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DÊUTERO-ISAÍAS: ENTRE DESOLAÇÃO E CONSOLAÇÃO

Deutero-Isaiah: Between Desolation and Consolation

RESUMO

O objetivo deste estudo não tem a pretensão de uma exposição exaustiva, mas trazer uma reflexão que incentive o entendimento da literatura profética e, particularmente, do texto do Segundo Isaías (40-55). Quanto ao método, foram considerados os lugares a partir dos quais podemos compreender a mensagem do profeta, sua relação com Deus e com o povo de Israel: o lugar literário, histórico-social e teológico. Quem é Deus? Numa linguagem mítico-teológica, o profeta reinterpreta a tradição, fortalece a noção de Deus em relação aos ídolos pagãos e resgata, aos exilados da segunda geração na Babilônia, a esperança numa “nova criação”.

PALAVRAS-CHAVE
Dêutero-Isaías; Exílio; Mensagem; Consolação; Nova criação

ABSTRACT

This study, rather than being an exhaustive exposition, hopes to be a reflection that encourages deeper understanding of Second Isaiah (40-55). As for the method, we considered the places from which we can understand the prophet’s message, his relationship with God and the people of Israel, as well as the literary, historical-social and theological place. Who is God? To answer the question “who is God,”the prophet uses mythic-poetic language to reinterpret tradition, strengthens the notion of God in relation to pagan idols, and rescues hope in a “new creation” for the second generation in Babylonian exile.

KEYWORDS
Deutero-Isaiah; Exile; Message; Consolation; New creation

Introdução

A necessidade de libertação leva o povo de Israel a renunciar aos ídolos e aceitar a mensagem libertadora de Iahweh que chega pela boca do profeta Isaías. Os exilados teriam que repensar a libertação trazendo à memória os pecados da liderança de Israel e do êxodo do Egito. O “livro da consolação”, nome dado à segunda parte dos escritos de Isaías, traz luzes à comunidade judaica que caminha, ainda hoje, entre a persistência da idolatria e a esperança de uma nova criação onde reina o amor e a justiça.

Ídolos babilônicos, libertação da servidão e o relato de uma nova criação. Eis alguns temas que nos ajudam a formular os seguintes problemas: Por que Israel tem boa aceitação das narrativas babilônicas? Qual é a missão do Dêutero-Isaías junto ao seu povo no exílio? Que importância tem a lembrança do antigo êxodo para o projeto da nova criação? São questões importantes a serem refletidas neste ensaio.

Israel procurou influenciar comunicando sua verdade sobre Deus e a criatura, mas também sofreu influências das cosmogonias mesopotâmicas e o texto de Isaías (40-55) traz algumas informações acerca desta hipótese. Tal procedimento será abordado a partir dos lugares: literário, histórico e teológico. Não há aqui uma pretensão de fazer uma exegese ou uma análise exaustiva do texto, mas tratá-lo como uma linguagem construída num determinado contexto literário. O método histórico-crítico ajuda a compreender a época e o chão onde foi produzido e interpretado o conteúdo desta pregação. No seu lugar teológico, o texto lança as perguntas: quem é o Deus de Israel e qual é sua mensagem? Quem é o destinatário da mensagem de Iahweh? A literatura é entendida aqui como uma produção teológica ou uma forma artística de organização da realidade sagrada.

São enfoques que ajudam a compreender questões, mais gerais, relacionadas ao povo de Israel e à construção de uma linguagem que procura falar do sagrado e sua ação libertadora na história de Israel para a humanidade. Nestas provocações acompanham os subtítulos: a linguagem libertadora do Segundo Isaías; Renúncia aos adoradores de ídolos; Anúncio de uma nova criação. Assim, o profeta organiza sua teologia circulando entre os temas principais: idolatria e libertação; desolação e consolação.

1 A linguagem libertadora do Segundo Isaías

Na antiguidade, as reflexões acerca da natureza passaram a ser tratadas com mais interesse. O desejo de conhecer a origem de todas as coisas levou à superação da Cosmogonia ou de um corpo de doutrinas que explicam a criação do universo a partir dos mitos. O surgimento da Cosmologia, tentativa de explicar o mundo de forma racional a partir dos elementos da natureza física, levou à superação das narrativas mitológicas acerca da origem e do fim do mundo. A religião de Israel se apropriara destas narrativas, construindo um discurso sobre o “sagrado” e sua intervenção na história. Tal discurso aponta para o que Peter Berger (1985, p. 17)BERGER, P. L. O Dossel Sagrado. São Paulo: Paulinas, 1985. chamou de “qualidade de poder misterioso e temeroso, distinto do homem e, todavia, relacionado com ele”; um discurso sobre mistério e revelação.

A linguagem mítico-religiosa adota um objeto que, a um só tempo, se revela e se esconde; um objeto esplendido cuja falta provoca a produção de imagens, símbolos e metáforas como formas de dizer o indizível; uma linguagem que coloca o “Tremendum” da fé em confronto com a razão e exige dela um procedimento. Mircea Eliade (1989, p. 12)ELIADE, M. Aspectos do Mito. Lisboa: Edições 70, 1989. observa que o mito narra uma história sagrada que teve início num tempo primordial.

A busca por uma verdade originária, não originada, foi sempre atual, seja ela racional ou não. A religião de Israel procura dizer o que foge ao controle da ciência e a esta se coloca como desafio mostrando que as ciências, ainda que procurem responder todas as perguntas, os principais problemas antropológicos, de onde viemos e para onde vamos, sequer serão respondidas. Nas grandes narrativas ou nas filosofias da história, concordamos que o ser humano busca ordem e sentido para a vida. O mito, de certa forma, “oferece significação, consolo e orientação, eliminando o insuportável e o espantoso de uma realidade infundamentada” (ESTRADA, 2007ESTRADA, J. A. Imagens de Deus. São Paulo: Paulinas, 2007., p. 29).

A linguagem mitológica não é recordação histórica ou investigação científica, mas “uma linguagem plena de reminiscências de narrativas míticas e de explicações etiológicas para os fenômenos humanos e naturais” (KRAUSS; KÜCHLER, 2007, p. 14). É uma forma de abordar um conteúdo cujo mistério ora se manifesta, ora se oculta. De fato, os seres humanos, em sua grandeza, sempre foram vistos como figuras míticas e tiveram seus seguidores; seja no heroísmo do guerreiro, no poder do legislador, na eficácia dos inventores, na revelação de forças divinas, na libertação da poesia e da arte e na lógica das ideias. Tudo isso é percebido a partir de uma realidade terrena, ora aterrorizada pelo medo, ora fascinada pela coragem (JASPERS, 1973JASPERS, K. I Grandi Filosofi. Milano: Longanesi & C., 1973., p. 125).

A linguagem mítica, adotada pelas antigas religiões, e aqui tratamos da religião de Israel, não é uma simples crença, mas uma narrativa construída com o objetivo de produzir uma verdade que traga sentido à criação. Em Israel, ela surge da necessidade de afirmar que a terra e a tradição foram fundadas sob a obra de um Deus único, criador do universo e libertador da criatura humana.

Apesar do seu contato com a racionalidade ocidental, já que os textos bíblicos passaram pela tradução Septuaginta, não podemos excluir o fato de que a História de Israel fora construída em meio às narrativas, em torno de figuras míticas que produziram certezas e exigiram uma certa interpretação, considerando o contexto cultural em que vivia. Georg Fohrer (1982)FOHRER, G. Estruturas teológicas fundamentais do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982. identifica alguns relatos míticos, inseridos no Primeiro Testamento, provindos da cultura sumério-babilônica e A. Bentzen (1968)BENTZEN, A. Introdução ao Primeiro Testamento. São Paulo: ASTE, 1968. v. 1. observa que tais relatos formam o cenário dos dois primeiros capítulos de Gênesis que tratam da criação, dos salmos de entronização e dos profetas, de maneira particular o Segundo Isaías. Este tipo de linguagem é o recurso que usaram para interpretar a vida e a relação com o transcendente. Claude Geffré (2004, p. 33)GEFFRÉ, C. Crer e Interpretar: a virada hermenêutica da teologia. Petrópolis: Vozes, 2004. observa que “não existe saber direto da realidade fora da linguagem e a linguagem é sempre uma interpretação”. Neste sentido, como defendem muitos linguístas, o significante está atrelado ao significado e dele depende; as formas estão intrinsecamente ligadas ao conteúdo.

Neste entendimento, a literatura profética nasce em meio à pluralidade teológica, produzindo uma linguagem que se volta para a renúncia de tudo o que leva à morte e ao anúncio de um mistério, algo mais forte e determinante da vida. Esta força é aclamada e proclamada pelos hebreus.

No desespero do exílio e na esperança de salvação eles buscaram, a partir de um gênero narrativo da antiga literatura, a etiologia, interpretar o sentido de sua existência, sua origem e destino. Os profetas, de maneira particular, estão neste contexto literário e foram fundamentais para a construção e interpretação de uma imagem libertadora de Deus, seja no exílio ou na própria terra, campo e cidade: “Da falsa acusação te afastarás; não matarás o inocente e o justo, e não justificarás o culpado” (Ex 23,7).

A partir de um determinado campo hermenêutico, dos espoliados, eles denunciavam a elite opressora da sociedade: autoridades, magistrados, latifundiários, políticos, se colocando ao lado dos oprimidos, órfãos, viúvas e explorados pelas instituições que acobertavam a injustiça: “Se os profetas não tivessem sido os baluartes contra os opressores que queriam ocupar a terra do povo de Deus, os exilados provavelmente não teriam tido forças para sonhar o sonho da vida” (SCHWANTES, 2007SCHWANTES, M. Sofrimento e esperança no exílio. São Paulo: Paulinas, 2007., p. 15).

Parábolas, metáforas e alegorias estão contidas nos oráculos e poemas que denunciam a injustiça, renunciam à idolatria e anunciam um novo tempo. Em relação à interpretação acerca das injustiças, o Primeiro Isaías (1, 1-7) é modelo: O profeta diz que o seu amigo plantou as melhores vinhas, após ter trabalhado a terra numa colina fértil, porém, apesar de todo cuidado, o vinhedo produziu uvas azedas. Nesta alegoria, o profeta refere-se à relação Deus, Judá e seu povo: “Pois bem, a vinha do Senhor dos Exércitos é a casa de Israel, e os homens de Judá são a sua plantação preciosa. Deles esperava o direito, mas o que produziram foi a transgressão; esperava a justiça, mas o que apareceu foram gritos de desespero” (Is 5,7).

O Segundo-Isaías faz parte de uma das maiores “escolas proféticas” do Primeiro Testamento, a escola isaiana, conforme a crítica moderna. São três Isaías: Proto-Isaías (Is 1-39); Dêutero-Isaías (40-55) e Trito-Isaías (56-66), nomes que serão traduzidos, ou não, no decorrer deste texto. É uma biblioteca com diversos estilos: alegorias, parábolas, poemas, narrativas históricas e oráculos como: “Assim diz o Senhor”, “ Ouve a palavra do Senhor” ou “porque fala o Senhor”. Há nexo e semelhança de linguagem nas três escolas. O Primeiro Isaías contém um vasto material posterior ao Segundo Isaías e fica difícil de identificá-lo, por isso é melhor aderir à ideia de uma “escola de Isaías”.

No contexto do Dêutero-Isaías a atualização do texto se dá no contexto de exílio; contexto de opressão e esperança. Virgílio Pasquetto (1988, p. 156-157)PASQUETTO, V. Non più Schiavi. Roma: Edizioni Dehoniane, 1988. observa que a mensagem do profeta é a boa notícia da libertação da opressão babilônica (40,2; 42,7; 49,9; 52,7. 9-12; 55,12) e a esperança do retorno à pátria, prestes a se concretizar (40,5; 49,10-15; 51,11; 54,13; 54,17). Este dado histórico, na sua compreensão é interpretado em perspectiva escatológico-messiânica. Severino Croatto (2002, p. 13)CROATTO. J. S. Isaías: a Palavra profética e sua releitura hermenêutica. Petrópolis: Vozes, 2002. v. 3. observa que o livro todo aponta para o seu final: o canto festivo da diáspora. Este povo aceita (imaginariamente) o convite do profeta para se reunir como nação de Israel e se dirigir para Jerusalém. Para Harrington, (2004, p. 274), é em vista desta libertação que os oráculos, a princípio proferidos oralmente, chamam o povo ao arrependimento. Provavelmente os oráculos e as pregações de Isaías foram preservados por seus discípulos e a redação final do livro se deu após o retorno dos exilados.

Se os oráculos são chamados ao arrependimento, os poemas, carregados de metáforas, denunciam a idolatria e anunciam a nova criação. No exílio babilônico, a nação de Israel, sucumbiu às religiões estrangeiras, criando estátuas de deuses a fim de adorá-los. Deus não se limita às imagens produzidas por mãos humanas: “O carpinteiro estende o cordel, esboça a imagem com o giz, trabalha-a com a plaina e a desenha com o compasso, dá-lhe a forma humana, a beleza de um ser humano, a fim de que habite uma casa” (Is 44,13). Os destinatários do profeta precisam diferenciar o Deus verdadeiro dos ídolos. Iahweh não se limita à matéria; não se deixa ver através do metal, do ouro e da madeira que servem para ser queimada: “os homens o empregam para queimar; ele mesmo tomou dele para aquecer-se; pôs-lhe fogo e assou pães. Com outra parte fez um deus e o adorou, fabricou um ídolo e se prostou diante dele” (Is 44,15). Há poemas de esperança. Eles anunciam um novo tempo de retorno à terra, de reconstrução do templo e reedificação da tradição. É Iahweh que fará esta obra, como um pastor que cuida do seu rebanho, reúne os cordeiros carregando-os carinhosamente até o colo das ovelhas que os amamentam (Is 40,11).

O estudo do Dêutero-Isaías ajuda a compreender os motivos do povo de Israel em construir uma forma de linguagem, semelhante à dos Babilônios, mas diferente quanto ao conteúdo. O seu propósito era reformular o conhecimento de Deus a partir da situação de opressão e dos sonhos de liberdade. O texto (Is 40-55) diz de uma situação de desterro, de um passado desastroso em Jerusalém e a restauração vindoura; está entre a memória e a esperança; saudade da terra e anseio de libertação; desilusão (40.27; 49.14) e consolação (40,27-31; 41,8-16; 43,1-7; 44,1-2). Para Sicre (1999, p. 257)SICRE, J. L. Introdução ao Antigo Testamento. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. o “Livro da consolação” pode ser dividido em duas partes: 1) 40-48: libertação do cativeiro (41,17-20; 43,19-21; 48,21) e dos ídolos pagãos (40,12-26; 41,21-29; 44,5-20; 46,1-7) e 2) 49-55: a proximidade do retorno e a restauração de Jerusalém (41,1-4;49,1-6; 50,4-9;52,13-53). Ao retomar o tema da aliança, o Segundo Isaías constrói sua narrativa: nesse projeto os ídolos da natureza são submetidos ao Soberano universal e Senhor de todas as nações.

2 Renúncia aos adoradores de ídolos

Ao precisar sobre o Dêutero-Isaías e sua mensagem libertadora, nos vêm as perguntas: Quem é o seu povo? Em que contexto histórico profetizou? Qual é o conteúdo de sua mensagem? Entendemos que a história do povo de Israel, no contexto profético, considera um período que vai do século VIII ao IV a. C. Porém, para compreendermos a realidade do Segundo Isaías é preciso perceber as artimanhas do poder que o antecedeu e suas alianças com os impérios. Impossível entender a relação de Israel fora do contexto de alianças e sujeição a algumas nações poderosas. Valmor da Silva (2007, p. 97)SILVA, V. O Senhor Javé deu-me língua de discípulo: leitura do terceiro canto do Servo do Senhor segundo Is 50,4-9a. In: KAEFER, J. A.; JARSCHEL, H. (Org.). Uma Homenagem a Milton Schwantes. São Paulo: Paulinas, 2007. p. 85-97. comenta: “Na época bíblica, inúmeros fatores levavam as famílias à escravidão, dentre os quais se destacam a impossibilidade de pagar as dívidas, a captura nas guerras e as doações de pessoas às divindades. Quem mais sofria eram mulheres, crianças e idosos”. É importante situar a literatura profética, de modo particular a isaiana, entre os três grandes Impérios: Assíria, Egito e Babilônia. A maioria dos profetas denunciam as alianças dos reis de Israel e a infidelidade a Iahweh.

Com a morte do rei assírio Tiglate-Pileser, Oséias, o rei de Judá, recusando pagar tributos ao novo imperador assírio, Salmaneser, articulou uma aliança com Egito. Por conta disso, Oséias sofrera fortes represálias. Em 721 a.C., com a tomada de Samaria, no Reino do Norte, e com o exílio da maioria de seus habitantes, Judá, no Sul, se viu ameaçada tendo que conviver com o abuso de poder da guarda assíria em suas fronteiras.

Em 715 a. C., Acaz, depois de governar por 16 anos, deixou em seu lugar o filho Ezequias que, ao se juntar a um levante contra a Assíria em Asdode, foi reprimido pelo então imperador e morto em 705. Conforme o relato de Reis (2Rs 20,12-15), ao receber os mensageiros babilônicos em seu palácio, o rei abrira os seus celeiros, armazéns, arsenal e o lugar onde guardava os seus tesouros. O Primeiro Isaías havia denunciado essa atitude e profetizou o castigo divino à nação: “Disse então Isaías a Ezequias:

ouve a palavra de Iahweh dos exércitos: Dias virão em que tudo o que há no teu palácio, o que os teus pais entesouraram até este dia, será levado para a Babilônia: nada será deixado, disse Iahweh. Dentre os teus filhos, nascidos de ti, dos que tu geraste, tomarão eles para serem eunucos no palácio do rei da Babilônia

(Is 39, 5-7; 2Rs 20,16-18).

Com a morte de Ezequias, veio a sucedê-lo Manassés (687-642) que, apesar da resistência por parte de um grupo de Isaías, tornou-se fiel vassalo de Assurbanipal, sucessor de Senaqueribe, rei da Assíria. Ainda neste contexto, de subserviência, com a morte de Manassés, o filho Amon assumiu o trono de onde iria governar por 2 anos, pois logo em seguida seria assassinado. Os revoltosos aclamaram rei, Josias, o seu filho, de apenas 8 anos de idade. O novo rei iria presenciar a queda do Império assírio e um tempo de paz. Assessorado pelo secretário Safa e o sacerdote Helcias, promoveu em 628 a. C. uma política de reforma religiosa e política. Na religião, eliminou os santuários, centralizou o culto, ordenou os sacerdotes, propôs uma leitura profética da história e renovou a lei – a Segunda Lei (2 Rs 23, 1-19). Na política, sentiu a pressão do “povo da terra” em relação à independência dos povos estrangeiros. Alguns escritos dessa época estão nos Salmos (31; 80; 81). Mais informações sobre esse contexto podem ser encontradas nos livros dos Reis, Crônicas e Eclesiástico (2 Rs 22-23, 2Cr 34-35 e Eclo 49). Josias morreu em 609 a. C., na batalha de Meguido (Egito), comprometendo toda a organização anterior. Judá tornou-se colônia egípcia até o ano de 597 a. C., com o fim do reinado de Joaquim. É entre as trincheiras da Assíria, Egito e Babilônia que se encontrava o povo de Israel e os profetas.

Neste ínterim, a Babilônia surgiu com toda a força e Nabucodonosor fez com que Joaquim transferisse seu apoio e obediência ao novo dominador. Porém, com a pressão do partido pró-Egito, que retomava o modelo de Manassés, Babilônia se viu obrigada a sitiar Jerusalém e deportar, juntamente com o rei, a elite de Judá: governantes, sacerdotes, comerciantes etc. Nabucodonosor deixou na nova colônia, o tio de Joaquim, Sedecias (597-587), mas esse, por ceder às exigências do partido pró-Egito, acabou reprimido e Jerusalém destruída. Metade da população fora deportada para a Babilônia e, entre os exilados havia líderes políticos, religiosos, militares, ecônomos, serralheiros, fabricantes de armas e ferramentas (Sl 79).

Com a Morte de Nabucodonosor, subiu ao trono o seu filho Avil-Merodaque. Neste novo governo, Joaquim conseguiu a soltura (2 Rs 25,27-30). Mais tarde, o filho Labahimarduk subiu ao poder na Babilônia e não demorou muito para que surgisse, na fraqueza desta autoridade, outro Império, o da Pérsia. Fortalecido, o rei Ciro venceria a Babilônia implantando uma política de confiança em relação aos povos colonizados e escravos. Ciro, respeitando a religião e a cultura de Israel, permitiria que os deportados voltassem à sua terra, favorecendo-lhes os meios para reconstruírem o templo, reescreverem a história e voltarem a habitar a terra (Esd 1,2-4; 5,3-5; Lv 1-7; Joel; Sl 4; 10; 22; 23; 50; 77; 78; 83; 105-107; 126). Haveria um novo começo, realizaram-se as profecias. A imagem de Ciro seria ressaltada no Segundo-Isaías (Is 45,1; 44,28-45; 13; 41,2-3, 25) como o ungido de Deus para libertar o povo do jugo da servidão.

Eis o confronto sócio-político-religioso da época de Isaías. Neste cenário se pode abordar e analisar a mensagem do servo de Iahweh que, Segundo Milton Schwantes (2008, p. 57)SCHWANTES, M. Breve História de Israel. São Leopoldo: Oikos, 2008.: “é algo como uma coleção de cânticos proféticos da comunidade de exilados. (...) Com este Segundo Isaías estamos mais no final do exílio, por volta de 550 a. C. Os persas já fazem suas conquistas ao redor da Babilônia”. O contexto do exílio apresenta uma realidade centrada na construção de um mundo onde a criação e a salvação do mundo estão intimamente ligadas ao poder imperial e à estrutura servil. A queda do Império babilônico havia sido anunciada pelos oráculos proféticos do Segundo Isaías (46-47). É nestes anos de ascensão de Ciro e declínio de Nabonide, último rei babilônico (555-539), que atua o profeta da consolação em meio aos cativos (SCHMITT, 2016SCHMITT, F. Profetas Clássicos em Israel por Milton Schwantes. São Leopoldo: Oikos, 2016., p. 86).

Além das alianças com os poderes estrangeiros, o povo produz imagens de Deus. A denúncia aos falsos ícones de Iahweh faz parte da tradição profética. Nos templos eles sacrificavam animais, ofereciam gordura e sangue a fim de agradar ao Senhor. O Primeiro Isaías anunciara que Iahweh não se agrada disso: “Que me importam os vossos inúmeros sacrificios? diz Iahweh. Estou farto de holocaustos de carneiros e da gordura de bezerros cevados; do sangue de touros, de cordeiros e de bodes não tenho prazer” (Is 1,11). A crítica profética se estende a todo Israel, particularmente aos poderosos: “Os teus príncipes são uns rebeldes, companheiros de ladrões; todos são ávidos por subornos e correm atrás de presentes. Não fazem justiça ao órfão, a causa da viúva não os atinge” (Is 1, 23).

A política internacional, as alianças com poderes bélicos a fim de garantir segurança, a simpatia pelos ídolos estrangeiros e a produção de falsas imagens de Deus nos fazem compreender a denúncia profética do Segundo Isaías. Denuncia os reis nacionais que, pertencentes ao “povo de Deus”, esqueceram e esquecem a aliança com Iahweh, o “Senhor dos Exércitos”. Como ver esta realidade, julgá-la à luz da palavra profética e agir tendo como motivação a esperança? É trazendo esta memória que o profeta “anônimo” procura animar os conterrâneos expatriados (SCHÖKEL; SICRE DIAZ, 1991SCHÖKEL, L. Alonso & SICRE, J. Luis. Profetas: grande comentário bíblico. São Paulo: Paulinas, 1991. v. 1., p. 269-270).

A teologia do profeta aponta para este desafio: por um lado, mostrar que tudo estava preparado para que se cumprisse as profecias. A infidelidade dos líderes de Israel é um campo forte para a aceitação de outros deuses-ídolos; por outro lado, o profeta, juntamente com os exilados, ao encarnarem a missão de servo de Iahweh, tem a missão de resgatar a figura de Deus libertador. Ele virá como um pastor, conduzirá o seu povo de volta para a casa, e o fará reconstruir Sião através de Ciro, o persa (40,1-11; 44,24-45,6; 52,7-12).

3 Anúncio de uma nova criação

A teologia do Segundo Isaías aponta para uma linguagem escatológica: a “nova criação”. Apesar de denunciar a idolatria, ele não condena o seu povo, já que o castigo viera com a deportação. Sua intenção é consolar apontando para a libertação vindoura. Se a primeira libertação foi através de um hebreu, Moisés, a segunda será através de um líder pagão, Ciro, e será ainda mais grandiosa (45,1-8;48,12-15). Com o novo êxodo, Iahweh será o Senhor e Criador de todo o universo.

A literatura isaiana ressalta uma teologia libertadora. Iahweh é citado cerca de 90 vezes e, El ou Elohîm quase 50 vezes. Além desses nomes, ainda: Deus de Sabaot, Senhor (Adonai), o Santo, o Vivente, o Primeiro e o Último, sem igual, o Rochedo, o Indomável, o Rei, o Pastor, o Próximo, o Pai, a Mãe, o Esposo, o Zeloso, o seu nome, seu Espírito, sua Palavra, sua Lei, seu Braço, sua Direita etc. É Esse o Deus que o Dêutero-Isaías recebeu e transmitiu: o Senhor, “Eu sou”, da criação. Ele é Justo e Forte: “Eu sou o Senhor, eu te chamei segundo a justiça, te segurei pela mão” (42,6); o Único: “Eu sou o primeiro, eu sou o último, fora de mim não existe Deus” (44,6); Ele é o Soberano: “Eu sou o Senhor teu Deus” (48,17). A Ele, tudo deve se submeter: “é, portanto o Senhor Deus que me enviou, com seu Espírito” (48,16). Sião será reerguida e Iahweh manifestará sua glória fazendo acontecer o “novo” êxodo (52,7-12; 55,12s). Com isso, o Dêutero-Isaías se opõe aos falsos deuses, reafirma o monoteísmo e valoriza a superioridade humana em relação à natureza.

O Segundo Isaías é protagonista neste cenário, deve convocar o povo à memória e às exigências da tradição: renunciar aos ídolos; ser fiel à Lei e centrar a vida nas assembleias do sábado, lembrando a soberania do Libertador e Criador de todas as coisas, da natureza, dos astros e da humanidade. Na condição de humilhado, este povo ouve o profeta e sente nele o “consolo” de Iahweh (CROATTO, 1996CROATTO, J. S. O Dêutero-Isaías, profeta da utopia. Revista de Interpretação Bíblica Latinamericana, Petrópolis, v. 24, n. 2, p. 38-43, 1996., p. 42); sua autoestima é levantada; a fé é fortalecida e a esperança é resgatada. Deve lançar fora todo medo: “Não temais!” (Is 41,10.14; 43,1). Ele vive uma autêntica relação com o Senhor e com o seu povo, interpretando a história com os óculos escatológicos (42,10-13). Há um plano a ser cumprido no exílio e Israel deve ser benção para todas as nações.

O exílio é resultado do pecado e a idolatria é o pior deles. A palavra Babilônia já indicava idolatria; do hebraico, Babel e do acádio, babi-ilu quer dizer “portas dos deuses”. Herdeira do império assírio, Babilônia tornou-se uma das nações mais sincréticas da antiguidade, seu povo acreditava na imortalidade das divindades antropomórficas: os deuses do céu (Igigi) e os da terra (Anunnaki). Os primeiros constituíam uma trindade: deus do céu, dos ares e das águas, além da divindade astral: deus-lua, deus-sol, e deus-estrela; eram adorados nos templos através de imagens às quais se ofereciam sacrifícios, salmos e penitência. O rei era o sacerdote-mor, representava a divindade na terra, e seu poder era renovado sempre na festa do ano novo, onde se celebrava o “ano de graça” do Imperador, assim como o culto à natureza.

Em clima de trabalho forçado, muitos vivem em subúrbios e em forte crise de identidade. Eles encarnam as dores e a humilhação dos sem-terra e sem-templo. Os exilados vivem desconfiados e céticos em relação à ação libertadora de Iahweh (40,27; 49,14) e à tradição teológica: onde está Deus? Marduk é mais forte que Iahweh? O exílio é o lugar teológico onde atua o Dêutero-Isaías. Para ele, as respostas são claras: Deus é pai, mãe e esposo (43,6; 45,10; 49,14; 50,1) e o Go’el que conduzirá ao novo êxodo, ainda mais alegre que o primeiro, pleno de alegria e paz (52,12; 55,12s). As nações alinhar-se-ão de ambos os lados do caminho e descobrirão a gloria dele e a força de seu braço (40,4; 52,10)” (WOLFF, 2003WOLFF, H. W. Bíblia, Antigo Testamento: introdução aos escritos e aos métodos de estudo. 3.ed. São Paulo: Editora Teológica, 2003., p. 117).

A criação e a salvação do mundo devem ser conceitos reforçados apesar da atração da elite judaica pela cultura e a religião babilônicas. No exílio, a Bíblia começa a ter uma forma definida; a reconstrução do templo entra no novo projeto; a história Deuteronomista é repensada; os ditos proféticos são compilados e a tradição sacerdotal fixada: “Uma nova comunidade estava sendo forjada para a etapa final do plano preparatório de Deus” (HARRINGTON, 2004, p. 137).

No cativeiro há desânimo e dúvida em relação ao poder de Iahweh. Sentem-se atraídos pelos ídolos vitoriosos de Babel, principalmente pela narrativa sagrada da criação. A memória do primeiro êxodo é fundamental para que o povo seja encorajado a abandonar a situação de exilado e contemple uma nova criação. O povo pôde recordar, sob a assessoria do profeta, a sua história, os pais e os feitos de Iahweh na travessia do deserto (Is 43,16-18). O tema do êxodo está no início (Is 40,3-5) e no final (Is 55,12s) do livro, mas o menciona várias vezes no decorrer do texto a fim de ressaltar a analogia (41,17-20; 43,16-20; 48,20s; 49,8-13; 51,9s; 52,7-10.11s; 55,12s).

No Êxodo, os israelitas adquiriram a consciência de ser “povo de Deus”. Ao saírem do Egito, rumo à terra prometida, uma aliança se estabeleceu. Com o tempo, na medida em que eles interpretavam os sinais, a partir dos ídolos que exaltam, essa aliança foi se desgastando. Os profetas, chamados a reatarem os laços, renunciavam aos ídolos, denunciavam toda forma de afastamento em relação a Deus, anunciavam a justiça divina revelada aos antepassados. Mas, o povo insistia em criar imagens sagradas, as mais variadas possíveis e as considerava naquilo que mais importa: a terra, o templo e a tradição. Eles sacralizaram os “lugares altos” (1Rs 3,4; Sl 121; 136; 147); fizeram do templo a casa de Deus (Sl 83,2-3); erigiram um bezerro de ouro no deserto (1Rs 12,28; 12,31-13,2) e adoraram o rei, na época da Monarquia (1 Sm8, 5-8; 2Sm 7,14, 16).

Diferente de outros anunciadores, Iahweh é para o Segundo Isaías, criador da terra e soberano sobre todas as nações: “Com efeito, assim diz Iahweh, o criador dos céus, — ele é Deus, o que modelou a terra e a fez, ele a estabeleceu; não a criou como um deserto, antes modelou-a para ser habitada” (45,18); ele é o princípio e o fim de toda criatura: “Sou o primeiro e o último” (44,6b) e sua salvação implica a prática da justiça e da misericórdia

O canto do servo sofredor perpassa a teologia do Segundo Isaías. Nele morrerão todos os pecados de Israel e surgirá uma nova criação e um governo para todas as nações (42,1-4; 49,1-6; 50,4-9; 52,13-53,12). Quem é este ‘ebed que mesmo morto faz surgir a vida? É Israel (44,1; 45,4; 48,20), compreendido como povo de Deus. O profeta surge, nesta situação de desolação, para resgatar a esperança e consolar os oprimidos: “A salvação que o Servo irá experimentar no final (após a sua morte!) é a libertação que está à espera do povo aflito (53.10-12)” (Kilpp, 1982KILPP, N. Proclamar libertação. Porto Alegre: Sinodal, 1982. v. 8. Disponível em: <https://www.luteranos.com.br/>. Acesso em: 27 dez. 2019.
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).

O primeiro canto do servo (42,1-4) aponta para a “escolha” (v. 1). Foi sobre ele que Deus pôs o seu Espírito, isto é, o elegeu com a missão de revelar a sua verdade e sua vontade. A verdade é Iahweh e sua vontade é a prática da justiça. O servo o anunciará com humildade (v.2), não só ao povo de Israel, mas todos os gentios. O seu compromisso é com o Direito (v. 3 e 4).

Provavelmente, no exílio, o “povo escolhido” devia conviver com a narrativa da criação mesopotâmica e, diante de tal realidade, manter a fidelidade a Iahweh, o criador e Senhor de todos os deuses. Será perda de tempo adorar os deuses babilônicos, sob a liderança de Marduk: “Se derem ouvidos ao profeta, terão bons motivos para se sentirem consolados” (VITÓRIO, 2018VITÓRIO, J. Consolar: missão profética no exílio. A ação do Dêutero-Isaías junto aos israelitas na Babilônia. ReBiblica, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 93-105, jan./jun. 2018. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/ReBiblica/article/view/30149/17131>. Acesso em 28/12/2019.
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, p. 101). O profeta se opõe à crença de que Marduk fora o criador do mundo e a outros deuses (40,19s; 41,6s.21-24; 42,17; 43,8-13; 44,9-20; 45,14-25; 46). Consolar é reafirmar esta certeza (KILPP, 1982KILPP, N. Proclamar libertação. Porto Alegre: Sinodal, 1982. v. 8. Disponível em: <https://www.luteranos.com.br/>. Acesso em: 27 dez. 2019.
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).

Isaías (42,5) expressa sua teologia da criação. Os primeiros capítulos de Gênesis (1,1-2,4a) foram praticamente reconstruídos nesse período. As narrativas procuram mostrar, acima de tudo, a certeza em torno de Deus, do ser humano e do mundo. Ao compararmos os relatos da criação no AT, podemos perceber algumas semelhanças e diferenças em relação à narrativa da religião colonizadora. Há imagens, símbolos e metáforas comuns às duas narrativas. Deus cria o céu, forma a terra e dá vida ao ser humano e isso, como escreve Schwantes (1989, p. 27)SCHWANTES, M. Projetos de Esperança. Petrópolis: Vozes, 1989.:

remete diretamente para a Babilônia, onde justamente sob os últimos soberanos recrudescia a polêmica em torno das divindades da luz. Para uns o sol significava mais. Outros preferiam lua e estrelas. Neste contexto cabe nossa poesia. Em resumo, gênesis 1 situa-se no VI século, no exílio na Babilônia. Este dado dificilmente poderá ser questionado.

Os que praticam injustiça devem rever suas práticas se quiserem viver sob a misericórdia divina: “Abandone o ímpio o seu caminho, e o homem mau os seus pensamentos, e volte para Iahweh, pois terá compaixão dele, e para o nosso Deus, porque é rico em perdão” (55,7). O Criador tem um propósito para todos aqueles que o reconhecem e clamam pelo seu nome, esses serão aliviados de seus fardos e seus pecados não serão lembrados. A profecia do Segundo Isaías apresenta uma nova característica de Iahweh, supremo e universal, que seria bem acolhida por seus discípulos. Neste sentido, a profecia que renuncia aos ídolos e anuncia uma nova criação, agora não se dirige somente ao povo da promessa, mas também aos babilônicos como povo destinado a receber a salvação.

O Segundo-Isaías, na graça de Iahweh, utiliza uma linguagem mítico-poética a fim de descrever O único Deus (43,10; 44,6), Criador do universo (44,24) e da história de Israel (43,1.7.15). É ele quem garante um futuro glorioso. Na nova aliança, Sião será reconstruída e povoada; os dispersos serão reunidos; as nações se converterão e a humanidade servirá ao Senhor da criação.

Considerações finais

É preciso considerar que a teologia, mais que um discurso sobre Deus, é “um discurso que trata da linguagem sobre Deus. Em outras palavras, é “um discurso sobre uma linguagem que fala humanamente de Deus” (GEFFRÉ, 2004GEFFRÉ, C. Crer e Interpretar: a virada hermenêutica da teologia. Petrópolis: Vozes, 2004., p. 33). Tratar da teologia do Segundo Isaías é, de certa forma, atentar para a sua linguagem diferenciada, naquele tempo e lugar, em relação ao status quo vigente e à concepção que o povo de Israel tinha de Deus. O texto do Segundo Isaías nos leva a um outro campo hermenêutico que se chama “Hoje” e nos faz perguntar pela atualidade da Escritura sagrada.

Quem é o Deus que os cristãos, através das igrejas, estão anunciando hoje? É no lugar de exilados, na própria pátria, que os escritos nos provocam: o que quer nos dizer a mensagem daquele povo, para aquele povo, naquela época? O texto serve de luz para iluminar esta realidade confusa em que a produção de imagens sagradas aumenta cada vez mais em detrimento de uma espiritualidade que aponta para o amor e a justiça. O mercado da fé tem a sua demanda e a concorrência livre.

Hoje, como nos tempos de Isaías, podemos dizer, com o teólogo espanhol José Maria Mardones (2006, p. 26)MARDONES, J. M. A Vida dos Símbolos. São Paulo: Paulinas, 2006., que a fé pode cair no perigo de ceder à esta vasta produção de imagens e se perder nela: “a redundância e a clareza de imagens matam a fome de absoluto”. Em outras palavras, esta postura tende a ofuscar o mistério e, principalmente, a linguagem da transcendência que se nos apresenta através dos símbolos e da poética. A cultura da imagem nos joga no exílo de nós mesmos e nos impossibilita de romper com a rede de informações que nos oprime e nos aliena naquilo que aí está: o real.

Hoje, diferente dos tempos de Isaías, vivemos numa realidade que se opõe a tudo o que não é comprovado cientificamente, ao que não se alinha à certeza dos fatos. O texto nos convoca a enxergar esta realidade com os óculos críticos da fé e advertir a ciência, como o fez Willian James, ao dizer que “seus objetivos não são os únicos, e que a ordem da causalidade uniforme de que ela se ocupa e que, portanto, está correta ao postular, pode estar envolta numa ordem mais ampla, à qual não tem absolutamente direitos” (MAY, 1987MAY, R. O Homem à procura de si mesmo. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 1987., p. 9). Esta ordem mais ampla é simbólica e nos ajuda a considerar toda linguagem que busca significar a existência humana e dar sentido à vida.

A Igreja procura se animar pelo mesmo espírito profético dos tempos antigos, porém, como o povo de Israel, ela é tentada a radicalizar duas tendências: de um lado, se abandonar às crenças, às coisas que não se veem, e fechar os olhos às injustiças sociais, econômicas e religiosas que pesam sobre milhões de brasileiros; por outro lado, se dedicar a uma militância que confunde o reino de Deus com os poderes deste mundo, atribuindo-lhes um messianismo insano e incoerente. Nos dois sentidos, ela é tentada à idolatria. O seu trabalho profético é, acima de tudo, denunciar tudo aquilo que leva à decadência e anunciar uma nova criação onde se pode “pensar o mundo de Deus, invisível e eterno, que se atualiza como sentido” (SOUZA, 2010SOUZA, J. N. Imagem Humana à Semelhança de Deus. São Paulo: Paulinas, 2010., p.13).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    30 Dez 2019
  • Aceito
    15 Abr 2020
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