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CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA LUMEN GENTIUM E IGREJA MISSIONÁRIA SINODAL

Dogmatic Constitution Lumen Gentium and the Synodal Missionary Church

A Constituição dogmática Lumen gentium sobre a Igreja (LG), por sua vez, propõe uma nova visão da Igreja sobre si mesma e salienta o sentido último de sua existência no mundo. Esta Constituição, que foi promulgada em 21 de novembro de 1964, já pelo próprio título expressa a orientação fundamental da missão da Igreja. Ela não é a luz do mundo, mas recebeu o encargo de fazer resplandecer para o mundo a luz que é Cristo. A Constituição declara em sua abertura: “Sendo Cristo a Luz dos Povos, este Sacrossanto Sínodo, congregado no Espírito Santo, deseja ardentemente anunciar o Evangelho a toda criatura (Mc 16,15), e iluminar todos os homens com a claridade de Cristo que resplandece na face da Igreja”. Seu objeto é a Igreja, entendendo-se que, em Cristo, ela é “como que o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano”.

A noção de Igreja Povo de Deus vem no segundo capítulo e proporciona a estruturação de uma eclesiologia que supera a concepção de Igreja sociedade1 1 G. Philips (1968, p. 53-54) refere-se à sequência dos dois primeiros capítulos da LG tratando, respectivamente, do “Mistério da Igreja” e da Igreja Povo de Deus. Explica: “Talvez alguém pergunte por que o Concílio, depois de tratar do ‘Mistério da Igreja’, ainda quis dedicar um capítulo ao ‘Povo de Deus’". . A constituição de um corpo formado por diferentes membros se fundamenta na nova Aliança que Cristo institui no seu sangue (1Cor 11,25). Ele “chamou de entre os judeus e os gentios um povo, que junto crescesse para a unidade, não segundo a carne, mas no Espírito e fosse o novo Povo de Deus” (LG, n. 9). A concepção da Igreja como Povo de Deus, que tem caráter inclusivo, implica o reconhecimento da ministerialidade na realização da vida eclesial. Os ministérios, que por sua vez, se fundamentam na graça batismal, de modo que todos os membros da Igreja têm responsabilidade na realização da missão da Igreja. Este conceito, como ressalta Routhier (2018, p. 57-58)ROUTHIER, Gilles. Introduzione alla costituzione dogmática Lumen gentium. In: NOCETI, Serena; REPOLE, Roberto (org.). Commentario ai documenti del Vaticano II: Lumen gentium. Bologna: EDB, 2018, p. 13-75., também ratifica a vocação missionária da Igreja “porque este povo peregrino para a verdadeira pátria tem, em meio às nações, uma vocação: esta escolha ou esta eleição é em vista de um testemunho a ser dado”. O novo Povo de Deus, desde seu início, foi enriquecido com muitos e distintos carismas e vocações, como apraz a Deus. São dons que se historizam no serviço ao bem do Reino de Deus (1Cor 12,11 e 7). A participação do Povo santo de Deus e o reto entendimento da fé enquanto totalidade dos fiéis se integram “na função profética de Cristo”.

Compreendida e assumida por seus membros como Povo Deus, a Igreja deverá levar sempre em consideração a participação dos fiéis nos ensinamentos de fé. A Constituição exprime-se com clareza a esse respeito. Referindo-se à totalidade desse Povo, afirma: “receberam a unção que vem do Santo (Jo 2,20 e 27), não pode enganar sua fé; e essa sua propriedade peculiar manifesta-se por meio do sentir sobrenatural da fé do povo todo, quanto este, ‘desde os Bispos até ao último dos leigos fiéis’, manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes”. A segunda parte desse texto da doutrina do sensus fidei, completa o ensinamento do Concílio: “Por este senso da fé, exercitado e sustentado pelo Espírito da verdade, o Povo de Deus – sob a direção do sagrado Magistério, a quem fielmente respeita – não já recebe a palavra de homens, mas verdadeiramente a palavra de Deus (1Tes 2,13)”. E mais ainda assume essa fé de tal forma que a enraíza e aprofunda na vida real: “apega-se indefectivelmente à fé uma vez para sempre transmitida aos santos (Jud 3); e, com reto juízo, penetra-a mais profundamente e mais plenamente a aplica na vida” (LG n. 12). Apesar da densidade da afirmação conciliar, a recepção do sensus fidei como sendo de todo Povo de Deus, não se referindo apenas aos fiéis leigos e leigas, mas à totalidade dos membros eclesiais, tem sido obstaculizada, negando, segundo Vitali (2018, p. 182), a “existência de uma função própria do povo de Deus em ordem à inteligência da fé”.

Os traços eclesiológicos aqui expostos remetem à forma como se deverá tratar todos os temas conciliares, que é a pastoralidade. Esse princípio já estava presente na declaração do Papa João XXIII, no Discurso de inauguração do Concílio, ao se referir às verdades contidas no depositum fidei, cujo sentido e alcance deverão ser conservados, dando zelosa importância à apresentação dos enunciados da fé. Deve-se “usar a maneira de apresentar as coisas que mais corresponda ao magistério, cujo caráter é prevalentemente pastoral”. Essa é uma questão hermenêutica central para uma adequada compreensão do Concílio, conservando a originalidade das motivações do Papa João XXII, quando teve a intuição de convocar o Concílio. Trata-se, portanto, de levar às distintas temáticas do Concílio a “forma pastoral da doutrina” (Theobald 2015, p. 212). Essa preocupação remonta a discussões ocorridas no Concílio de Trento, quando, por sua solicitação a um grupo de excelentes humanistas, em 1536, foi apresentado ao Paulo III, um texto que refletia uma ideia do movimento reformador (apud Theobald, 2015TEOBALD, Christoph. A recepção do Concílio Vaticano II: vol. I: acesso à fonte. São Leopoldo: UNISINOS, 2015., p. 80), qual seja: “o primado da pastoral, a realização do ideal de pastor”. O Papa logo afirmou que a implementação dessa proposta, seria “impossível sem uma transformação radical dos serviços da Cúria”. O pontífice, então, determinou que se tomasse a via da “preservação” católica, afastando-se da linha ecumênica, situação que permaneceria até o Vaticano II. Nessa ocasião, o padre conciliar Dom Hermann Volk defendeu que se considerasse a catolicidade, a ecumenicidade do Evangelho. Dizia Volk (apud Theobald, 2015, p. 214), muito assertivo: “A doutrina dogmática sobre a Igreja pode e deve ser proposta pelo concílio como Evangelho, o que quer dizer, Boa Nova; e é assim que a doutrina dogmática é nela mesma verdadeira pastoral. Se a doutrina não tiver força nela mesma, o trabalho pastoral tampouco poderá acrescentá-la”. Desta forma, se reforçava a ideia fundamental da pastoralidade, que perpassa não apenas a LG, mas todo o Concílio. Deste modo, se estabelece o parâmetro para se criar uma linguagem adequada à compreensão da pregação do Evangelho do Reino, que leva ao aprofundamento da prática da fé, tanto na vida pessoal como na dimensão comunitária eclesial, com fundamentação e orientação claras do magistério.

A evangelização comprometida com a busca de justiça na sociedade e a promoção da pessoa humana, como serviço visando a realização do Reino de Deus em sua dimensão história, terá sempre presente o horizonte escatológico de toda vida eclesial. Na verdade, a Igreja segue existindo até o fim dos tempos, mas possui, no mundo presente, a alegria da realização do Reino em Cristo (1Cor 10,11). A Constituição assevera que a “restauração do mundo já foi realizada irrevogavelmente e, de certo modo, encontra-se já antecipada neste mundo: com efeito, ainda aqui na terra, a Igreja está aureolada de verdadeira, embora imperfeita, santidade” (LG, n. 48). Tratando da dimensão escatológica da ação missionária, lembra-nos o Papa Francisco, em sua mensagem para o Dia Mundial das Missões de 2024, que a missão é marcada, desde o início da pregação realizada pelos primeiros cristãos, pela dimensão escatológica. Tinha consciência da urgência do anúncio da Boa Notícia. Salienta Francisco: “Também hoje é importante ter presente tal perspectiva, porque nos ajuda a evangelizar com a alegria de quem sabe que ‘o Senhor está perto’ e com a esperança de quem propende para a meta, quando estivermos todos com Cristo no seu banquete nupcial no Reino de Deus”.

Ao fazermos memória das seis décadas da Lumen gentium, identificamos, na vida eclesial, realidades que caracterizam recepção criativa e frutuosa do Concílio, e outras que se configuram como dificuldades, resistências e recuos, após inícios promissores. Limitando-nos à Igreja latino-americana e caribenha, salientamos que aqui aconteceu uma experiência de recepção fecunda através da Conferência de Medellín (1968). Na esteira desse processo de recepção do Concílio, diversos passos de prática contextualizada da eclesiologia estampada nessa Constituição foram vivenciados em organização do trabalho eclesial. Não se constitui saudosismo de situações do passado, mas é preciso lembrar que ainda temos, em vários locais do Brasil e da América Latina, Igrejas com efetiva presença de comunidades eclesiais de base. Significativa parcela de Igrejas particulares assimilaram a eclesiologia conciliar nesse novo “jeito de ser Igreja”, como se interpretou as CEBs. Nelas se realiza a efetiva participação dos leigos e leigas e se desenvolvem os ministérios necessários à vida da comunidade. Compreendendo-se como Povo de Deus, as Igrejas que organizaram a vida eclesial em espírito e prática efetiva de comunhão e participação, animadas pelo espírito missionário, concretizaram criativamente a recepção da proposta de Igreja Povo de Deus. Tal realidade constitui efetiva expressão da eclesiologia da LG e efetiva realização da proposta eclesiológica sinodal, como reza uma passagem da Síntese da Primeira sessão da Assembleia sinodal realizada em 2023. “Na verdade, o caminho sinodal está a realizar aquilo que o Concílio ensinou sobre a Igreja como Mistério e Povo de Deus, chamada à santidade”.

Quanto às dificuldades, resistências e posições incompatíveis com a boa atitude esperada para o pós-Concílio, de recepção do espírito e das linhas eclesiológicas consignadas da LG, identificam-se várias situações que, em vários casos, até ganham corpo. Um dos entraves, aliás muito recorrente em nossos dias, é o clericalismo, existente em meios eclesiais, tendo como sujeito tanto clérigos como fiéis leigos e leigas. Em muitos casos, essa atitude está relacionada a posições ideológicas polarizadas, que se contrapõem ao compromisso de se construir uma Igreja que seja de todos e para todos, mas sobretudo “uma Igreja pobre e para os pobres”, como desejava o Papa XXIII. Esse problema, no entendimento do Papa Francisco, na Exortação apostólica Evangelii gaudium (2013), desponta como primeiro desafio eclesial a ser enfrentado. Francisco reconhece que cresceu a consciência dos fiéis leigos e leigas quanto à sua importância e lugar na vida eclesial, ainda não suficientemente. Se, por um lado, “pode-se contar com um numeroso laicado, dotado de um arraigado sentido de comunidade e de grande fidelidade ao compromisso da caridade, da catequese, da celebração da fé”, por outro, “não encontram espaço aberto para dar sua contribuição, entre outras razões, por causa dum excessivo clericalismo que os mantém à margem das decisões” (EG, n. 102). No entanto, vale lembrar que o Vaticano II foi o primeiro Concílio que tratou da participação do laicado como sujeito, dedicando ao tema um capítulo na sua única constituição qualificada como dogmática, além de alargar a reflexão com o Decreto Apostolicam actuositatem. O ecumenismo é outro campo onde se manifestam problemas. O mais significativo foi ocasionado pela posição expressa através da Dominus Iesus: sobre a unidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja, assinado pelo cardeal Joseph Ratzinger, então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (06/08/2000). A declaração surge no contexto da publicação do livro Para uma teologia cristã do pluralismo religioso, de Jacques Depuis, que recebeu uma notificação, naquele o mesmo ano. Esse incidente significou um recuo no diálogo em que se reconhecem os aspectos comuns entre as igrejas e se respeitam as diferenças, sempre afirmando, cada uma delas, legitimamente, com suas doutrinas e posições teológicas. No contexto brasileiro, verificam-se problemas na preparação e realização da CF ecumênica de 2021, envolvendo acusações contra membros da equipe responsável pela elaboração do material da Campanha, incluindo questões morais a eles referentes. O tema da CF daquele ano era “Fraternidade e diálogo: compromisso de amor”. O lema: “Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade (Ef 2,14)”. Mas, nos últimos anos, a não recepção tem se dado pelos posicionamentos contrários ao que o Vaticano II propôs à Igreja, sobretudo, no que se refere à eclesiologia da comunicação e participação em uma Igreja toda ela missionária.

Se, por um lado, existem dificuldades, tanto no nível pessoal como estrutural, porque não dizer, de caráter cultural católico, para avançarmos no processo de recepção do Concílio, por outro, no entanto, como visto nas linhas anteriores, passos significativos já foram dados e outros estão em curso. Sendo otimista, mas, ao mesmo tempo realista, reconhecemos que há importante parcela de cristãs e cristãos, membros da hierarquia e leigos e leigos que acalentam o sonho real de sermos uma Igreja no estilo missionário sinodal proposto pelo Papa Francisco, desde o início de seu pontificado. Posteriormente, essas práticas eclesiais ganharam formas históricas singulares seja nas várias igrejas como nas diferentes tradições cristãs. “O Concílio Vaticano II ‘atualizou-as’ e o Papa Francisco encoraja a Igreja a renová-la ainda mais. Neste processo, insere-se também o Sínodo 2021-2024” (Síntese, 2023). Na esteira do processo sinodal em curso, encontram-se várias práticas dessa dimensão na vida eclesial. Trata-se, concretamente, do Sínodo da Amazônia. Inclui-se, ainda, a Assembleia Eclesial da América Latina, com promissores frutos, como a Conferência eclesial da Amazônia (CEAMA), que nasceu do processo sinodal missionário vivenciado naquela região. Não se poderia esquecer, ainda que, até o momento, não lhe tinha sido atribuída relevância efetiva, a “Primeira Assembleia eclesial da América Latina e Caribe” (2020-2021). A chamada a recuperar a consciência da importância e necessidade de construirmos fraternidade, indo inclusive para além do âmbito eclesial, é imperativo para a justiça, a paz, a reconciliação e a promoção da amizade social. “O amor ao outro por ser quem é, impele-nos a procurar o melhor para a sua vida. Só cultivando esta forma de nos relacionarmos é que tornaremos possível aquela amizade social que não exclui ninguém e a fraternidade aberta a todos” (Fratelli tutti, n. 94). Francisco cita o magistério dos bispos da Igreja Latino-americano e do Caribe, (n. 234), que, particularmente, nos mostra o valor da amizade com as pessoas pobres. “Só a proximidade que nos faz amigos permite apreciar profundamente os valores dos pobres de hoje, seus legítimos desejos e seu modo próprio de viver a fé. A opção pelos pobres deve conduzir-nos à amizade com os pobres”. Ensina-nos Francisco: “O Concílio Vaticano II apresentou a conversão eclesial como a abertura a uma reforma permanente de si mesma por fidelidade a Jesus Cristo” (EG, n. 26).

Oxalá, toda a Igreja descubra o caminho sinodal como resposta ao chamado para viver a alegria do anúncio da Boa Notícia do Reino de Deus. Desta maneira, em continua escuta do Espírito e dos clamores dos homens e mulheres de hoje, em permanente estado de missão e vigilância, poderá exercer sua função, fiel ao Senhor que veio viver entre nós não para fazer a sua vontade, mas a vontade do Pai que o enviou (Jo 6, 38) e servir e dar sua vida para a salvação de muitos (Mt, 20,28; Mc 10,45).

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    G. Philips (1968, p. 53-54)PHILIPS, Gerard. A Igreja e seu mistério. São Paulo: Herder, 1968. refere-se à sequência dos dois primeiros capítulos da LG tratando, respectivamente, do “Mistério da Igreja” e da Igreja Povo de Deus. Explica: “Talvez alguém pergunte por que o Concílio, depois de tratar do ‘Mistério da Igreja’, ainda quis dedicar um capítulo ao ‘Povo de Deus’".

Referências

  • CONCILIO ECUMÊNICO VATICANO II. Lumen gentium: constituição dogmática sobre a Igreja. Petrópolis: Vozes, 1996.
  • FRANCISCO, Papa. Carta encíclica Fratelli tutti do Santo Padre Francisco sobre a fraternidade e a amizade social São Paulo: Loyola, 2020.
  • MENSAGEM de Sua Santidade Papa Francisco para o XCVIII Dia Mundial das Missões 2024. Ide e convidai a todos para o banquete (cf. Mt 22,9), 20 de outubro de 2024.
  • PHILIPS, Gerard. A Igreja e seu mistério São Paulo: Herder, 1968.
  • REPOLE, Roberto. Il mistero della Chiesa. In: NOCETI, Serena; REPOLE, Roberto (org.). Commentario ai documenti del Vaticano II: Lumen gentium. Bologna: EDB, 2018, p. 79-142.
  • ROUTHIER, Gilles. Introduzione alla costituzione dogmática Lumen gentium In: NOCETI, Serena; REPOLE, Roberto (org.). Commentario ai documenti del Vaticano II: Lumen gentium. Bologna: EDB, 2018, p. 13-75.
  • TEOBALD, Christoph. A recepção do Concílio Vaticano II: vol. I: acesso à fonte. São Leopoldo: UNISINOS, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024
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