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A FILIAÇÃO DIVINA À LUZ DE JOHAN TAULER ACOLHIDA E MANIFESTAÇÃO

Divine Filiation in the Light of Johann Tauler: Reception and Manifestation

RESUMO

Neste artigo, à luz de fragmentos seletos dos sermões do místico medieval Johan Tauler, discute-se a teologia da filiação divina. Os fragmentos examinados são: Sermon pour Noël, Sermon II pour l’Epiphanie, Sermon III pour le cinquième dimanche après la Trinité, Sermon pour le lundi avant les Rameaux, Sermon pour le deuxième dimanche après la Trinité, Sermon II pour la Nativité de saint Jean Baptiste, Sermon II pour la fête de la Dédicace, Sermon pour le jeudi avant les Rameaux, Sermon III pour le treizième dimanche après la Trinité, Sermon I pour le quatrième dimanche après la Trinité, Sermon I pour le dix-septième dimanche après la Trinité. O método de abordagem foi o exegético a partir dos textos em francês disponibilizados pela Équipe de Recherches sur les Mystiques Rhénans da Universidade de Lorraine, de Bruxela, de Lyon e do Cusanus Institut f. Forschung de Trêves, e Gérard Eschbach. A tese é que o Filho de Deus é, desde o seu engendramento eterno, o arquétipo do ser humano. A humanidade foi gerada na eternidade, como promessa, a partir do Filho e o “façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança”, de Gênesis 1,26, é o cumprimento do projeto eterno fundado no reconhecimento mútuo: “Tu és meu filho; eu hoje te gerei” e “Abba, Pai”. Essa união está disponível ao ser humano na recepção a Deus e na manifestação dessa relação na vida cotidiana.

PALAVRAS-CHAVE
Filiação divina; Reconhecimento; Autocomunicação; Mística

ABSTRACT

In this article, illuminated by select excerpts from the sermons of the medieval mystic Johann Tauler, the theology of divine filiation is explored. The examined fragments include: Sermon pour Noël, Sermon II pour l’Epiphanie, Sermon III pour le cinquième dimanche après la Trinité, Sermon pour le lundi avant les Rameaux, Sermon pour le deuxième dimanche après la Trinité, Sermon II pour la Nativité de saint Jean Baptiste, Sermon II pour la fête de la Dédicace, Sermon pour le jeudi avant les Rameaux, Sermon III pour le treizième dimanche après la Trinité, Sermon I pour le quatrième dimanche après la Trinité, Sermon I pour le dix-septième dimanche après la Trinité. The approach method employed was exegetical, drawing insights from the French texts provided by the Équipe de Recherches sur les Mystiques Rhénans from the Universities of Lorraine, Brussels, Lyon, and the Cusanus Institut f. Forschung in Trier, along with contributions from Gérard Eschbach. The thesis posits that the Son of God, since His eternal begetting, serves as the archetype of humanity. Humanity, conceived in eternity as a promise, originates from the Son, and the injunction “Let us make man in our image, after our likeness” from Genesis 1:26, signifies the fulfillment of an eternal plan rooted in mutual recognition: “You are my son; today I have begotten you” and “Abba, Father.” This union is accessible to humanity through reception of God and in the manifestation of this relationship in everyday life.

KEYWORDS
Divine filiation; Recognition; Self-communication; Mystique

Introdução

A Équipe de Recherches sur les Mystiques Rhénans da Universidade de Lorraine, de Bruxela, de Lyon e do Cusanus Institut f. Forschung de Trêves1 1 Mme Marie-Anne VANNIER, Dr en Philosophie et Théologie (HDR) Professeure à l’Université de Metz; Mr Francis RAPP, Membre de l’Institut; M. Yves MEESSEN, Dipl. D’architecture, Dr en Philosophie, Enseignant à l’Université de Metz; M. Jean DEVRIENDT, Dr en théologie, enseignant à Strasbourg, chercheur associé à l’Université Paul Verlaine, Metz; Mme. Isabelle RAVIOLO, Dr en Théologie, Enseignante à Paris; M. Maxime MAURIÈGE Dr en philosophie et Théologie, Thomas Institut, Koeln, Allemagne; M. Jean REAIDY, Dr en Philosophie et en Théologie, Enseignant à Université de Kaslik, Liban; Mme Monique GRUBER Docteur en Théologie; Fr. Rémy VALLÉJO O.P., Strasbourg; M. Benoît BEYER de RYKE, Dr en Philosophie, Université Libre de Bruxelles; M. Jean-Claude LAGARRIGUE, Dr en Philosophie, Enseignant à Strasbourg; M. Pierre GIRE, Dr en Philosophie Enseignant à la Faculté Catholique de Lyon; M. Wolfgang WACKERNAGEL, Dr en Philosophie des Universités de Genève et Munich; M. Marco VANNINI, Dr en Philosophie Enseignant chercheur, Université de Florence, Italie; M. Yannick GROSIEUX, doctorand, Univ. Paul Verlaine, Metz; M. Yannick RAULER, doctorand, Univ. Paul Verlaine, Metz. Disponível em: http://maitre.eckhart.free.fr/initium/ite.html. Acesso em: 22 jul. 2020. , são, além de Gérard Eschbach, a inspiração do artigo. Os místicos renienses, estudados pela equipe de Lorraine, são: Mestre Eckart, Jean Tauler, Henri Siso e Nicolau de Cusa. Os estudos visam aprofundar e divulgar o pensamento destes místicos porque suas obras têm suscitado o interesse de grandes pensadores desde o século XIV até os dias atuais. Os pesquisadores resgatam a espiritualidade profunda que exala de seus escritos cuja inspiração vem da tradição patrística latina (Agostinho, Dionísio Pseudo-Areopagita), grega (Máximo o Confessor), Aristóteles, Platão e seus comentadores ocidentais e orientais.2 2 EPMR- Équipe de Recherches sur les Mystiques Rhénans. Disponível em: http://maitre.eckhart.free.fr/index.html. Acesso em: 16 jul. 2014. A produção do grupo, de 1993-2012, está disponível juntamente com vídeos e colóquios.3 3 Publicações: disponível em: http://maitre.eckhart.free.fr/initium/ite.html. Acesso em: 23 set. 2014. Vídeos: disponível em: http://maitre.eckhart.free.fr/initium/ite.html. Acesso em: 17 out. 2014.

A acolhida da cristologia na vida humana assenta-se em uma base ontológica, isto é, o Filho de Deus como imagem eterna do ser humano e sobre uma base antropológica, que é a interioridade de Jesus Cristo como referência da interioridade humana. A pedagogia espiritual de Tauler caracteriza-se pela busca metódica e contínua do aparecimento da vida divina no ser humano. O acesso à vida eterna é um dom disponível no seio da Trindade porque a geração do Filho de Deus prefigura a origem da família divina na história.

No Sermon pour Noël4 4 Os sermões de Tauler citados no artigo foram traduzidos para o francês por Gérard Eschbach. TAULER, Johan. Sermões (ESCHBACH, Gérard). Disponível em: http://www.gerard-eschbach.org/entree.htm. Acesso em: 28 jul. 2014. Eschbach baseou-se nas seguintes edições críticas: Ferdinand Vetter (1910), Vetter 1 (1870), Vetter 2, Vetter 3, Vetter 4, Corin 1, Corin 2, Helander (1923), Bihlmeyer (1907), Strauch (1882). , Tauler5 5 Johan Tauler (c. 1300 – 1361) nasceu em Estrasburgo, em 1300, e faleceu em 15 de junho, de 1361. Os seus estudos deram-se na escola monacal dos Dominicanos desta cidade na qual conheceu o Mestre Eckhart (c.1260-1327), sua referência espiritual. Prosseguiu sua carreira intelectual no colégio Dominicano de Colonha e, pode ser que tenha estudado também no renomado St James, em Paris. Após o que, retornou a Estrasburgo. De 1338 a 1339, devido ao interdito da Igreja de Estrasbourgo pelo Papa João XXII, esteve na Basileia, Suíça, e vinculou-se à fraternidade “Amigos de Deus” (Gottesfreunde), um movimento místico popular que divulgava os ensinos do Mestre Eckart. A notoriedade de Tauler veio de sua prática religiosa e de seus sermões. Conta-se que durante a peste negra, em 1348, ele permaneceu em Estrasburgo encorajando seus contemporâneos com sermões e visitas. Devido ao forte apelo à entrega radical da vida ao Espírito Santo, Tauler é admirado tanto pelos católicos quanto pelos protestantes. (Tauler, Johannes. Columbia Encyclopedia. Disponível em: http://www.answers.com/topic/tauler-johannes. Acesso em: 02 jul. 2014. Johannes Tauler. Oxford Companion to German Literature. Disponível em: http://www.answers.com/topic/tauler-johannes. Acesso em: 02 jul. 2020. John Tauler. Catholic Encyclopedia New Advent. Disponível em: http://www.newadvent.org/cathen/14465c.htm. Acesso em: 02 jul. 2020. leciona:

O primeiro e o mais sublime nascimento é aquele no qual o Pai celeste engendra seu filho único na unidade da essência divina, na distinção das pessoas. O segundo nascimento celebrado hoje vem da fecundidade maternal advinda à castidade virginal na sua pureza verdadeira. O terceiro nascimento é aquele pelo qual Deus, todos os dias e todas as horas, nasce verdadeiramente, espiritualmente, por graça e amor, em uma alma boa

(p. 4, tradução nossa).

No fragmento sermônico tauleriano, destacam-se três nascimentos: a processão eterna do Filho pelo Pai, o nascimento do Filho do ventre de Maria e o nascimento do Pai, do Filho e do Espírito Santo na alma boa. O engendramento do Filho no seio trinitário acena para o futuro nascimento do ser humano à imagem e semelhança de Deus. Os três nascimentos são contíguos na economia da salvação e apontam a passagem da Trindade imanente à Trindade econômica, isto é, o Deus oculto torna-se visível no seu Filho e o Filho revela o Deus oculto. A imanência e a economia divina são as bases para se afirmar que existe no pensamento tauleriano uma relação de continuidade da ordem espiritual com a ordem material. Tauler denomina esta relação de fim-fundo, quando está pensando no ser humano (Sermon II pour l’Epiphanie, p. 12). Mas, entre as duas ordens há um abismo que pode levar o ser humano a rejeitar a origem divina e se ater exclusivamente à origem material. Esta redução não é ruim porque é possível realizar grandes coisas tendo diante de si apenas a matéria. Todavia, este horizonte restrito, ao longo do tempo, leva ao desespero, à violência, à banalidade da vida e, sobretudo, ao empobrecimento radical da condição humana.

A processão do Deus Filho pelo Pai foi o prelúdio à criação do universo e, sobretudo, do ser humano. A tese é que o Filho de Deus é, desde o seu engendramento eterno, o arquétipo do homem. Noutras palavras, a humanidade (e as demais criaturas) foi gerada na eternidade, como promessa, a partir do Filho e o “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança”, de Gênesis 1,266 6 Todos os textos bíblicos citados no artigo foram extraídos da BÍBLIA Sagrada. Antigo e Novo Testamento. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 2020. , é o cumprimento na história do projeto eterno fundado no reconhecimento mútuo: “Tu és meu filho; eu hoje te gerei” e “Abba, Pai”. O Pai reconhece o Filho como seu filho e o Filho reconhece o Pai como seu Pai. Mesmo que o Salmos 2,7 e Gálatas 4,6 afirmem, na história, um acontecimento no coração da Trindade imanente, ambos permitem uma interpretação regressiva que revela o mistério trinitário na sua imanência e na sua economia salvífica. Como na escada de Jacó, de Gênesis 28,10-19, o poder de Deus flui e reflui através do Filho. Tudo começa no tempo alfa intratrinitário e termina no tempo ômega de economia divina. No começo, Deus disse: [...].

1 “[…] Tu és meu Filho; Eu hoje te gerei”

“Vou proclamar o decreto de Yahweh: Ele me disse: ‘Tu és meu filho, eu hoje te gerei’” (Sl 2,7). À declaração do salmista que afirma a geração eterna do Filho de Deus, acrescentam-se aquelas do Antigo (Salmos 89,27, 2Samuel 7,14) e do Novo Testamento (Lucas 3,22, Atos 13,33, Hebreus 1,5 e 5,5); as declarações doutrinárias da deidade do Filho e as celebrações litúrgicas. Johan Tauler contribui à discussão, dizendo: “Recolhe-te com tuas faculdades superiores, além do tempo, porque é la que Deus reside, é lá que ele está em verdade. É lá que ele disse o Verbo superessencial no qual e pelo qual todas as coisas foram criadas” (Sermon III pour le cinquième dimanche après la Trinité, p. 110, tradução nossa). Ele põe no reconhecimento paterno do Filho o segredo da família intratrinitária. A Trindade é a chave das relações harmoniosas no universo porque a multiplicidade da natureza e do que existe na imensidão do cosmos explicam-se pela pericorese divina [...].

1.1 […] “le Père et le Fils et le saint Esprit sont un seul Dieu

A perspectiva intratrinitária de Tauler não visa a especulações metafísicas, mas serve à natureza experimental de sua mística. A prática da fé cristã, entretanto, necessita da teologia crítica para se sustentar. O exame de um fragmento seleto do “Sermon pour le lundi avant les Rameaux” mostra, na esteira do concílio Niceno-constantinopolitano, que a Trindade são três pessoas perpassadas pela mesma substância, isto é, uma unidade na Trindade e vice-versa. Nessa discussão, sobressaem-se quatro aspectos fundamentais da natureza de Deus: a incondicionalidade, o reconhecimento, as prerrogativas, os direitos e a igualdade.

Tauler escreve:

[...] Quando estes homens voltam sobre si mesmos, discernem melhor todas as coisas e com mais alegria do que qualquer outro. Este nasceu na unidade simples. É assim que eles discernem, com clareza e verdade, todos os artigos na fé pura. Discernem, por exemplo, como o Pai e o Filho e o Espírito Santo são um só Deus, e todas as outras verdades da fé. Ninguém percebe melhor o verdadeiro discernimento do que aqueles que vêm para a unidade

(Sermon pour le lundi avant les Rameaux, p. 38, tradução nossa).

A transcendência extrema de Deus não nega sua extrema imanência. A inteligência da fé discerne “[..] como o Pai e o Filho e o Espírito Santo são um só Deus e todas as verdades da fé”. A fé põe uma interrogação sobre a matéria e a ultrapassa. Eis aí o enigma da existência: o universo e, sobretudo, o ser humano têm uma fundação mística. Para encontrar o Mistério, ou ser encontrado por Ele, precisa-se apenas voltar-se sobre si mesmo e deixar a fé pessoal, apoiada pela fé da igreja, fazer o seu trabalho. O “Tu és meu filho” escancara o coração do Pai ao Filho, mas não o obriga a nada. Apenas espera ser acolhido na mesma medida do seu amor. A compreensão da incondicionalidade do amor paterno pelo Filho leva quem crê neste mistério a tê-lo como a medida do amor verdadeiro na eternidade e no tempo. O amor incondicional imortaliza relacionamentos e transforma pluralidade em unidade.

Porém, sob a incondicionalidade do amor divino repousa o sentimento fundante da dignidade do Outro: o reconhecimento, o lugar que o Filho ocupa na mente e no coração do Pai. O Filho só poder ser filho se é reconhecido como tal por seu pai e o Pai só pode ser pai se é reconhecido como tal pelo Filho. O reconhecimento paterno do Filho é a primeira kénose: o esvaziamento do Pai a favor de seu Filho. Este gesto paterno é o modelo das relações humanas significativas porque quando se reconhece a humanidade do outro e se tem a própria humanidade reconhecida, estabelece-se relações humanas propriamente ditas. O reconhecimento cria as condições de afirmação das diferenças dos envolvidos.

O reconhecimento paterno do Filho tira-o do anonimato e subscreve que Ele tem as mesmas prerrogativas divinas e os mesmos direitos do Pai. Os poderes da divindade são plenamente d’Ele e a Ele cabem os louvores tanto na Terra como Céu. O Pai tem prazer em ver a glória do Filho e o Filho realiza-se na glória do Pai. Como se lê em 2 Pedro 1,17: “porquanto ele recebeu de Deus Pai honra e glória, quando da magnífica glória lhe foi dirigida a seguinte voz: Este é o meu Filho amado, em quem me tenho comprazido”. Onde o ser humano poderia morrer de ciúme e deixar-se corroer pela inveja, Deus Pai realiza-se na realização de seu Filho e Este na realização de seu Pai. Mesmo que, com justiça, alegue-se a distância infinita entre o Pai Celestial e o pai terreno, o Pai Celestial sempre considerou possível que os pais terrenos tivessem um sentimento similar pelos filhos.

A incondicionalidade intratrinitária, o reconhecimento intratrinitário e as prerrogativas e poderes do Deus Filho levam à categoria teológica da igualdade. O Pai não é o Filho e o Filho não é o Pai, entretanto, a distinção das pessoas não significa que existem três divindades, mas uma unidade na pluralidade e vice-versa. Trata-se de igualdade essencial, isto é, na substância divina e não na repetição neurótica da mesma pessoa como Pai, Filho e Espírito Santo como alegavam os modalistas. O mistério da Trindade permanece: uma ousia em três hipostasis. A igualdade ocorre na diferença e mais uma vez a Trindade ad intra subverte a noção de igualdade como conformidade passiva.

Se a igualdade divina não neutraliza as diferenças na Trindade, a verdadeira igualdade promove as diferenças. O segredo democracia divina não é só a igualdade, é o reconhecimento das pessoas divinas da importância delas entre si e no universo. Tanto no Céu como na Terra, o reconhecimento é a força afetiva capaz de preservar o relacionamento porque só ele realiza a igualdade.

Na reflexão da unidade divina, a incondicionalidade, o reconhecimento, as prerrogativas e os direitos e a igualdade ajudaram a compreender a relação da cristologia com a teologia trinitária. Reconhece-se, todavia, que as afirmações sobre Deus são aproximações que só descortinam de longe a infinita paisagem. Diante do Mysterium Tremendum as palavras se confundem e falham, por isso, as metáforas e os paradoxos da teologia apofática tauleriana falam, em certas circunstâncias, melhor do que as proposições afirmativas [...].

1.2 […] “On l’appelle, et elle l’est vraiment, ineffable ténèbre et pourtant elle est essentielle lumière”

A poética paradoxal de Tauler, sublinhada nas expressões “ineffable ténèbre” e “essentielle lumière”, revela a atração divina de sua alma e, ao mesmo tempo, a sua prudência epistemológica quanto ao conteúdo propositivo da teologia. A tradição apofática, que ele retoma através dos opostos literários “treva inefável” e “luz essencial”, é uma reafirmação da tese de que a teologia não deve restringir a espiritualidade às proposições teológicas. Noutras palavras: sob o que se sabe oculta-se o que não se sabe; a extensão do mistério trinitário excede no gosto e no sentido ao que se tem experimentado. Porém, a técnica dos contrários, típica da estética linguística apofática, não deve ser levada para o conteúdo da teologia. Os opostos luz e trevas, em termos teológicos, não se opõem porque enquanto na estética linguística, enfatizam-se os limites da linguagem; na teologia sublinha-se que o vínculo humano com Deus é permeado por uma região selvagem.

Fragmentos selecionados de “Sermon II pour la fête de la Dédicace”, “Sermon II pour la Nativité de saint Jean Baptiste”, “Sermon pour Noël” e “Sermon pour le deuxième dimanche après la Trinité” permitem que se avance na discussão da filiação divina. Três pares de categorias teológicas superpostas, abscondidade-revelação, geração-criação e comunicação-autocomunicação, presidem a reflexão.

No Sermon II pour la fête de la Dédicace, Tauler disse:

Chamam-no, e ele é realmente, treva inefável e, todavia, é luz essencial. Chamam-no também deserto selvagem inexprimível no qual ninguém, nem descoberta, nem caminho, nem nada é determinado porque está além de toda determinação. Eis aí como se entende estas trevas. É uma luz que nenhuma inteligência criada não pode naturalmente se aproximar nem compreender. E é assim um lugar selvagem porque não há nenhuma via de acesso. O espírito é introduzido aqui sobre si mesmo, além de suas faculdades de percepção e de inteligência

(Sermon pour le lundi avant les Rameaux, p. 38, tradução nossa).

“Ineffable ténèbles” e “essentielle lumière” podem, em linguagem catafática, se transformar em abscondidade-revelação. A afirmação da abscondidade divina é uma forma de se afirmar que Deus é privativo a si mesmo, indisponível aos conceitos e à compreensão humana.

O lado oculto de Deus é, em linguagem tauleriana, “ineffable ténèbles”. Não significa, porém, que haja trevas em Deus. Sublinha-se que há algo em Deus que se desconhece e o desconhecimento é trevas, em linguagem apofática. Tauler entende “ténèbres” de duas maneiras: “C’est une lumière qu’aucune intelligence créée ne peut naturellement atteindre ni comprendre” e “Et c’est aussi un lieu sauvage parce qu’il n’y a aucune voie d’accès”. A intimidade profunda de Deus no coração intratrinitário é o aconchego do Filho e do Espírito Santo. Para quem não a vê é “ténèble”, para quem a desfruta é “lumière”. A abscondidade é o “ineffable”, é o santo dos santos intratrinitário.

O inacessível aconchego paterno é acessível em certa circunstância. Tauler informa como: “L’esprit est introduit ici au-dessus de lui-même, au-dessus de ses facultés de perception et d’intelligence”. O espírito é introduzido, não se introduz. Ao santo dos santos intratrinitário se é levado pelo próprio Deus. A experiência mística não pode ser melhor traduzida: “foi arrebatado ao paraíso e ouviu palavras inefáveis, de que ao homem não é lícito falar” (2 Coríntios 12,4), disse o apóstolo Paulo. A inteligência dá lugar à estética, à indescritível paisagem. Não se busca saber, mas simplesmente experimentar. Dionísio Areopagita, no “Traité de la théologie mystique”, aprofunda a discussão:

Trindade supraessencial que está do outro lado do divino, do outro lado do Bem, Tu que guardas os cristãos no conhecimento das coisas divinas, conduz-nos, na dimensão do desconhecimento, rumo aos mais sublimes e mais luminosos cumes dos escritos misteriosos. Lá, experimentam-se veladamente os simples, insolúveis e imutáveis mistérios da teologia, na profunda luminosidade da Escuridão do Silêncio, onde se é iniciado nos segredos desta radiosa e resplandecente Escuridão, em sua total obscuridade, absolutamente intangível e invisível, Escuridão que colma de esplendores indizíveis as inteligências que sabem fechar seus olhos

(SAINT DENIS L’ARÉOPAGITE, 2020SAINT DENIS L’ARÉOPAGITE. Traité de la théologie mystique. Les œuvres complètes de (pseudo) saint Denis l’Aréopagite, Théologie (XII). Disponível em: http://docteurangelique.free.fr. Acesso em: 14/01/2020.
http://docteurangelique.free.fr...
, tradução nossa).

A “essentielle lumière”, por sua vez, indica aquela abertura na inteligência humana pela qual se vê a conexão do visível com o invisível. Não se trata de ver Deus sob a natureza, como o faz a teologia natural. É verdade que “os céus manifestam a glória de Deus” (Salmos 19,1), mas é mais do que isso. Trata-se da revelação de Deus no seu próprio Filho, quando decidiu deixar a glória do Pai para se encarnar. O Filho de Deus encarnado é a “essentielle lumière”, o fundamento e o critério da mística tauleriana.

Portanto, as premissas teológicas da primeira categoria teológica superposta “ineffable ténèbles” e “essentielle lumière” ou abscondidade-revelação permitem concluir que o “Tu és meu filho, eu hoje te gerei” (Salmos 2,7) inaugura a revelação no tempo alfa intratrinitário e antecipa o caminho do acesso humano a Deus.

Encerrada a discussão do par abscondidade-revelação, passa-se à segunda superposição: geração-criação. A geração do Filho de Deus no tempo alfa intratrinitário dirime, em parte, a abscondidade divina porque é um modo de comunicação em Deus. Esta tese é levantada no “Sermon pour le deuxième dimanche après la Trinité”:

O poder do Pai vem então, e o Pai chama o ser humano a si mesmo pelo seu Filho único. E como o Filho nasce do Pai e se move no Pai, também o ser humano, ele também, no Filho, nasce do Pai e vive no Pai com o Filho, tornando-se um com ele

(TAULER, 2020TAULER, Johan. Sermon II pour l’Epiphanie (ESCHBACH, Gérard). Disponível em: http://www.gerard-eschbach.org/entree.htm. Acesso em: 28 jul. 2020.
http://www.gerard-eschbach.org/entree.ht...
, p. 76, tradução nossa).

O Mysterium Absconditum, em parte, deixa sua inacessibilidade na processão do Filho. A geração do Filho é uma revelação na medida em que o Pai reconhece o Filho como Seu. Ela é um modo de revelação porque é a maneira pela qual o ser humano haveria de se reconhecer como partícipe da família trinitária. Entretanto, como se lê nas “Lettres”, de Saint Denys L’Aréopagite, o em-si de Deus é de sua inteira privacidade:

o Supraessencial renunciou ao seu mistério e se manifestou a nós, assumindo uma essência humana. Malgrado esta manifestação, — ou antes, para falar uma linguagem mais divina, no próprio coração desta manifestação, — ele ainda preserva todo seu mistério. Porque o mistério de Jesus permanece oculto. Tal como ele é em si mesmo, nenhuma razão nem nenhuma inteligência o esgota. Qualquer coisa que se diga dele, ele permanece indizível; de qualquer maneira que o compreenda, ele permanece incognoscível

(SAINT DENYS L’AREOPAGITE, 2020SAINT DENIS L’ARÉOPAGITE. Traité de la théologie mystique. Les œuvres complètes de (pseudo) saint Denis l’Aréopagite, Théologie (XII). Disponível em: http://docteurangelique.free.fr. Acesso em: 14/01/2020.
http://docteurangelique.free.fr...
, p. 2, tradução nossa).

No “Sermon II pour la Nativité de saint Jean Baptiste”, Tauler escreve: “São João escreve: tudo o que foi feito, tinha a vida nele. O que o homem é agora, em seu ser criado, ele o foi em toda a eternidade, antes de ser criado, em Deus, onde estava com ele como ser autêntico” (2020, p. 117, tradução nossa). A geração do Filho leva à criação do ser humano. Mas, não se trata de causa e efeito. A criação do homem é um gesto de ternura divina porque não havia nenhuma obrigação ou necessidade que forçasse Deus a criar o ser humano no tempo cronológico do universo. A única força por detrás deste evento criacional é o amor.

A passagem do ser humano de projeto no coração divino à experiência histórica não pode levá-lo ao esquecimento de sua origem divina, mesmo que nos pés, neste momento, haja apenas o pó da terra. Como Tauler lembra, o Filho criou todas as coisas: “Tout ce qui a été fait, était vie en lui”. Mas, de modo especial, o ser humano: “Ce que l’homme est maintenant, dans son être créé, il l’a été de toute éternité, avant d’être créé, en Dieu, où il était avec lui comme authentique être”. O ser humano é convidado a ver o mistério que o envolve do começo ao fim, na multiplicidade e na unidade. A descoberta revela que ele mesmo é um mistério que exige outro Mistério na sua origem. Neste instante luminoso e fugidio, Deus se revela no fim-fundo da alma e a oração santifica o momento que a poesia extravasa:

Em Tua presença, a calma.

Como em um banho de sol, entrego-me e Tu guias-me às antecâmaras que são apenas luz. Tudo é tão puro, tão transparente que o olhar não apreende.

A eternidade aflora, doce mas extrema; nela, o presente fica suspenso em um Sopro. Tua paz fortalece-me e a alegria espalha-se.

Pensamentos atravessam-me, como nuvens que deslizam, minhas ideias se dissolvem e se precipitam em chuva.

Mas, quando Te contemplo, frequentemente meu corpo é minha bússola e já não me desvio mais. Então, Tu emerges em mim segundo o teu gosto

(CENTRE DE MYSTIQUE CHRETIENNE, 2020CENTRE DE MYSTIQUE CHRETIENNE. En ta presence. Texto anônimo. Disponível em: ttp://www.cmchr.net/En-Ta-Presence.html. Acesso em: 16 mar. 2020.
ttp://www.cmchr.net/En-Ta-Presence.html...
, tradução nossa).

Finda a discussão da geração-criação, passa-se à terceira superposição: comunicação-autocomunicação. Tauler afirma no “Sermon pour Noël”:

Enquanto se estava em pleno silêncio, todas as coisas estavam na mais plena calma e a noite se movia no seu curso, foi então, Senhor, que de teu trono real desceu a palavra onipotente. A Palavra eterna provinda do coração do Pai. É no interior deste silêncio, no momento mesmo onde todas as coisas se aquietam profundamente e onde o verdadeiro silêncio reina, é então que se entende verdadeiramente esta Palavra. Porque se tu queres que Deus fale, é preciso calar. Deus deve entrar, todas as coisas devem sair

(2020, p. 5, tradução nossa).

A comunicação de Deus com a humanidade se deu de muitas maneiras. De modo natural e sobrenatural. Como o hagiógrafo disse: “Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas [...]” (Hebreus 1,1). A comunicação de Deus, em termos futuros, revelava um evento a ser esperado, uma conquista a ser perseguida, uma tragédia a ser evitada. Em termos passados, mostrava uma traição a ser punida, uma ignomínia a ser desmascarada, uma lembrança a ser preservada. Em termos presentes, a comunicação de Deus pode ser a incorporação destes dados à própria vida. Mas, a comunicação divina escondia um segredo porque não se pretendia prioritariamente comunicar eventos orientadores da vida humana; visava, sobretudo, se autocomunicar. O escritor aos Hebreus ajuda mais uma vez: “nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo” (Hebreus 1,2).

A autocomunicação de Deus através do Filho esforça ao máximo os cânones da revelação. Se a Lei Mosaica ocupava, até o nascimento de Jesus Cristo, o grau mais alto na revelação; agora dá lugar à Palavra feita carne. A verdade deixa de ser conceitual para ser experimental. Ela não é mais o conteúdo propositivo da frase que se apropria intelectualmente, é o pão do espírito que se come pela fé. A transição revelacional, do texto escrito ao texto feito carne, não anula a Lei, cumpre-a. “La parole toute-puissante” desbanca a lógica absolutista que orienta o comportamento de religiosos que não a compreenderam ou não lhe deram a devida importância. A autocomunicação, por ser a comunicação do Filho de Deus através do seu próprio corpo, ultrapassa infinitamente a comunicação dos textos sagrados. Enquanto aquela é um pão que se come, esta é um signo a ser decodificado; enquanto aquela alimenta a alma, esta orienta o intelecto; enquanto aquela faz o seu próprio trabalho, esta necessita de interpretação. A autocomunicação é a luz que leva o ser humano para casa.

Portanto, a comunicação de Deus, desde seu interior, mediante a geração eterna do Filho, tinha a intenção de ser autocomunicação, isto é, a revelação de si mesmo no coração de sua criação. Esta proposição tem implicações graves na teologia tauleriana: o conhecimento místico de Deus, necessariamente, sobrepõe-se ao conhecimento intelectual. Enquanto o conhecimento intelectual ampara-se nos conceitos, o místico ocorre na transparência imediata de sua presença. “La Parole éternelle” está na antecâmera do que se sabe para garantir, mesmo àqueles que por qualquer motivo perdem a lucidez, que não é o seu saber que garante a sua vida, mas a fé na autocomunicação do Filho de Deus. O fragmento sermônico tauleriano é revelador:

Deixem vossas discussões para lá. Simplesmente creiam e vos entreguem a Deus. Os clérigos, eles, têm outra coisa para fazer? Ora, eles jamais estiveram uma razão tão sutil do que a presente. Quanto a vós, cuidem para que a Trindade nasça em vós, no fundo, não sob a forma de ideias racionais, mas de maneira essencial, verdadeira. Não em palavras, mas em realidade

(TAULER, 2020TAULER, Johan. Sermon II pour la Nativité de saint Jean Baptiste (ESCHBACH, Gérard). Disponível em: http://www.gerard-eschbach.org/entree.htm. Acesso em: 28 jul. 2020.
http://www.gerard-eschbach.org/entree.ht...
, p. 77, tradução nossa).

A comunidade trinitária é uma realidade espiritual não só para ser pensada, mas, sobretudo, para ser vivida. O mistério da vida escancara-se sobre o mistério divino e a mente descansa ali onde o próprio Deus é o sentido dos sentidos. Tauler ajuda mais uma vez:

Os grandes doutores de Paris leem os livros grossos, tornando e retornando às páginas. Isto é muito bom. Porém, os homens de vida interior leem o livro vivo no qual tudo se mostra de maneira viva. Eles percorrem o céu e a terra lendo a obra maravilhosa de Deus. Eles chegam até a adquirir discernimento sobre os santos anjos. Eles ascendem à inteligência do mistério da santa Trindade, como o Verbo eterno recreia-se no coração do Pai, como o Espírito Santo provem de um como do outro, como a santa Trindade manifesta-se em todos os espíritos bem-aventurados, como estes espíritos obtêm em contrapartida uma maravilhosa felicidade

(TAULER, p. 172, tradução nossa).

O evento da Trindade é o seu acesso na vida humana e não mera especulação à busca exclusiva de sentido. A medida do ser humano ultrapassa o ser humano porque a sua origem no tempo alfa intratrinitário assegura-lhe que o seu limite não se restringe à esfera das concretudes e às percepções dos sentidos. Sob o ser humano está um abismo de plenitude que acena para coisas infinitamente grandes e indica que só a desmesura é a sua medida verdadeira. Todo ser humano tem um plus divino no fundo de seu espírito como sinal de que o mistério humano é a extensão do mistério divino.

A partir da discussão teológica tauleriana dos três pares teológicos superpostos, abscondidade-revelação, geração-criação e comunicação-autocomunicação, afirma-se que o natural faceia com o sobrenatural. Noutras palavras, nada é tão natural que não carregue consigo um mistério insolúvel: da ínfima célula ao astro assombroso, da borboleta colorida à zebra em preto e branco. Mas, ninguém revela mais a sobrenaturalidade divina do que o ser humano. O homem é como a Terra que corre segura sobre o abismo insondável; um mistério a caminho da plena manifestação. Enquanto faz o caminho de volta, às vezes na luz, às vezes na escuridão, só uma palavra o consola […].

2 “[…] Abba, Pai!”

“E porque sois filhos, enviou Deus aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abba, Pai” (Gálatas 6,4). O apóstolo Paulo afirma que a filiação adotiva do ser humano decorre da filiação natural do Filho de Deus. O clamor do Espírito na alma humana põe aí o reconhecimento do Filho de Deus em face do seu Pai. O ato inaugural da palavra no coração da família trinitária foi simplesmente “Pai”. Noutras palavras, reconhecimento. Se no subtópico filiação divina é o Pai quem reconhece o Filho como seu filho, aqui é o Filho que reconhece o Pai como seu pai. Porém, enquanto o reconhecimento paternal é geracional, o reconhecimento filial é gratulatório [...].

2.1 […] “Car il cherchait seulement la gloire du Père et non pas celle du Fils”

Na Trindade imanente é a honra o que evidencia que o Filho reconhece o Pai como seu pai. O verbo “cherchait” do subtópico é mais do que um passado acabado. Enfatiza que o Filho, que “procurava a glória do Pai e não a sua”, age na encarnação como agia no interior trinitário (TAULER, Sermon pour le jeudi avant les Rameau, 2020TAULER, Johan. Sermon pour Noël. (ESCHBACH, Gérard). Disponível em: http://www.gerard-eschbach.org/entree.htm. Acesso em: 28 jul. 2020.
http://www.gerard-eschbach.org/entree.ht...
, p. 43). O profeta Malaquias sublinha que o Pai espera que o filho honre o Pai, dizendo: “O filho honrará o pai, e o servo, ao seu senhor; e, se eu sou Pai, onde está a minha honra? (Malaquias 1,6). A mística tauleriana assume a honra como a característica vital do reconhecimento do Filho ao Pai. No fragmento seleto de “Sermon pour le jeudi avant les Rameaux”, recupera-se parte da cristologia de Tauler no vínculo com a antropologia:

O Filho recebeu do Pai tudo que ele é, tudo que tem e tudo que pode fazer. O Pai pôs todas as coisas em suas mãos. E em tudo isso, o Filho tem se reportado tão radical e tão completamente ao Pai, absolutamente da mesma maneira que recebeu, ele não tem mesmo retido e reservado para ele um único fio de cabelo. Porque ele procurava somente a glória do Pai e não a sua. É desta maneira que devemos imitar o Filho. É da mesma maneira que deve ser nossa herança transfigurada. Devemos reportar inteiramente ao Pai tudo que somos, tudo que temos, tudo que devemos fazer, tudo o que recebemos dele, sem guardar para nós, de tudo isso, a largura de um fio de cabelo. Não reter nada nem interior ou exteriormente, nem direta ou indiretamente. Molde-se ao que Jesus é. Não toma nada para ti e busca Deus

(2020, Sermon pour le jeudi avant les Rameaux, p. 43, tradução nossa).

A partir desse fragmento sermônico, discutem-se quatro questões cruciais do reconhecimento filial: a vontade consagrada ao Pai, o comprometimento com a vontade do Pai, as ações que glorificam ao Pai, a liberdade do Filho em face do reconhecimento do Pai. A pressuposição teológica é que o Filho encarnado é idêntico a si mesmo antes da encarnação, por isso, o comportamento d’Ele é o modelo para os seres humanos.

A vontade consagrada do Filho ao Pai alimenta a pericorese das pessoas divinas e faz pensar que o mistério da união trinitária, posto até aqui sobre a ousia divina, pede aprofundamento: não é só a substância divina que funda a unidade de Deus, sob ela está a decisão do Filho de amar o Pai incondicionalmente. O fundamento da unidade divina é a vontade consagrada de um ao outro. Não é a ousia somente que funda a unidade intratrinitária porque, em termos teofilosóficos, poderia indicar uma reciprocidade mecânica na qual a vontade não precisa, necessariamente, participar; nem é vontade somente porque esta precisa situar-se na realidade íntima de Deus, a ousia. A mesma ousia divina, personaliza-se na manifestação da vontade do Filho, do Pai e do Espírito. A koinonia trinitária é uma decisão que as pessoas divinas tomam entre si. Elas decidem se amar sempre e eternamente mediante a consagração da vontade uma às outras.

Tauler especifica o modo como o Filho consagra a vontade ao Pai, dizendo: “Car il cherchait seulement la gloire du Père et non pas celle du Fils”. A decisão do Filho de buscar a glória do Pai é tanto autorealização quanto anulação. Ambas, entretanto, não se diferem quanto ao alvo, a glória do Pai, mas são distintas quanto à natureza. Quando se lê em Lucas 2,52 que “crescia Jesus em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens”, indica que buscar a glória do Pai é colocar-se no itinerário da consumação da humanidade intrínseca às pessoas em geral. Noutras palavras, é ir fundo na autorrealização da própria humanidade. Quando o ser humano busca a sua plenitude existencial, não busca a sua própria glória, mas a do Pai, porque quem alcança a autorrealização de sua humanidade passou por caminhos pedregosos. No plano divino, é uma semente que virou árvore e dá frutos. Quanto à anulação que busca a glória do Pai, se lê em Lucas 26,42: “Meu Pai, se não é possível passar de mim este cálice sem que eu o beba, faça-se a tua vontade”. Porém, quando Jesus de Nazaré renuncia seus temores à morte ignominiosa e entrega-se à vontade do Pai, o fim é o domingo da ressurreição. A anulação é o reconhecimento da limitação humana diante de um acontecimento que mostra apenas o lado tenebroso. Enquanto o pesadelo durar, o lado luminoso da cruz só o Pai conhece. A anulação da vontade revela o seu sentido na fidelidade do Pai: depois da cruz há sempre um halo de glória.

A relação Filho-Pai é regida por um pacto de fidelidade mútua que excede o tempo cronológico e se perde no tempo kairológico do Pai. O Filho confia no Pai de tal maneira que, por três dias, entrega-se à morte na total vulnerabilidade de sua humanidade. A intenção d’Ele era que todo ser humano também fizesse o caminho da vontade consagrada sem medo de se perder de si ao fazer isto, mas na plena confiança de que existe uma aliança de amor entre o Pai e o ser humano firmada no céu antes da criação do mundo.

Este pacto baliza o comprometimento do Filho com a vontade do Pai. Tauler alega que “Et tout cela le Fils l’a si radicalement et si complètement rapporté au Père, absolument de la même manière dont il l’avait reçu, qu’il n’a même pas retenu et réservé pour lui un seul cheveu”. O comprometimento exige uma experiência em comum que garanta o resultado de se investir a vida em alguém ou por alguém. Quem investiria a vida em uma relação duvidosa e sem futuro? Jesus de Nazaré não reservou para si nenhum fio de cabelo porque sabia que Deus é fiel a quem firma compromisso com Ele. Isto não significa que a relação Filho-Pai cai na conta do interesse como se poderia alegar, situa-se na esfera dos carismas do Pai a favor de seus filhos. Mas, sob os dons divinos, o amor é que dá sentido pleno à relação Filho-Pai; só ele justifica a retomada na história daquela celebração original feita no coração da família trinitária.

Portanto, o Filho não se compromete com a vontade do Pai porque quer usufruir privilégios. Se isto ocorre, não entra na conta da meta principal porque o Reino de Deus se estabelece primeiro no espírito e depois no mundo concreto. Este princípio não pode ser invertido, se o for o comprometimento da vontade é superficial porque se baseia no que se vê e não no que se é. A vontade consagrada ao Pai põe a essência sobre a existência.

O alinhamento da vontade do Filho com a do Pai crava-lhe na subjetividade a consciência de identidade filial. O Pai é a memória-fundamento das ações do Filho. Tauler lembra que: “Le Fils a reçu du Père tout ce qu’il est, tout ce qu’il a et tout ce qu’il peut faire”. A dignidade filial foi concedida ao Filho na eternidade. Isto não significa diferença na Trindade, mas afirma a atribuição de cada pessoa na comunidade divina. À semelhança do Filho de Deus, o ser humano que assume a sua filiação divina compromete-se, ao longo de sua vida, com ações que glorificam ao Pai. Trata-se de uma opção natural pelo justo, pelo bom e pelo belo.

A tríade justiça, bondade e beleza dá a razão intrínseca das ações que glorificam a Deus. O fundamento destas ações não reside nelas mesmas e nem no ethos da comunidade. Sob a identidade destas ações há algo mais profundo do que os vínculos culturais do pensamento humano. Trata-se do dom gratuito da filiação divina. Quanto mais o ser humano assume a sua identidade crística, tanto mais se distancia das forças desumanizadoras do mundo.

Portanto, o reconhecimento do Filho ao Pai é o ato fundacional da humanização dos filhos de Deus. A vontade consagrada, o compromisso radical e as ações justas assentam-se na liberdade radical do Filho quando disse: “Abba, Pai”. Não se trata de um afastamento alienante de si mesmo que se entrega acriticamente à vontade alheia, mas, da origem de um “Eu” coletivo, trinitário, para o qual o ser humano também é chamado a participar.

Segundo Joaquim Jeremias, quando se invoca a Deus por Pai, exprime-se uma relação originária iniciada no tempo alfa intratrinitário:

Ora o nome paternal de Deus, qualquer que seja o sentido inesgotável, não pertence ao registro dos conceitos superdeterminados. Chamando a Deus de Pai, no sentido forte do termo, o homem exprime um sentido preciso que não envia a um sentido segundo. É que o termo não remete ao pensamento significante, mas à palavra que reconhece

(JEREMIAS, apud GEFFRÉ, 1988GEFFRÉ, Claude. Le christianisme au risque de l’interprétation. 2. ed. Paris: Cerf, 1988., p. 181).

A distância infinita do Pai é transposta pela caridade revelada no “Abba, Pai” de seu Filho e estabelecida no amor incondicional e inconcebível de Deus, que é revelado, sem o “Ser”, além de toda previdência e cálculo, de acordo com o horizonte do ‘dom’ que é dado como distância paternal (CARLSON, 2003CARLSON, Thomas A. Posmetaphysical theology. In: VANHOOZER, Kelvin J. (Ed.) The Cambridge Companion to Posmodern Theology. Cambridge: University Press, 2003., p. 64-65).

Portanto, a palavra Pai, diferentemente da linguagem especulativa da atribuição filosófica ou teológica, pertence ao horizonte da palavra originária. Um Deus sem o “ser”, inominável, porque a autonomeação de Deus como Pai, diz respeito primeiro à escuta do ser humano, ao consentimento a um nome sem nenhuma autofundação de sentido prévio (GEFFRÉ, 1988GEFFRÉ, Claude. Le christianisme au risque de l’interprétation. 2. ed. Paris: Cerf, 1988., p. 182). No horizonte desta relação originária é possível associar significativamente a cristologia com a antropologia teológica. Isto é possível sobre a base da comunicação reveladora que Deus faz de seu nome paterno e que recebe do Filho o solene reconhecimento. O ser humano experimenta o evento primigênio quando, com o Filho, diz “Abba” e se sente acolhido nos braços do Pai. Segundo Tauler, “C’est de la même manière qu’il doit être notre héritage transfigure”.

A consciência da filiação divina aumenta a autoestima de maneira tão profunda que, mesmo se durante a noite os pescadores não pegaram nenhum peixe, o Cristo os convida, aos primeiros raios do sol, a desafiar mais uma vez as ondas do mar da Galileia, dizendo [...].

2.2 “[...] Duc in altum, conduis ta barque en haute mer”7 7 “Mar adentro, conduze teu barco em alto mar.”

O reconhecimento da filiação divina, segundo o modelo do Filho de Deus, reduz a baixo autoestima e aumenta a autoestima. A consciência que assume decididamente a filiação divina interpreta de outro modo a dimensão imediata e mediata da vida. Ela liga o material ao espiritual e vice-versa. O ser humano é um ser no limite entre a matéria e o espírito. Quando esses dois mundos lhe estão abertos, um poder extraordinário lhe está continuamente disponível. Não foi isto que Jesus lecionou em Lucas 5,4? “Faze-te ao largo, e lançai as vossas redes para pescar”.

Nos “Sermon III pour le cinquième dimanche après la Trinité” e no “Sermon I pour le dix-septième dimanche après la Trinité”, pode-se retomar as linhas gerais da mística tauleriana para o ser humano atravessar as águas da praia e chegar ao mar aberto.

Tauler escreve no primeiro sermão:

Nosso Senhor disse a são Pedro: "Mar adentro, conduze teu barco em alto mar". Isto quer dizer: eleve teu espírito e todas tuas faculdades bem alto, além de ti mesmo e além das coisas inferiores e sensíveis. Porque nosso Senhor não tem o que fazer com essas coisas inferiores. Ele é muito íntimo e não pode atuar neste lugar. Ele é diligente e sútil e as faculdades inferiores são muito grosseiras. Eis porque: "Mar adentro, conduze teu barco em alto mar”

(TAULER, 2020TAULER, Johan. Sermon pour le lundi avant les Rameaux (ESCHBACH, Gérard). Disponível em: http://www.gerard-eschbach.org/entree.htm. Acesso em: 28 jul. 2020.
http://www.gerard-eschbach.org/entree.ht...
, Sermon III pour le cinquième dimanche après la Trinité, p. 110, tradução nossa).

O “Duc in altum, conduis ta barque en haute mer” recebe uma interpretação alegórica porque sob a ordem literal dada a Pedro, há um sentido espiritual que lembra o ser humano da dignidade da filiação divina.

Primeiro, “élève ton ‘gemüt’ et toutes tes facultés, bien haut au-dessus de toi-même et au-dessus des choses inférieures et sensibles”. A confiança da filiação divina aumenta na medida em que o “gemüt”, “la partie supérieure de l’âme”, está ordenado para Deus (TAULER, Sermon III pour le treizième dimancheaprès la TrinitéTAULER, Johan. Sermon III pour le cinquième dimanche après la Trinité (ESCHBACH, Gérard). Disponível em: http://www.gerard-eschbach.org/entree.htm. Acesso em: 28 jul. 2020.
http://www.gerard-eschbach.org/entree.ht...
, p. 139). Se o ser humano hipervaloriza seus sentidos ou a dimensão intelectual de sua vida, fecha-se na matéria e não se aventura no mundo espiritual. O filho de Deus não foi chamado para ficar no raso se tem o infinito à disposição. Se alguém quer ficar onde os pés alcançam porque se sente seguro é porque não plainou com os pássaros. Lá é tão seguro quanto aí, a diferença é que quem vê de baixo vê um horizonte inatingível; quem vê de cima corta-o com o vento.

O “gemüt” orientado para Deus torna o ser humano um portal de passagem do infinito para o finito e do finito para o finito. A dignidade do filho de Deus está em cumprir eficazmente o que lhe foi confiado pelo Pai. O filho de Deus mostra Deus aos seus irmãos sendo um sinal da eternidade divina no mundo. Se as palavras podem conter equivocidade, a vida não. Se a vida sinaliza o eterno que a sustenta e inspira, como este sinal ficaria despercebido? A dignidade do filho de Deus está na ousadia de ser o que lhe está assegurado pela fé em Deus e de não se conformar à comodidade das águas rasas da praia.

Segundo, “car notre Seigneur n’a que faire de ces choses inférieures. Il y est trop à l’étroit et ne peut pas s’y mouvoir”. Não obstante a importância dos sentidos, o ser humano orientado exclusivamente por eles fica nas águas rasas da praia quando poderia ir às águas profundas. Se se vive na comodidade da praia só se pega peixe pequeno porque a ação divina é limitada por esta percepção estreita: “Il y est trop à l’étroit et ne peut pas s’y mouvoir”. Quem poderá ver o invisível se mente só acredita no mensurável? Quem poderá ir ao infinito se mente só acredita no finito? A matéria explica-se pela não-matéria e, até onde se sabe, o ser humano carrega em si as duas coisas. Só ele está na fronteira dos mundos.

A dignidade do filho de Deus está na confiança inabalável de que pode ir além das evidências concretas da vida. Não há uma situação que seja capaz de colocar-se sobre as suas expectativas porque na companhia divina, não se é escravo de nada e nem se está entregue a nada. Pode-se tudo naquele que fortalece porque o filho de Deus está em contínuo estado de superação das forças anti-vida. O ser humano é chamado a manter os olhos em alto mar.

Terceiro, “Il est prompt et subtil, et les facultés inférieures sont trop grossières.” Se a percepção humana se reduz às águas rasas da praia, o conhecimento que se tem do mar, pode ser até muito especializado, mas é muito limitado em relação ao mar. Os sentidos, geralmente, ficam na superfície do fenômeno e ao intelecto cabe organizar os fragmentos das experiências sensíveis. A ciência constrói conhecimento assim. Mas, para ver os mistérios das águas profundas, especialmente o mistério humano, precisa-se ir além dos sentidos e do intelecto. Segundo Tauler, “o Evangelho fala de uma boa medida. Esta medida é o ‘espírito’ do homem. É ele que se mede. É esta medida que virá a determinar em qual medida Deus te será dado” (TAULER, 2020TAULER, Johan. Sermon pour le jeudi avant les Rameaux (ESCHBACH, Gérard). Disponível em: http://www.gerard-eschbach.org/entree.htm. Acesso em: 28 jul. 2020.
http://www.gerard-eschbach.org/entree.ht...
, Sermon I pour le quatrième dimanche après la Trinité..., p. 97).

Os sentidos, o intelecto e o gemüt não deveriam ser regiões estanques. Se se concentra o conhecimento nos dois primeiros, precisa-se ignorar o em-si do fenômeno; mas se o gemüt está orientado para Deus, vê-se a intercessão da imanência com a transcendência no interior de toda experiência significativa. Essa perspectiva completa o conhecimento da ciência clássica. O conhecimento de Deus completa o conhecimento natural e o conhecimento natural complementa o conhecimento divino. O ser humano precisa de ambos para levar a cabo a plenitude de sua humanidade.8 8 Não obstante o debate filosófico relativa à metafísica tradicional e as tentativas de fixar o seu limite à matéria e à sua racionalidade mecânica e não consciente, aqui admite-se como pressuposto que para além dos entes e de suas leis, há um Deus pessoal que está na origem do que é visível e invisível e que, de acordo com a sua vontade, atua sobre esse mundo visível e invisível de acordo com o seu querer. O interesse sobre esse debate poderá ser satisfeito em Revista Estudos Filosóficos n. 8, 2017: Dossiê: A crítica à metafísica e a constituição da ontologia contemporânea. Não nos aprofundamos essa discussão devido à complexidade do debate e exigência de um número de páginas que excederia esse espaço.

Por que Jesus disse: “Duc in altum, conduis ta barque en haute mer”? Disse isto porque ele mesmo fez isto na sua encarnação. Jesus elevou a sua humanidade ao grau máximo e foi muito feliz assim. Tauler reafirma este ponto, dizendo: “O caminho mais alto e o mais sublime ao qual Deus possa nos chamar consiste em imitar o maravilhoso modelo de seu Filho amado entre todos, exterior e interiormente, ativa e passivamente, com os socorros de imagens ou na contemplação que ultrapassa todas as imagens” TAULER, 2020TAULER, Johan. Sermon I pour le quatrième dimanche après la Trinité (ESCHBACH, Gérard). Disponível em: http://www.gerard-eschbach.org/entree.htm. Acesso em: 28 jul. 2020.
http://www.gerard-eschbach.org/entree.ht...
, Sermon I pour le dix-septième dimanche après la Trinité, p. 165).

Para Tauler, o ser humano pode ser como o pescador desencantado que vive nas águas rasas sem peixe para pescar; mas se ousar ser o que realmente é, lançará as redes nas águas profundas. Coisa mais triste é o pescador desencantado do mar; coisa mais linda são os peixes a saltitar.

Considerações finais

O ser humano só existe autenticamente na entrega à sua abrupta abertura vertical, porque se percebe chamado por um abismo de plenitude. Não há humanidade verdadeira sem este apelo. Mesmo que a pessoa não queira escutar, não queira entender, ela permanece como a mais fundamental e constitutiva verificação do humano. Sua negação consciente ou inconsciente leva o ser humano a se constituir em oposição a ela. O essencial da vida está sobre o plano das evidências sensíveis. Um além-aquém, que está, todavia, mais perto e mais presente que todas as presenças e todas as proximidades mundanas e que coincide com o fim-fundo da interioridade humana. Esta essencialidade é reprimida pela entrega decidida às atrações do mundo, porém, mesmo neste caso, ninguém está inteiramente livre das provocações metafísicas. A ignorância do sagrado não é da ordem da radicalidade, mas do esquecimento. Esta amnésia de Deus pode ser superada por uma anamnese. O mais profundo das profundezas humanas precipita-se em um abismo insondável. Um Fundo sem fundo no qual Deus habita.

O mistério humano se identifica com o mistério de Deus porque sem o ser humano não há mistério a decifrar. O ser humano quem se inquieta diante do infinito. Sem ele, o mistério de Deus não é interrogado. A fé se enraíza necessariamente no que se poderia chamar o "sagrado original" do ser humano como mistério de abertura e de comunhão. Porém, a maior amplitude do mistério divino não é este diante dos olhos, mas o que está ao alcance da razão orientada pela fé, porque quando ela se aventura no mundo interior, movimenta-se sobre uma verticalidade abissal. A interioridade não é um pequeno mundo firmado das intimidades do ser humano, é um universo infinito. Trata-se do Reino secreto da alma, Divino tenebroso, Abismo oculto. É o absoluto ponto de gravidade do qual o ser humano não pode evitar a queda, porque porta em si uma inclinação eterna, ou seja, um influxo para a sua origem eterna. Trata-se então de uma transcendência interior em contraponto com a transcendência estratosférica da tradição clássica. Nessa extrema imanência, a alma encontra a Deus e a si mesma. Sem isto, não existe vida espiritual. Nesse empenho na existência vertical, o ser humano ultrapassa-se infinitamente.

Este conhecimento é velado de ponta a ponta. As faculdades mentais não podem alcançar este fundo. Este escopo que se apresenta no fundo não tem imagem que a representa, não tem forma, não tem uma modalidade determinada, não se distingue aqui e ali. É um abismo insondável em suspensão em si mesmo. É a paisagem infinita da alma. Por isso, é o bem acima de qualquer outro. Nele, como no gesto mais corriqueiro do mundo, pode-se jogar em queda livre para o centro gravitacional da existência. Onde se poderá cair? Nem no vazio, nem no nada, nem no absurdo. Cai-se além de si mesmo, cai-se em Deus. Isto é possível porque Deus saltou primeiro na direção absurda da vida humana e agora se pode fazer o caminho de volta na fé absurda. Simplesmente desce. Deus está na verticalidade humana. Ultrapassa as distâncias interiores e entrega-te à verdade profunda e a misteriosa presença te acolhe. Deus atravessa a infinita distância e te encontra. Trata-se de um natural distanciamento de uma entrega radical às forças fenomênicas e de assumir as forças centrípetas da interioridade extrema: o ágape e a quenose. Mistério que decorre de uma concentração, mas que não depende do esforço da mente para se manifestar. Decorre de uma concentração ativamente passiva. Uma concentração que não é insistência, mas disponível acolhida no mistério. Esta queda passa pelas grandes profundidades da interioridade. A mente se desloca de alguma forma para além de seus poderes, de seu pensamento, de toda distinção possível. Neste lugar sagrado, o ser humano se vê no seu próprio mistério que coincide com a pura luz: a vida interior, a iluminação.

A lógica da diferença é naturalmente dialética. Como se trata de uma condição intrínseca ao ser humano, pode-se dizer que antes da dialética ser a lei da razão, ela é a lei da Aliança: em Deus, o ser humano é constrangido a ser cada vez mais do que ele é hoje. Por isso, não pode ser escravo dos produtos do pensamento: sejam os conceitos ou os produtos de qualquer tipo. A Aliança ajuda a ver que o essencial aparece na passagem. Ela não está na insistência sobre o pleno, existe na abertura sobre o Mistério, isto é, a verdade do ser humano existe antes dele e se constitui de ruptura e abertura. A força originária da dialética, antes de qualquer vinculação lógico-explicativa, é fundadora da nova humanidade: o movimento do ser humano na vida de Deus que sempre se ultrapassa.

A dialética, como o logos que atravessa a vida humana, é uma realidade onipresente que leva ao ultrapassamento do ser humano pelo ser humano. Para ela ocorrer, é preciso que se negue qualquer acabamento derradeiro porque nada que seja novo pode surgir onde as coisas estão postas como definitivas. A novidade só pode surgir na vida aberta sobre o sagrado mistério da vida: Deus. Não se ultrapassa uma posição sem oposição. Posição e oposição fazem surgir a novidade que se abre a uma nova oposição. Uma coisa está viva na medida em que contém em si a contradição e onde ela é a força de preservação da contradição. Trata-se do protesto permanente: negação e negação da negação ao infinito. A negação é um ato espiritual. A dinâmica da dialética implica que o ser humano não tem a última palavra sobre ele mesmo porque em seu pensamento haverá sempre cravado um por quê que exige ultrapassamento. O ser humano é palavra aberta, é símbolo de Deus, é a sua metade que emergiu do abismo insondável.

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    Mme Marie-Anne VANNIER, Dr en Philosophie et Théologie (HDR) Professeure à l’Université de Metz; Mr Francis RAPP, Membre de l’Institut; M. Yves MEESSEN, Dipl. D’architecture, Dr en Philosophie, Enseignant à l’Université de Metz; M. Jean DEVRIENDT, Dr en théologie, enseignant à Strasbourg, chercheur associé à l’Université Paul Verlaine, Metz; Mme. Isabelle RAVIOLO, Dr en Théologie, Enseignante à Paris; M. Maxime MAURIÈGE Dr en philosophie et Théologie, Thomas Institut, Koeln, Allemagne; M. Jean REAIDY, Dr en Philosophie et en Théologie, Enseignant à Université de Kaslik, Liban; Mme Monique GRUBER Docteur en Théologie; Fr. Rémy VALLÉJO O.P., Strasbourg; M. Benoît BEYER de RYKE, Dr en Philosophie, Université Libre de Bruxelles; M. Jean-Claude LAGARRIGUE, Dr en Philosophie, Enseignant à Strasbourg; M. Pierre GIRE, Dr en Philosophie Enseignant à la Faculté Catholique de Lyon; M. Wolfgang WACKERNAGEL, Dr en Philosophie des Universités de Genève et Munich; M. Marco VANNINI, Dr en Philosophie Enseignant chercheur, Université de Florence, Italie; M. Yannick GROSIEUX, doctorand, Univ. Paul Verlaine, Metz; M. Yannick RAULER, doctorand, Univ. Paul Verlaine, Metz. Disponível em: http://maitre.eckhart.free.fr/initium/ite.html. Acesso em: 22 jul. 2020.
  • 2
    EPMR- Équipe de Recherches sur les Mystiques Rhénans. Disponível em: http://maitre.eckhart.free.fr/index.html. Acesso em: 16 jul. 2014.
  • 3
    Publicações: disponível em: http://maitre.eckhart.free.fr/initium/ite.html. Acesso em: 23 set. 2014. Vídeos: disponível em: http://maitre.eckhart.free.fr/initium/ite.html. Acesso em: 17 out. 2014.
  • 4
    Os sermões de Tauler citados no artigo foram traduzidos para o francês por Gérard Eschbach. TAULER, Johan. Sermões (ESCHBACH, GérardESCHBACH, Gérard. Béant sur Dieu. Disponível em: http://www.gerard-eschbach.org/Tauler%20-%20LIVRE%20A5.pdf. Acesso em: 28 jul. 2020.
    http://www.gerard-eschbach.org/Tauler%20...
    ). Disponível em: http://www.gerard-eschbach.org/entree.htm. Acesso em: 28 jul. 2014. Eschbach baseou-se nas seguintes edições críticas: Ferdinand Vetter (1910), Vetter 1 (1870), Vetter 2, Vetter 3, Vetter 4, Corin 1, Corin 2, Helander (1923), Bihlmeyer (1907), Strauch (1882).
  • 5
    Johan Tauler (c. 1300 – 1361) nasceu em Estrasburgo, em 1300, e faleceu em 15 de junho, de 1361. Os seus estudos deram-se na escola monacal dos Dominicanos desta cidade na qual conheceu o Mestre Eckhart (c.1260-1327), sua referência espiritual. Prosseguiu sua carreira intelectual no colégio Dominicano de Colonha e, pode ser que tenha estudado também no renomado St James, em Paris. Após o que, retornou a Estrasburgo. De 1338 a 1339, devido ao interdito da Igreja de Estrasbourgo pelo Papa João XXII, esteve na Basileia, Suíça, e vinculou-se à fraternidade “Amigos de Deus” (Gottesfreunde), um movimento místico popular que divulgava os ensinos do Mestre Eckart. A notoriedade de Tauler veio de sua prática religiosa e de seus sermões. Conta-se que durante a peste negra, em 1348, ele permaneceu em Estrasburgo encorajando seus contemporâneos com sermões e visitas. Devido ao forte apelo à entrega radical da vida ao Espírito Santo, Tauler é admirado tanto pelos católicos quanto pelos protestantes. (Tauler, Johannes. Columbia EncyclopediaCOLUMBIA ENCYCLOPEDIA. TAULER, JOHANNES. Disponível em: http://www.answers.com/topic/tauler-johannes. Acesso em: 02 jul. 2020
    http://www.answers.com/topic/tauler-joha...
    . Disponível em: http://www.answers.com/topic/tauler-johannes. Acesso em: 02 jul. 2014. Johannes Tauler. Oxford Companion to German LiteratureOXFORD COMPANION TO GERMAN LITERATURE. JOHANNES TAULER. Disponível em: http://www.answers.com/topic/tauler-johannes. Acesso em: 02 jul. 2020.
    http://www.answers.com/topic/tauler-joha...
    . Disponível em: http://www.answers.com/topic/tauler-johannes. Acesso em: 02 jul. 2020. John Tauler. Catholic Encyclopedia New AdventCATHOLIC ENCYCLOPEDIA NEW ADVENT. John Tauler. Disponível em: http://www.newadvent.org/cathen/14465c.htm. Acesso em: 02 jul. 2020.
    http://www.newadvent.org/cathen/14465c.h...
    . Disponível em: http://www.newadvent.org/cathen/14465c.htm. Acesso em: 02 jul. 2020.
  • 6
    Todos os textos bíblicos citados no artigo foram extraídos da BÍBLIA SagradaBÍBLIA Sagrada. Antigo e Novo Testamento. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 2020.. Antigo e Novo Testamento. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 2020.
  • 7
    “Mar adentro, conduze teu barco em alto mar.”
  • 8
    Não obstante o debate filosófico relativa à metafísica tradicional e as tentativas de fixar o seu limite à matéria e à sua racionalidade mecânica e não consciente, aqui admite-se como pressuposto que para além dos entes e de suas leis, há um Deus pessoal que está na origem do que é visível e invisível e que, de acordo com a sua vontade, atua sobre esse mundo visível e invisível de acordo com o seu querer. O interesse sobre esse debate poderá ser satisfeito em Revista Estudos Filosóficos n. 8, 2017: Dossiê: A crítica à metafísica e a constituição da ontologia contemporânea. Não nos aprofundamos essa discussão devido à complexidade do debate e exigência de um número de páginas que excederia esse espaço.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    12 Ago 2020
  • Aceito
    17 Maio 2024
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