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O SIGNIFICADO ECUMÊNICO DO CONCÍLIO VATICANO II: PERSPECTIVAS PROTESTANTES EM DIÁLOGOS

RESUMO

Após séculos de fraturas, o século XX se tornou conhecido como o século do ecumenismo. A confessionalização da segunda metade do século XVI, levando à Guerra dos Trinta Anos, aprofundou o distanciamento entre as igrejas no Ocidente. Os esforços do Pietismo protestante e do Iluminismo buscaram romper com as fronteiras confessionais, mas somente a partir do século XIX, ocorrem laços ecumênicos concretos. Já no século XX, o Concílio Vaticano II fomentou novo reavivamento do ecumenismo. O objetivo deste artigo não é analisar propriamente a dimensão ecumênica do Concílio Vaticano II, mas, a partir de sua concepção eclesiológica, identificar aproximações com a eclesiologia protestante, em particular, a luterana. Iniciaremos com uma análise da concepção de Igreja pela Reforma Luterana, depois buscaremos aproximações à eclesiologia católico-romana do Vaticano II. Finalmente, colocaremos alguns teólogos católico-romanos e protestantes em diálogo, buscando identificar possibilidades ecumênicas na perspectiva da unidade na diversidade reconciliada.

PALAVRAS-CHAVE
Vaticano II; Ecumenismo; Protestantismo; Luteranismo; Diversidade

ABSTRACT

After centuries of fractures, the 20th century became known as the century of ecumenism. The confessionalization of the second half of the 16th century, leading to the Thirty Years’ War, deepened the distance between the churches in the West. The efforts of Protestant Pietism and the Enlightenment sought to break down confessional boundaries, but it wasn’t until the 19th century onwards did concrete ecumenical ties occur. In the 20th century, the Second Vatican Council represented and fostered a new revival of ecumenism. The aim of this article is not to properly analyze the ecumenical dimension of the Second Vatican Council, but, based on its ecclesiological conception, to identify similarities with Protestant ecclesiology, in particular, Lutheran ecclesiology. We will begin with an analysis of the Lutheran Reformation’s conception, to identify approximations to the Roman Catholic ecclesiology of Vatican II. Finally, we will bring some Roman Catholic and Protestant theologians into dialogue, seeking to identify ecumenical possibilities from the perspective of unity in reconciled diversity.

KEYWORDS
Vatican II; Ecumenism; Protestantism; Lutheranism; Diversity

Introdução

No início do século XVI, um monge da Ordem dos Eremitas Agostinianos, Martim Lutero, levantou sua voz como “cisne”1 1 “Cisne“ – referência que Lutero faz a si mesmo: “São João Hus disse de mim, quando escreveu na prisão da Boêmia: ‘Eles vão fritar um ganso agora – referindo-se a ele próprio – mas depois de muitos anos ouvirão um cisne cantar e este eles terão que aguentar [...].” LUTERO, apud WACHHOLZ, Wilhelm. História e Teologia da Reforma: introdução. São Leopoldo: Sinodal, 2016. p. 67. , fato que resultou no cisma da Igreja cristã ocidental. As fissuras da Igreja cristã ocidental foram potencializadas pelas tentativas de recatolização ao longo do século XVI, pelas ações militares de parte a parte e, especialmente a partir da segunda metade do século XVI, pela cultura de confessionalização (HOLZEM; KAUFMANN, 2014HOLZEM, Andreas; KAUFMANN, Thomas. A Era Confessional. In: KAUFMANN, Thomas et. al. [orgs.]. História Ecumênica da Igreja 2: da alta Idade Média até o início da Idade Moderna. São Paulo: Edições Loyola; Paulus; São Leopoldo: Sinodal, 2014. p. 356-374., p. 356-374) que, em parte, está na origem da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). A Paz de Westfália, que estabeleceu os acordos do fim da guerra, concluiu que o potencial pacificador não mais poderia ser fundamentado no direito medieval sobre heresia (HOLZEM, 2014HOLZEM, Andreas; KAUFMANN, Thomas. A Era Confessional. In: KAUFMANN, Thomas et. al. [orgs.]. História Ecumênica da Igreja 2: da alta Idade Média até o início da Idade Moderna. São Paulo: Edições Loyola; Paulus; São Leopoldo: Sinodal, 2014. p. 456-476., p. 474).

Ainda que as passagens da Ortodoxia para o Pietismo e, depois, para o Iluminismo, enfatizassem mais a pureza da práxis cristã (ortopráxia) do que da doutrina pura (ortodoxia), no âmbito protestante, somente o século XIX levou a relações ecumênicas mais sistemáticas, as quais, em meados do séc. XX, resultaram, por exemplo, na criação do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e da Federação Luterana Mundial (FLM).

Pouco depois, em espírito ecumênico, também o Concílio Vaticano II, diferentemente de concílios anteriores – em especial, o Concílio de Trento (1545-1563) e o Concílio Vaticano I (1870-1871) – evidenciaria a abertura ecumênica. O objetivo deste artigo não é analisar propriamente a dimensão ecumênica do Concílio Vaticano II, mas, a partir de sua concepção eclesiológica, buscar identificar aproximações com a eclesiologia protestante, em particular, a luterana.

1 Igreja segundo o Concílio Vaticano II

O Concílio Vaticano II pode ser considerado um movimento de aproximação à teologia protestante, em particular, à sua eclesiologia. Ao redefinir a eclesiologia, abdicando de uma perspectiva triunfalista de Igreja, ele apresenta importante aproximação à concepção protestante. Em perspectiva católico-romana, antes do referido concílio, a eclesiologia era concebida essencialmente em perspectiva jurídico-institucional, além de piramidal e hierárquica (ALTMANN, 2012b_________________. Concílio Vaticano II e a busca pelo comprometimento ecumênico. Entrevista a IHU On-Line (XII) n. 406: 29-31 (29 out. 2012b). Disponível em: https://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/4725-walter-altmann-2?gad_source=1&gclid=Cj0KCQiAsburBhCIARIsAExmsu5hLHWJfO3k5QBMQkff81Gfz6r8uCPScg0IhnoGh5N8DvCsuwWDrsoaAiQfEALw_wcB . Acesso em 5 dez. 2023.
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, p. 38).2 2 Altmann consta que, neste ponto, isto sobre pregação da Palavra e administração dos sacramentos, há estreita identidade com a Lumen gentium que afirma: “Nelas se reúnem os fiéis por meio da pregação do Evangelho de Cristo e se celebra o mistério da Ceia do Senhor.” Disso conclui Altmann que “para quem provém de uma Igreja de confissão luterana, não há como não recordar-se da definição eclesiológica clássica contida na Confissão de Augsburgo”, como veremos abaixo. ALTMANN, 2021a, p. 39. Segundo Altmann, o Vaticano II “substituiu essa concepção eclesiológica por uma que define a Igreja como ministério de Deus, antepondo o povo de Deus à hierarquia” (ALTMANN, 2016_________________. Lutero e Libertação: releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. São Leopoldo: Sinodal, 2016., p. 144).3 3 Veja também BRAKEMEIER, Gottfried. “Preservando a Unidade do Espírito no Vínculo da Paz”; um curso de ecumenismo. São Paulo: Aste, 2004, p. 49.

O tema do ecumenismo foi sendo amadurecido na Igreja Católica Romana de forma lenta e gradual; isso tem a ver com a sua consciência de ser a única Igreja de Cristo. Conforme a sua compreensão, as demais igrejas teriam se separado dela, especialmente, nos dois grandes cismas: o do século XI, no Oriente, e o do século XVI, com a Reforma Protestante. Ademais, em perspectiva prática, em função do contraste existente entre a sua estrutura unitária e hierárquica em relação à grande segmentação protestante, a Igreja Católica Romana encontrava dificuldades para se relacionar de forma ecumênica (GIBELLINI, 2002GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002., p. 489-490).

Finalmente, o Concílio Vaticano II (11 de outubro de 1962 a 8 de dezembro de 1965) representou a guinada decisiva para a reconceituação católico-romana sobre o ecumenismo. Em seus 16 documentos conciliares, em perspectiva pastoral e doutrinária, o Vaticano II passou a conceber a Igreja não mais de forma jurídico-canônica, ou seja, como sociedade estruturada de forma hierárquica, mas, com base na Sagrada Escritura, como povo de Deus a caminho e como comunhão. Contrastando com a concepção anterior, doravante a Igreja é compreendida como quenótica, isto é, que desce ao mundo. Como o definiu a constituição conciliar Gaudium et spes, Igreja que se manifesta de forma solidária com a humanidade, em meio a suas alegrias, esperanças, tristezas e dramas. Concretamente, ainda é marcante o fato de o Concílio Vaticano II ser concluído com a semana da oração universal pela unidade cristã (GIBELLINI, 2002GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002., 490; BRAKEMEIER, 2004BRAKEMEIER, Gottfried. “Preservando a Unidade do Espírito no Vínculo da Paz”: um curso de ecumenismo. São Paulo: Aste, 2004., p. 49).

O Vaticano II evidencia que a Igreja Católica Romana não mais se percebe como autossuficiente e autorreferente, mas tem sua existência derivada de Cristo e do próprio mundo, para o qual é enviada como instrumento de salvação. Para isso, entretanto, faz-se necessária a relativização, isto é, ser Igreja em relação. Em outras palavras, a partir da Palavra de Deus, toda a comunidade, do episcopado ao membro leigo, é vocacionada à responsabilidade, inclusive ao diálogo e à colaboração com outras tradições religiosas, em particular, ao serviço de solidariedade e unidade no mundo (GIBELLINI, 2002GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002., 490-491).

No que diz respeito ao ecumenismo, trata-se da eclesiologia da comunhão, expressa no decreto Unitatis redintegratio (1964)4 4 Veja Decreto Unitatis redintegratio sobre ecumenismo Disponível em: https://www.catolicoorante.com.br/docs/vaticanoii/decretos/vat-ii_decree_19641121_unitatis-redintegratio_po.html#:~:text=Decreto%20Unitatis%20Redintegratio%20%2D%20Sobre%20o%20Ecumenismo&text=1.,uma%20s%C3%B3%20e%20%C3%BAnica%20Igreja. Acesso em 27 nov. 2023. – documento que, definitivamente, formaliza a disposição ecumênica da Igreja Católica Romana (GIBELLINI, 2002GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002., 491). Segundo o mencionado decreto, há um só ecumenismo, do qual também a Igreja Católica Romana participa. Logo, esse deve estar inscrito na própria identidade e autocompreensão da Igreja. Essa concepção ecumênica exige da Igreja Católica Romana sua própria forma de conversar, de modo que, ainda que separados da plena e perfeita comunhão com a Igreja Católica, os outrora concebidos como “dissidentes” ou “hereges” passem a ser reconhecidos como pessoas irmãs em Cristo (GIBELLINI, 2002GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002., 491; ALTMANN, 2012b_________________. Concílio Vaticano II e a busca pelo comprometimento ecumênico. Entrevista a IHU On-Line (XII) n. 406: 29-31 (29 out. 2012b). Disponível em: https://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/4725-walter-altmann-2?gad_source=1&gclid=Cj0KCQiAsburBhCIARIsAExmsu5hLHWJfO3k5QBMQkff81Gfz6r8uCPScg0IhnoGh5N8DvCsuwWDrsoaAiQfEALw_wcB . Acesso em 5 dez. 2023.
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).

A constituição dogmática do Vaticano II Lumen gentium mais claramente expressou a mudança conceitual católico-romano sobre ecumenismo. Lumen gentium afirma que a Igreja de Jesus Cristo e dos apóstolos subsiste na (subsistit in) Igreja Católica. Esta concepção também apareceu no decreto Unitatis redintegratio sobre ecumenismo. A afirmação de Gibellini é muito pertinente a este respeito:

Se a Igreja de Cristo é simplesmente identificada com a Igreja Católica, como acontecia na teologia pós-tridentina, mas também na encíclica eclesiológica Mystici Corporis (1943), os cristãos não-católicos continuam excluídos da realidade da Igreja; mas, se a Igreja de Cristo subsiste na Igreja Católica, a realidade da Igreja não é afirmada de maneira exclusiva e pode ser reencontrada, se bem que de maneira incompleta e imperfeita, também fora da Igreja Católica. Além disso, se a Igreja é predominantemente descrita como a categoria de sociedade perfeita e hierarquia (societas perfecta et ierarchica), como acontecia na teologia pós-tridentina ou então com a característica de corpo místico, como acontecia na Mystici Corporis, então a questão de pertencer à Igreja se coloca nos termos de um dilema: ou se é membro da Igreja como sociedade e como corpo místico, ou não se é membro, e continuam excluídos da autocompreensão católica de Igreja os cristãos não católicos; mas se a Igreja é descrita como a categoria de comunhão, como acontece na eclesiologia da Lumen gentium, então se evita levantar a espinhosíssima questão de saber quem é membro da Igreja –, como evita fazer o Concílio Vaticano II –, e a tal autocompreensão católica se abre a possibilidade de reencontrar elementos e níveis de comunhão, e portanto de realidade de Igreja, também fora da Igreja Católica: “Observai” – escreve Y. Congar esta ideia de comunhão: [“] como ela é rica, tradicional, absolutamente bíblica e patrística. Temos um estatuto para o ecumenismo.”

(GIBELLINI, 2002GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002., 491-492).

A redefinição eclesiológica católico-romana foi acolhida no aggiornamento (atualização) latino-americano, especialmente na II Conferência Episcopal Latino-americana em Medellín, Colômbia, em 1968. Esse aggionamento se expressou na emergência das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que se caracterizaram pela vivência da fé em situações de luta e perspectivas de esperança. Trata-se de um cristianismo popular, que buscou afirmar sua existência pela esperança resistente, em busca de libertação, com sinais concretos na história (ALTMANN, 2016_________________. Lutero e Libertação: releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. São Leopoldo: Sinodal, 2016., p. 144). A inspiração para essa esperança encontrava na releitura da Bíblia sua força para a ação. Nesse aspecto, isto é, a concepção sobre a Bíblia, encontramos outro ponto de aproximação com o protestantismo.5 5 O Concílio Vaticano II deu importante passo de aproximação à compreensão da Bíblia na relação com a Igreja. Anteriormente, a compreensão católica de Escritura e Tradição distanciava o catolicismo romano do protestantismo. O catolicismo romano concebia a Tradição como fonte de revelação paralela à Escritura. Pela constituição conciliar Dei verbum, o Evangelho por inteiro passou a ser concebido como verdade salvífica e moral, ao qual Tradição e Sagrada Escritura estão subordinadas. Permaneceu, contudo, uma diferença entre católico-romanos e protestantes: enquanto para o protestantismo o sola Scriptura implica a afirmação de que nenhuma instância da Igreja é infalível, portanto, como norma normans, a Escritura é autoridade sobre o próprio magistério, na tradição teológica católico-romana, o magistério da Igreja tem atribuição de correção de releituras e interpretações bíblicas, pois ele recebeu “um carisma seguro da verdade”. ALTMANN, 2021a, p. 41-45. Na década seguinte, a Conferência de Puebla buscou dar maior organicidade às CEBs, não somente conectando-as à hierarquia da Igreja, mas, também, comprometendo o episcopado a reconhecê-las e legitimá-las (ALTMANN, 2016_________________. Lutero e Libertação: releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. São Leopoldo: Sinodal, 2016., p. 144-145; ALTMANN, 2012b_________________. Concílio Vaticano II e a busca pelo comprometimento ecumênico. Entrevista a IHU On-Line (XII) n. 406: 29-31 (29 out. 2012b). Disponível em: https://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/4725-walter-altmann-2?gad_source=1&gclid=Cj0KCQiAsburBhCIARIsAExmsu5hLHWJfO3k5QBMQkff81Gfz6r8uCPScg0IhnoGh5N8DvCsuwWDrsoaAiQfEALw_wcB . Acesso em 5 dez. 2023.
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A conversão católico-romana ao ecumenismo e ao aggiornamento evidencia uma aproximação ao conceito protestante de Ecclesia semper reformanda, segundo o qual a Igreja deve se abrir aos clamores e ser convertida em instrumento do testemunho como corpo de Cristo no mundo (GIBELLINI, 2002GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002., 491).

2 Igreja segundo a Teologia Luterana

A teologia protestante luterana é ecumênica e por excelência, a despeito de ser, não raramente, polêmica e combativa. Propomos uma análise panorâmica sobre a eclesiologia luterana, com destaque à definição de Igreja na Confissão de Augsburgo (1530). Na sequência, também de forma panorâmica, indicaremos o surgimento do movimento ecumênico protestante no século XIX, que resultou na criação do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) em meados do século XX.

2.1 Igreja em escritos confessionais luteranos

Semelhantemente ao que foi proposto no Concílio Vaticano II, já em Martim Lutero, a Igreja é definida como comunhão das pessoas que creem, portanto, congregação do povo de Deus. Em seu escrito Os Artigos de Esmalcalde, redigido inicialmente com o objetivo de ser apresentado no Concílio previsto para Mântua (posteriormente definido e realizado em Trento), em caráter polêmico, Lutero assim se manifestou sobre sua concepção de Igreja:

Não lhes concedemos que eles sejam a igreja, e de fato não a são. Tampouco estamos dispostos a ouvir o que ordenam ou proíbem sob o nome da igreja. Pois, graças a Deus, uma criança de sete anos sabe o que é a igreja, a saber, os santos crentes e “os cordeirinhos que ouvem a voz de seu pastor”. Pois assim rezam as crianças: “Creio uma santa igreja cristã”. Esta santidade não consiste em sobrepelizes, tonsuras, alvas e outras cerimônias deles, inventadas para além das Sagradas Escrituras, porém, consiste na palavra de Deus e na fé verdadeira

(LUTERO, 1997LUTERO, Martinho. Os Artigos de Esmalcalde. In: Livro de Concórdia: as confissões da Igreja Evangélica Luterana. 5ª ed. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1997. p. 305-341., p. 338).

Embora o tom do escrito seja polêmico, a concepção eclesiológica de Lutero aqui é fundamentalmente ecumênica. Lutero rejeita com veemência cerimônias e tradições como fundamentais e constitutivas à Igreja. Evidentemente, ele não rejeita que aspectos externos sejam necessários à sua governança; para o reformador, contudo, esse modelo diz respeito ao governo externo e pode ser plural. Por esse motivo, tudo que não é teologicamente fundamental para a eclesiologia pode ser passível de discussão e reforma. É necessário, portanto, distinguir entre o que diz respeito ao governo externo da Igreja e aquilo que é teologicamente fundamental em sua eclesiologia (ALTMANN, 2016_________________. Lutero e Libertação: releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. São Leopoldo: Sinodal, 2016., p. 148-149).

A concepção eclesiológica de Lutero é de forte crítica à institucionalidade. A hierarquia da Igreja fica excluída e, em seu lugar, o destaque é dado à Igreja como constituída por “cordeirinhos”, “santos crentes” e “pastor”. Igualmente, a igreja universal como instituição não é o foco de Lutero, ou seja, “de cima para baixo”, mas a Igreja a partir de suas bases, isto é, a congregação, a comunidade. Como aponta Altmann, Os Artigos de Esmalcalde surgiram 20 anos após a publicação das 95 teses de Lutero, que desencadearam propriamente a Reforma Protestante (as 95 teses de 1517). Duas décadas após aquele evento, apesar das tensões e dissenções, não se pode, a rigor, perceber um “confessionalismo denominacional” em Lutero, o que afirma a “ecumene” da Igreja como aspecto fundamental em sua teologia. Constitutivo para a Igreja são os cordeirinhos que ouvem a voz de seu pastor. Portanto, “cordeirinhos” (que ouvem) e “o pastor” (do qual procede a voz/Palavra). Por essa razão, a Palavra de Deus ocupa lugar por excelência na Igreja, em particular, na pregação da Palavra de Deus (ALTMANN, 2016_________________. Lutero e Libertação: releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. São Leopoldo: Sinodal, 2016., p. 149).

A ênfase luterana na unidade da Igreja também pode ser verificada na própria Confissão de Augsburgo (1530), redigida por Filipe Melanchthon. Em 21 de janeiro de 1530, o imperador Carlos V havia convocado uma assembleia imperial, a reunir-se, em abril daquele ano, na cidade de Augsburgo. O imperador desejava superar a desunião da Igreja, visando uma frente militar unida contra os turcos. Um concílio seria a esperança de restaurar a unidade da Igreja e, em consequência, da sociedade. Visando à assembleia imperial, o príncipe eleitor da Saxônia solicitou que teólogos de Wittenberg preparassem uma defesa das doutrinas e práticas introduzidas nas igrejas da Saxônia luterana. No final de 1529, já haviam sido formulados os Artigos de Schwabach, que versavam sobre fé e doutrina. Faltava, contudo, um posicionamento sobre as práticas novas introduzidas nas igrejas da Saxônia. E, com este intuito, a saber, de apresentar práticas introduzidas na Saxônia e de abusos que foram corrigidos, surgiram os Artigos de Torgau. Os Artigos de Schwabach originariam a primeira parte da Confissão de Augsburgo (artigos 1 a 21) e os Artigos de Torgau, a segunda (artigos 22 a 28). O texto completo da Confissão foi lido a 25 de junho de 1530, na assembleia imperial. Destaque especial merece ser dado ao fato de que os protestantes consideraram desejável enfatizar mais os pontos em comum do que suas divergências com Roma (CONFISSÃO DE AUGSBURGO, 2021CONFISSÃO DE AUGSBURGO. In: Livro de Concórdia: as confissões da Igreja Evangélica Luterana. Porto Alegre: Concórdia; São Leopoldo: Sinodal, 2021. p. 37-143., p. 39; GASSMANN; HENDRIX, 2002GASSMANN, Günther; HENDRIX, Scott. As Confissões Luteranas. Introdução. São Leopoldo: EST/Sinodal, 2002., p. 43). Até por isso, o tom adotado na redação do documento foi mais ecumênico e conciliador; até porque, como Gassmann e Hendrix a caracterizaram, a Confissão de Augsburgo “é [sobretudo] uma confissão cristã e não meramente uma confissão luterana” (GASSMANN; HENDRIX, 2002GASSMANN, Günther; HENDRIX, Scott. As Confissões Luteranas. Introdução. São Leopoldo: EST/Sinodal, 2002., p. 43-44).6 6 Ainda que constem na segunda parte os artigos sobre divergências com a Igreja Romana, cabe ressaltar que se buscou evitar as controvérsias, o que se pode verificar no fato de ficar excluída da Confissão de Augsburgo a polêmica contra o papa. A polêmica com o papa somente é retomada nos Artigos de Esmalcalde, de 1537. GASSMANN; HENDRIX, 2000, p. 44.

Segundo Seibert, em relação ao romanismo, “a Confissão foi pacifista em vez de polêmica. Ela foi ecumênica e não sectária. Ela foi escriturística e não escolástica, e mais popular que acadêmica” (SEIBERT, 2000SEIBERT, Erní Walter. Introdução às Confissões Luteranas: sua atualidade e relevância. Porto Alegre: Concórdia, 2000., p. 14). Diferente é o tom da Apologia da Confissão de Augsburgo, surgida, em várias versões, após a assembleia imperial. Naquele momento, a situação havia se alterado para o protestantismo. Em Augsburgo, o luteranismo fora considerado “derrotado”7 7 Em 3 de agosto de 1530, foi apresentada aos protestantes a Confutatio, isto é, uma confutação à Confissão de Augsburgo. Concomitantemente, o imperador também exigiu que a Confutatio fosse aceita pelos protestantes. Estes, contudo, não a aceitaram e prometeram uma refutação à Confutatio, do que surgiu a Apologia da Confissão de Augsburgo, apresentada à assembleia, numa primeira versão, em 22 de setembro de 1530, recusada pelo imperador. GASSMANN; HENDRIX, 2000, p. 44. . Também a Apologia, portanto, teria de refletir este novo cenário. “Nem o imperador nem o papa a acatariam. Ela defende o luteranismo e não é tão ecumênica. É mais acadêmica que popular. [...] Ela é polêmica em relação a Roma” (SEIBERT, 2000SEIBERT, Erní Walter. Introdução às Confissões Luteranas: sua atualidade e relevância. Porto Alegre: Concórdia, 2000., p. 14). A ênfase na unidade pode ser percebida no Prefácio, escrito por Gregor Brück, chanceler do Eleitorado da Saxônia:

[...] e para examinar, ademais, as dissensões atinentes a nossa santa religião e fé cristã, para que, neste assunto da religião, as opiniões e sentenças possam ser ouvidas, entendidas e ponderadas pelas partes presentes com mútua caridade, brandura e mansidão, para que, posto de lado e corrigido o que tem sido tratado e entendido incorretamente nos escritos de ambas as partes, essas coisas possam ser conciliadas e reduzidas a uma só verdade simples e à concórdia cristã, de modo que de resto seja praticada e mantida por nós uma só religião pura e verdadeira e, do mesmo modo que estamos e militamos sob um mesmo Cristo, possamos também viver em unidade e concórdia na única igreja cristã [...]

[...] colocamo-nos à disposição com toda submissão [...], para dialogar com eles e seus amigos sobre vias cômodas e tranquilas, buscando o entendimento, na medida em que isso puder ser feito com equidade, para que o modelo e os desejos trazidos por escrito pelas duas partes possam ser tratados com ‘cordialidade e amabilidade” e, visto que “todos nós estamos e militamos sob um só Cristo” e devemos confessar a Cristo, as dissensões possam ser conduzidas a uma única religião verdadeira [...].

(CONFISSÃO DE AUGSBURGO, 2021CONFISSÃO DE AUGSBURGO. In: Livro de Concórdia: as confissões da Igreja Evangélica Luterana. Porto Alegre: Concórdia; São Leopoldo: Sinodal, 2021. p. 37-143., p. 41-42).

Os artigos VII (Da Igreja) e VIII (Que é Igreja) da Confissão de Augsburgo apresentam a eclesiologia luterana. A Igreja é congregação de pessoas crentes (congregatio sanctorum – congregação dos santos8 8 Conforme compreensão luterana, “santos” não são pessoas de qualidade moral superior, tampouco se referem aos sacramentos, mas são as pessoas que creem em Cristo. ). Apesar da insistência luterana de que a verdadeira igreja é invisível – somente Deus a conhece -, não significa que ela seja uma comunidade platônica. Pelo contrário, ela é uma Versammlung (assembleia), portanto, não se trata de uma grandeza espiritualizada. Ela inclusive tem marcas reconhecíveis: Onde “[...] o evangelho é pregado puramente e os santos sacramentos são administrados de acordo com esse evangelho” (CONFISSÃO DE AUGSBURGO, 2021CONFISSÃO DE AUGSBURGO. In: Livro de Concórdia: as confissões da Igreja Evangélica Luterana. Porto Alegre: Concórdia; São Leopoldo: Sinodal, 2021. p. 37-143., p. 52). A pregação do evangelho pressupõe uma assembleia e esta, por sua vez, é igreja, onde se prega o evangelho e são administrados os sacramentos. E as marcas da igreja permitem examinar se em lugar determinado há ou não igreja verdadeira (SEIBERT, 2000SEIBERT, Erní Walter. Introdução às Confissões Luteranas: sua atualidade e relevância. Porto Alegre: Concórdia, 2000., p. 49).

O artigo VII da CA também trata da unidade da igreja. Ante a suspeita cismática do movimento protestante, a doutrina da justificação por graça mediante a fé fundamenta a unidade da igreja. Concretamente, a unidade da igreja repousa no evangelho e no sacramento. É desejável que haja uniformidade na igreja, mas a uniformidade não é fundamental. Por isso, ordenações humanas (tratadas no artigo XV da CA) não podem ocupar nem substituir o evangelho (SEIBERT, 2000SEIBERT, Erní Walter. Introdução às Confissões Luteranas: sua atualidade e relevância. Porto Alegre: Concórdia, 2000., p. 50).

2.2 Protestantismo e Ecumenismo

O século XX se tornou conhecido como o século do ecumenismo. Os inícios desse movimento ecumênico precisam ser localizados no século anterior. Já em 1805, o missionário batista britânico na Índia William Carey criou uma “ ’associação geral de todas as denominações cristãs existentes nas quatro partes do mundo.’ ” (CAREY, apud GIBELLINI, 2002GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002.. p. 487).9 9 Veja também HERMELINK, Jan. As Igrejas no Mundo; um estudo das Confissões Cristãs. São Leopoldo: Sinodal, 1981. p. 131. O contexto desse ecumenismo é o das sociedades missionárias protestantes, cujas ações colocavam o imperativo da ecumene. Ademais, há de se considerar que as fronteiras confessionalistas já vinham sendo relativizadas desde o Pietismo e, especialmente, no Iluminismo, os quais pleiteavam por uma religião menos dogmática ou ortodoxa. Especialmente a partir de 1852, momento em que as igrejas perceberam ser necessário articular melhor as missões na Ásia e África, a consciência ecumênica cresceu. A partir de encontros periódicos, finalmente, em 1910, ocorreria a Conferência Mundial Missionária de Edimburgo, na Escócia, considerada o nascedouro do ecumenismo moderno formal. As jovens igrejas missionadas haviam colocado o desafio ecumênico às igrejas que protagonizavam a ação missionária:

Fostes vós que nos enviastes os missionários que nos fizeram conhecer Jesus Cristo: não podemos fazer outra coisa, senão agradecer-vos. Mas vós nos trouxestes também vossas diferenças e divisões [...]. Nós vos pedimos que pregueis o Evangelho e deixeis a Cristo Senhor o encargo de suscitar, ele próprio, no meio de nossos povos, sob a solicitação de seu santo Espírito, a Igreja conforme sua exigência, que será a Igreja de Cristo [...] libertada finalmente de todos os “ismos” com que classificastes a pregação do Evangelho no meio de nós

(Apud, GIBELLINI, 2002GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002., p. 488).

Como resultado dessa conferência, constituiu-se o Conselho Missionário Internacional. A seguir, no século XX, em meio aos crescentes nacionalismos que fraturavam a Europa, o movimento ecumênico veio a testemunhar o caminho da conciliação. De duas comissões anteriores, Vida e Ação, inspirada pelo arcebispo luterano sueco Nathan Söderblom e constituída em Estocolmo, Suécia, em 1925, e Fé e Constituição, criada pelo bispo episcopal estadunidense Charles Brent que atuou nas Filipinas, e constituída em Lausana, na Suíça, em 1927, surgia, em 1948, em Amsterdam, Holanda, o Conselho Mundial de Igrejas (CMI). (GIBELLINI, 2002GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002., p. 488-489; HERMELINK, 1981HERMELINK, Jan. As Igrejas no Mundo. São Leopoldo: Sinodal, 1981., p. 131-140; BRAKEMEIER, 2004BRAKEMEIER, Gottfried. “Preservando a Unidade do Espírito no Vínculo da Paz”: um curso de ecumenismo. São Paulo: Aste, 2004., p. 31-37; ALTMANN, 2012b_________________. Concílio Vaticano II e a busca pelo comprometimento ecumênico. Entrevista a IHU On-Line (XII) n. 406: 29-31 (29 out. 2012b). Disponível em: https://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/4725-walter-altmann-2?gad_source=1&gclid=Cj0KCQiAsburBhCIARIsAExmsu5hLHWJfO3k5QBMQkff81Gfz6r8uCPScg0IhnoGh5N8DvCsuwWDrsoaAiQfEALw_wcB . Acesso em 5 dez. 2023.
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).

O CMI não se propôs a ser uma “superigreja”, mas um espaço para que as mesmas pudessem ter convivência vivificante. O CMI pretendeu ser, desde seu início, um espaço institucionalizado de igrejas que reconhecem Jesus Cristo como Senhor e Salvador. Em conjunto, no âmbito do CMI, essas igrejas pretendem realizar sua vocação para honra e glória do trino Deus. A partir da década de 1970, o CMI passou a enfatizar ainda mais sua missão a serviço da unidade da humanidade, de forma a reconhecer as diversidades de forma positiva para a comunhão das igrejas (GIBELLINI, 2002GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002., 489; HERMELINK, 1981HERMELINK, Jan. As Igrejas no Mundo. São Leopoldo: Sinodal, 1981., p. 141).

3 Ecumenismo como Diversidade Reconciliada

Os impactos do Concílio Vaticano II transcenderam as fronteiras confessionais católico-romanas e fomentaram um ecumenismo na perspectiva da diversidade reconciliada. Nessa perspectiva, analisaremos o pensamento de alguns teólogos, evidenciando a busca da reconciliação que não se balize pela uniformização, mas preserve a diversidade como riqueza e vocação. Entre os teólogos que fomentaram o ecumenismo nessa perspectiva estão os católico-romanos Yves Congar, Heinrich Fries e Karl Rahner e os protestantes Oscar Culmann, Gunther Wenz, Ernesto Theóphilo Schlieper e Harding Meyer.

Para Yves Congar, de início, duas alternativas precisam ser excluídas para o ecumenismo: exigência do retorno de igrejas cristãs não-católicas à Igreja Católica Romana e a postergação da unidade cristã como realização escatológica futura, isto é, como milagre a ser concretizado por Deus no Reino futuro. Segundo o autor, a unidade cristã é tarefa presente para todas as igrejas. A questão, para Congar, é como articular comunhão em meio à diversidade. O modelo ecumênico, segundo ele, deve constituir-se como “unidade de fé e unidade/diversidade de suas formulações” (CONGAR, apud, GIBELLINI, 2002GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002., p. 493). Nessa conceituação, diversidade e pluralidade não podem ser abolidas da catolicidade; pelo contrário, são importantes contribuições a ela. Para Congar, assim como também verificaremos em Wenz,

Trata-se de pensá-los (os dogmas) [de cada igreja] e de vivê-los levando em conta o conhecimento que adquirimos a respeito do condicionamento histórico, cultural e sociológico da determinação em questão, das necessidades atuais da causa do Evangelho, que queremos servir, dos valores adquiridos depois da primeira recepção, enfim, das críticas e das contribuições válidas recebidas dos outros

(CONGAR, apud, GIBELLINI, 2002GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002., p. 494).

Dessa forma, é necessário historicizar o próprio surgimento da tradição; escritos dogmáticos fundamentais, inclusive, de forma que dissensos e contraposições do passado sejam relativizados, buscando-se pelas questões essenciais e decisivas de cada uma das tradições confessionais cristãs, tendo em vista as tarefas missionárias comuns (GIBELLINI, 2002GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002., p. 494).

Também visando a uma inter-relação entre unidade e diversidade, os dois teólogos católicos alemães Heinrich Fries e Karl Rahner defendem o ecumenismo como assunto de vida ou morte para o cristianismo. Para eles, atualmente, não é uma ou outra igreja cristã que se encontra sob a ameaça de morte, mas toda a fé cristã. Ante essa realidade, eles propõem uma “tolerância gnosiológica existentiva”, ou seja, que não diz somente respeito a questões práticas de cada igreja particular, mas inclui a abstenção de juízo em questões controversas; em particular, antigas polêmicas e estigmas doutrinários, alimentados até a atualidade. As estigmatizações e contraestigmatizações históricas deveriam perder sua força e, em seu lugar, a diversidade reconciliada, como expressão de patrimônio comum, deveria ocupar um lugar central. Isso implica que o discurso “anti” cederia lugar para a diversidade e a pluralidade. Segundo os dois teólogos católicos, a estrutura da Igreja não seria afetada, mas passaria a se apresentar como comunhão de igrejas particulares. Nessa concepção de diversidade reconciliada, qualquer tentativa de capitulação de outra igreja fica excluída, pois, ao invés de divisão, a diversidade passa a ser concebida como força da cristandade (GIBELLINI, 2002GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002., p. 495-496).

O teólogo protestante Oscar Culmann, observador no Concílio Vaticano II, funda sua concepção ecumênica no escrito neotestamentário, em particular, na compreensão de Paulo sobre os dons (1Cor. 12,4-31). A partir disso, Culmann afirma que

[...] toda confissão cristã possui um dom inextinguível do Espírito, um carisma que ela tem o dever de conservar, purificar e aprofundar; um dom, portanto, que ela não deve esvaziar de sua substância por desejo de uniformidade

(CULMANN, apud GIBELLINI, 2002GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002., p. 496).

Para ele, o objetivo do ecumenismo não deve ser a uniformidade, mas a unidade na diversidade. “A una sancta não é a uniformitas sancta”. Portanto, a unidade não implica a fusão de igrejas, mas a sua coexistência como federação, como comunhão de igrejas. Por isso, também não se deveria afirmar “unidade apesar da diversidade, mas sim unidade na e por meio da diversidade” (CULMANN, apud GIBELLINI, 2002GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002., p. 496). De uma separação hostil se passaria a uma coexistência e convivência pacífica, que busca superar estigmas e dissensos, afirmando a diversidade de dons a serviço do corpo de Cristo, a Igreja. O valor positivo da diversidade foi caracterizado por Edmund Schlink como “revolução copernicana”. Segundo ele, no centro, não estariam as igrejas, em suas relações ecumênicas mútuas, mas Jesus Cristo, o “sol”; o centro em torno do qual tudo se move e do qual vem a luz. Nessa perspectiva, Culmann também concebia que o CMI, reestruturado, poderia abrigar a própria Igreja Católica Romana, o que até hoje, diga-se, não se concretizou. Segundo Gibellini, se a concepção de Fries e Rahner se caracteriza como “uma etapa intermediária para o modelo de unidade orgânica”, a concepção de Culmann se apresenta como estágio definitivo para a concretização da comunhão da cristandade face a sua missão no mundo (GIBELLINI, 2002GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002., p. 497).

Gunther Wenz, teólogo luterano bávaro, a exemplo de Culmann, também recorre a Edmund Schlink, segundo o qual:

O consensus nunca deve ser motivo e conteúdo da confissão cristã ao lado da palavra de Deus (...). O consensus cristão encontra-se sob a Palavra, só pode entrar em cogitação na medida em que ele é concordância na interpretação correta da Escritura. Abstraindo disso, a voz da unanimidade é voz do tentador

(SCHLINK, apud WENZ, 2004WENZ, Gunther. Evangelho e escritos confessionais: a hermenêutica das confissões do luteranismo. In: WACHHOLZ, Wilhelm (org.). Evangelho, Bíblia e Escritos Confessionais: anais do II Simpósio sobre Identidade Evangélico-Luterana. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia, 2004. p. 48-65., p. 64).

Citando Sparn, Wenz, ao analisar os escritos confessionais luteranos, semelhantemente ao católico Congar, afirma que

[…] o significado normativo do conteúdo cognitivo das confissões tradicionais [e, aqui, entendemos que a afirmação pode ser estendida também para a teologia de Lutero como um todo] não pode ser reivindicado de maneira absoluta, mas sempre só de maneira relativa ao consenso concreto que deu a esse seu conteúdo cognitivo seu significado, a saber, seu significado historicamente determinado

(SPARN, apud WENZ, 2004WENZ, Gunther. Evangelho e escritos confessionais: a hermenêutica das confissões do luteranismo. In: WACHHOLZ, Wilhelm (org.). Evangelho, Bíblia e Escritos Confessionais: anais do II Simpósio sobre Identidade Evangélico-Luterana. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia, 2004. p. 48-65., p. 61).

Evidentemente, esse princípio hermenêutico se aplica igualmente à interpretação no tempo atual da teologia de Lutero, o que implica num círculo hermenêutico. A dinâmica da hermenêutica circular leva Wenz a afirmar que

[...] teologicamente não se pode pretender subtrair, em princípio e definitivamente, enunciados confessionais à discutibilidade histórica e dotá-los de aura de infalibilidade. O caráter vinculativo de seu conteúdo nunca pode ser mantido e garantido de modo autoritativo-administrativo, mas sempre só de maneira argumentativa

(WENZ, 2004WENZ, Gunther. Evangelho e escritos confessionais: a hermenêutica das confissões do luteranismo. In: WACHHOLZ, Wilhelm (org.). Evangelho, Bíblia e Escritos Confessionais: anais do II Simpósio sobre Identidade Evangélico-Luterana. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia, 2004. p. 48-65., p. 61).

Essa perspectiva hermenêutica da teologia de Lutero (e luterana) requer, primeiramente, uma interpretação dos escritos de Lutero em caráter historicamente vinculativo. Esse princípio vale ainda mais para Lutero – se comparado a Calvino, por exemplo – pelo fato de Lutero, em seus escritos, geralmente ter alvo histórico claro/específico (um contexto, uma pessoa ou grupo, instituição, autoridade etc.).

Wenz, semelhantemente ao que afirma a Lumen gentium – onde a Igreja é descrita como a categoria de comunhão – não concebe o ecumenismo como elemento à parte da Igreja, mas intrínseco e constitutivo da mesma. Segundo Wenz,

[...] a ecumenicidade, conforme testemunho bíblico acerca da essência da igreja, não representa um acessório eclesiológico, mas faz parte constitutiva do ser-igreja da igreja. Todo autoentendimento eclesiástico-confessional haverá de levar essa percepção em conta, se quiser estar em conformidade com a Escritura. Por isso, uma teologia dos escritos confessionais da igreja evangélica luterana não poderá deixar de demonstrar que uma igreja que pretende ser tida como evangélica luterana tem, segundo a definição de sua essência, um direcionamento ecumênico. O êxito dessa demonstração decide sobre nada menos do que a validade eclesiológica da reivindicação eclesiástica da confissão evangélica luterana. A demonstração pode ser considerada exitosa quando se puder evidenciar que o direcionamento ecumênico da igreja evangélica luterana é exigido pela própria confessionalidade com base em seus escritos confessionais

(WENZ, 2004WENZ, Gunther. Evangelho e escritos confessionais: a hermenêutica das confissões do luteranismo. In: WACHHOLZ, Wilhelm (org.). Evangelho, Bíblia e Escritos Confessionais: anais do II Simpósio sobre Identidade Evangélico-Luterana. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia, 2004. p. 48-65., p. 54-55).

Ainda segundo Wenz:

A comunidade do Espírito do Crucificado ressurreto a qual se manifesta na igreja pode, sob tais pressupostos, ser descrita como um nexo social diferenciado para a história universal, que, numa associação indissolúvel de processos de formação cunhados pela tradição e configurações individuais de sentido, se reproduz unicamente através do meio de atos linguísticos (palavra) e atos simbólicos (sacramento) orientados pelo entendimento, nos quais Jesus Cristo prometeu presentificar-se no poder do Espírito. Neste caso, a consciência da individualidade insubstituível, porque indivisível e induplicável, que é peculiar da consciência moral do indivíduo diante de Deus, está inteiramente em conformidade com o reconhecimento de uma pluralidade de sujeitos que é irredutível e, em princípio, insuspendível. Por isso, a pluralidade não deve ser, de saída, colocada sob suspeição porque seria um dado inadequado à verdade nem ser equiparada à arbitrariedade, pois o Espírito de Jesus Cristo cria uma unidade enquanto diversos, porque a diversidade, sem jamais ser suspensa, perdeu seu elemento causador de divisão. Onde esse espírito comunitário estiver vivo, aí aconteceu igreja em consonância com o evangelho e o reino de Deus não está longe

(WENZ, 2004WENZ, Gunther. Evangelho e escritos confessionais: a hermenêutica das confissões do luteranismo. In: WACHHOLZ, Wilhelm (org.). Evangelho, Bíblia e Escritos Confessionais: anais do II Simpósio sobre Identidade Evangélico-Luterana. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia, 2004. p. 48-65., p. 64).

Finalmente, ainda citamos o pensamento de duas lideranças, ligadas à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB): Ernesto Theóphilo Schlieper e Harding Meyer.

Ernesto Theóphilo Schlieper (1909-1969) atuou como pastor luterano, presidente e vice-presidente sinodal e da própria Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (ECLB), além de ter sido professor de Teologia Prática. Ainda pôde vivenciar o Concílio Vaticano II que, para ele, além de introduzir reformas fundamentais, inaugurou “um novo espírito de fraternidade.” Schlieper verifica que a Igreja Católica Romana, em seu decreto sobre ecumenismo, não concebe mais as outras igrejas como “seitas”, mas como “igrejas ou comunhões eclesiais”. Destaca a compreensão católico-romana de Igreja não mais como “satisfeita consigo mesmo e seu estado atual”, mas como estando “no caminho de sua peregrinação é chamada por Cristo para a Reforma contínua.” Destaca, ainda, que essa nova compreensão eclesiológica também impacta a estrutura eclesiástica, de forma que, ao lado do “centralismo”, encontra-se, também, o “coleguismo” e, no lugar da “uniformização”, a “variedade” é enfatizada. Schlieper destaca especialmente a fala do papa João XXIII, na abertura do Concílio:

Também dos pecados contra a unidade vale o testemunho de S. João (I João 1,10): ‘Se dissermos que não temos cometido pecado, fazemo-lo mentiroso e a sua palavra não está em nós.’ Humildemente pedimos perdão a Deus e aos irmãos separados, assim como também nós perdoamos aos nossos devedores

(SCHLIEPER, 1974SCHLIEPER, Ernesto Th. A Reforma e a Unidade da Igreja; discurso proferido a 29 de outubro de 1967 no Ato Comemorativo da Reforma em Porto Alegre. In: FISCHER, Joachim (ed.). Testemunho Evangélico na América Latina: palestras e prédicas. São Leopoldo: Sinodal, 1974. p. 33-39., p. 34-35).

Schlieper ressalta que renovação católico-romana traz desafios para “os filhos da Reforma de Martin Luther”, no sentido de que a Reforma da Igreja não pode permanecer um evento do passado, uma vez que ela, a Igreja, precisa ser continuamente renovada pelo Evangelho (Ecclesia semper reformanda). Seria superficial, segundo Schlieper, comemorar a Reforma do século XVI em nosso tempo de forma triunfalista. Dever-se-ia, ainda, acolher a renovação da Igreja Católica Romana como um esforço de “reunificação [sic] das Igrejas separadas. É pensamento romano que essa sua renovação facilitaria às Igrejas separadas a reencontrar a unidade na Igreja Romana.” (SCHLIEPER, 1974SCHLIEPER, Ernesto Th. A Reforma e a Unidade da Igreja; discurso proferido a 29 de outubro de 1967 no Ato Comemorativo da Reforma em Porto Alegre. In: FISCHER, Joachim (ed.). Testemunho Evangélico na América Latina: palestras e prédicas. São Leopoldo: Sinodal, 1974. p. 33-39., p. 35-36). Segundo Schlieper,

Continua, pois a convicção de que a unidade da Igreja só pode ser obtida através de uma comunhão inteira dos cristãos separados com a Igreja Católica Romana. Mas não se fala mais de um simples retorno para o seio da Igreja Romana atual, não é somente repetido esse convite às outras Igrejas. Parece antes o pensamento voltar-se para uma Igreja Romana no futuro, uma Igreja renovada, pura, sendo o Concílio apenas um início desse longo processo de renovação, assim que a unificação [sic] como resultado de uma transformação de ambos os lados, não mais simples volta de um para o outro, mas o fim de um caminho para a frente de ambos, sendo que um ponto do futuro, para frente, se tornaria ponto de convergência de ambos os caminhos; nesse caso, não mais haveria a exigência que uma parte se sujeitasse à autoridade da outra, mas se trataria de uma reconciliação, de uma aceitação recíproca em verdadeira e integral comunhão

(SCHLIEPER, 1974SCHLIEPER, Ernesto Th. A Reforma e a Unidade da Igreja; discurso proferido a 29 de outubro de 1967 no Ato Comemorativo da Reforma em Porto Alegre. In: FISCHER, Joachim (ed.). Testemunho Evangélico na América Latina: palestras e prédicas. São Leopoldo: Sinodal, 1974. p. 33-39., p. 36).

Schlieper afirma ainda que as concepções sobre dogmas católico-romanos, como aquele que se refere ao primado do papa e à incorrigibilidade dos dogmas, não foram abolidos, mas fica a possibilidade de nova interpretação dos mesmos, uma vez que foram fixados em outra época. Schlieper se manifesta um tanto cético, especialmente, a respeito de questões dogmáticas, sobre as quais “sentimos discordar da Igreja Romana, por motivos de consciência”, mas, por outro lado, também manifesta que, “quanto mais perto todos estivermos de Cristo, tanto mais perto estaremos da unidade”. Pelo fato de ter a Igreja um só pastor, coloca-se também o imperativo para “trabalhar e esforçar-nos pela unificação” (SCHLIEPER, 1974SCHLIEPER, Ernesto Th. A Reforma e a Unidade da Igreja; discurso proferido a 29 de outubro de 1967 no Ato Comemorativo da Reforma em Porto Alegre. In: FISCHER, Joachim (ed.). Testemunho Evangélico na América Latina: palestras e prédicas. São Leopoldo: Sinodal, 1974. p. 33-39., p. 36-37). Ele ainda ressalta que “a unificação se torna impossível se uma ou cada Igreja se considerar, em sentido exclusivo, a única verdadeira Igreja, exigindo das outras que aceitem todas as suas declarações dogmáticas sem diferenciação alguma” (SCHLIEPER, 1974SCHLIEPER, Ernesto Th. A Reforma e a Unidade da Igreja; discurso proferido a 29 de outubro de 1967 no Ato Comemorativo da Reforma em Porto Alegre. In: FISCHER, Joachim (ed.). Testemunho Evangélico na América Latina: palestras e prédicas. São Leopoldo: Sinodal, 1974. p. 33-39., p. 37).

Finalmente, chegamos a Harding Meyer, teólogo protestante alemão que atuou como professor em São Leopoldo, RS, na Faculdade de Teologia da IECLB, e, posteriormente, como professor no Instituto Ecumênico de Estrasburgo, França, se tornou um dos teólogos mais influentes no diálogo católico-luterano internacional. Meyer destaca que a fórmula “unidade na diversidade reconciliada” vem sendo utilizada desde o final da década de 1960 e início da década de 1970, não como “unificação”, no sentido de fusão, mas para afirmar a legitimidade das diversidades eclesiológicas. Mais do que isso, inclui também as diversidades confessionais, desde que excluído o caráter causador de desunião da Igreja. Para Meyer, a história da fórmula “unidade na diversidade reconciliada” remonta à Declaração sobre unidade do CMI em sua assembleia em Nova Dehli (1961).10 10 A fórmula será acolhida oficialmente pela FLM em 1977. A proximidade da concepção com a compreensão originada do Vaticano II permitiu, não por último, que a Igreja Católica Romana tenha aprovado de maneira quase que oficial a fórmula. No diálogo entre católico-romanos e luteranos, afirmou-se que se pretendia “chegar à comunhão eclesiástica plena, a uma unidade na diversidade, na qual as diferenças remanescentes fossem ‘reconciliadas’ mutualmente e não tivessem mais força para dividir as igrejas”. Constatação oficial conjunta da Federação Luterana Mundial e da Igreja Católica, apud MEYER, Harding. Diversidade reconciliada: o projeto ecumênico. São Leopoldo: Sinodal, 2003. p. 24. Naquela ocasião, o CMI afirmava uma “comunhão comprometida”, ainda que modelos concretos dessa unidade não tenham sido definidos (MEYER, 2003MEYER, Harding. Diversidade reconciliada: o projeto ecumênico. São Leopoldo: Sinodal, 2003., p. 9-10).

Harding Meyer afirma que “[...] a essência da confissão – chamou-se a isso de ‘confessionalidade’ – de modo algum é particularista, distanciadora e voltada para si mesma” (MEYER, 2003MEYER, Harding. Diversidade reconciliada: o projeto ecumênico. São Leopoldo: Sinodal, 2003., p. 14). Nesse sentido,

a partir da perspectiva histórica, as diversas confissões aparecem como configurações particulares da fé cristã caracterizadas primordialmente pelo contexto histórico da época e do lugar particulares de seu surgimento: pelo respectivo entorno cultural e étnico, pela época e situação particulares da história do pensamento, por circunstâncias sociais e políticas, e também pelos diversos tipos de postura intelectual e mental humana etc.

(MEYER, 2003MEYER, Harding. Diversidade reconciliada: o projeto ecumênico. São Leopoldo: Sinodal, 2003., p. 18).

Neste ponto de vista, Meyer está muito próximo do que concebem Congar e Wenz. Então, Meyer ainda afirma:

A lealdade confessional e o compromisso ecumênico não constituem uma contradição, e sim uma unidade – por mais paradoxal que isso pareça. Quando as diferenças existentes entre igrejas perderem seu caráter divisor, surgirá a visão de uma unidade que possui o caráter de “diversidade reconciliada”

(MEYER, 2003MEYER, Harding. Diversidade reconciliada: o projeto ecumênico. São Leopoldo: Sinodal, 2003., p. 22).

Para Meyer, a fórmula da “unidade na diversidade reconciliada” tem a grande vantagem de ter superado a concepção de unidade transconfessional como “unidade orgânica”. Finaliza Meyer, destacando que em Canberra (1991), através do documento “A unidade da igreja como koinonia”, evidenciou-se que não somente as diversidades resultantes de “’contextos culturais, étnicos ou históricos’, mas igualmente as ‘diversidades’ enraizadas ‘em tradições teológicas’ fazem parte da essência da comunhão” (apud MEYER, 2003MEYER, Harding. Diversidade reconciliada: o projeto ecumênico. São Leopoldo: Sinodal, 2003., p. 22).

Considerações finais

A história da Igreja cristã, após séculos de fraturas, percebeu que a paz no mundo exige também o testemunho ecumênico das igrejas. Nas palavras do teólogo católico suíço Hans Küng, “só haverá paz no mundo quando houver paz entre as religiões”. Os cismas do início e da metade do segundo milênio, de forma paulatina, começaram a ser superados a partir do século XIX e, de forma mais abrangente, no século XX. A criação de organismos ecumênicos como o CMI e a abertura ecumênica do catolicismo romano no Concílio Vaticano II expressam a disposição de superar as fraturas do cristianismo. O ecumenismo, posto como imperativo pelo movimento missionário no âmbito do protestantismo a partir do século XIX, recebeu, pelo Concílio Vaticano II, um novo impulso, que transcendeu as fronteiras católico-romanas.

O protestantismo, em particular luterano, busca identificar e enfatizar sua eclesiologia como congregação das pessoas que creem. O Concílio Vaticano II, com a tônica de Igreja como povo de Deus, relativiza sua eclesiologia, no sentido de destacar as relações, o que aproxima catolicismo e protestantismo sobre a concepção eclesiológica. Ideias anteriores de fusão, sujeição, “capitulação” de uma igreja em favor de outra, além da estigmatização e contraestigmatização mútuas, devem ceder lugar à “unidade na diversidade reconciliada”. As divergências têm lugar numa história passada e no presente somente são legítimas à medida que não têm força de divisão. O testemunho da fé cristã num mundo fraturado exige coerência desde as bases, o que envolve a eclesiologia. A eclesiologia, que não suportava a diversidade, agora é concebida como multiformidade de vocação e dons a serviço e cooperação com Deus no mundo.

O Concílio Vaticano II deu claros sinais para o ecumenismo a partir da definição eclesiológica como “povo de Deus” – em lugar de “corpo de Cristo” – , que tornou o conceito de Igreja mais amplo. O Concílio ressaltou que a Igreja de Cristo “subsiste” na Igreja Católica Apostólica Romana, indicando que ela poderia também subsistir em outras igrejas. O Concílio também distinguiu entre verdades centrais e secundárias, o que também permitiu acolhimento de “outras verdades” (não católico-romanas). A Lumen gentium constata que existem “elementos de santificação e de verdade” na estrutura da Igreja Católica Romana, o que indica uma permeabilidade da estrutura eclesiástica. Finalmente, também indica o Concílio que a catolicidade da Igreja de Jesus Cristo não chegará à plenitude enquanto persistirem rupturas no corpo, por isso, a integridade eclesiástica clama por reunificação. Os textos do Concílio Vaticano II deixaram ambiguidades, o que se evidencia pela publicação da declaração Dominus Iesus (2000) que reinterpretou o “subsiste” do Vaticano II relacionando-o estritamente à Igreja Católica Romana (ALTMANN, 2012aALTMANN, Walter. Cinquenta anos de abertura do Concílio Vaticano II. O aporte ecumênico. In: OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de e DE MORI, Geraldo (orgs.) Mobilidade Religiosa: linguagens, juventude, política. São Paulo: Paulinas, 2012a. p. 31-51., p. 40; BRAKEMEIER, 2004BRAKEMEIER, Gottfried. “Preservando a Unidade do Espírito no Vínculo da Paz”: um curso de ecumenismo. São Paulo: Aste, 2004., p. 51-53). A este respeito, Altmann constata:

Um dilema bem conhecido e de grande alcance nas relações ecumênicas é como entender a afirmação constante na Lumen Gentium de que a Igreja de Cristo “subsiste na” Igreja Católica. Seria uma identificação pura e simples ou haveria margem para entender-se que em algum sentido a Igreja de Cristo ultrapassa as fronteiras institucionais da Igreja Católica? O fato de que o texto original e que foi emendado pelo próprio Concílio rezava que a Igreja de Cristo “é” a Igreja Católica parece sinalizar no segundo sentido, mas a interpretação oficial católica vai ao primeiro sentido. Em alguns documentos, por exemplo, na Lumen Gentium, há citações bíblicas genéricas e descontextualizadas, apenas com o fim de comprovar a afirmação teológica já efetuada. Perturbou os observadores ecumênicos no Concílio e perturba ainda hoje a não católicos o fato de que em vários documentos elaborados pelos padres conciliares tenham sido introduzidas alterações “por autoridade superior”, no caso da Lumen Gentium até mesmo uma “nota explicativa prévia” referente ao capítulo acerca da hierarquia. Esse procedimento sinaliza uma compreensão eclesiológica bastante estranha a outras igrejas

(ALTMANN, 2012b_________________. Concílio Vaticano II e a busca pelo comprometimento ecumênico. Entrevista a IHU On-Line (XII) n. 406: 29-31 (29 out. 2012b). Disponível em: https://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/4725-walter-altmann-2?gad_source=1&gclid=Cj0KCQiAsburBhCIARIsAExmsu5hLHWJfO3k5QBMQkff81Gfz6r8uCPScg0IhnoGh5N8DvCsuwWDrsoaAiQfEALw_wcB . Acesso em 5 dez. 2023.
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As dificuldades do ecumenismo, especialmente em tempos mais recentes, não deveriam causar desânimos, nem conceder espaços a retrocessos. As dificuldades deveriam indicar o próprio “escândalo da cruz”, a saber, o pecado humano. Atuais fundamentalismos religiosos, políticos, culturais, econômicos, em grande medida reações à globalização, implicaram em retrocessos ecumênicos. E, exatamente neste contexto, o desafio às igrejas pela “unidade na diversidade reconciliada”, num cenário de crescentes conflitos, dissensos e ameaças à existência da humanidade e de toda a criação, precisa ser renovado como testemunho de todas as igrejas como sendo a Igreja do povo de Jesus Cristo na terra.

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    “Cisne“ – referência que Lutero faz a si mesmo: “São João Hus disse de mim, quando escreveu na prisão da Boêmia: ‘Eles vão fritar um ganso agora – referindo-se a ele próprio – mas depois de muitos anos ouvirão um cisne cantar e este eles terão que aguentar [...].” LUTERO, apud WACHHOLZ, Wilhelm. História e Teologia da Reforma: introdução. São Leopoldo: Sinodal, 2016. p. 67WACHHOLZ, Wilhelm. História e Teologia da Reforma: introdução. São Leopoldo: Sinodal, 2016..
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    Altmann consta que, neste ponto, isto sobre pregação da Palavra e administração dos sacramentos, há estreita identidade com a Lumen gentium que afirma: “Nelas se reúnem os fiéis por meio da pregação do Evangelho de Cristo e se celebra o mistério da Ceia do Senhor.” Disso conclui Altmann que “para quem provém de uma Igreja de confissão luterana, não há como não recordar-se da definição eclesiológica clássica contida na Confissão de Augsburgo”, como veremos abaixo. ALTMANN, 2021aALTMANN, Walter. Cinquenta anos de abertura do Concílio Vaticano II. O aporte ecumênico. In: OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de e DE MORI, Geraldo (orgs.) Mobilidade Religiosa: linguagens, juventude, política. São Paulo: Paulinas, 2012a. p. 31-51., p. 39.
  • 3
    Veja também BRAKEMEIER, Gottfried. “Preservando a Unidade do Espírito no Vínculo da Paz”; um curso de ecumenismo. São Paulo: Aste, 2004, p. 49BRAKEMEIER, Gottfried. “Preservando a Unidade do Espírito no Vínculo da Paz”: um curso de ecumenismo. São Paulo: Aste, 2004..
  • 4
  • 5
    O Concílio Vaticano II deu importante passo de aproximação à compreensão da Bíblia na relação com a Igreja. Anteriormente, a compreensão católica de Escritura e Tradição distanciava o catolicismo romano do protestantismo. O catolicismo romano concebia a Tradição como fonte de revelação paralela à Escritura. Pela constituição conciliar Dei verbum, o Evangelho por inteiro passou a ser concebido como verdade salvífica e moral, ao qual Tradição e Sagrada Escritura estão subordinadas. Permaneceu, contudo, uma diferença entre católico-romanos e protestantes: enquanto para o protestantismo o sola Scriptura implica a afirmação de que nenhuma instância da Igreja é infalível, portanto, como norma normans, a Escritura é autoridade sobre o próprio magistério, na tradição teológica católico-romana, o magistério da Igreja tem atribuição de correção de releituras e interpretações bíblicas, pois ele recebeu “um carisma seguro da verdade”. ALTMANN, 2021aALTMANN, Walter. Cinquenta anos de abertura do Concílio Vaticano II. O aporte ecumênico. In: OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de e DE MORI, Geraldo (orgs.) Mobilidade Religiosa: linguagens, juventude, política. São Paulo: Paulinas, 2012a. p. 31-51., p. 41-45.
  • 6
    Ainda que constem na segunda parte os artigos sobre divergências com a Igreja Romana, cabe ressaltar que se buscou evitar as controvérsias, o que se pode verificar no fato de ficar excluída da Confissão de Augsburgo a polêmica contra o papa. A polêmica com o papa somente é retomada nos Artigos de Esmalcalde, de 1537. GASSMANN; HENDRIX, 2000GASSMANN, Günther; HENDRIX, Scott. As Confissões Luteranas. Introdução. São Leopoldo: EST/Sinodal, 2002., p. 44.
  • 7
    Em 3 de agosto de 1530, foi apresentada aos protestantes a Confutatio, isto é, uma confutação à Confissão de Augsburgo. Concomitantemente, o imperador também exigiu que a Confutatio fosse aceita pelos protestantes. Estes, contudo, não a aceitaram e prometeram uma refutação à Confutatio, do que surgiu a Apologia da Confissão de Augsburgo, apresentada à assembleia, numa primeira versão, em 22 de setembro de 1530, recusada pelo imperador. GASSMANN; HENDRIX, 2000GASSMANN, Günther; HENDRIX, Scott. As Confissões Luteranas. Introdução. São Leopoldo: EST/Sinodal, 2002., p. 44.
  • 8
    Conforme compreensão luterana, “santos” não são pessoas de qualidade moral superior, tampouco se referem aos sacramentos, mas são as pessoas que creem em Cristo.
  • 9
    Veja também HERMELINK, Jan. As Igrejas no Mundo; um estudo das Confissões Cristãs. São Leopoldo: Sinodal, 1981HERMELINK, Jan. As Igrejas no Mundo. São Leopoldo: Sinodal, 1981.. p. 131.
  • 10
    A fórmula será acolhida oficialmente pela FLM em 1977. A proximidade da concepção com a compreensão originada do Vaticano II permitiu, não por último, que a Igreja Católica Romana tenha aprovado de maneira quase que oficial a fórmula. No diálogo entre católico-romanos e luteranos, afirmou-se que se pretendia “chegar à comunhão eclesiástica plena, a uma unidade na diversidade, na qual as diferenças remanescentes fossem ‘reconciliadas’ mutualmente e não tivessem mais força para dividir as igrejas”. Constatação oficial conjunta da Federação Luterana Mundial e da Igreja Católica, apud MEYER, Harding. Diversidade reconciliada: o projeto ecumênico. São Leopoldo: Sinodal, 2003MEYER, Harding. Diversidade reconciliada: o projeto ecumênico. São Leopoldo: Sinodal, 2003.. p. 24.

Referências

  • ALTMANN, Walter. Cinquenta anos de abertura do Concílio Vaticano II. O aporte ecumênico. In: OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de e DE MORI, Geraldo (orgs.) Mobilidade Religiosa: linguagens, juventude, política. São Paulo: Paulinas, 2012a. p. 31-51.
  • _________________. Concílio Vaticano II e a busca pelo comprometimento ecumênico Entrevista a IHU On-Line (XII) n. 406: 29-31 (29 out. 2012b). Disponível em: https://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/4725-walter-altmann-2?gad_source=1&gclid=Cj0KCQiAsburBhCIARIsAExmsu5hLHWJfO3k5QBMQkff81Gfz6r8uCPScg0IhnoGh5N8DvCsuwWDrsoaAiQfEALw_wcB . Acesso em 5 dez. 2023.
    » https://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/4725-walter-altmann-2?gad_source=1&gclid=Cj0KCQiAsburBhCIARIsAExmsu5hLHWJfO3k5QBMQkff81Gfz6r8uCPScg0IhnoGh5N8DvCsuwWDrsoaAiQfEALw_wcB
  • _________________. Lutero e Libertação: releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. São Leopoldo: Sinodal, 2016.
  • BRAKEMEIER, Gottfried. “Preservando a Unidade do Espírito no Vínculo da Paz”: um curso de ecumenismo. São Paulo: Aste, 2004.
  • CONFISSÃO DE AUGSBURGO. In: Livro de Concórdia: as confissões da Igreja Evangélica Luterana. Porto Alegre: Concórdia; São Leopoldo: Sinodal, 2021. p. 37-143.
  • GASSMANN, Günther; HENDRIX, Scott. As Confissões Luteranas Introdução. São Leopoldo: EST/Sinodal, 2002.
  • GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002.
  • HERMELINK, Jan. As Igrejas no Mundo. São Leopoldo: Sinodal, 1981.
  • HOLZEM, Andreas; KAUFMANN, Thomas. A Era Confessional. In: KAUFMANN, Thomas et. al. [orgs.]. História Ecumênica da Igreja 2: da alta Idade Média até o início da Idade Moderna. São Paulo: Edições Loyola; Paulus; São Leopoldo: Sinodal, 2014. p. 356-374.
  • HOLZEM, Andreas; KAUFMANN, Thomas. A Era Confessional. In: KAUFMANN, Thomas et. al. [orgs.]. História Ecumênica da Igreja 2: da alta Idade Média até o início da Idade Moderna. São Paulo: Edições Loyola; Paulus; São Leopoldo: Sinodal, 2014. p. 456-476.
  • LUTERO, Martinho. Os Artigos de Esmalcalde In: Livro de Concórdia: as confissões da Igreja Evangélica Luterana. 5ª ed. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1997. p. 305-341.
  • MEYER, Harding. Diversidade reconciliada: o projeto ecumênico. São Leopoldo: Sinodal, 2003.
  • SCHLIEPER, Ernesto Th. A Reforma e a Unidade da Igreja; discurso proferido a 29 de outubro de 1967 no Ato Comemorativo da Reforma em Porto Alegre. In: FISCHER, Joachim (ed.). Testemunho Evangélico na América Latina: palestras e prédicas. São Leopoldo: Sinodal, 1974. p. 33-39.
  • SEIBERT, Erní Walter. Introdução às Confissões Luteranas: sua atualidade e relevância. Porto Alegre: Concórdia, 2000.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    11 Dez 2023
  • Aceito
    20 Mar 2024
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