Resumo:
Este artigo reflete sobre a singularidade das relações entre mulheres rurais e os cães que com elas constituem um relacionamento interespecífico. Objetiva contar sobre práticas que foram emergindo ao longo de uma pesquisa quando passamos a encarar seriamente a agência de animais a partir do cotidiano de uma agricultora pesquisadora alinhada à agroecologia familiar. Focalizamos os cães de passagem sem raça definida e que vão e vêm livremente entre as cercas que delimitam as propriedades rurais. Em diálogo com Donna Haraway, Anna Tsing e Vinciane Despret, apresentamos pistas para uma pesquisa multiespécie que opera por meio de causos. A pesquisa multiespécie nos convida a reflexões sobre práticas anticapitalistas que germinam na agroecologia, a nos determos no trabalho das mulheres agricultoras e dos cães na sua potência de autogoverno e de criarmos formas de cooperação multiespecíficas com alteridades significativas no projeto moderno-colonizador.
Palavras-chave: Cães de Companhia; Pesquisa Multiespécie; Psicologia Social; Rural; Agroecologia
Resumen:
Este artículo reflexiona sobre la singularidad de las relaciones entre las mujeres rurales y los perros que constituyen una relación interespecífica con ellas. El objetivo es relatar las prácticas que surgieron a lo largo de una investigación cuando empezamos a considerar seriamente la agencia animal basada en la vida diária de una agricultora investigadora alineada con la agroecología familiar. Centramonos en perros mestizos que van y vienen libremente entre las vallas que delimitan las propiedades rurales. En diálogo con Donna Haraway, Anna Tsing y Vinciane Despret, presentamos pistas para una investigación multiespecie que opera a través de historias. La investigación multiespecie nos invita a reflexionar sobre las prácticas anticapitalistas que germinan en la agroecología, a centrarnos en el trabajo de las campesinas y los perros en su poder de autogobierno y a crear formas de cooperación multiespecífica con alteridades significativas en el proyecto moderno-colonizador.
Palabras clave: Perros de Compañía; Investigación Multiespecies; Psicología Social; Rural; Agroecología
Abstract:
This article reflects on the uniqueness of the relationships between rural women and the dogs that constitute an interspecific relationship with them. It aims to tell about practices that emerged throughout research when we began to seriously consider the animal agency based on the daily life of a farmer researcher aligned with family agroecology. We focus on mixed breed dogs that come and go freely between the fences that delimit rural properties. In dialogue with Donna Haraway, Anna Tsing and Vinciane Despret, we present clues for multispecies research that operates through stories. Multispecies research invites us to reflect on anti-capitalist practices that germinate in agroecology, to focus on the work of women farmers and dogs in their power of self-government and to create forms of multispecific cooperation with significant alterities in the modern-colonizing project.
Keywords: Companion Dogs; Multispecies Research; Social Psychology; Countryside; Agroecology
Introdução
Dificilmente chegamos a uma roça do interior do Paraná e não encontraremos um cachorro latindo ferozmente, quando tentamos nos aproximar - pode ser apenas um alarde, ou não. É comum as pessoas adotarem cães para que protejam suas terras, não só dos humanos que podem aparecer na calada da noite, mas também de predadores das criações, como as raposas ou outros bichos, os quais costumam se alimentar dos ovos das galinhas ou até das próprias. Não se trata apenas de segurança.
Na Figura 1 que abre este artigo, a cadela Violeta acompanha a limpeza das folhagens na colheita de café, sendo um registro visual do cotidiano da pesquisadora que conduziu o trabalho que deu origem a este texto escrito entre as colheitas e os teclados, entre a roça e a cidade, entre a roça e a universidade. Sobre Violeta, registrou-se no diário de pesquisa: “Quando paramos para almoçar, recebemos a visita da cachorrinha dos donos do cafezal. Ficou por ali, pediu carinho, almoçou e foi embora. Depois, ia e voltava ao longo da tarde, parecia uma fiscal da colheita” (Diário de pesquisa, 12 de junho de 2021).
As mulheres que cuidam das terras, ao longo do dia, fornecem lugar de descanso, comida e água para seus colegas caninos e, à noite, os cachorros assumem o controle das terras, estando em alerta para qualquer aproximação. Os cães que protegem as casas sabem que devem latir para possíveis ameaças, a fim de denunciar quem se aproxima; não é preciso que uma pessoa fique junto o tempo todo, dando-lhe o comando de latir no momento certo, ou de passar a noite acordada para seu trabalho. Durante as noites, os cães em guarda estão acordados, e as mulheres descansam após as jornadas diárias na roça e na casa.
A relação das mulheres rurais com os cães envolve reciprocidade, não dessas que a gente idealiza, mas o tipo de reciprocidade que se alegra ao notar sua presença, que sabe o som da sua chegada e que a acompanha, independentemente do destino. Há os cães que dormem junto, os que caçam, os que dormem o dia todo, aqueles que pastoreiam, protegem, cuidam e estão de passagem, e, dentro das suas infinidades, podemos notar que o cão também trabalha. Na história do trabalho rural, o cão sempre esteve lá, principalmente aqueles que chamamos de raça indefinida. Assim, na história do pastoreio, quanto mais mestiço o cão fosse, mais habilidades e resistências ele poderia ter. Reciprocidade interespecífica não é sobre ausência de assimetrias.
Nesse sentido, este artigo busca contribuir para pensar a singularidade das relações entre mulheres rurais e os cães que com elas constituem um relacionamento interespecífico. Utilizamos o termo roça para referir à zona rural de um município de pequeno porte do Paraná, sendo esse o termo adotado pelas pessoas em seu cotidiano. O que queremos é contar sobre práticas que foram emergindo ao longo da pesquisa quando passamos a encarar seriamente a agência de animais a partir do cotidiano de uma agricultora-pesquisadora. Ao lado das mulheres rurais, os cachorros são os grandes protagonistas da escrita e do cotidiano, partilham a convivência com quem escreve este texto e que lida com o corpo exausto das entregas da horticultura e do trabalho acadêmico numa difícil conjugação.
Focalizamos, para efeito deste texto, os cães de passagem: animais sem raça definida, que vão e vêm livremente entre as cercas que delimitam as residências e propriedades; não se prendem a relações de propriedade junto às mulheres com as quais se mantêm por um certo período, tampouco avisam quando chegam e quando partirão. São cães que mundificam relações anticapitalistas, atualizando uma convivialidade companheira e de confiança mútua entre pessoas e animais que escapam à dualidade domesticidade e ferocidade, contribuindo para uma certa agroecologia que se dá também nos afetos. De certa maneira, os cães de passagem estreitam os laços entre agroecologia, feminismo e anticapitalismo ao reafirmarem zonas comunais de convivência não orientadas para a reprodução das relações de expropriação do trabalho das mulheres (Federici, 2019).
Animais contribuem para constituição de mundos, e isto pode ser dar mesmo com animais pequenos como insetos, como ocorreu com o bicudo nas monoculturas de algodão na caatinga nordestina. Gabriel Holliver (2019) relata que os bicudos foram tomados como pragas ao se espalharem nos campos de algodão, mas, de outra parte, contribuíram para que a monocultura de algodão não prosperasse, fortalecendo a agroecologia de base familiar. O autor escreve (2019, p. 81) que o pequeno inseto “foi responsável por abrir novas possibilidades de gerar outros mundos, por meio da devastação sobre a devastação da plantação, o inseto permitiu, através do vazio que deixou, a regeneração da vida por outros modos”.
A pesquisa que deu origem a este artigo se tornou possível pelos encontros multiespécies, que foram vivenciados na roça, com e pelos animais que a habitam. Este trabalho foi escrito por meio de práticas de alternância entre cidade e ruralidade, por uma pesquisadora que simultaneamente trabalha nas roças que vivem a transição da cafeicultura para a horticultura no interior do Paraná e escreve uma dissertação de mestrado em São Paulo. As narrativas que apresentamos são sobre mulheres rurais alinhadas com a agricultura familiar e a agroecologia, as quais possuem uma relação de respeito e cuidado com a terra. O som dos pássaros cantando na horta, das galinhas cocoricando, dos porcos famintos pelas folhas de alface, dos cachorros correndo, dos gatos caçando os ratos na tulha de café, todos fazem emergir possibilidades de escrita e pesquisa.
A alternância, na educação no campo, busca articular os encontros entre meio educacional e meio familiar rural, considerando a complexidade dessa relação (Silva, 2009). Estendemos esta noção de alternância à formação pós-graduada em Psicologia, abrangendo o segundo ano dedicado à pesquisa e escrita da dissertação. Na alternância, os diários são bons companheiros de escrita e ordenadores das ideias para que possam ser compartilhadas com quem lê. Eles nos auxiliam a escrever o dia a dia de ser pesquisadora e trabalhadora rural familiar, são dispositivos de intervenção na medida em que os conteúdos levantados em sua construção ensejam observar o movimento que a pesquisa tem, não só de habitar vários ambientes, mas da pluralidade de encontros no espaço rural. Nessa direção, os diários, escritos entre 26 de julho de 2020 a 15 de dezembro de 2021, integram a pesquisa como dispositivos de acompanhamento das relações e mediadores das relacionalidades com os cães.
Este manuscrito se inscreve num movimento mais amplo das psicologias sociais brasileiras que vêm ampliando os estudos com/sobre/desde animais e plantas, revendo os modos como abordamos as relações entre humanos e outros viventes, rejeitando posicionamentos os quais aloquem os animais e plantas num estatuto subtrativo em relação aos primeiros ou a um platô de humanização; animais são considerados inteligentes se, de algum modo, têm raciocínios e atitudes próximas da humana, enquanto as plantas, por sua vez, adquirem o estatuto instrumental no qual sua agência se dá pelo que faz emergir em termos de produção de sentidos (Galindo & Milioli, 2016, 2020). Numa leitura multiespécie, direcionamos nossas narrativas para a convivialidade e para as relações afetivas; passamos a levar a sério as perguntas que nos colocam os animais numa polifonia vital (Tsing, 2022) própria à pesquisa multiespécie que não se orienta pela excepcionalidade humana.
Quem escreve? uma agricultora-pesquisadora
O trabalho agroecológico de base familiar requer uma afetividade e uma atenção ao ambiente, as quais a maioria das atividades urbanas não exige, pois o ato de preparar a terra, adubar, plantar, cuidar para crescer, colher os frutos, respeitando o tempo dos animais e das plantas, faz crescer um amor e um respeito que precisam de políticas públicas efetivas para que as pessoas permaneçam na roça. Para que a agroecologia e a agricultura familiar aconteçam, as práticas precisam ir além do papel de denominação desses modos de produção. Mais do que um modelo de produção, agroecologia de base familiar é, também, um enfrentamento à misoginia que coloca as mulheres como inferiores, é um combate ao racismo e um caminho para reconectar o campo e a cidade, de sorte a construir mundos possíveis.
A vida nas roças é atravessada por problemas decorrentes das estradas de difícil acesso, falta de transporte público e de ações desenvolvidas no próprio ambiente rural que produzem uma exclusão das pessoas e a desigualdade, além de se caracterizar como uma forma de violência à população rural por não desfrutar de serviços de transporte seguros, de acesso à saúde básica, de maneira rápida e eficiente, sem contar a dificuldade de participar do processo de ensino/aprendizagem, quando as crianças se veem obrigadas a acordar às cinco horas para ir à escola, pois o município não oferece o transporte no período da tarde. São dificuldades encontradas no cotidiano rural, não com o intuito de promover sentimento de pena ou reafirmar que a vida urbana é melhor, mas para salientar as violências que foram internalizadas no discurso de que o mundo rural é precário mesmo ou na normalização da dificuldade das pessoas de terem de andar quilômetros para ter acesso aos serviços que são centralizados no meio urbano.
O lugar de centralidade que nos colocamos como humanos e humanas faz ter a premissa de que, sem um tutor, um animal está abandonado; contudo, será que a falta de abrigo e espaço seguro para esses cães transitarem não é exatamente porque nós, humanos, invadimos os espaços dos animais e ainda tivemos a audácia de criar e definir quais devem ter um lar? Nas relações companheiras não há espécies determinadas a serem companheiras (Galindo, Milioli, & Méllo, 2013), pois os pactos de codomesticação necessitam de constante atualização e podem ser quebrados.
Quando estamos abordando agroecologia, estamos nos referindo a um modo de plantar e colher que tem como base a busca por relações companheiras de humanos com animais e plantas, mas que, historicamente, vem sendo perpassado por relações assimétricas de gênero e pela invisibilidade do trabalho rural das mulheres. Durante o IV Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), ocorrido em Belo Horizonte/MG, do dia 31 de maio a 03 de junho de 2018, o Grupo de Trabalho Mulheres da ANA criou o boletim Sem feminismo não há agroecologia, enfatizando que não seria suficiente uma mudança no modo de produção econômico, mas “transformar as relações sociais entre homens e mulheres e entre as gerações, combater o racismo e ressignificar as conexões entre campo e cidade para a construção de outro mundo possível!” (Articulação Nacional da Agroecologia, 2018, s/p).
O cotidiano nas roças agroecológicas de base familiar é composto por relações entre espécies e pela coletividade; as pesquisas que envolvem práticas rurais agroecológicas de base familiar, portanto, não devem seguir pelo campo da individualidade, sob o risco de perder toda potência e a oportunidade de fazer boas perguntas. Ademais, a agroecologia é também um certo modo de ecologia afetiva, nutrida por relações de interdependência entre espécies diferentes que convivem e partilham, sem as mediações químicas dos agrotóxicos, modos de florescer, crescer, nutrir a terra e os afetos. Jeanne Favret-Saada (2005, p. 159) defende que, quando estamos em campo, “é-se bombardeado por intensidades específicas (chamemo-las de afetos), que geralmente não são significáveis. Esse lugar e as intensidades que lhe são ligadas têm então que ser experimentados: é a única maneira de aproximá-los” e, através dessa afetação, compreender o que expressamos, de uma maneira próxima, mas não idêntica, pois o que foi ressignificado através dessa experiência perpassa o acervo de imagens de quem pesquisa, e não de outros participantes.
Conforme Vinciane Despret (2021), cada vivente percebe o mundo de maneira singular, pois possuímos órgãos sensoriais diferentes, que nos estimulam a perceber e sentir as coisas em graus de intencionalidade de modo único. Podemos pensar nos morcegos, que possuem uma audição aguçada e se orientam pela ecolocalização, ou uma águia, a qual tem uma ótima capacidade de enxergar - cada um desses animais irá se localizar utilizando elementos diferentes, e isso proporciona a eles modos diferentes de viver, mesmo que em alguns momentos eles tenham pontos de semelhança. As narrativas sobre evolução costumam se basear em modelos que defendem a criatividade humana na dominação do mundo natural, sem pensar nos outros seres que compartilharam essa jornada.
O que caracteriza, afinal, uma pesquisa escrita em perspectiva multiespécie? Essa corrente teórico-metodológica conta com uma base forte na Antropologia, todavia, ao mesmo tempo, é multidisciplinar, pois rompe com os limites de pesquisa entre as ciências humanas e as biológicas (Despret, 2021; Haraway, 2021). Desse modo, as ciências naturais deixam de ser a única maneira de abordar as espécies e passam a ser uma das vertentes que se dedicam a estudos na área. Francisco Cabrall e Carine Savalli (2020, p. 04), em uma pesquisa multiespécie, argumentam que “os cães possuem sua própria ‘visão de mundo’ e modo de agir sobre ele”. Nesse sentido, devemos considerar os cães como sujeitos ativos em nossas pesquisas e que vivem em realidades distintas de nós humanos e humanas, a fim de criarmos campos de pesquisa dialógicos que partam da interação humano-cão distintas e de diferentes culturas (não só a da investigadora).
Na perspectiva multiespecífica, não apenas os mundos de vida das diferentes espécies importam, mas também a forma como um mundo se comunica, se relaciona e constrói um ponto de intersecção com outros mundos. Partimos do pressuposto de que cada espécie possui seu mundo e sua completude: ao dividir o ambiente, somos capazes de coabitar sobre esses mundos e de construir comunidade. No entanto, por mais que amemos nossos cães companheiros, ressalta Anna Tsing (2015, p. 180), “a dominação, a domesticação e o amor estão firmemente entrelaçados”, não são, portanto, relações inocentes.
Com efeito, nas chácaras de agricultoras familiares, são quase imperceptíveis as linhas que separam os mundos das espécies não humanas e humanas: são humanas habitando os pastos, galinheiros, chiqueiros, represas, e espécies habitando casas, áreas e terreiros dos humanos, bem como as espécies que habitam o mundo de outras espécies. As espécies companheiras são diferentes entre si e dividem o espaço, não qualquer espaço, mas aquele que abriga o íntimo de cada uma delas e, para ser espécie companheira, é preciso que ambos os lados reconheçam a alteridade que cada um tem, longe dos discursos patriarcais e capitalistas que insistem no dualismo das divisões entre animais e humanos, organismos e máquinas.
Donna Haraway (2021) destaca que a relação entre humanas e cachorros vem de longa data, em diferentes culturas, compondo histórias boas e ruins. Cachorros estão e já estiveram em laboratórios para pesquisas científicas, atuaram e atuam como trabalhadores, esportistas, pastores, caçadores, já foram tratados como equivalentes aos humanos, por outros povos. Já o animal de companhia aparece relacionado à domesticação.
Vinciane Despret e Michel Meuret (2022) narram que, em uma fazenda de confinamento, ovelhas submetidas à alimentação automática aprenderam a desrespeitar cães pastores, pois deixaram de temê-los. Igualmente, passaram a desvalorizar a presença de pessoas. Assim, quando saíam do confinamento, pisavam nos desavisados que estivessem a sua frente e algumas, inclusive, fugiam. Com a introdução da alimentação automática e a mudança de comportamento das ovelhas, um dos pastores relatou que a cadela de pastoreio da fazenda também foi afetada. A cadela de pastoreio, acostumada às ovelhas que confiavam em segui-la, impossibilitada de compor com esses animais, começou a dar sinais de exaustão e a emagrecer a olhos vistos. As ovelhas insubmissas trouxeram mudanças ao modo de vida da cadela de pastoreio e à própria prática de pastoreio.
Os cães pastores trabalhadores ocupam um lugar entre animal de criação e colega de trabalho (Haraway, 2008, 2021), os cães de passagem, por sua vez, ocupam diferentes posições que vão do pastoreio ao convívio íntimo sem que se tornem, por isso, o que conhecemos por cães comunitários ou tampouco os cães não domiciliados definidos como problemas de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde. São cães que vivem com determinadas famílias - sobretudo, acolhidos pelas mulheres - em suas roças por um tempo que eles mesmos estabelecem e, posteriormente, seguem para uma outra roça ou para a cidade.
Contar causos como política de escrita
Nas roças, o hábito de contar causos é muito frequente; famílias se reúnem nos finais de semana para almoçarem juntas, compadres e comadres vão à casa um do outro tomar café e, nas colheitas, não há a sistematização do trabalho capitalista, onde os funcionários não podem conversar, de modo que as pessoas passam o dia contando causos e transmitindo suas histórias, ao mesmo tempo que fazem a história da colheita daquele ano. Causos fazem parte dos gêneros orais de “contação de histórias”, acompanhados de performances orais e corporais (Hartmann, 1999).
Contar causos possibilita uma pesquisa que se conecta com o corpo de quem lhes fala, o jeito como escrevemos diz do modo como ouvimos e aprendemos uns com os outros e com nossas famílias. Dessa forma, os causos contribuem para a transmissão da ancestralidade que atravessa esta pesquisa, que atravessa o rural; o que trazemos aqui, são vivências da família de uma pesquisadora-agricultora. De acordo com Sarah Moreira, Ana Paula Ferreira e Emma Siliprandi (2018), contar histórias permite acionar memórias sobre o saber e fazer agroecológico das mulheres; quando essas histórias são transportadas para a pesquisa e o fazer científico, estamos valorando os diversos saberes.
Os causos que contamos são sobre mulheres rurais alinhadas com a agricultura familiar e a agroecologia, as quais possuem uma relação de respeito e cuidado com a terra. O debate sobre mulheres e agroecologia surge no Brasil para apontar as desigualdades de gênero no mundo rural que levam as mulheres há muito tempo a não serem reconhecidas como agricultoras, ainda que historicamente sempre estivessem presentes na produção rural, em políticas públicas e na pesquisa acadêmica (Lima & Jesus, 2016; Moreira, Ferreira, & Siliprandi, 2018; Siliprandi, 2009). Márcia Lima e Vanessa de Jesus (2016, p. s/p), numa análise dos movimentos agroecológicos feministas da América Latina, apontam que as mulheres “levam para esses espaços públicos outras lógicas de cuidado com a vida humana e não humana que parecem extremamente relevantes para colocar em prática a sustentabilidade da vida e fazer frente aos desafios socioambientais e para produção de alimentos”.
Como prática de pesquisa no campo da agroecologia feminista, contar causos pode se configurar um ato de resistência à escrita colonial. Nesse sentido, causos não podem ser resumidos a “casos” ou “estudos de casos”. São de outra natureza narrativa e genealógica, compondo os mundos rurais enquanto os casos possuem sua genealogia nas ciências modernas-coloniais. Causos se desvinculam de qualquer pretensão ao fechamento interpretativo e/ou argumentativo, podem simplesmente abrir histórias que não serão concluídas ou das quais não se pode extrair leituras unívocas. Uma boa contadora de causos faz com que um causo puxe o seguinte e assim por diante.
Para compor os causos, utilizamos as fotografias e vídeos como práticas de pesquisa. Vale advertir que se não houver um cuidado da fotógrafa, essas podem se tornar meios de exploração daqueles e daquelas que são fotografados, sendo esses humanos ou não humanos. Ariella Azoulay (2019) lembra-nos de que, no projeto moderno-colonial ocidental, fotógrafos foram convocados a construir a história, fotografando tudo o que fosse possível, pois o mundo pedia para conhecer a capacidade que uma câmera possuía; entretanto, as pessoas fotografadas não foram mencionadas e muito menos os animais e as plantas, que também foram capturados. Forçar uma experiência com a fotografia impede que o encontro registrado ultrapasse os limites da captura e limita a participação de pessoas, animais e plantas, retirando a “oportunidade que a câmera cria para as pessoas coincidirem no mesmo espaço e tempo e, assim, participar na criação de algo comum”, que não poderia ser realizado sem a participação de outros (Azoulay, 2018, tradução nossa).
Aparecido, Risonho, Chiclete... o causo dos cães de passagem
Quando cheguei ao sítio hoje, eu me deparei com esse cachorro. Ele é bem mansinho e brincalhão, Allan me contou que já havia dois dias que ele vinha para a horta, quando ouvia o barulho da camionete. Ele está dormindo na casa do nosso vizinho, mas acreditamos não ser dele, pois nunca vimos esse cachorro lá. (Diário de Pesquisa, 25 de novembro de 2020)
Vemos com frequência, nas ruas, os cachorros ou gatos com fome, rasgando os sacos de lixo para se alimentarem e fazendo bagunça nas calçadas. De fato, ninguém é obrigado a querer estabelecer relações multiespécies na perspectiva que estamos habituados da convivência diária, por isso, uma prática que adotamos no campo para ajudar os cachorros de passagem é colocar em nossa calçada um pote com ração e outro com água, a fim de que possam se alimentar, reduzindo o número de sacolas rasgadas e possíveis violências contra os animais que podem resultar daí.
Cachorros de passagem, como o próprio nome diz, não estabelecem moradia nos lugares por onde passam ou, pelo menos, não naqueles nos quais não desejam permanecer; todavia, são cães que se aventuram a andarilhar por aí e decidem parar em alguma casa para alimentar-se ou descansar, usufruindo de uma liberdade de que nós, humanos, não desfrutamos, já que precisamos de muita desconstrução para nos arriscar a viver pelo mundo, sem destino de volta. Ainda que viver de passagem possa ser visualizado como uma prática libertária, torna-se importante ressaltar que o abandono de animais vem se configurando um problema de saúde, decorrendo de fatores socioeconômicos, culturais e político-governamentais (Alves et al., 2013; Cabrall & Savalli, 2020).
Convivendo com Aparecido e Risonho, a pesquisadora começou a pensar sobre os movimentos de ir e vir deles na horta e a chamá-los de cachorros de passagem. Na roça, a pesquisadora se viu acompanhada de algumas pessoas, inclusive na sua casa, que colocavam potinhos com ração e água para os cães nas ruas. A figura dos cães de passagem se estende àqueles que estabelecem moradia em alguma casa, mas que saem para procurar alimentos; de certa maneira, eles também estão de passagem entre uma casa e outra. Neste texto, a figura dos cães de passagem remete aos cães que vão e vêm nas roças do interior do Paraná. Donna Haraway (2021) salienta que a história do desenvolvimento das raças se deu de forma complexa, não existindo raça pura, mas raças contaminadas de relações multiespécies de diferentes lugares, que foram se associando de diversas maneiras.
Quando um cão decide estar de passagem numa casa, ele coloca em xeque o que entendemos do condicionamento através da comida, porque o cão pode voltar todos os dias para se alimentar da comida que deixamos para ele, mas isso não é suficiente para que fique, para que nos obedeça. A única coisa que podemos entender sobre esse evento é que há uma relação de afeto entre oferecer o alimento que temos para saciar quem procura; entretanto, há mais coisas envolvidas nisso, de sorte que precisamos de boas perguntas, se quisermos mesmo refletir sobre isso. É possível observar cachorros que saem de suas casas apenas para comer e depois voltam. Podemos pensar como cães de passagem aqueles cachorros ou gatos machos que saem de suas casas atrás de fêmeas no cio e, depois de semanas, voltam para suas casas? Há mais cachorros de passagem do que imaginamos; eles colocam em xeque a ideia de dependência dos seus tutores, que nós idealizamos.
Alguns destes encontros fogem ao escopo das atividades laborais, a exemplo da dança, com um cão que festeja com as pessoas da casa, como se vê na Figura 2 (para acessar o vídeo é necessário um programa leitor de QR CODES). Outros afazeres dos cães são próprios do cotidiano na roça, tais como guardar a casa ou acompanhar alguém ao longo de uma caminhada impedindo a aproximação de predadores. Anna Tsing (2015), em seu texto Margens Indomáveis: Cogumelos como espécies companheiras, nos fala que “a domesticação é geralmente compreendida como o controle humano sobre outras espécies. Que tais relações podem também transformar humanos é algo frequentemente ignorado” (p. 184). Viver com outras espécies muda a rotina de todas, pois é preciso cuidar, medicar, alimentar, transportar e proteger; é arrogância epistêmica humana achar que está no controle dessa relação, pois o cuidado só se torna possível quando cedemos um pouco de nós.
Viver uma relação com animais e plantas nem sempre é algo recíproco, principalmente com animais: eles decidem coisas e fazem traquinagens que desagradam os humanos, deixando-os duvidosos sobre amar ou não os animais. Acontece com frequência é que temos a tendência de achar que os cachorros surgidos nas terras e portões são vítimas precisando ser resgatadas, contudo nem sempre é assim. Os cachorros de passagem aparecem nos sítios, dormem, se alimentam, bebem água, recebem carinho, retribuem como acham que devem e vão embora. Anna Tsing (2015) examina uma noção que contribui muito para entendermos o movimento dos cachorros de passagem: o conceito de lugares familiares como o “início da apreciação das interações multiespécies” (p. 181), porque, ao encontrar comida tantas vezes no mesmo lugar, esse espaço se torna familiar ao cão. Assim, “os lugares familiares de procura de alimento não requerem exclusividade territorial, outros seres, humanos ou não, também o aprendem” (Tsing, 2015, p. 182).
Juliana Fausto (2021), ao observar cães que vivem na Floresta da Tijuca localizada no Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro, descreve-os como animais que tiveram o pacto de codomesticação quebrado e que não possuem a capacidade de voltar a serem lobos, seus antepassados selvagens. Em composição com a floresta e as árvores, esses cães se tornam outros, oscilando entre as posicionalidades de criaturas quiméricas e problemas de segurança pública. Passam a causar medo, abandonada a posição de animais domésticos. Nas palavras da autora, estes “cães esquecidos profanam a reserva natural e nos falam sobre a importância dos compromissos, mas também nos falam sobre como a conexão é literalmente uma matéria de mundificação e da possibilidade de remundificação” (Fausto, 2021, p. 23).
Ora, um caminho inventivo para a relação interespécies com cães de passagem implica formas de identificação e companheirismo entre os animais humanos e não humanos que se contrapõem às relações de poder/morte ou à hiperdomesticação dos corpos. Devemos pensar sobre os cachorros de passagem, que usufruem de sua liberdade canina de estar em diferentes lugares, de experimentar o mundo como querem e não como nós, humanos, gostaríamos. Construir afetos com os animais requer um direcionamento para as micropolíticas dessa relação; não é algo fácil de se exercer, é mais fácil construir relações edipianas e reducionistas do que colocar os animais como coprotagonistas dos afetos. Por conseguinte, dispor-se ao outro é estar suscetível a não ser correspondido a todo o momento.
Atentando às micropolíticas, passemos ao causo de Aparecido. Toda manhã surgia para comer um pouco de ração, nos agraciava com suas brincadeiras e nos acompanhava até a colheita das hortaliças; quando vínhamos para as entregas, ele também ia embora. Foi uma semana assim, depois seguiu sua rota. No começo, imaginávamos que não havíamos cuidado o suficiente para que ele desejasse ficar, mas ele foi o primeiro - ainda não entendíamos que não precisava fincar raiz para ocupar um espaço. Passando a um causo, tivemos uma surpresa na chácara. Do nada um cachorro correu em nossa direção, quando chegamos, mas ele é um pouco medroso, porque, quando me mexi, reagindo à sua corrida até a mim, ele parou e ameaçou voltar. Lembrei-me da ração que deixamos na casinha, desde que Aparecido estava aqui, e dei um pouco para ele. Quando me afastei, veio e comeu tudo. Depois disso, amizade selada, ficou me seguindo na horta, mas ele é um tanto estabanado, pisa nas alfaces, passa por cima dos canteiros; tive que repreendê-lo, para não quebrar minha muda de manjericão.
Multiterritorialidade é o nome deste “ocupar um espaço sem permanecer”. Com multiterritorialidade propomos discutir o significado que os territórios têm para nós e, especialmente, sobre como ressignificamos e reterritorializamos nossas vidas e a complexidade que está envolvida no processo de construir territórios mais múltiplos e cheios de potenciais políticos. Esse movimento de ocupar diversos territórios é uma tarefa difícil para nós, humanos, mas não para os cães de passagem.
Aparecido (ao lado esquerdo); Risonho (ao lado direito), cães de passagem na chácara, 2020.
Quem sabe esse cachorro fica por aqui, pensou a pesquisadora. Aparecido nunca voltou. Uma coisa que pensava com a chegada desse cachorro é que é bem comum aparecer cachorros nas chácaras, desde filhotes até mais velhos; um fato que contribui para isso é que as pessoas, quando não querem mais seus animais, os soltam. A grande maioria das pessoas do mundo rural acolhe esses animais, que, de passagem, partilham o cotidiano, dividindo os trabalhos e as pequenas alegrias como alimentar-se na pausa da roça. Na Figura 4, visualizamos o cão Scott, que mora na cidade e passa pela roça acompanhando a agricultora-pesquisadora.
Ao observarmos as trocas afetivas entre Scott e a pesquisadora presentes no vídeo da Figura 4, indagamos: como falar com o cachorro, sem colocar palavras na sua boca? Como estabelecer comunicação com quem não fala a linguagem dos humanos? Há momentos nos quais entendemos melhor o que o cachorro quer dizer do que muita gente. Para se comunicar com outra espécie, é preciso estar disponível para tal ato; logo, não é fácil controlar a necessidade humana de interpretar tudo ou de falar com os animais como se eles fossem idiotas numa relação antropocêntrica em que impera o desejo e as concepções do humano sobre o animal no que concerne às trocas afetivas (Alves et al., 2013; Cabrall & Savalli, 2020).
Scott não é um cão de passagem como Aparecido e Risonho. Convive com a pesquisadora na cidade, poucas vezes vai para a chácara, mas, quando vai, se desdobra ao passar por cada canto, em uma espécie de fiscalização. Ora segue o pai da pesquisadora, ora a segue. Ao final do dia, Scott está exausto de andar por 1(um) alqueire inteiro com suas pernas pequeninas. Mas, por que ele aparece então na sessão destinada aos cães de passagem? Porque, de certa forma, Scott está de passagem no rural, visita os porcos, as galinhas e a horta e volta para suas tarefas na pequena cidade rural de Pinhalão.
Voltando ao Aparecido, ele é um cão de passagem e, em determinado momento, partiu. A pesquisadora-agricultora registrou em seu diário:
Faz cinco dias que estamos levando ração canina para Aparecido, mas hoje ele não apareceu na horta, pelo menos até a hora em que viemos para as entregas. Estamos achando que foi embora, porque passamos olhando na casa do vizinho e não estava lá. (Diário de pesquisa, 30 de novembro de 2020)
Assim foi também com o cachorro Risonho, outro cão de passagem. Em determinado momento, percebemos que o cachorro que, carinhosamente, chamamos de Risonho, já não estava mais na chácara. Registrava no diário: “Allan disse que até a hora em que foram embora da chácara, no final do dia, ele estava lá deitado. Mas hoje já não está mais, talvez tenha tentado seguir a caminhonete” (Diário de Pesquisa, 30 de novembro de 2020). Os cães de passagem que aparecem na chácara não estabelecem moradia fixa.
É preciso ressaltar que os lugares familiares não são produzidos apenas se houver interações de cuidado, mas aparecem quando há as violências também. Cães de passagem aprendem onde devem ou não circular. Estabelecem cautelas, pois, assim como se familiarizam com os cuidados, também se familiarizam com os lugares marcados por violências. Ao mesmo tempo que há pessoas que cuidam desses animais de passagem, na medida em que eles permitem serem cuidados, há também aqueles que os maltratam, fazendo com que temam retornar a tal lugar. Infelizmente, ainda vemos, com frequência, relatos de pessoas que tiveram seus animais envenenados, durante um passeio ou passagem.
Para cães de passagem, alguns perigos são eminentes. Podem se deparar com uma comida envenenada, com “bombinhas” (fogos de artifício) ou com outros cães “atiçados” por proprietários para expulsá-los. Ao passo que as mulheres trabalhadoras rurais costumam acolher esses cães, alguns proprietários de chácaras fazem justamente o oposto e mantêm prontidão contra cães de passagem a fim de coibir que façam “traquinagens”, como rasgar sacos de lixo. É assim que o cão Scott, familiarizado com as relações de cuidado e de violências, por exemplo, se tornou hábil em distinguir, nos lugares perigosos, os traços de “chumbinho” (veneno) na comida. Sobre o causo de Scott, a pesquisadora-agricultora registrou em seu diário:
Me lembrei de um fato que ocorreu em Pinhalão, as filhas da Neguinha e os pastorzinhos morreram no mesmo mês. Acreditamos que foram envenenados, não temos certeza do que usaram, mas achamos que sim pela rapidez e sintomas, além de algumas ameaças que faziam sobre latirem demais. A ameaça propriamente, era para Scott, porque ele late bem alto, mas ele e Neguinha não passaram mal, acho que de alguma forma, identificaram. Scott é bem exigente com comida… (Diário de Pesquisa, 30 de novembro de 2020
O cão Chiclete, por sua vez, familiarizado com as relações de cuidado na horta familiar, respondeu prontamente ao convite para passar pela chácara. No vídeo da Figura 05 (QR CODE à esquerda), vemos Chiclete a caminhar na cidade, quando é avistado pelo irmão da pesquisadora que passava com sua moto. Ao chamá-lo, Chiclete reconheceu a moto de Allan, um pequeno agricultor, e passou a segui-lo até a casa da avó da pesquisadora na roça onde o cão estava de passagem. No QR CODE à direita, Scott segue o pai da pesquisadora em direção ao trabalho com os porcos numa atividade de companhia e provisão de segurança.
A cooperação no trabalho na roça parte da decisão dos animais, eles não são condicionados a realizar tal tarefa, eles foram ensinados e, a partir daí, é decisão deles se querem ou não cooperar. Vamos pensar no burro: costumamos ouvir que os burros são animais difíceis de montar, pois eles empacam; esse é um motivo insuficiente para explicar esse comportamento do animal - se algo acontecer no trajeto e o burro julgar como ruim, ele nunca mais passará por aquele caminho, sendo possível perceber um comportamento de prevenção, por parte do animal.
Jocelyne Porcher e Tiphaine Schmitt (2012) pesquisam o cotidiano de uma fazenda de vacas leiteiras em uma região montanhosa na França, na qual havia 60 vacas e zero pastagem. Para estudar a colaboração dos animais, as autoras elaboraram um protocolo de observação, em que o reconhecimento de cada vaca se dava através de um repertório fotográfico com várias fotos da mesma vaca e de uma ficha técnica. Ao longo da observação, a qual durou nove semanas, focaram em quatro aspectos: o ritmo das vacas, o comportamento das vacas no rebanho, o comportamento das vacas ao redor do robô de ordenha e o comportamento delas com o agricultor. Foi possível constatar que a maioria das vacas obedeciam; entretanto, algumas agiam pelas brechas para contornar o trabalho, seja porque não queriam fazer, seja para receber algum tipo de contato físico com a agricultora.
O curioso é que a colaboração dos animais se torna perceptível somente quando elas se recusam a contribuir, quando revelam suas vontades e atrapalham o fluxo da rotina (Despret, 2021), pois o que parecia ser o curso natural das coisas entra em conflito. No caso dos cães de passagem, esses se tornaram visíveis por sua recusa a permanecerem nas roças ou mesmo a darem quaisquer pistas de que chegarão ou partirão: recusam-se a ser cães de alguém. Quando uma galinha permite que invadamos seu ninho para pegar seus ovos, a vaca ou a cabra permitem que sejam ordenhadas, as ovelhas, que seu pelo seja cortado, definem limites para a aproximação humana e, ao mesmo tempo, definem intersubjetivamente termos para a relação. Vacas, por exemplo, podem esconder o leite se a ordenha for dolorosa.
Considerações finais
Os causos dos cães de passagem permitem-nos problematizar a relação de propriedade humana em relação aos animais, pois assim como chegam vão embora; ou mesmo, quando estendem a fiscalização de um grande proprietário de terra, como Violeta que narramos neste artigo, vão e vêm sem se aterem estritamente à tarefa que lhes foi delegada. Envolver-se não é apenas se colocar em primeira pessoa, na escrita do texto, ou afeiçoar-se àqueles que estão envolvidos; contudo, é permitir que esses envolvidos possam propor novos caminhos, mesmo que eles resultem em dados opostos ao que se esperava.
Ao longo do manuscrito, trouxemos como pistas para a pesquisa a contação de causos interespecíficos. Os cães que transitam nas roças agroecológicas, do interior do Paraná, convidam a uma política de afetos que se desenha por interdependência e pelo fato de que seguem trajetos afetivos desprendidos das promessas de que ficarão para sempre com quem convivem.
Abrindo a pesquisas futuras, entendemos que os causos sobre os cães de passagem convidam a reflexões sobre práticas anticapitalistas que germinam na agroecologia. Interpelam-nos a visualizarmos a potência de autogoverno das mulheres rurais e dos cães de passagem entre os quais se estabelecem formas de cooperação multiespecíficas. Os cães de passagem, assim como as mulheres rurais, são alteridades significativas minoritárias no projeto moderno-colonizador das monoculturas.
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Financiamento
Não houve financiamento
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Consentimento de uso de imagem
Foi obtido o consentimento escrito dos(as) membros(as) humanos(as) da família da agricultora-pesquisadora que eventualmente apareceram nas fotografias e filmagens dos cães de passagem.
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Aprovação, ética e consentimento
Não se aplica.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
31 Maio 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
17 Ago 2022 -
Revisado
29 Ago 2023 -
Aceito
05 Set 2023