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J. B. LIBANIO: A SABEDORIA DE UM TEÓLOGO-APRENDIZ

J. B. Libanio: the Wisdom of a Theologian-learner

“Sabemos mais onde não está o futuro do Cristianismo, em que não consiste o ser cristão e em que o evento cristão não se manifesta para os homens e as mulheres de hoje. Perceber as falhas do passado e as carências do presente não exige tanta acuidade de espírito como vislumbrar a aurora que está para nascer. Quando alguém se desperta na escuridão da noite, custa-lhe adivinhar se faltam muitas ou poucas horas para o romper do crepúsculo matutino

(LIBANIO, 20062 LIBANIO, J. B. Qual o futuro do Cristianismo? São Paulo: Paulus, 2006., p. 9).

Este número da Perspectiva Teológica começa cedendo a palavra ao próprio João Batista Libanio, ao reproduzir uma reflexão retirada de um livro publicado nos últimos anos de sua vida. Nela aparecem elementos fundamentais do olhar apurado deste homem simples e profundo (1), companheiro de Jesus, nas pegadas de Inácio de Loyola (2), teólogo pós-conciliar engajado (3), pastor com cheiro de ovelha, amigo dos homens e mulheres (4), professor criativo (5) e, por tudo isso, um buscador encantado com o Mistério de Deus e de Seu Reino no meio de nós (6). Destacamos, nas palavras desta citação, dois enfoques transversais em sua obra: o discernimento permanente sobre os lugares de luz, presentes na Igreja e na Sociedade, em meio às zonas sombrias da negação, das faltas e das carências; a linguagem parabólica e a sensibilidade poética, para nos estimular a assumir, com maior leveza, a exigente e intransferível tarefa que compete a cada um e cada uma de nós.

(1) Nós iniciamos a caracterização de Libanio como um homem simples e profundo. Qualquer pessoa que tenha convivido com ele poderá confirmar estes traços de sua personalidade. Este homem era alguém que sabia se fazer próximo, vivia uma vida simples, mesmo com certa austeridade no modo de se vestir e se comportar. Ao mesmo tempo, ele amava sua vida e a vida dos outros, buscando entrar em relação, compreender e explicitar pela palavra as delícias e os dramas de nossa humanidade compartilhada. Diz-se que, seja numa conversa informal, seja numa conferência, a confissão identitária cultural – “eu sou mineiro!” – não tardaria a sair de sua boca. De modo metafórico, poético e inspirador, Guimarães Rosa nos ajuda a vislumbrar a simplicidade e a profundidade emaranhadas em quem se sente pertencente às gentes das Minas Gerais:

Minas é a montanha, montanhas, o espaço erguido, a constante emergência, a verticalidade esconsa, o esforço estático; a suspensa região — que se escala. Atrás de muralhas, caminhos retorcidos, ela começa, como um desafio de serenidade. Aguarda-nos amparada, dada em neblinas, coroada de frimas, aspada de epítetos: Alterosas, Estado montanhês, Estado mediterrâneo, Centro, Chave da Abóbada, Suíça brasileira, Coração do Brasil, Capitania do Ouro, a Heroica Província, Formosa Província. O quanto que envaidece e intranquiliza, entidade tão vasta, feita de celebridade e lucidez, de cordilheira e História. De que jeito dizê-la? MINAS: patriazinha. Minas – a gente olha, se lembra, sente, pensa. Minas – a gente não sabe (ROSA, 20246 ROSA, G. “Aí está Minas: a mineiridade”. Revista “O Cruzeiro”, 25/08/1957. Disponível em: https://circuitoguimaraesrosa.com.br/Guimaraes_Rosa/Ai_esta_Minas.pdf. Acesso em: 11 abr 2024.
https://circuitoguimaraesrosa.com.br/Gui...
).

De fato, todas as características da “mineiridade” – conjugando geografia acidentada, vínculos sociais em movimento e afetos cheios de memória e pensamentos – podem ser uma boa chave de leitura para os muitos outros traços da personalidade de Libanio, que queremos destacar a seguir.

(2) Este mineiro simples e profundo, na livre construção de seu projeto de vida, quis seguir as pegadas do Peregrino de Loyola e fazer-se Companheiro de Jesus. O ser jesuíta não é, de modo algum, uma dimensão acessória à vida, ao pensamento e às atividades de Libanio. Dentre as características desta família religiosa presentes na sua vida e na sua obra, sublinhamos quatro eixos estruturantes. Primeiramente, citamos o que tradicionalmente é chamado de “sentire cum Ecclesia”, sentir com a Igreja, sentir-se Igreja, deixar-se afetar por um corpo social e espiritual maior do que nós mesmos. Não há dúvidas de que Libanio era e se apresentava como um homem de Igreja. Além de suas atitudes pessoais e do conteúdo de seu pensamento, que apresentaremos ao longo do dossiê deste número da Perspectiva Teológica, chama a atenção sua disponibilidade para oferecer formações em muitas paróquias, dioceses, congregações religiosas, além das publicações em jornais diocesanos e ou em simples jornais paroquiais. Em segundo lugar, merece atenção o esforço libaniano em oferecer às pessoas alguns instrumentos teóricos e existenciais, em vista de ajudá-las a realizar um discernimento dos movimentos do Reino de Deus na história: uma formação da consciência agradecida, crítica e lúcida, que marcou gerações. Em terceiro lugar, pode-se perceber nas obras de Libanio, com destaque para aquelas publicadas nos últimos anos de sua vida, a disposição interior para buscar e encontrar Deus em todas as coisas. A atenção aos temas de atualidade, aparentemente desvinculados de uma preocupação religiosa, testemunha o engajamento e o cuidado deste pensador com o que viria a ser chamado de “teologia pública”. Por fim, vale a pena citar seu gosto pela “amizade no Senhor”. O título de “amigos meus no Senhor” foi dado por Inácio de Loyola a seus primeiros companheiros, dispersos pelo mundo em missão. Libanio nutriu uma amizade verdadeira com muitos jesuítas, mas merece destaque a amizade e a cumplicidade intelectual vividas entre ele e o filósofo jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz. Dentre os frutos intelectuais desta amizade, evidencia-se a distinção, feita por Vaz e retomada muitas vezes por Libanio, entre a passagem latino-americana de uma Igreja-reflexo (do modelo europeu) a uma Igreja-fonte (com suas características próprias) (VAZ, 19687 VAZ, H. C. DE L. Igreja-reflexo vs Igreja-fonte. Cadernos Brasileiros, n. 46, p. 17–22, abr. 1968., p. 17-22).

(3) Esta ajuda oferecida à constituição de uma comunidade que se compreende como “Igreja-fonte” situa nosso autor como um teólogo pós-conciliar engajado. Durante a celebração do Vaticano II, Libanio se encontrava em Roma e, portanto, respirou intensamente a atmosfera conciliar. De volta ao Brasil, estava imbuído de seu espírito e de suas melhores intuições teológico-pastorais. Tornou-se, por isso, um grande divulgador dos textos, das intuições e do espírito do Vaticano II, publicando artigos e ministrando inúmeros cursos Brasil afora, na qualidade de assessor da Conferência dos Bispos (CNBB) e da Conferência das Religiosas e Religiosos (CRB). Em seu labor pastoral e teológico sempre demonstrou extrema sensibilidade para com as peculiaridades da realidade social e eclesial brasileira e do continente latino-americano. Como poucos, reconheceu e fomentou os incipientes frutos eclesiais e sociais que então emergiam em nossas latitudes. Acompanhou de perto e com entusiasmo a emergência e expansão das comunidades eclesiais de base (CEBs), publicando relatórios robustos após cada encontro intereclesial. Por meio da publicação de artigos pontuais e críticos, muito contribuiu com a realização de nossas Conferências gerais do episcopado latino-americano (CELAM). Foi, com razão, considerado um dos principais representantes da Teologia da Libertação (TdL) latino-americana. Localmente, desempenhou papel relevante na realização das Assembleias do Povo de Deus, na arquidiocese de Belo Horizonte. Solicitado a falar em âmbitos diversos e a intervir em distintas situações, ele próprio se considerava um “teólogo generalista”. Na verdade, Libanio era um intelectual multifacetado, dotado de sensibilidade aguçada e de conhecimento e erudição invejáveis. No âmbito da teologia acadêmica, dedicou-se ao ensino da teologia fundamental, relendo a relação entre fé, vida e revelação, no contexto moderno latino-americano, o que deixou, como legado, uma vasta produção bibliográfica sobre o tema. Sem dúvida, Libanio, em sua atividade teológica, foi fiel ao espírito conciliar, resumido, mais tarde, na expressão “conversão pastoral” da Igreja.

(4) Com efeito, a seiva viva da teologia libaniana vinha do contato com pessoas concretas que lidavam com a complexidade de suas vidas, buscando trilhar caminhos de felicidade e sustentadas por uma vida eclesial e espiritual inquieta e ativa. Mesmo antes da popularização desta designação, podemos afirmar que Libanio era um “pastor com cheiro de ovelha”, um amigo dos homens e mulheres. Se é verdade que não se pode compreender a obra libaniana sem uma referência à mineiridade, ao carisma jesuíta e ao evento conciliar, nosso olhar ficaria míope se não explicitássemos sua intensa convivência pastoral no município de Vespasiano, na zona metropolitana de Belo Horizonte, e o contato com profissionais liberais e pessoas do mundo das artes e das diversas expressões culturais, por meio de suas assessorias no Centro Loyola de Fé e Cultura de Belo Horizonte. As muitas formações oferecidas em tantos lugares do Brasil não impediam a constância da presença pastoral de Libanio junto a esses amigos e amigas a quem ele tanto amou e que tanto o amam ainda hoje. Sua atenção aos jovens e às suas inquietações e mudanças pode ser testificada pelos livros dedicados a eles ao longo de sua vida (LIBANIO, 19781 LIBANIO, J.B. O mundo dos jovens: reflexões teológico-pastorais. São Paulo: Loyola, 1978.; 20043 LIBANIO, J.B. Jovens em tempo de pós-modernidade: considerações socioculturais e pastorais. São Paulo: Loyola, 2004; 20084 LIBANIO, J.B. Juventude: seu tempo é agora. São Paulo: Ave Maria, 2008.; 20115 LIBANIO, J.B. Para onde vai a juventude? São Paulo: Paulus, 2011.), concretizando uma das opções pastorais das Conferências do CELAM. Em meio às distintas atividades oferecidas em Vespasiano, merecem destaque as famosas “missas com crianças”. A instrução às crianças e aos iletrados faz parte do compromisso assumido por um religioso professo da Companhia de Jesus. Nesse ponto, Libanio foi exemplar! E isso também explica o frescor de sua reflexão, a acessibilidade de sua linguagem, a pertinência humana das questões às quais ele se dedicava. A transmissão da inteligência da fé encontrava no espaço sacramental das celebrações eucarísticas um terreno propício e espiritualmente justo, graças ao esforço constante de articulação das Escrituras com a vida cotidiana, em vista de alimentar o Povo de Deus em seus combates e em seus sonhos. Devido à generosidade de seus paroquianos, o fruto deste trabalho pode ser saboreado e acessado nos vários volumes da coletânea de homilias “Um outro olhar”. Tanto nesse espaço celebrativo, quanto nos muros da sala de aula, florescia outra característica que marcará o pensamento deste teólogo-pastor: ele foi um professor criativo.

(5) Conforme o testemunho de muitos, Libanio se distinguia ainda por sensibilidade e prática pedagógicas singulares, como também atestam vários de seus livros: A formação da consciência crítica, Introdução à vida intelectual, A arte de formar-se, Em busca da lucidez. Aliás, sua inteira trajetória intelectual se caracteriza por uma preocupação genuinamente pedagógica. Seus textos, sem nenhuma exceção, revelam sensibilidade e prática pedagógicas forjadas ao longo de anos de exercício na orientação intelectual. Na sala de aula, como também em palestras e assessorias várias, Libanio atraía e fascinava sempre: pela clareza da exposição, pela explicitação de pressupostos e limites de sua abordagem, por reconhecer seus ouvintes como verdadeiros interlocutores. Sua postura pedagógica se distinguia pelo entusiasmo em construir relações humanas, proximidade afetiva e respeito para com seus ouvintes. Costumava se apresentar com semblante amável e sereno, com refinado senso de humor e alegria. Na relação com seus orientandos, era pródigo no acolhimento, na arte da escuta e no estímulo à reflexão e à sistematização do pensamento. Era mestre em perseguir tenazmente questões candentes e relevantes, não se satisfazendo jamais com respostas simples e rápidas. Superando sua antiga timidez, ele se tornou um verdadeiro mestre do diálogo.

(6) Todas essas características – e muitas outras, que a brevidade de um texto como esse não permite honrar – fazem-nos identificar em Libanio um buscador encantado com o Mistério de Deus e de Seu Reino no meio de nós. Este era seu “princípio e fundamento”, o Sopro espiritual que o colocava em movimento, a jovialidade que fez deste homem, até o fim de sua vida, um teólogo-aprendiz. Esta busca de Deus e dos sinais do Seu Reino no mundo dos seres humanos conservou nele uma certa “infância intelectual” e uma curiosidade permanente sobre a vida, permitindo-se interrogar, continuamente, sobre coisas novas, mantendo a cabeça aberta e o coração sensível àquilo que ainda lhe era desconhecido e que lhe suscitava interesse. Para um teólogo e uma teóloga, é fundamental manter vivo e bem alimentado o sentido do mistério. Mas igualmente importante é desenvolver um encantamento pelas pessoas e pelo mundo, onde o mistério de Deus se vela e se desvela, em cada encontro e em cada gesto feliz de autodoação.

Uma pergunta recai sobre nós, ao fim desta reflexão: a obra de Libanio ainda tem relevância para o nosso tempo? Algo restará com o passar do tempo? No que depender de seus amigos e amigas e de seus editores, seu pensamento ainda terá uma longa vida e um impacto no cenário eclesial e teológico brasileiro. Fazendo parte de um grupo de pesquisa da FAJE, fundado pelo próprio Libanio – Fé e Contemporaneidade –, nós julgamos que seu pensamento goze ainda de insuspeitada relevância, como podemos perceber nos diálogos e debates com os jovens teólogos e teólogas de nosso grupo. Revelando sensibilidade e acuidade epistemológica raras, ele se antecipou, de alguma forma, a seu tempo, ou, como preferem alguns analistas do profetismo bíblico, ele viu no seu tempo aquilo que já era realidade, em germe, e que outros serão capazes de identificar e nomear mais tarde. Sobretudo em suas últimas publicações, ele soube discernir e apontar temas para uma agenda teológica presente e futura, que está longe de ter sido completamente abraçada e elucidada.

Contudo, cremos que seu mais importante legado seja o modo sapiencial de lidar com temas comuns a tantos outros pensadores e pensadoras, do mundo da teologia latino-americana e de outras áreas afins. Um sábio é alguém que coloca sua existência e seu saber em função do outro, para que cada pessoa se descubra uma palavra única pronunciada neste mundo à espera de boas notícias. Alimentados por seus textos e provocados por seu tato pedagógico, oxalá mantenhamos, também nós, teólogos e teólogas de hoje, aquela atitude de fundo que sempre o distinguiu em seu percurso existencial e de fé e, consequentemente, em sua tarefa pastoral e teológica: o compromisso radical com os valores do Evangelho do Reino, a lucidez diante da sedução dos extremismos e a sensibilidade face às indagações eclesiais e sociais das pessoas de carne e osso do nosso tempo, por meio de quem o Deus de Jesus Cristo ainda tem muito a nos ensinar.

Referências

  • 1
    LIBANIO, J.B. O mundo dos jovens: reflexões teológico-pastorais. São Paulo: Loyola, 1978.
  • 2
    LIBANIO, J. B. Qual o futuro do Cristianismo? São Paulo: Paulus, 2006.
  • 3
    LIBANIO, J.B. Jovens em tempo de pós-modernidade: considerações socioculturais e pastorais. São Paulo: Loyola, 2004
  • 4
    LIBANIO, J.B. Juventude: seu tempo é agora. São Paulo: Ave Maria, 2008.
  • 5
    LIBANIO, J.B. Para onde vai a juventude? São Paulo: Paulus, 2011.
  • 6
    ROSA, G. “Aí está Minas: a mineiridade”. Revista “O Cruzeiro”, 25/08/1957. Disponível em: https://circuitoguimaraesrosa.com.br/Guimaraes_Rosa/Ai_esta_Minas.pdf Acesso em: 11 abr 2024.
    » https://circuitoguimaraesrosa.com.br/Guimaraes_Rosa/Ai_esta_Minas.pdf
  • 7
    VAZ, H. C. DE L. Igreja-reflexo vs Igreja-fonte Cadernos Brasileiros, n. 46, p. 17–22, abr. 1968.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024
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