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A VOLTA À GRANDE DISCIPLINA: PROCESSOS E RESULTADOS HISTÓRICOS

The Return to the Great Discipline: Historical Processes and Results

RESUMO

A reflexão parte das constatações sobre a conjuntura eclesial elaboradas por João Batista Libanio em sua obra A volta à grande disciplina. O enquadramento dos sujeitos eclesiais da era pós-conciliar, inspirado nos padrões identitários tridentinos, constituía um projeto em andamento no início dos anos oitenta. Esse propósito tomou formas nesses quarenta anos e construiu um legado que hoje configura uma conjuntura inédita, distante de uma pretensa unidade de imaginário e de disciplina. A reflexão indica a crise do modelo de enquadramento desde a renúncia de Bento XVI e as contradições hoje enfrentadas por seu sucessor com os projetos de reforma inadiável da Igreja.

PALAVRAS-CHAVE
Conjuntura; Identidade; Igreja; Restauração; Reforma; Tradicionalismo

ABSTRACT

This reflection is based on Joao Batista Libanio’s observations about the ecclesial situation in his work The Return to Great Discipline. The framing of ecclesial subjects in the post-conciliar era, inspired by Tridentate identity patterns, was an ongoing project at the beginning of the 1980s. This purpose has taken shape over the last forty years and has built up a legacy that today configures an unprecedented situation, far removed from a supposed unity of imaginary and discipline. The reflection points to the crisis of the framework model since the resignation of Benedict XVI and the contradictions faced today by his successor with the projects of unavoidable reform of the Church.

KEYWORDS
Conjuncture; Identity; Church; Restoration; Reform; Traditionalism

Introdução

As habilidades acadêmicas de João Batista Libanio dispensam comentários e sua vasta obra fala por si. Quem o conheceu e pode escutá-lo, certamente não se esquece de sua capacidade de síntese e de análise das conjunturas sociais e eclesiais. A síntese solicitada ao final de algum evento nascia como sistematização instantânea, com coerência e precisão fotográfica. Suas análises eram estruturadas com rigor lógico, articuladas de modo coerente com os elementos empíricos e teóricos, além de comunicada de forma didática, sempre marcada pela leveza do bom humor. As análises de realidade revelavam sua capacidade ímpar de captação e comunicação das estruturas e dinâmicas constitutivas da conjuntura em questão: captava os mecanismos tendenciais e oferecia sínteses precisas capazes de satisfazer acadêmicos e agentes populares. Além da imagem de exímio comunicador e teólogo multidisciplinar que o caracterizava, Libanio se esmerava pela objetividade analítica, o que o salvava de qualquer acusação de defensor de uma posição parcial, embora seus posicionamentos fossem claros e conhecidos. Essa objetividade trazia para muitos ingredientes teóricos (lógica e sistematização), pressupostos do discernimento inaciano e, até mesmo, uma certa dose de mineiridade.

A vasta obra de João Batista Libanio revela seu amplo arco de domínios teóricos (da teologia às diversas ciências humanas), sua profundidade analítica e clareza de expressão. Representou de modo emblemático a geração de teólogos do aggiornamento conciliar que compuseram em suas metodologias elementos clássicos e modernos e, sobretudo, a leva de teólogos latino-americanos que inventaram uma nova tradição teológica, fruto da fina sintonia com a realidade social e política do continente e da articulação com os dados dessa realidade com os dados da fé.

Dentre as análises feitas por Libanio, uma registrada em forma de livro marcou os anos oitenta e consagrou sua habilidade de analista de conjuntura eclesial. O livro A volta à grande disciplina revelou de modo lúcido e sistemático a tendência eclesial/eclesiástica em curso ainda nos primeiros anos do Pontificado de João Paulo II. A primeira edição publicada pelas Edições Loyola é de 1983 e recolhe as análises que oferecia já havia alguns anos pelo Brasil afora. As análises aí oferecidas nascem, evidentemente, de observações atenta dos fatos, mas também da criatividade e da intuição dos rumos gestados na época pelas políticas do Papa e da Cúria Romana. As Igrejas da América Latina nutriram, desde então, dessas contribuições que davam ao praticado método ver-julgar-agir um caráter técnico e um nível de profundidade crítica que revelavam as contradições sociais e eclesiais então vivenciadas.

São quarenta anos de história eclesial, desde aquelas constatações críticas de Libanio. A Igreja passou por um longo período que confirmou, no fundo e na forma, o que sugeria o teólogo analista. Nos tempos atuais, pode-se dizer, vivemos os resultados tardios desse processo de retorno à grande disciplina tridentina. Os resultados desse processo configuram um novo contexto eclesial que o teólogo não viveu para ver. As reflexões que se seguem partem das constatações e sugestões de Libanio naquele contexto eclesial e expõem o que hoje deve ser entendido como fruto maduro das políticas de restauração da Igreja capitaneadas pelo pontificado Wojtyla/Ratzinger, seja na emergência de um novo Papa que rompe com o projeto restaurador em nome de um projeto reformador, seja pela sobrevivência dos restauradores de forma mais visível e militante dentro da Igreja.

1 As constatações de João Batista Libanio

Para Libanio, o objetivo de sua obra A volta à grande disciplina era esclarecer a “situação ambígua” vivida pela Igreja católica nos primeiros anos do pontificado de João Paulo II (LIBANIO, 198313 LIBANIO, J. B. A volta à grande disciplina: reflexão teológico-pastoral sobre a atual conjuntura da Igreja. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 1983., p. 11). A ambiguidade apontada pelo autor consistia, de um lado, na exigência de levar adiante as novas diretrizes do Concílio Vaticano II e, de outro lado, João Paulo II, seguindo seu antecessor – o Papa João Paulo I –, defendia a necessidade de voltar à grande disciplina da Igreja identificada com a “grande Tradição” e que se exprimia sobretudo no novo Código de Direito Canônico, promulgado em 25/01/1983.

O autor lembra que o tema da volta à grande disciplina já estava presente na primeira Radiomensagem Urge et Urge de João Paulo II: “Fidelidade significa ainda observância da grande Disciplina da Igreja... A disciplina de fato, não tende a suprimir o que é bom, mas a garantir a justa ordem própria do Corpo Místico, como a garantir e regular a fisiológica articulação entre todos os membros que o formam” (JOÃO PAULO II apud LIBANIO, 198313 LIBANIO, J. B. A volta à grande disciplina: reflexão teológico-pastoral sobre a atual conjuntura da Igreja. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 1983., p. 11). Esse texto dava o “tom” do pontificado que se iniciava: a) a fidelidade referia-se à grande disciplina insinuando que qualquer outra fidelidade deveria estar subordinada a esta; b) a grande disciplina garantiria a “justa ordem do Corpo Místico”, ou seja, a grande disciplina garante o status quo eclesiástico; c) a volta à grande disciplina constituía um propósito e um projeto a ser levado adiante pelo pontificado, depois do tempo de experiência do aggiornamento conciliar.

1.1 O contexto das análises

A obra de João Batista Libanio nasce da constatação de um contexto eclesial: o período pós-Concílio e a luta, por parte de setores conservadores da hierarquia, para garantir uma determinada interpretação do significado histórico e dos documentos conciliares. Para esse autor, o contexto é de deconstrução, construção e de reconstrução. Deconstrução da identidade tridentina, desencadeada pelo Concílio; construção de uma nova identidade a partir do Concílio, e reconstrução da identidade tridentina a partir do pontificado de João Paulo II num esforço de enquadramento das novidades do Concílio (LIBANIO, 198313 LIBANIO, J. B. A volta à grande disciplina: reflexão teológico-pastoral sobre a atual conjuntura da Igreja. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 1983.).

1.1.1 As concretizações do aggiornamento

Uma das palavras-chave do Vaticano II foi atualização (aggiornamento). O programa conciliar, apresentado por João XXIII, tinha como eixo a renovação da Igreja e a maioria dos padres conciliares se empenhou no sentido de levar adiante esse objetivo. Diante de um mundo em mudanças, o Concílio tinha por objetivo atualizar a Igreja para que ela pudesse enfrentar mais adequadamente os grandes desafios do mundo moderno. Muito antes do Concílio, já havia sinais de renovação. Para Libanio, esses sinais revelavam que, por “diversas portas”, o sujeito moderno havia entrado na Igreja católica (LIBANIO, 2005, p. 21).

Basicamente, o Concílio colocou a Igreja numa situação de diálogo com o mundo procurando interpretar as mudanças que estavam ocorrendo como “sinais dos tempos à luz do Evangelho” (Gaudium et Spes 4) e como desafios à ação da Igreja. Essa atitude de diálogo já tinha sido anunciada por João XXIII, no discurso de abertura do Concilio, em 11 de outubro de 1962, quando ele propunha uma nova posição para a Igreja católica com relação ao mundo: “agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina do que renovando condenações”.

O modelo de rejeição da modernidade, consolidado no século XIX, havia se esgotado e mostrado que a própria Igreja católica foi aquela que mais perdeu por assumir uma atitude negativa e de combate diante da modernidade. O sujeito pré-moderno contribuiu para que a Igreja católica se apresentasse ao mundo como única portadora dos bens de salvação; agora, num mundo caracterizado pelo pluralismo religioso, a instituição era questionada em sua posição exclusivista.

Na véspera do Concílio, esse é o mundo que impactava a instituição e que exigia dela uma nova compreensão de sua missão e de seu lugar e papel no mundo. Isso exigia da Igreja católica uma atualização da doutrina, da teologia e da prática pastoral.

Muitos movimentos de renovação, que desde o início da década de cinquenta do século XX, foram despontando no interior da Igreja – o movimento bíblico, o movimento litúrgico e o movimento ecumênico, entre outros – apontavam para uma nova tendência por parte da Igreja: de incorporar muitos dos aspectos da modernidade que podiam favorecer a missão da Igreja. Esses movimentos foram as portas pelas quais entrou o sujeito moderno na Igreja. O Concílio, na verdade, assumiu como suas essas mudanças que já estavam em curso e deu legitimidade às mesmas.

Com essa nova posição, o Vaticano II assumiu um novo paradigma fundado numa nova autocompreensão da natureza e da missão da Igreja. Esse paradigma rompeu com o secular paradigma tridentino e inaugurou um novo tempo na Igreja católica.

1.1.2 As experiências

O Concílio Vaticano II, por si só, já foi uma grande experiência de abertura da Igreja. Pela primeira vez na história, um concílio envolveu tantos bispos (3060 no conjunto das quatro seções), peritos, auditores e auditoras. Além disso, cabe destacar a importante participação, por convite feito por João XXIII, de lideranças de outras igrejas totalizando 168 observadores. A sua preparação demorou mais de três anos e pela primeira vez foi feita uma consulta aos bispos em preparação ao evento. O Concílio, enquanto tal, foi uma grande experiência de sinodalidade e de colegialidade episcopal. Esse fato foi decisivo para o caminho seguido e na elaboração dos documentos. Todos os documentos produzidos nas diversas comissões foram discutidos exaustivamente antes de serem aprovados pelo conjunto dos padres conciliares e tiveram como método fundamental o retorno às fontes e o diálogo com as realidades presentes (KUNG, 199910 KÜNG, H. Teologia a caminho: fundamentação para o diálogo ecumênico. São Paulo: Paulinas, 1999., p. 130-133).

Apesar da importância do evento e da grande repercussão que teve na mídia da época, a recepção das orientações conciliares não foi tranquila. Em muitos países, ainda hoje, elas encontram resistência, inclusive naqueles temas fundamentais como a noção de Igreja Povo de Deus e o diálogo com o mundo. Na Europa, onde os movimentos de renovação que prepararam o Concílio (LIBANIO, 200515 LIBANIO, J. B. Concílio Vaticano II. Em busca de uma primeira compreensão. São Paulo: Loyola, 2015.) tiveram origem, muito se avançou na reforma litúrgica, nos estudos bíblicos, no diálogo ecumênico e no diálogo inter-religioso.

Destacamos a seguir três âmbitos – entre tantos outros — onde o evento conciliar teve grande impacto na vida da Igreja católica. Esses três âmbitos são aqueles que estão relacionados mais diretamente com ações da Igreja no mundo: o movimento ecumênico, o movimento missionário e o movimento social.

Movimento ecumênico. O evento que marca o início do movimento ecumênico moderno, segundo a maior parte dos estudiosos, é o Congresso Missionário de Edimburgo, Escócia, em 1910, convocado pelas lideranças de igrejas evangélicas e anglicana. A partir daí, diversos esforços foram realizados pelas igrejas evangélicas para promover o diálogo ecumênico. Em 1948, foi o criado o Conselho Mundial de Igrejas. A Igreja católica, no entanto, só começou a participar do movimento ecumênico a partir do pontificado de João XXIII. Nessa caminhada, é preciso destacar o convite que João XXIII fez para que observadores de igrejas cristãs participassem do Concílio Vaticano II. O próprio Concílio aprovou um Decreto sobre o ecumenismo – Unitatis Redintegratio – para explicitar como a Igreja católica via o movimento e também para impulsionar o envolvimento da instituição com o movimento. Por isso, o Vaticano II é um marco do movimento ecumênico moderno e representou um grande empenho ecumênico da Igreja. Esse empenho se traduziu por uma nova posição da Igreja católica em relação às Igrejas cristãs e pela valorização do diálogo ecumênico.

Movimento missionário. Muito antes do Vaticano II, algumas iniciativas de congregações missionárias católicas já indicava a necessidade da instituição adotar outro modelo de missão. Se antes, a diretriz mais importante da atividade missionária era a conversão de pessoas que estavam fora do cristianismo e da Igreja católica, a nova concepção missionária, e que foi assumida no Concílio, foi de reconhecer que a atividade missionária é parte essencial da Igreja e deve ser realizada como testemunho nas diversas culturas onde a Igreja está inserida (“façam assomar à luz, com alegria e respeito, as sementes do Verbo neles adormecidas” (Ad Gentes 11b).

Movimento social. A expressão movimento social é utilizada aqui para referir-se às iniciativas da Igreja católica para posicionar-se frente às questões sociais. Na maior parte do período pré-Vaticano II, a Igreja católica viveu uma tensão permanente com as reivindicações da modernidade. É muito conhecida a luta dos papas do século XIX contra aquilo que se considerava como uma ameaça à instituição. Com Leão XIII e a sua primeira encíclica social (Rerum Novarum, 1891) começa a ser construída a Doutrina Social da Igreja que se constituiu no empenho da Igreja católica em dialogar com a grandes questões sociais. A Gaudium et Spes foi o documento conciliar que consolidou as mudanças que estavam se dando dentro do pensamento social da Igreja católica. Com o Concílio, a Igreja católica fez um deslocamento de uma posição de luta contra a modernidade emergente, para uma posição de compreensão e cooperação com as grandes questões sociais.

1.1.3 A recepção do Concílio na América Latina

A Igreja latino-americana foi aquela que mais recepcionou o Concílio de forma criativa, tanto do ponto de vista da ação pastoral, como do ponto de vista da teologia. Ela levou a sério as grandes diretrizes que estavam diretamente relacionadas com a nova concepção de Igreja forjada pelo Concílio.

Do ponto de vista pastoral, na América Latina duas foram as grandes respostas da Igreja católica aos novos desafios a partir do Concílio: as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e as pastorais populares, grandes marcas de uma Igreja comprometida com os pobres. Pela primeira vez na história da Igreja, os pobres deixaram de ser vistos como objetos da ação da Igreja para serem protagonistas de sua ação.

Essa opção levou a Igreja em muitos países latino-americanos a assumir uma posição profética diante das elites político-econômicas e de regimes ditatoriais implantados a partir de meados da década de sessenta do século XX. A partir daí, leigos, membros de congregações religiosas e membros do clero que assumiram a opção pelos pobres passaram a ser perseguidos. Em muitos países, o martírio tornou-se um sinal desse compromisso histórico.

Nesse contexto, a teologia da libertação, construída a partir dos desafios presentes na ação da Igreja e na realidade latino-americana de opressão, procurou sistematizar o novo modo de ser igreja no contexto de luta pela libertação e de perseguição insistindo na primazia da Palavra de Deus, na afirmação da Igreja como Povo de Deus e na centralidade do anúncio do reino de Deus. Essas três grandes intuições foram articuladas em torno de um eixo que caracterizou a Igreja da América Latina: a opção pelos pobres, que foi assumida na Conferência de Medellín, em 1968.

A teologia da libertação abandonou o paradigma clássico do fazer teológico a partir das afirmações doutrinárias e adotou um outro paradigma teológico. O novo paradigma utilizava, fundamentalmente, o método ver-julgar-agir como estratégia para construir a teologia: compreender a realidade social de opressão a partir da mediação do instrumental das ciências sociais; iluminar essa realidade social a partir da Palavra de Deus e da Tradição, e subsidiar a construção de práticas eclesiais comprometidas com os pobres e com a construção de uma nova realidade justa e solidária.

Para a teologia da libertação, só é possível fazer teologia tendo em conta a realidade histórica onde a Igreja está inserida. Ou, utilizando a linguagem do Concílio, só é possível fazer teologia analisando os sinais dos tempos. Nesse sentido, a teologia da libertação foi — e é — uma teologia fiel às intuições fundamentais do Concílio (GS 4).

Toda teologia está inserida no lugar social a partir de onde é produzida. A grande questão é que nem sempre aqueles que a produzem problematizam o lugar social a partir de onde falam. A teologia da libertação assumiu explicitamente o lugar social onde nasceu: o contexto de opressão e de luta pela libertação.

Esse modo de fazer teologia, resultado da caminhada da Igreja na América Latina, e que “empurrava” a Igreja para o compromisso com os pobres e com suas lutas, não foi bem recebida pela Santa Sé basicamente porque questionava o lugar social e os compromissos históricos que tradicionalmente a instituição havia assumido. O sujeito histórico que orientou a Igreja católica até o Vaticano II foi o sujeito pré-moderno vinculado ao modelo de Igreja-cristandade; a teologia da libertação questionava esse sujeito, e esse modelo propunha dialogar com um novo sujeito, os pobres, muito além do que o Concílio propunha, que era dialogar com o sujeito moderno.

1.1.4 O resgate de uma identidade católica perdida: uma Igreja autocentrada

Como já foi apontado aqui, logo depois do Concílio, surge, no entanto, uma luta pelo sentido (FAGGIOLI, 20136 FAGGIOLI, M. Vaticano II: a lua pelo sentido. São Paulo: Paulinas, 2013.) dos seus documentos e do seu espírito. Aqueles setores do clero católico que resistiram ao processo de renovação impulsionado pelo evento conciliar, inclusive durante o próprio evento, se organizaram para apresentar uma outra leitura do significado do Concílio. A esse respeito, Libanio faz referência a duas leituras que surgem depois do Vaticano II: uma que vai afirmar que o Vaticano II foi uma continuidade aos dois concílios anteriores – Trento e Vaticano I; e outra que vai defender que o Vaticano II rompe com a forma anterior de compreender a Igreja e suas relações com o mundo (LIBANIO, 201515 LIBANIO, J. B. Concílio Vaticano II. Em busca de uma primeira compreensão. São Paulo: Loyola, 2015., p. 9-10).

Com a eleição de João Paulo II, setores do episcopado que defendiam a leitura da continuidade chegam ao centro de poder na Igreja. Teve início na Igreja católica o que ficou conhecido como inverno eclesial, um período em que as iniciativas renovadoras do Concílio passaram a ser freadas.

Ao invés de levar às últimas consequências o maior concílio da história, tanto na duração e no número de bispos presentes, como no seu impacto sobre a Igreja em diversas partes do mundo, João Paulo II assumiu uma perspectiva que visava “enquadrar” o Concílio e a sua dinâmica renovadora dentro da grande disciplina.

Tanto a renovação pastoral desencadeada nos diversos países da América Latina a partir da opção pelos pobres, quanto a elaboração teológica latino-americana, despertaram a vigilância dos organismos da Santa Sé. Foi no pontificado de João Paulo II que essa vigilância ganhou grande expressão.

Os esforços da Santa Sé de controle sobre a Igreja latino-americana – sobre suas práticas pastorais inovadoras e sobre sua teologia – faziam parte do programa da “volta à grande disciplina”. Diante das mudanças e da insegurança por parte de setores conservadores, a Igreja católica recorre ao seu passado como tentativa de tirar dele as intuições e a forças para sobreviver com segurança no presente. Se o Concílio trouxe a insegurança da renovação, o recurso ao passado é uma tentativa de estabelecer um “porto seguro”.

Nos textos conciliares, a Igreja reconhece a organicidade entre Igreja e mundo, entre Igreja e sociedade humana. Essa organicidade exige e, ao mesmo tempo, é decorrente da atitude dialógica e colaborativa assumida pelo Concílio:

... o Concílio testemunhando e expondo a fé de todo o povo de Deus congregado por Cristo, não pode demonstrar com maior eloquência sua solidariedade, respeito e amor para com toda a família humana à qual esse povo pertence, senão estabelecendo com ela um diálogo sobre aqueles problemas, iluminando-os à luz tirada do Evangelho

(GS 3a).

A Igreja da volta à grande disciplina quer estar distante do mundo ou, no limite, se coloca numa posição de quem tem a única palavra verdadeira a ser dita. É uma Igreja autossuficiente, autorreferencial. Na identidade tridentina, a Igreja é o eixo central e o ponto de partida para a compreensão do próprio mundo. Por isso, os grandes problemas a serem enfrentados pela Igreja são apenas os problemas da própria Igreja e não os problemas do mundo onde ela está inserida como dizia a Gaudium et Spes.

2 O projeto da “grande disciplina”

O projeto da “grande disciplina” desenvolvido a partir do pontificado de João Paulo II foi inspirado no paradigma tridentino. Esse paradigma criou um “imaginário social religioso” que permeou toda a vida da Igreja católica durante quatrocentos anos e impactou a compreensão da doutrina, a produção teológica, a moral, a liturgia, a disciplina, a prática religiosa popular e a relação da instituição com o mundo.

O imaginário social tridentino era um imaginário centrado no medo e numa ideia exclusivista de salvação. Por isso, Libanio chega a afirmar que esse imaginário “atormentava o fiel com ameaças, medos da condenação eterna, (e) fazia da Igreja (católica), como instituição, nau segura de salvação.” (LIBANIO, 198413 LIBANIO, J. B. A volta à grande disciplina: reflexão teológico-pastoral sobre a atual conjuntura da Igreja. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 1983., p. 86). Desse imaginário decorria uma espiritualidade centrada no medo e tinha como contrapartida a confiança numa Igreja portadora de todos os bens de salvação para aqueles que faziam parte do seu rebanho. O próprio axioma extra ecclesiam nulla salus reforçava a mentalidade de medo e de uma Igreja exclusivista. Esse imaginário social religioso permitiu enquadrar tanto o clero como os religiosos, e o laicato em geral, estabelecendo uma identidade tridentina que deixou marcas até os dias atuais (LIBANIO, 198413 LIBANIO, J. B. A volta à grande disciplina: reflexão teológico-pastoral sobre a atual conjuntura da Igreja. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 1983., p. 75).

Para Libânio esse imaginário foi “o suporte mais importante da identidade tridentina (...) e ocupa o interior das consciências e do inconsciente dos indivíduos e da coletividade católica” (LIBANIO, 198413 LIBANIO, J. B. A volta à grande disciplina: reflexão teológico-pastoral sobre a atual conjuntura da Igreja. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 1983., p. 75) porque criou na consciência dos católicos uma disposição que permitiu a adesão a um determinado modelo de catolicismo. Para disseminar essa identidade dois setores da Igreja foram importantíssimos: o clero e o laicato.

No caso do clero, investiu-se na sua formação, sobretudo do episcopado, para torná-lo mais coeso em torno do modelo tridentino. Uma das medidas adotadas foi obrigar os bispos a criarem seminários diocesanos para a formação dos futuros padres dentro dessa identidade. O mesmo aconteceu com a formação do clero das congregações religiosas. No caso dos fiéis, o enquadramento se deu tanto através da catequese – centrada nos preceitos da Igreja e na moral católica casualística — como também através da espiritualidade fundada numa perspectiva sacramentalista. Tanto a catequese como a espiritualidade estavam sob controle rígido dos padres.

O Concílio Vaticano II rompeu com essa identidade. A nova identidade proposta pelo Concílio, apesar de ter encontrado ressonância em muitos setores do clero, dos religiosos e do laicato, encontrou resistência de uma minoria até mesmo dentro do próprio Concílio.

A deconstrução da identidade tridentina se dará nos mesmos níveis onde foi construída essa identidade: o imaginário religioso, o clero e o laicato. Tratava-se agora de deconstruir um determinado modelo de identidade baseado no medo, desenquadrar o clero e desenquadrar o laicato.

A deconstrução da identidade tridentina e a reconstrução de uma identidade “aggiornada”, levada adiante pelo Concílio, foi interpretada pelos defensores da volta à grande disciplina, logo depois do Concílio, como um risco à fé católica e não como um momento salutar para a própria sobrevivência da instituição e como uma grande oportunidade para responder às grandes inquietações humanas do seu tempo. Não se percebeu que a desestruturação da identidade tridentina permitiu uma nova compreensão da fé, não mais vinculada à Igreja como instituição, mas tendo como núcleo central a vida humana (LIBANIO, 198413 LIBANIO, J. B. A volta à grande disciplina: reflexão teológico-pastoral sobre a atual conjuntura da Igreja. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 1983., p. 110).

Se a deconstrução da identidade tridentina e a construção de uma nova identidade desencadeada pelo Vaticano II visava uma Igreja católica aberta aos novos sinais dos tempos, o programa da volta à grande disciplina – que consistiu na recuperação da identidade tridentina — é o programa de uma Igreja autocentrada, “voltada para a sacristia” e preocupada apenas com seus problemas internos. Nesse modelo, o clero tem papel central e o laicato, papel de coadjuvante.

O projeto da grande disciplina visava, em última instância, como já foi apontado neste texto, estabelecer o controle sobre a interpretação do Concílio e enquadrar as experiências pastorais que recepcionavam o Concílio.

2.1. Os pontificados João Paulo II/Bento XVI

Foi nos pontificados de João Paulo II e Bento XVI (de 1978 a 2013) que o projeto da grande disciplina foi desenvolvido ao longo de quase 35 anos. Esse tempo foi suficiente para que as estratégias desse projeto mudassem a face da Igreja. O objetivo principal era conter o avanço da renovação desencadeada a partir do Concílio Vaticano II que impulsionou novas experiências pastorais e novas perspectivas teológicas e que provocaram um deslocamento do lugar social da Igreja.

As experiências pastorais da Igreja na América Latina – as CEBs e as pastorais — foram as mais inovadoras e as que mais sofreram com as novas estratégias da Santa Sé e são exemplos para compreendermos como foram aplicadas em toda a Igreja.

Algumas dessas estratégias aplicadas na América Latina podem ser sintetizadas em quatro eixos:

- controle sobre o CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano e Caribenho), sobretudo a partir da eleição do arcebispo Alfonso López Trujillo para a presidência desse organismo, em 19791 1 Com a eleição de Trujillo, em 1979, encerrou-se um período de quinze anos de bispos identificados com a caminhada da Igreja latino-americana na esteira do Vaticano II. ;

- controle sobre as conferências do CELAM, sobretudo a partir da Conferência de Puebla, em 1979, onde a Santa Sé chegou a interferir decisivamente na condução da assembleia e fez a revisão final do texto, excluindo aquelas decisões que estavam fora dos interesses da Santa Sé;

- controle sobre o episcopado com a nomeação de bispos com perfil conservador identificados com as novas diretrizes romanas;

- controle da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé19 SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Instrução sobre alguns aspectos da “Teologia da Libertação”. Disponível em: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19840806_theology-liberation_po.html Acesso em XXXXXX.
https://www.vatican.va/roman_curia/congr...
sobre a produção da teologia da libertação, com abertura de processos e que resultaram na punição de diversos teólogos.

2.2 A revisão do Vaticano II

Para a maioria dos bispos que estiveram presentes no Concílio Vaticano II, o evento conciliar significou uma ruptura com o projeto de cristandade e propôs uma nova autocompreensão da Igreja, valorizando a compreensão das realidades históricas, o diálogo dentro da Igreja e com o mundo, e assumindo os desafios do mundo moderno como sinais dos tempos. Em síntese, para a maioria dos bispos tratava-se de atualizar a Igreja para torná-la mais fiel à sua missão. Isso significava o próprio significado da Igreja e o modo como ela entendia o mundo, levando em conta as diversas realidades onde ela estava inserida.

A partir da leitura da ruptura, assumida por essa maioria, o ponto de partida para repensar a Igreja e a sua missão tinha que ser a realidade do mundo. Por isso, para esse grupo a Igreja tinha que colocar-se no ritmo de renovação em diálogo com o mundo.

Para a minoria, o Concílio precisava reforçar as grandes afirmações dos dois últimos concílios – Trento e Vaticano I – e reiterar uma visão da Igreja baseada no dogmatismo e no exclusivismo. Para esses bispos, a Igreja era a detentora da verdade e a sua relação com o mundo tinha que ser feita a partir desse pressuposto. Só tinha sentido compreender o Vaticano II como continuidade dos concílios anteriores.

A leitura do Concílio defendida pelos defensores do projeto da volta à grande disciplina era, portanto, a leitura da continuidade. Para esse grupo, o passado da Igreja era ponto de partida para compreender a instituição e a sua missão no mundo, e a renovação da Igreja era vista como um perigo que poderia colocar em risco a sua sobrevivência.

Os defensores da volta à grande disciplina, logo após o Concílio, pretendiam apropriar-se dele e enquadrá-lo para fornecer uma outra interpretação que tinha por objetivo impedir interpretações errôneas do Concílio. Vinte anos depois do Concílio, o cardeal Ratzinger expressou muito bem o sentimento desse grupo: “é incontestável que os últimos vinte anos foram decisivamente desfavoráveis à Igreja católica. (...) Esperava-se uma nova unidade católica, e sobreveio uma divisão tal que, nas palavras de Paulo VI, passou-se da autocrítica à autodestruição” (RATZINGER apud VELASCO, 199520 VELASCO, R. A Igreja de Jesus. Processo histórico da consciência eclesial. Petrópolis: Vozes, 1996., p. 231).

Nessa afirmação, é possível reconhecer um certo pessimismo em relação às mudanças pós-conciliares. Esse pessimismo era decorrente da própria concepção de Igreja triunfalista e centrada em si mesma.

O eixo central dessa crítica estava na concepção de Igreja como Povo de Deus. O próprio cardeal Ratzinger adotou como estratégia desacreditar esse conceito com o argumento de que ele é reducionista (COMBLIN, 20025 COMBLIN, J. O povo de Deus. São Paulo: Paulus, 2002., p. 116).

Enquanto o modelo de cristandade tinha como eixo uma igreja hierárquica onde o laicato tinha um papel secundário e de objeto da ação da Igreja, o Vaticano II vai em outra direção. A própria Constituição Dogmática Lumen Gentium foi um grande exemplo dessa mudança de direção. O primeiro capítulo começa falando da Igreja como mistério e o segundo, como Povo de Deus. Somente no terceiro capítulo é que o documento vai tratar da constituição hierárquica da Igreja. Dessa forma, a Lumen Gentium significou uma mudança profunda na eclesiologia católica ao deslocar a compreensão da Igreja da estrutura hierárquica para o Povo de Deus.

A eclesiologia do Povo de Deus subverte a eclesiologia da cristandade porque coloca o povo como sujeito da vida da Igreja.

O conceito central a ser utilizado pelo projeto da volta à grande disciplina será o conceito Igreja Corpo de Cristo que fundamentará a teologia da comunhão que foi afirmada no Sínodo dos Bispos, de 1985, e que tinha como tema “XX aniversário da conclusão do Concílio Vaticano II”.

Esse sínodo foi uma tentativa de consolidar a tendência de interpretar o Concílio com os ditames da teologia da comunhão que tem como eixo central a ideia de subordinação de toda a Igreja à hierarquia eclesiástica. Comunhão aqui é entendida, portanto, como uma dinâmica vertical e não horizontal, como pressupõe a noção de Igreja Povo de Deus. Assim, a teologia da comunhão é a teologia da cristandade revisitada.

Representativas dessas duas posições – teologia do Povo de Deus e teologia da comunhão – são as afirmações de duas figuras importantes do Sínodo: Dom Aloísio Lorscheider e dom Godfried Danneels. Numa intervenção, feita por escrito, Dom Aloísio Lorscheider, que participou do Vaticano II, dizia que “a Igreja como povo de Deus é a ideia-chave da Lumen Gentium” (apud COMBLIN, 20025 COMBLIN, J. O povo de Deus. São Paulo: Paulus, 2002., p. 119). Em contraposição, expressando a teologia que prevaleceu no Sínodo, o cardeal belga Godfried Danneels afirmava no relatório final do sínodo: “a eclesiologia de comunhão é o conceito central e fundamental em todos os documentos do Concílio” (apud COMBLIN, 20025 COMBLIN, J. O povo de Deus. São Paulo: Paulus, 2002., p. 119).

2.2.1 O enquadramento dos teólogos

Para as autoridades centrais da Igreja católica, era necessário colocar limites às práticas pastorais inovadoras, mas também conter a produção teológica que nascia dessas práticas.

A Instrução sobre alguns Aspectos da “Teologia da Libertação”, publicada pela Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, em 6 de agosto de 1984, com as assinaturas do prefeito, cardeal Joseph Ratzinger, e do secretário, cardeal Alberto Bovone, foi o primeiro documento oficial que tinha por objetivo estabelecer limites para a teologia da libertação.

Esse documento condenava os principais aspectos da teologia da libertação segundo o programa da volta à grande disciplina. Na introdução do documento, logo no seu início, está presente o referencial utilizado pela Sagrada Congregação da Doutrina da Fé para avaliar a noção de libertação:

A libertação é antes de tudo e principalmente libertação da escravidão radical do pecado. (...) alguns são levados a acentuar unilateralmente a libertação das escravidões de ordem terrena e temporal, dando a impressão de relegar ao segundo plano a libertação do pecado

(SCDF, 1984, p. 1).

No ano seguinte à publicação desse documento, mesmo ano do Sínodo, o teólogo brasileiro Leonardo Boff foi punido com o “silêncio obsequioso” no qual estava proibido de ensinar e publicar. Em 1986 a punição foi suspensa.

Tanto a Instrução como a punição de Leonardo Boff foram a sinalização para toda a Igreja da estratégia de controle sobre a produção teológica. A partir daí, outros teólogos comprometidos com a produção teológica inovadora, em vários países, foram processados e punidos.

2.2.2 O apoio aos grupos conservadores

Os movimentos e grupos conservadores – Arautos do Evangelho, Comunhão e Libertação, Legionários de Cristo, Opus Dei, Renovação Carismática e outros – que já existiam ou que nasceram sob o papado de João Paulo II, foram incluídos nas estratégias de controle e utilizados para combater as experiências pastorais inovadoras, de modo direto na América Latina. Com uma espiritualidade individualista, com ênfase no dogmatismo e com a valorização da obediência à hierarquia, esses movimentos contribuíram para disseminar o projeto de volta à grande disciplina, retornando ao modelo eclesial demarcado por Trento e pelo Vaticano I. Em muitas Igrejas particulares, as opções de aggiornamento foram suplantadas por essas posturas de restauração/preservação e até mesmo a Cúria Romana incluiu em seus escalões sujeitos eclesiais (majoritariamente clérigos) alinhados a essa postura. A gestão central da Igreja foi composta explicitamente por sujeitos eclesiais conservadores que agiam na teoria e na prática para recompor o corpo eclesial em uma identidade católica segura, capaz de superar as inseguranças e ambiguidades da renovação conciliar.

2.2.3 A assimilação dos tradicionalistas

A volta à grade disciplina era, de fato, um projeto restaurador que resgatava do modelo tridentino (de êxito incontestável e de longa duração na história católica) os parâmetros capazes de superar as contradições deixadas pela renovação conciliar. Portanto, da era anterior à era conciliar seria retirada senão um modelo completo e intacto, ao menos formatos disciplinares para recompor a identidade católica. Nesse propósito, o Concílio tinha de ser interpretado não na linha de uma renovação que rompia com o passado, mas, ao contrário, na linha de uma continuidade hermenêutica com a longa tradição. No limite, essa interpretação vai mitigar as renovações conciliares até o ponto de revê-las em muitos aspectos. Têm, portanto, lançado um projeto de revisão das decisões conciliares, o que Faggioli chamou de “luta pelo sentido” (2013). Na esteira de restauração da tradição rompida, as polarizações tradicionalistas dos primeiros tempos encontram um ambiente menos hostil e favorável à tolerância de suas posturas e teses. Sob o impulso, o projeto e a moldura restauradora da tradição, os tradicionalistas recuperam pouco a pouco sua legitimidade perdida e vão sendo assimilados pela Igreja, ainda que em um processo feito de muitas contradições.

Vale esquematizar o que ocorrera na Igreja católica desde o evento conciliar em relação aos católicos que assumiram a identidade tradicionalista. De forma tipológica e didática é possível esquematizar quatro fases: a) A primeira, marcada pela oposição que culmina em uma identidade distinta da Igreja oficial, a partir do epicentro do que se denominou Fraternidade São Pio X; b) A segunda, que vem logo em seguida, configura um paralelismo de duas identidades distintas que convivem lado a lado: em torno da referida Fraternidade gravitam os grupos que rejeitam o Vaticano II e a legitimidade do próprio Papa, uma vez que o Vaticano II teria rompido com a autêntica tradição; c) A terceira fase vai configurando-se com o retorno progressivo e seletivo dos grupos até então considerados cismáticos, como no caso da retirada da excomunhão dos membros da Fraternidade São Pio X por Bento XVI em 2009, a assimilação dos rituais em latim e, no caso do Brasil, a reintegração da Diocese tradicionalista de Campos e de parte do TFP na figura dos Arautos do Evangelho.

No entanto, é fundamental observar que não se deu tão somente um movimento canônico de reconciliação entre grupos cismáticos e a Igreja oficial, mas, antes, de um movimento mais amplo de naturalização do tradicionalismo que vai sendo acolhido, praticado e oficializado dentro da Igreja católica. O tradicionalismo antes separado (canônica, política e culturalmente), mistura-se gradativamente no corpo eclesial como uma tendência assumida por movimentos, grupos e sujeitos. A restauração pretendida e empreitada pelos pontificados Wojtyla/Ratzinger criou as condições para essa integração, que hoje pode ser visualizada a olho nu. O tradicionalismo pode ser assim localizado nos seguintes tipos: a) Paralelos (os que se afirmam como os autênticos católicos, mas negam as renovações conciliares e todos os seus desdobramento e permanecem, ainda, na condição de cismáticos); b) Incluídos (as tendências e grupos com identidade tradicionalista; estão inseridos em princípio na comunhão eclesial, porém reproduzem de modo persistente e militante práticas tradicionalistas em franco confronto com os magistérios papal e local2 2 Caso emblemático do Centro Dom Bosco Cf. MARIA, K. Centro Dom Bosco; em nome de Deus. ); c) Assimilados (grupos que professam comunhão plena com a Igreja, mas reproduzem práticas e discursos anteriores às renovações conciliares e, em muitos casos, negam essas renovações como equivocadas do ponto de vista litúrgico e, sobretudo, no tocante às questões sociais3 3 Associação Clerical Pública Opus Dei, Novas comunidades e a RCC. ); d) Integrados (sujeitos eclesiais de perfil tradicionalista dissolvidos no corpo eclesial que ocupam postos eclesiais e reproduzem as mentalidades anteriores ao Vaticano II e, em muitos casos, discordam publicamente de decisões do magistério local4 4 Caso de Bispos, padres e leigos que negam a Campanha da Fraternidade e a opção pelos pobres como teses comunistas. ).

3 Crise e inflexão: de Bento a Francisco

Nenhuma instituição sai impune de uma grande crise. Entre a sucumbência e a continuidade conservadora, as reformas costumam se impor como indispensáveis para a sobrevivência dos ideais e da própria organização ameaçada. Os rumos e a profundidade das reformas podem variar conforme as possibilidades políticas de cada uma delas (os sujeitos que ocupam postos de comando), conforme as estruturas legais (mais ou menos rígidas) ou, ainda, conforme seus perfis: mais ou menos tradicionais, mais ou menos burocratizadas. A crise que se abateu sobre a Igreja Católica foi sem precedentes, ao menos desde a tomada dos Estados Pontifícios pelos revolucionários da unificação italiana. Na sociedade da informação instantânea, as crises são divulgadas e, em boa medida, construídas de forma ainda mais dramática, senão cruel. A Igreja católica foi exposta ao julgamento público, na medida em que os escândalos de abusos sexuais e de corrupção cresciam em grande escala e se tornavam pauta do dia nas mídias. O que se pode verificar é que esses escândalos seguiram um percurso de crescente publicização, desde o pontificado de João Paulo II, e atingiu um ponto máximo com Bento XVI.

No ano de 2011, Hans Küng elaborava um diagnóstico considerado por muitos mais um exagero do teólogo crítico da Cúria e do modelo de papado. O título do livro interrogava se a Igreja tinha salvação e, utilizando-se de metáforas da saúde, engatava um diagnóstico descrevendo os fatos, indicava as causas e sugeria as possíveis terapias. O diagnóstico era realista do ponto de vista do levantamento dos dados (já conhecidos publicamente), da fundamentação histórica (a edificação de um sistema romano) e da estrutura de poder clerical, (o regime papal centralizador, a misoginia, o monopólio da verdade etc.). O autor confessa que se sentiu impelido pelos fatos recentes a escrever o livro e afirma na primeira frase: “Eu preferia não ter escrito este livro” e afirma não ser agradável “submeter a minha amada Igreja a uma crítica tão contundente” (2011, p. 11). O teólogo situava a raiz de todos os problemas em um modelo autocentrado de Igreja que sob o comando da Cúria/Papa se fechava ao mundo e às renovações trazidas pelo Vaticano II. O resultado é o encolhimento assustador no continente europeu e a perda de credibilidade da instituição exposta a cada dia pelos escândalos de abusos sexuais e de corrupção. Uma testemunha ocular narrava que um prelado ao folhear o livro ironizava: Hans Küng tem salvação?

O fato é que aquelas análises contundentes eram ignoradas por razões de cegueira ou ingenuidade dos que não conseguem enxergar a nudez do rei. Para que os olhos pudessem se abrir foi necessária a renúncia do Papa mais seguro e estável e a conclusão lacônica do Cardeal de Buenos Aires durante as Congregações que antecederam o Conclave que o elegeu: a raiz de toda crise da Igreja é sua autorreferencialidade. A crise da Igreja era real e tinha causa.

3.1. A renúncia de Bento XVI e o esgotamento político de um projeto eclesial autocentrado

O projeto da grande disciplina foi conduzido pelos Papas Wojtyla e Ratzinger por três décadas e chegou a um ponto revelador (significado original do termo krisis, em grego) com este último denominado Bento, nome que retira de São Bento, o fundador da identidade europeia cristã, a inspiração de um pontificado voltado para a execução da identidade católica tradicional. Não obstante sua inegável competência intelectual, Bento XVI se refugiou no claustro seguro do Palácio Apostólico (supostamente o centro motor da Cúria Romana), nos cânones seguros da tradição (detentora da verdade cristã) e no centro estável da Barca de Pedro (detentora da própria salvação). Convicto dessas verdades e instalado no regime eclesial confortável que delas descende, o Papa Bento foi tragado pelo próprio poder curial na forma mais baixa da luta dos poderes. Por dentro e do centro da instituição eclesial viu ruir, senão suas convicções eclesiológicas, com certeza sua estabilidade eclesial fundada na tradição segura.

Não se trata apenas da inequívoca falência política de um pontificado, mas, antes de tudo, do esgotamento de um projeto eclesial edificado desde a eleição de João Paulo II. O que Libanio denominava “recentramento” e Francisco denominou “autorreferencialidade”, mostrou suas traduções institucionais, quando o Papa mais estável regido pela conservação do regime católico anunciou sua renúncia. No livro supracitado, Hans Küng havia afirmado o visível: “o colapso da política de restauração dos dois Papas” (2011, p. 30). O escândalo político que ficou conhecido como Vatleaks revelava onde o poder eclesiástico podia chegar com seu sistema curial e com a ação profana da sagrada hierarquia. As especulações sobre a renúncia do Papa Bento ainda persistem, mas um dado é certo: Bento XVI percebeu a dimensão estrutural da crise e sua impossibilidade de engatar soluções à altura. Perante uma grande crise, os sujeitos empenhados em superá-la dispõem de duas estratégias: volta a modelos do passado ou antecipação de novos modelos. No caso de Bento XVI, parece que a primeira possibilidade se encontrava em curso e revelou sua falência como projeto e regime consolidado. Restava uma saída nova para qual o idoso e conservador não dispunha de capital político suficiente (e mesmo de legitimidade) para construir uma saída eficaz. A renúncia se impunha como saída única, saída ao mesmo tempo moral (a humildade de perceber a gravidade e a incapacidade de oferecer soluções) e política (a criação de uma nova conjuntura favorável às saídas). A renúncia desmoronava uma era de restauração e abria uma inevitável reforma.

3.2 Francisco, o Papa reformador

A sequência crise-renúncia instaurava o intervalo entre o passado e o presente, entre um modelo eclesial desmoronado e a necessidade de um novo modelo capaz de garantir uma saída regeneradora para a Igreja. Desse vácuo de poder, de legitimidade e de projeto eclesial, o novo líder só poderia vir de fora do regime abalado ou falido, sendo que os líderes de dentro não tinham mais legitimidade para garantir uma ruptura necessária, única saída de restauração da legitimidade da instituição. O Papa do “fim do mundo” era o personagem político adequado. A dialética política da história segue sua lógica. Se é verdade que “tudo o que é sólido desmancha no ar” (K. Marx), também a alternância do poder revela o jogo dialético entre as tendências opostas (dos apocalípticos e dos integrados). De tempos em tempos, emergem as figuras de Papas reformadores por dentro do regime católico estável e edificado sobre uma teologia igualmente estável. A crise do projeto restaurador mostrava a falência da Igreja autorreferenciada e suas contradições em relação ao mundo contemporâneo: por um lado, isolada do ponto de vista de sua autoimagem, por outro, mundanizada pelos vícios morais do individualismo e da corrupção política e econômica.

Ao que parece, a Igreja católica ainda não havia acertado as contas com os tempos modernos, mesmo com o intenso processo do aggiornamento conciliar. Do centro da crise emergiu a solução viável que pautaria com ousadia, rapidez e lucidez a programática da reforma urgente. A estrutura velha produziu um personagem novo. O personagem tradicional (Papa) foi assumido por um personagem carismático (reformador), o sistema tradicional foi invadido por uma figura profética, a cultura conservadora hegemônica confrontou-se com uma cultura da renovação, os sujeitos clericalistas aglutinados no epicentro curial romano se defrontaram com o pastor popular. Na tipologia sugerida por Bourdieu1 BOURDIEU, P. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2003., o sacerdote investido da missão de vigilância e preservação da instituição somava-se agora com o profeta que emerge como reformador (2003, p. 60-61).

4 O resultado tardio da grande disciplina

A crise da grande disciplina que gerou Francisco não poderia trazer soluções mágicas, harmônicas e instantâneas. Ao contrário, só poderia ser encaminhada em um contexto marcado por contradições culturais (com um imaginário tridentino em confronto com o imaginário do aggiornamento), políticas (sujeitos clericalizados versus sujeitos ministeriais) e estruturais (as renovações confrontadas com as estruturas tradicionais e burocráticas). O que João Batista Libanio havia constado como conflito de dois imaginários no início dos anos oitenta, seguiu um curso histórico que revela uma dinâmica de restauração cada vez mais completa e eficaz: a crescente hegemonia da identidade católica afirmada do ponto de vista cultural (uma teologia única e oficial como sinônimo de teologia autêntica, uma liturgia cada vez mais romanizada), política (a formação clericalizada, a nomeação de bispos conservadores) e estrutural (a manutenção dos mecanismos institucionais garantidores dos poderes centralizados).5 5 As categorias cultura, política e instituição são indicadas por Manuel Castells para analisar os processos de mudança. (2015, p. 353-357).

4.1 A convivência de dois projetos = a Igreja autorreferenciada e a Igreja em saída

As tendências analisadas por Libanio têm seu antes e, evidentemente seu depois. No âmbito do Vaticano II, elas foram confrontadas e negociadas. O teólogo Massimo Faggioli (2013)6 FAGGIOLI, M. Vaticano II: a lua pelo sentido. São Paulo: Paulinas, 2013. fala de uma luta pelo sentido do Concílio estabelecida entre duas visões subjacentes: os agostinianos e os tomistas. Em termos clássicos, idealistas e realistas, ainda se confrontaram como no distante século XIII, agora, porém, com impactos diretos na consciência eclesial. O Concílio encaminhou uma negociação entre essas tendências, chegando a um resultado em que a maioria adotou o princípio e a regra do aggiornamento e uma minoria radicalizada rejeitou por completo as decisões recrudescendo-se em grupos tradicionalistas. Contudo, na era pós- conciliar a tendência tradicionalista foi sendo retomada em novas expressões e com novos sujeitos.

A conjuntura católica está demarcada por tendências diversas que podem ser tipificadas em três grandes frentes que aglutinam grupos e sujeitos e se dissolvem nas práticas eclesiais, nas práticas litúrgicas, devocionais e morais. Essas frentes não constituem meras tendências, mas se organizam em projetos eclesiais distintos, cada qual com visão própria de Igreja e de sociedade. Elas se encontram mais delimitadas e, ao mesmo tempo, mais dissolvidas no conjunto da Igreja do que as aquelas analisadas por Libanio em 1999 em Cenários de Igreja. As mídias católicas clássicas e, sobretudo, as redes sociais, se encarregaram de visibilizar os rostos, de compor sincretismos eclesiais e de definir os projetos dessas tendências. São elas: a) o aggiornamento conciliar (com todas as suas expressões locais) que afirma o espírito e a letra do Vaticano II como fonte hermenêutica, como definição de Igreja na suas relações com a sociedade, como critério de discernimento e posicionamento eclesial na sociedade; b) o pentecostalismo católico centrado na experiência religiosa individual e emocional, na compreensão da experiência religiosa como espiritualidade pura e acima da história, na experiência religiosa do extraordinário, na dispensa ou rejeição do compromisso social inerente à fé; c) o tradicionalismo presente em frentes e organizações diversas, de modo mais visível nas redes sociais virtuais, que afirmam uma perspectiva eclesial anterior ao Vaticano II, reproduzem valores, símbolos, rituais, devoções e estéticas tridentinas, se organizam em frentes mais ou menos intransigentes, algumas delas chegando a negar o próprio Concilio como os clássicos lefebvrianos.

Na conjuntura atual estruturam-se duas grandes frentes: a frente da Igreja autocentrada e da Igreja em saída (PASSOS, 201818 PASSOS, J. D. As reformas da Igreja Católica: posturas e processos de uma mudança em curso. Petrópolis: Vozes, 2018., p. 73). Os pentecostais compõem novos modelos com os tradicionalistas de modo tão ativo quanto curioso6 6 O cientista político francês Gaël Brustier propôs o conceito tradismatiques ( tradismático) para designar este modelo eclesial conservador . Cf. https://www.jean-jaures.org/publication/les-tradismatiques-a-lassaut-du-pouvoir/ . Por outro lado, ambos negociam ainda que de modo superficial e formal com a Igreja do aggiornamento retomada por Francisco, e numa postura de franca indiferença, quando não de rejeição em nome da verdadeira tradição e da verdadeira doutrina.

4.2 A grande indisciplina: as oposições tradicionalistas às reformas de Francisco

As tendências (grupos e sujeitos) se encontram instalados dentro da Igreja compondo um quadro de hibridismo eclesial, marcado por uma espécie de paralelismo legítimo entre os grupos muitas vezes antagônicos, mas sobretudo pelo antagonismo dos tradicionalistas/carismáticos e o projeto da Igreja em saída empreitado por Francisco. A grande disciplina gerou a indisciplina, não por afirmarem suas diferenças (prática inerente ao catolicismo), mas por professarem convicções e defenderem posturas antagônicas e opostas ao projeto de Francisco, a Doutrina Social da Igreja e ao próprio Concílio Vaticano II.

A Igreja vivencia de modo claro e ativo magistérios paralelos. Na fase de oposição, o tradicionalismo posicionado fora da Igreja oficial assim se declarava por definição; negava o Vaticano II como continuidade da longa tradição e, portanto, seguia sua própria tradição. Na fase atual, dissolvidos e assimilados e com a autonomia possibilitada pelas redes sociais virtuais, os magistérios dos líderes curtidos e seguidos constituem suas bolhas eclesiais autossuficientes dentro da Igreja, na medida em que seus seguidores se declaram católicos, porém reproduzem posicionamentos contra o magistério extraordinário e contra o magistério papal.

Considerações finais

A arguta análise de Libanio sobre o projeto da grande disciplina conseguiu compreender a estrutura desse projeto e o seu modus operandi. Com o seu olhar atento, esse autor fez um diagnóstico da Igreja católica no pós-Concílio e identificou uma tendência que posteriormente tornou-se realidade.

O Vaticano II abandonou o modelo de cristandade e apresentou para a Igreja um programa de reformas que ficou inconcluso em virtude do projeto da grande disciplina. Como foi mostrado neste texto, esse projeto pretendeu, basicamente, enquadrar o Concílio dentro de uma interpretação da tradição entendida como uma realidade fixa e estanque. Com isso, rejeitou-se dois elementos que são constituintes de toda e qualquer tradição: historicidade e dinamismo. Toda tradição só pode ser compreendida a partir do contexto histórico onde ela foi construída; nenhuma tradição é a-histórica e isenta de ambiguidades. Por outro lado, toda tradição tem um dinamismo que permite que ela possa ser reinterpretada, ser adaptada às diversas realidades. Toda tradição é reinterpretação, toda tradição é, em certo sentido, uma reinvenção.

A ideia subjacente ao projeto da volta à grande disciplina – e a todos os tradicionalismos – é que a tradição não tem história e, por isso, tem que ser aceita ipsis litteris e os seus intérpretes são verdadeiros arautos que devem constantemente combater todas as “ameaças” e defender a verdade.

As diversas estratégias desse projeto, aqui analisadas, visavam demonstrar que esse foi um projeto pensado e colocado em prática deliberadamente para romper com o processo renovador do Concílio. Por isso, esse projeto não tinha apenas estratégias; tinha também um modelo de Igreja a ser implantado, um imaginário social e religioso a ser disseminado e figuras consideradas exemplares e capazes para levá-lo adiante.

As constatações e análises de João Batista Libanio expostas na obra ora analisada concretizaram-se de modo eficiente nas décadas seguintes à sua publicação. O ponto máximo do projeto de restauração foi, por certo, a renúncia de Bento XVI, quando no vácuo instaurado produziu-se a necessidade de uma reforma urgente da Igreja autocentrada. Na obra Cenários de Igreja (1999), o teólogo já constatava a multiplicidade de cenários eclesiais, dentre os quais a consolidação do modelo centrado na instituição (Cap. 1) e no movimento carismático (Cap. 2), ambos de cunho conservador. De outra parte, constatava também o cenário de uma Igreja libertadora (Cap. 4), ou seja, o projeto da grande disciplina não conquistara unanimidade no conjunto da Igreja. Na coletânea organizada logo após a eleição de Francisco7 7 PASSOS, J. Décio-SOARES, Afonso L. Francisco, renasce a esperança. São Paulo: Paulinas, 2013. , instado a retomar a tese da volta à grande disciplina, Libanio constata que os pontificados Wojtyla e Ratzinger haviam, de fato, implementado o “retraimento profético e a dependência maior de Roma”, “Cerceamento à criatividade litúrgica” e “Endurecimento doutrinal e práxico” (2013). Concluía a reflexão afirmando que “a (in)disciplina libertadora permanece viva” e que a “imposição da grande disciplina (...) tem mostrado insuficiência em rachaduras na estrutura hierárquica, na atuação episcopal e clerical, no ritualismo litúrgico, na vigilância repressiva doutrinal, moral e práxica”.

O teólogo partiu para o grande encontro em 30 de janeiro de 2014. Já havia conhecido o projeto de reforma inadiável da Igreja anunciado por Francisco (Evangelii gaudium, 27), porém não teve tempo de acompanhar o processo reformador que expôs de modo claro e, muitas vezes, dramático, as posições tradicionalistas e reformadoras no conjunto da Igreja que havia prenunciado nas suas obras de análise de conjuntura eclesial. Na mesma reflexão concluía indicando os clamores presentes na Igreja:

Grita-se por participação em todos os níveis eclesiais, pela presença da mulher em instâncias de decisão, pela atuação profética no mundo episcopal e clerical, pela criatividade litúrgica popular, pela liberdade de pensar e expressar-se na teologia sistemática, moral e na práxis libertadora e, finalmente, por uma igreja que seja antes “redes de comunidades” que estrutura verticalizada

(2013, p. 57).

Para os atentos às reformas franciscanas a passagem relata, de fato, os gritos eclesiais que foram literalmente ouvidos pelo Papa e transformados em projetos durante os dez anos de pontificado. A participação dos leigos e das mulheres na Igreja, a atuação profética da Igreja, a liberdade para os teólogos e a afirmação do aspecto comunitário na vida eclesial compuseram as pautas das reformas que chegam neste momento no processo sinodal. Contudo, a grande disciplina consolidada no tradicionalismo, no clericalismo e ritualismo permanece numa luta ora aberta, ora velada contra as reformas em andamento.

  • 1
    Com a eleição de Trujillo, em 1979, encerrou-se um período de quinze anos de bispos identificados com a caminhada da Igreja latino-americana na esteira do Vaticano II.
  • 2
    Caso emblemático do Centro Dom Bosco Cf. MARIA, K. Centro Dom Bosco; em nome de Deus.
  • 3
    Associação Clerical Pública Opus Dei, Novas comunidades e a RCC.
  • 4
    Caso de Bispos, padres e leigos que negam a Campanha da Fraternidade e a opção pelos pobres como teses comunistas.
  • 5
    As categorias cultura, política e instituição são indicadas por Manuel Castells4 CASTELLS, M. O poder da comunicação. São Paulo: Paz e Terra, 2015. para analisar os processos de mudança. (2015, p. 353-357).
  • 6
    O cientista político francês Gaël Brustier2 BRUSTIER, G. Les tradismatiques a lassaut Du pouvoir. Disponível em https://www.jean-jaures.org/publication/les-tradismatiques-a-lassaut-du-pouvoir/ Acesso em XXXX.
    https://www.jean-jaures.org/publication/...
    propôs o conceito tradismatiques ( tradismático) para designar este modelo eclesial conservador . Cf. https://www.jean-jaures.org/publication/les-tradismatiques-a-lassaut-du-pouvoir/
  • 7
    PASSOS, J. Décio-SOARES, Afonso L. Francisco, renasce a esperança. São Paulo: Paulinas, 201316 PASSOS, J. Décio-SOARES, Afonso L. Francisco, renasce a esperança. São Paulo: Paulinas, 2013.

Referências bibliográficas

  • 1
    BOURDIEU, P. Economia das trocas simbólicas São Paulo: Perspectiva, 2003.
  • 2
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  • 4
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  • 14
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  • 15
    LIBANIO, J. B. Concílio Vaticano II Em busca de uma primeira compreensão. São Paulo: Loyola, 2015.
  • 16
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  • 17
    PASSOS, J. D. A força do passado na fraqueza do presente São Paulo: Paulinas, 2020.
  • 18
    PASSOS, J. D. As reformas da Igreja Católica: posturas e processos de uma mudança em curso. Petrópolis: Vozes, 2018.
  • 19
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  • 20
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    03 Dez 2023
  • Aceito
    06 Abr 2024
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