação por hereditariedade. As minorias, segundo Deleuze e Guattari (1997), não se definem pela quantidade, pois podem ser até mais numerosas que uma maioria. A minoria é um Devir, um Devir de forças de um coletivo, um Devir multidão traçando uma linha de fuga, uma ruptura com o mesmo e uma abertura para a Diferença, para o novo como processo de criação.
Nesse sentido, reside na noção de Devir minoritário a aposta de resistência microrrevolucionária de Deleuze e Guattari (1997). Cabe aqui realçar que os devires são moleculares e, por isso mesmo, minoritários. Assim, podemos citar o devir animal, devir vegetal, devir criança, devir mulher, devir negro... variações do padrão dominante homem branco ocidental. Todos em suas micropotências, em suas molecularizações e atomizações.
A experiência do devir minoritário, do coletivo, da multidão, deve ser retomada como um plano de produção de novas formas de existência que resistam às formas de controle, equalização, serialização e perversão, próprias do capitalismo.
Diz-se que as revoluções têm um mau futuro. Mas não param de misturar duas coisas, o futuro das revoluções na história e o devir revolucionário das pessoas. Nem sequer são as mesmas pessoas nos dois casos. A única oportunidade dos homens está no devir revolucionário, o único que pode conjurar a vergonha ou responder ao intolerável. (Deleuze, 2006, p. 21)
Referências
- Cassiano, Marcella & Furlan, Reinaldo (2013). O processo de subjetivação segundo a esquizoanálise. Psicologia & Sociedade, 25(2), 372-378.
- Deleuze, Gilles (1976). Nietzsche e a Filosofia Editora Rio.
- Deleuze, Gilles (1990). A Imagem-Tempo: Cinema 2. Editora Brasiliense.
- Deleuze, Gilles (1999). Bergsonismo Editora 34
- Deleuze, Gilles (2002). Espinosa - filosofia prática. Escuta.
- Deleuze, Gilles (2006). Conversações Editora 34.
- Deleuze, Gilles (2009). Diferença e repetição Graal.
- Deleuze, Gilles (2012). Empirismo e Subjetividade Editora 34.
- Deleuze, Gilles (2016). Dois regimes de loucos: textos e entrevistas. Editora 34.
- Deleuze, Gilles & Guattari, Félix (1995). Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia ( Vol. 1). Editora 34.
- Deleuze, Gilles & Guattari, Félix (1997). Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia (Vol. 5). Editora 34.
- Deleuze, Gilles & Guattari, Félix (2004). Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia ( Vol. 3). Editora 34.
- Deleuze, Gilles & Guattari, Félix (2010). O Anti-édipo: Capitalismo e esquizofrenia. Editora 34.
- Deleuze, Gilles & Parnet, Claire (1998). Diálogos Escuta.
- Foucault, Michel (2006). Estratégia, poder-saber. In Ditos e Escritos IV(pp. 203-222). Ed. Forense Universitária.
- Foucault, Michel (2008) O nascimento da Biopolítica Martins Fontes.
- Guattari, Félix (1992). Caosmose: um novo paradigma estético. Editora 34.
- Guattari, Félix & Rolnik, Suely (2005). Micropolíticas: cartografias do desejo. Vozes.
- Lazzarato, Maurizio (2014). Signos, máquinas, subjetividades N-1 Edições.
- Pelbart, Peter Pál (2004). O tempo não reconciliado: Imagens de tempo em Deleuze. Perspectiva.
- Negri, Antonio & Hardt, Michael (2014). Declaração: isto não é um manifesto N-1 Edições.
Notas
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1
O Virtual é da ordem do tempo, designa uma multiplicidade pura e sua atualização se faz sempre por diferença. O virtual não pode ser confundido com o “possível”, pois enquanto o possível se realiza, o virtual se atualiza enquanto criação (Deleuze, 2009, pp. 279-280).
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2
Na obra “A Gaia Ciência” (1882), Nietzsche apresenta o desafio do Eterno Retorno do Mesmo, indagando qual seria a reação dos homens se tivessem que viver infinitamente, repetindo suas vidas exatamente do mesmo jeito, sem qualquer mudança, se seria um tormento ou uma benção. Em “Assim Falava Zaratustra” (1883), a noção do Eterno Retorno é ampliada de modo afirmativo, pois, segundo o filósofo, somente aquele que ama e afirma a vida, exercendo sua vontade criadora, não temeria o Eterno Retorno.
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3
Deleuze compreende o conceito nietzschiano de Vontade de Potência por um duplo aspecto: “determina a relação das forças entre si, do ponto de vista da gênese e da produção das forças, mas é determinada pelas forças em relação, do ponto de vista de sua própria manifestação” (Deleuze, 1976, p. 70).
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4
O intermeio ou intermezzo é pensado a partir do conceito de Rizoma retirado da Botânica por Deleuze e Guattari. No Rizoma não há início ou fim, somente o meio por onde se movimenta. Esse conceito se contrapõe ao modelo arborescente que impõe o verbo ser, “É”. O Rizoma, ao contrário, remete à noção de conjunção “E...E...E” revertendo a ontologia e o fundamento em favor do meio como lugar onde as coisas adquirem velocidade e são pensadas pela transversalidade das relações (Deleuze & Guattari, 1995, pp. 48-49).
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5
Foucault, Michel (2006). Estratégia, poder-saber. Ditos e Escritos IV. Ed. Forense Universitária.
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6
A macropolítica e a micropolítica, embora funcionem de modo entrelaçado, apresentam relações muito distintas uma da outra. Enquanto a macropolítica se faz através de linhas de segmentaridade dura ou molar, com conjuntos contáveis, calculáveis e bem determinados, por outro lado, a micropolítica funciona por meio de linhas maleáveis ou moleculares, onde se pode observar quantas de desterritorialização que se desviam, escapam desses conjuntos e elementos (Deleuze & Guattari, 2004, p. 68).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Abr 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
05 Ago 2022 -
Revisado
21 Ago 2023 -
Aceito
24 Ago 2023