Open-access A KÉNOSIS DO ESPÍRITO SANTO E A CRIAÇÃO EM SERGEI BULGAKOV

The Kenosis of the Holy Spirit and the Creation in Sergei Bulgakov

RESUMO

Este artigo tem por objetivo analisar a kénosis do Espírito Santo como chave de leitura da fé cristã na criação à luz do pensamento de Sergei Bulgakov. Evidencia-se a relevância soteriológica do Espírito Santo que, em sua igualdade ao Filho, diviniza o homem e o mundo. A kénosis do Espírito, que vai desde o pairar sobre as águas, na criação, até a Transfiguração, a consumação escatológica do novo céu e da nova terra, repousa sobre a criatura, atuando em sua condição humana marcada pela sua história e fragilidade. Ressalta-se que somente em analogia à kénosis do Filho é possível falar da kénosis do Espírito, isso porque esta se une à natureza humana, tomando-o debaixo da sombra do seu poder, da sua potência. Por fim, conclui-se que no influxo do Espírito que cria e recria, o ser humano é chamado a buscar em si mesmo a inspiração originária do Paraíso terrestre que o interpela à ética ecológica da responsabilidade de salvaguardar a criação.

PALAVRAS-CHAVE  kénosis ; Espírito Santo; Sofia; Criação; Ecologia

ABSTRACT

This article aims to analyze the kenosis of the Holy Spirit as a Christian faith’s key to understanding the creation of the world according to Sergei Bulgakov’s thought. The article highlights the soteriological relevance of the Holy Spirit who, in joint action with the Son, divinizes man and the world. The kenosis of the Spirit extends from the creation of the world as it hovered over the waters, through the Transfiguration up to the eschatological consummation of creations as a new heaven and a new earth. In this kenosis the Spirit dwells on the creature and acts on the human condition that is marked by history and fragility. The article emphasizes that it is possible to speak of the kenosis of the Holy Spirit only through an analogy with the kenosis of the Son. In the latter, divine nature has united itself with human nature and has taken it under the shadow of its strength and power. Finally, the article concludes that under the influence of the Holy Spirit who creates and recreates, human beings are challenged to revive an intuition of the original Paradise, one that orients creatures towards an ecological ethic of responsibility aimed at safeguarding creation.

KEYWORDS Kenosis; Holy Spirit; Sophia; Creation; Ecology

Introdução

O Deus dos cristãos é o Pai todo amoroso revelado pelo Filho à luz do Espírito Santo. É essa certeza histórica da fé, manifestada em Jesus Cristo, que permite ao teólogo tomar posturas relevantes a respeito do debate sobre o ecumenismo e o pluralismo religioso, contemplável no vértice entre a cristologia e a pneumatologia em sua envergadura trinitária. A Trindade é dispensadora dos bens salvíficos. Está em íntima relação com a criação, com a vida da humanidade, com o grito dos pobres e os direitos humanos, com a ecologia e a preservação do planeta, com a organização da sociedade e da Igreja, com a vocação à comunhão e à fraternidade, missão e destino de cada ser humano. De fato, como afirma Nicola Ciola: “a Trindade é a condição de possibilidade de toda história da salvação que tem encontrado em Cristo e no Espírito sua plena manifestação” (2005, p. 17).

Com efeito, pensar a atualização da teologia trinitária à luz do pensamento teológico de Bulgakov exige que se estabeleça o nexo entre a cristologia e a pneumatologia, chaves para a compreensão da revelação de Deus na história dos homens. Bulgakov destaca o papel hermenêutico e existencial do sentido teológico da cruz como estruturação de uma vigorosa síntese que lhe permite reler o universo kerigmático cristão à luz da sabedoria paradoxal da fé e o seu jogo dialético entre escândalo e sabedoria, entre loucura e kénosis (1 Cor 1, 22-25). Kénosis é o tema de um dos mais antigos hinos cristológicos, inseridos por Paulo na Carta aos filipenses (Fl 2, 5-11). Termo de origem grega que significa esvaziamento, aniquilamento, a kénosis é o modo escolhido por Deus para revelar-se ao mundo, para agir na história e realizar a salvação.

1 Breve histórico de Sergei Bulgakov

O teólogo Sergei Nikolaievitch Bulgakov (1871-1944), economista por formação e teólogo ortodoxo russo, nasceu em Livny e faleceu em Paris. Foi um dos representantes mais relevante da filosofia do século XX, viveu um itinerário enriquecedor (VILANOVA, 1992, p. 805). Dos 10 aos 14 anos frequenta uma escola religiosa em Livny, e ingressa no Seminário de Orel. Embora com sua formação religiosa familiar e seminarística, durante os estudos universitários sente-se atraído pelo marxismo e torna-se ateu. Após sua formatura, durante alguns anos, ensina economia política e social, em Kiev e Moscou. Nesse período, interliga-se a sua obra “filosofia da economia” (1912), pois para ele é preciso aprofundar os fundamentos filosóficos da economia e da ciência social, diante de uma das lacunas mais grave da obra de K. Marx na relação entre o capitalismo e agricultura, como percebera. Aplica-se a estudar direito e economia, e aprofunda o neokantismo para verificar Marx com Kant. Entretanto, o ateísmo e o marxismo não mais o satisfazem. A ruptura com o marxismo assume caráter público em Vekhi num Simpósio em 1909, no qual Berdjaev e outros convertidos denunciam os erros da Intellighentsia Russa e sua incapacidade de transformar a Rússia. Sob o influxo de Soloviov e de Florenski, passou do marxismo ao idealismo alemão e deste à ortodoxia.

Em 1936, Florenski predicou o retorno à Tradição Patrística, inaugurando um novo período de teologia ortodoxa, seu objetivo era retornar às fontes para resgatar uma teologia kerigmática e um testemunho de contemplação. Esta síntese neopatrística seria contemporânea do interesse pelos padres no catolicismo francês. Para ele “a ideia da sabedoria divina toca a consciência religiosa russa em suas próprias fontes e nos fundamentos profundos de sua originalidade” (ŠPIDLÍK, 1994, p. 313). O encontro de Bulgakov com Florenski foi decisivo, marcando o seu progressivo retorno ao seio da Igreja ortodoxa, que o inspira a encontrar na Escritura os temas que se tornaram leitura motivadora da sua obra, como a divino-humanidade (Teandria) e da sabedoria de Deus (Sofia). Após a morte do filho de quatro anos descobre novos horizontes em sua vida de esperança e fé: a sabedoria da cruz, abrindo-se a estrada dramática e luminosa da contemplação da kénosis de Cristo, e, através Dele, a kénosis intradivina, com a recuperação do pensamento original kenótico da precedente tradição russa, em particular do metropolita Filarete de Moscou (1783-1867).

Em 1918 participa do Concílio das Igrejas de toda Rússia para a renovação da Igreja Ortodoxa. No mesmo ano foi ordenado sacerdote e escolhido para integrar-se no Supremo Conselho (Soviet) Eclesiástico. Três anos mais tarde, devido às suas convicções religiosas, foi deposto da Cátedra, e, em 1922 foi obrigado a deixa a sua Pátria sendo exilado em Constantinopla e em seguida em Praga, em 1925. Nesse período escreve sua grande trilogia: O Cordeiro de Deus, (1933), A noiva do Cordeiro (1936) e O Paráclito (concluído em 1939 e publicado em 1945); se transfere à Paris onde Evolgij o nomeia diretor para o Novo Instituto de São Sérgio. Bulgakov, primeiro professor e depois decano, manifestando toda a riqueza de sua personalidade, torna-se conhecido na Inglaterra e na América. Suas obras mais significativas foram escritas nesse período: o primeiro escrito que concede a Bulgakov um espaço no panorama teológico internacional, graças a sua doutrina Sofiológica, é A luz da Noite (1917). Bulgakov conjuga a estética arquitetônica com a estética da vida dos santos, e fala explicitando o fogo ardente que se derrama da experiência religiosa. Retorna ao que lhe interpelava: o contato com o mundo natural e a experiência estética, a percepção da realidade irredutível às leis econômicas e ao mundo material.

2 Bulgakov e a tradição patrística

Recorda-se, que em 1898 durante sua estadia na Alemanha, após a defesa de doutorado, ao ser enviado as terras germânicas em uma viagem científica, Bulgakov descobriu na Madonna Sistina de Rafael a relação da maternidade com a virgindade sacrificial do feminino que incidirá profundamente na sua vida. Nesse mesmo ano Soloviev havia publicado o poema, em três apontamentos onde narra o encontro com a Sofia, em que reconhece a unidade divina no criado. O renascimento constitui entre o que se consuma e o que se manifesta entre a arte sacra e a arte profana. Bulgakov se propôs a dar à teologia ortodoxa uma filosofia própria. A arquitetura das Igrejas no Oriente cristão são expressões do tempo e do espaço sacro. É importante perceber que a mística de Bulgakov não é desencarnada nem devocionista. Segue a grande Tradição Patrística onde a beleza é o esplendor da verdade. Para o teólogo russo esse esplendor da verdade não é abstrato, é iluminação que se estende aos seres humanos em sua totalidade. É influenciado pela teologia alexandrina, através do conceito de iluminação em Atanásio de Alexandria, presente em sua soteriologia da divinização.

Bulgakov reformula a doutrina salvífica de Irineu de Lião, a partir da teologia da imagem dos padres capadócios, sobretudo por Gregório de Nissa que trabalha a Epektasis, a orientação da alma para Deus em etapas sucessivas; sua exegese espiritual segue a linha alexandrina de Filon e Orígenes que antecipou as ideias de Gregório de Nissa referente a uma contemplação mística escatológica que brota do progresso com intenso estudo e a graça da iluminação. O coração puro e razão iluminada, uma misteriosa visão de Deus, experiência feita por Moisés: é a etapa da luz, da fascinação, e da admiração de tanta claridade, assim como a busca incessante da amada no Cântico dos Cânticos. Influenciado também pelos escritos do Pseudo-Dionísio e sua filosofia neoplatônica, bem como da tradição patrística e precedente teologia mística anterior, de Orígenes, e sobretudo Gregório de Nissa, esses padres assumem definitivamente o termo Theosis e a perspectiva kenótica que brota da iluminação para designar a divinização ou assimilação a Deus, “na medida em que isso é possível”, através da encarnação do Verbo.

Nesse horizonte semântico patrístico, Bulgakov ainda colhe de Máximo Confessor um legado da tradição para elaborar a sua antropologia da deificação, onde Cristo é “desejoso da salvação de todos os homens e faminto da sua divinização”. Máximo converge as tendências filosóficas da Escola de Alexandria e dos capadócios, sobretudo Gregório de Nissa, os interesses ascéticos de Evágrio, as meditações filosóficas e teológicas de Dionísio Areopagita, porém mantendo sua própria originalidade eclesial. Nessa articulação percebe-se que Máximo insere em sua teologia mística elementos do pensamento de Atanásio e de Cirilo, (LOTTH, 1996, p. 26-27). Máximo Confessor fez uma síntese antropológica e renovando a experiência religiosa oriental posterior apresentado Cristo, Deus-Homem, como raiz de toda realidade cósmica destinada a ser tornar realidade divina-criada. Bulgakov encontra nesse pensamento fundamentos teológicos para afirmar a sua visão sobre Deus e o mundo. “Não somente ver Deus em toda a criação, mas santificar o criado, suas formas, suas cores, a fim de que se constitua num lugar de encontro com Deus e com os santos” (SPITERIS, 2003, p. 98).

3 A importância do pensamento bulgakoviano para a atualidade

Nos escritos de Bulgakov configuram-se a renovação da teologia trinitária e da espiritualidade da Igreja Russa. Para o teólogo russo há uma alma no mundo que unifica a realidade fazendo dela uma espécie de organismo. Tanto o mundo como a alma do mundo foram criados por Deus. Influenciado pela tradição platônica e neoplatônica, concebeu a criação do mundo como uma espécie de emanação de Deus. A alma do mundo é a sabedoria que medeia entre Deus e o mundo, é como um aspecto feminino do criado. A sabedoria é ao mesmo tempo de Deus e do mundo, embora se possa distinguir uma sabedoria de Deus e uma sabedoria mundana. Essas ideias beiravam ao panteísmo, mas Bulgakov rejeitou toda acusação de panteísmo mantendo uma espécie de panenteísmo semelhante ao desenvolvido por Krause que afirmava que ‘panenteísmo’ significa literalmente “tudo em Deus’. Por outro lado, o panenteísmo também se distingue do panteísmo que significa: ‘tudo é Deus” (MORA, 1998, p. 376).

Será nos séculos XIX e XX que o pensamento russo conhecerá um momento de especial floração. Seus santos mais populares como Sergio de Rodanez, o grande educador do povo russo, que conclamava a contemplação da Trindade para se vencer a odiosa divisão deste mundo, e Serafin de Sarov, padre espiritual e taumaturgo, que falava da possessão do silêncio como lugar da descida do Espírito Santo, atestam que nas terras da Rússia amadureceu e fecundou um terreno espiritual e cultural com significação universal para toda a Igreja.

Bulgakov, apaixonado pelo movimento ecumênico e convicto da necessidade de uma reinterpretação da fé cristã e sua inserção no cenário cultural e social no tempo presente, elabora uma apresentação orgânica da tipicidade teológica da ortodoxia russa. Sua perspectiva teológica ecumênica suscita audácia pelo mistério cristão e o anúncio do Evangelho na atualidade. Para ele, a theoantropia de Cristo e a Tri-Unidade de Deus são teologias necessárias que devem ocupar o centro da vida e do pensamento cristão. Isso implica perguntar-se pela possibilidade da theoantropia de Cristo, o porquê da encarnação e da criação do homem.

4 O conceito de Teandria (divino-humanidade)

Na teologia ortodoxa russa do século XX emerge o conceito biblíco-patrístico "teandria", que significa a vida do homem no seio da Trindade a que está chamada em Cristo pelo Espírito. Tal conceito encontra sua explicação em Soloviev, enquanto percepção da presença de Deus na matéria. Os principais expoentes do conceito teandria na teologia russa foram: Bulgakov, N. Afanassieff, L. Zander, P. Evdokmov, V. Zenkovsky, G. Florovsky. Observa-se que Soloviev exerce um papel fundamental no desdobramento deste conceito, de tal forma que também seus seguidores veem nele algo tendencialmente prático, uma força diretriz e educadora da vida em sua plena configuração à obediência de Cristo à vontade do Pai. Nesses termos, unir-se à vontade de Deus em analogia à união de Cristo à vontade de Deus-Pai significa incorporar-se ao organismo teândrico que cresce no caminho escatológico do tempo. De fato, para Bulgakov, a condição da possibilidade da divinização do homem vem da sua divino-humanidade que deve ser levada à máxima potencialidade universal (BULGAKOV, 1990, p. 200). Tanto Soloviev quanto Bulgakov pensam o crescimento de um organismo divino-humano que se identifica com a Igreja no sentido do Corpo Místico de Cristo. Por outro lado, para esses autores o conceito de Teandria está marcado profundamente por uma dimensão social, o que significa considerar seu estímulo à transformação social e econômica, uma vez que, em sua raiz o conceito afeta as atitudes interiores dos homens. O conceito de Teandria vincula-se diretamente ao conceito de Sofia, encontrando neste seu aprofundamento e elucidação dogmática. O conceito de Sofia é fundamental na teologia de Bulgakov.

5 A doutrina da Sofiologia de Bulgakov e sua opção metodológica

É aqui, a partir destas questões nucleares do seu pensamento, que Bulgakov introduz a doutrina da Sofiologia, chave do seu sistema hermenêutico-filosófico-teológico para a compreensão do mistério de Deus e sua revelação. O seu trabalho é original pelo fato de apresentar uma sistematização corpórea onde a filosofia e a teologia constituem uma única fisionomia. Nesse sentido, assumir a doutrina da Sofiologia, significa apropriar-se do termo Sofia/Sabedoria como conceito materialmente determinado e teologicamente pleno. Esta é a sua tese, uma vez que para ele, diferentemente da visão cristã-ocidental que se serve dos conceitos ser, graça ou salvação na efetivação do seu exercício teológico, a visão cristã-oriental encontra no conceito de sabedoria sua mediação epistemológica.

Para Bulgakov:

a sofiologia é um Weltanschaung, uma visão cristã do mundo, uma concessão teológica, ou se quiser dogmática, que caracteriza uma tendência (nem um pouco predominante) da ortodoxia, como o são, por exemplo, o tomismo ou o modernismo em relação ao catolicismo, o ‘jesuanismo’ liberal ou o barthismo em relação ao protestantismo. O ponto de vista sofiológico define uma interpretação particular do conjunto dos dogmas e das doutrinas, das quais dizem respeito a Santíssima Trindade e a Encarnação até as questões do cristianismo prático de hoje

(1983, p. 13).

Diante dessa definição de Bulgakov, fica-nos evidente que a Sofia é algo genuinamente cristão e familiar à cultura russa. Com raízes seja na espiritualidade, seja na iconografia russa, o seu ponto de partida reside na inculturação do cristianismo na cidade russa de Kiev, onde a Santa Sofia na tradição bizantina vem identificada com a segunda pessoa da Santíssima Trindade. A doutrina sofiológica de Bulgakov insere-se na perspectiva do pensamento de Soloviev, pai espiritual da sofiologia russa, inspirado pelo misticismo (Jacob Boehme), bem como por Spinosa, Schopenhauer e Fichte e pelo conhecimento integral dos eslavófilos russos (MEYNDORFF, 1983, p. 27-37). Foi o primeiro a explorar uma visão sofiânica como síntese fronteiriça entre a filosofia e teologia, a partir da sua intuição sobre a abordagem da Sofia, no marco da relação entre Deus e o mundo. Para Bulgakov pela doutrina sofiológica se “recebe todos os dogmas que a Igreja ortodoxa confessa” (BULGAKOV, 1983, p. 13), e, concomitantemente, se lança no desafio em responder as questões sobre Deus que a atualidade levanta e que “tem necessidade de compreender de maneira nova a fórmula dogmática que a Igreja conserva na sua tradição viva” (BULGAKOV, 1983, p. 15). A questão central na sofiologia está na relação entre Deus e o mundo, entre Deus e o homem, a questão da divino-humanidade, a união de Deus com a criação inteira pela mediação do homem (BULGAKOV, 1983, 13-14).

É no marco da relação entre Deus e o Mundo que Bulgakov situa o que denominou ambos os lados do binômio divino-criatural, tão decisivos para identificar a sua ideia de Sofia. Enquanto divina, isto é, com a mesma natureza divina, “uma Ousia uma Sofia” (BULGAKOV, 1983, p. 27), Sofia divina. “A Sofia divina engloba a plenitude do ser divino, mas ela não existe como qualquer coisa de individualmente separada da Pessoa divina tri-hipostática” (BULGAKOV, 1984, p. 37). Prossegue o teólogo: “a Sofia divina é a manifestação exaustiva e total de Deus, a plenitude da Divindade. Então ela tem um conteúdo absoluto” (Ibidem). Nesses termos, para Bulgakov a Sofia divina é em Deus, Amor, princípio, vida e autorrevelação. Porém, enquanto criatural é a anima mundi – a força que impulsiona toda a criação para a unidade que já existe como protótipo, na divina sabedoria, como palavra do Verbo e respiro do Espírito (BULGAKOV, 1990, p. 215-216).

O conceito de Sofia, para nosso autor, surge da necessidade de se explicar a ideia da união hipostática enquanto modelo da união entre o divino e o humano, o criatural e o eterno. Nestes termos, as duas Sofias apresentadas por ele não devem ser entendidas como duas realidades independentes, mas como idênticas em conteúdos e diferentes no modo de ser. A sabedoria é ao mesmo tempo de Deus e do mundo, embora se possa distinguir uma sabedoria de Deus e uma sabedoria mundana. “O mundo criado está unido ao mundo divino mediante a Sofia divina” (BULGAKOV, 1983, p. 14).

A explicação sofiológica de Bulgakov não foi aceita por muitos do seu tempo. Sua doutrina foi condenada por Moscou e pelo Sínodo de Karlovtsy. Os metropolitas Sergio e A. Khrapovitsky acusaram a sua doutrina de ser possuidora de um fundo panteísta, identificando Deus e o mundo à luz da revelação. Entre os seus críticos encontram-se também Vlademir Lossky e Georges Florovsky, ambos suspeitavam que Bulgakov com sua doutrina sofiológica havia aproximado o cristianismo com o panteísmo. Bulgakov rejeitou toda acusação de panteísmo que lhe fora feita defendendo a ideia de que nada pode existir fora de Deus, como à margem d’Ele, afinal “Deus será tudo em todos” (1 Cor 15, 28). Sendo assim, mais do que uma visão panteísta, Bulgakov manteve uma espécie de panenteísmo pertencente a uma visão genuína cristã (NICHOLS, 1995, p. 65). Por outro lado, justifica sua doutrina sofiânica com citações patrísticas relativas à sofiologia aplicada. Como visto acima, Bulgakov cita uma série de Padres da Igreja, entre eles: Gregório Nazianzo, João Damasceno, Máximo o Confessor, Pseudo-Dionísio e Agostinho (BULGAKOV, 1984, p. 21). O texto constitui uma resposta às críticas de Lossky referente a sua condenação. A intenção de Bulgakov é demonstrar que a doutrina da sofiologia já está presente nos Padres da Igreja, porém, é preciso observar as duas correntes existentes. De uma parte, a sofiologia logológica, e da outra, a doutrina da ideia da recíproca relação do dogma da Trindade. Bulgakov esclarece:

Na teologia oriental, o desenvolvimento da doutrina da Sofia se interrompe depois de São João Damasceno, em razão da estagnação geral do pensamento que se perde em uma polêmica estéril, escolástica e esquemática com os Latinos sobre a processão do Santo Espírito. Durante seis séculos, não observamos alguma problemática de cosmologia sofiológica. A teologia bizantina se reaproxima novamente dela a partir da doutrina de são Gregório Palamas sobre as energias, que na verdade é uma sofiologia inacabada

(BULGAKOV, 1984, p. 22).

A fundamentação patrística apresentada por Bulgakov atesta que o tema da Sofia está enraizado na tradição teológica oriental e ocidental ligada aos Padres da Igreja. Porém, após o período de estagnação experimentado na história do cristianismo, a Igreja ortodoxa no século XIV acolhe com abertura a doutrina de São Gregório de Palamas segundo o qual a Divindade é Ousia divina que tem energias (BULGAKOV, 1983, p. 24). De fato, o palamismo abre a Igreja ortodoxa ao reconhecimento da doutrina sofiológica do mistério do encontro entre Deus e o mundo, Deus e o homem. Como observa Bulgakov, em Palamas a temática sofiológica está colocada não em relação ao dogma trinitário, mas às energias, consideradas como graça, luz taborítica sobrenatural no mundo criatural. Nas palavras do teólogo, essas energias:

Pertencem antes de tudo a potência criadora e a conservação do mundo, potência que é inerente a Sofia, a Sabedoria de Deus, em ambas as formas: a Sofia divina, qual primeiro fundamento eterno do mundo, e a Sofia criada, qual potência divina da vida do criado

(BULGAKOV, 1984, p. 23).

Diante de tudo exposto até agora, fica-nos claro que o sistema sofiológico de Bulgakov se pauta na tradição sofiológica de Soloviev e na tradição teológica oriental e ocidental ligada aos Padres acima citados. O fato inovador na opção metodológica de Bulgakov, construído pela passagem por essas matrizes histórica e teórica no âmbito da sua investigação e da produção conceitual de Sofia em sua teologia, reside na relevância que esse atributo filosófico-teológico adquire no labor teológico.

6 A categoria de Amor como chave de leitura do pensamento bulgakoviano

É na categoria Amor que Bulgakov acentua uma densidade teológica, uma vez que o Amor em Deus assume um duplo caminho: em sentido ontológico, o autopossuir-se em amor e em sentido histórico-salvífico, o automanifestar-se como amor. Para o teólogo russo, “Deus é Espírito e, como tal, tem uma consciência pessoal – hipóstasis – e uma natureza – ousia. Tal inseparável união da natureza e a hipóstasis é a vida em si da Divindade, tanto consciência pessoal quanto natureza concreta” (BULGAKOV, 1990, p. 150). Para ele, “Deus como Sujeito absoluto é personalidade tri-hipostática que na única pessoa reúne todos os modos da personalidade” (BULGAKOV, 1990, p. 150). Nesse sentido, confessar que Deus é amor, supõe entender o amor recíproco e pessoal no seio da Trindade. Prossegue o teólogo: “Dinamicamente, a personalidade se realiza como fonte de abnegação do amor, como saída em direção ao outro eu. A Santíssima Trindade, enquanto personalidade, é precisamente um tal princípio pessoal ativo” (BULGAKOV, 1990, p. 150). Na natureza divina tudo é força de Amor. Na natureza criada tudo é espírito de amor. A natureza de Deus é amor trinitariamente movido, trinitariamente dinâmico.

É aqui, nessa descrição da dinâmica intratrinitária como amor, onde cada Pessoa Divina sai em direção à outra, que Bulgakov introduz a categoria de kénosis originária (BULGAKOV, 1996, p. 174). Para ele a analogia ao tema da kénosis, de um dos mais antigos hinos cristológicos, inseridos por Paulo nas cartas aos filipenses, não é inconsistente aplicá-lo à dinâmica intradivina de Deus. Bulgakov concebe globalmente o amor de Deus como uma saída de si de cada Pessoa divina para perder-se na outra e, então, ser ela mesma. Em sua obra sobre o Espírito Santo, o teólogo russo fala do movimento e abnegação do amor. Em suas palavras: “a revelação trinitária na vida divina, ou Sofia, compreende dois atos inseparáveis: o esvaziamento de si, que é a kénosis originária; e a inspiração de si, que é a glória da processão” (BULGAKOV, 1996, p. 174).

Diante disso, fica-nos claro que na Doutrina sofiológica de Bulgakov, a ousía que se revela na hipóstasis é a Sofia. No Pai, a Sofia divina habita como ousía. No Filho e no Espírito Santo, a Sofia revela a ousía. A Sofía, revelada pelo Filho e pelo Espírito, é a própria natureza de Deus como fonte de amor. Para o teólogo, a Sofia compreendida como divindade significa a essência vivente de Deus. Nesse sentido, para ele, há um duplo conceito de Sofia: a incriada e a criada. A primeira é a autorrevelação de Deus em si, a segunda, é a revelação de Deus na criação. Nesse contexto, é possível falar de uma tríplice kénosis: a que acontece na vida intratrinitária, em seguida a que acontece na criação e, por fim, a que acontece na encarnação.

Para Bulgakov, as duas processões reais, internas e espirituais existentes em Deus, são geradas por via kenótica. Sendo assim, a concepção de doações da natureza divina que o Pai faz de si às outras duas Pessoas divinas entendidas pelas e como processões, o teólogo russo as entende na lógica do esvaziamento. Deus dá tudo de si, no entanto, não perde nada de si. Se essa é uma máxima da tradição patrística, o dar-se em Deus é compreendido como saída de si para buscar e permitir que o Outro seja. Nesse sentido, para Bulgakov, o Pai esvazia-se no Filho para que ele seja e, concomitantemente, o Filho se esvazia kenoticamente no Pai, por amor. Nessa dinamicidade íntima de Deus, o Filho também se doa inteiramente, esvaziando-se sem perder nada de si para que o Pai seja Pai. Essa relação kenótica entre o Pai e o Filho e vice e versa é o Espírito Santo, amor kenótico do Pai e do Filho.

7 O Espírito Santo como Ser e Amor

Bulgakov em sua obra "O cordeiro de Deus", ao tratar sobre o Espírito Divino afirma:

Deus é Espírito e, como tal, tem uma consciência pessoal, ‘hypostasis’, e uma natureza, ‘ousia’. Tal inseparável união de natureza e hipostasi é a vida em si da Divindade, tanto consciência pessoal quanto natureza concreta. Essa relação entre a hypostasis e a natureza que é o vínculo inquebrável pertence univocamente ao Espírito divino e ao espírito criado [...]. Enquanto a hypostasis, Deus como Sujeito absoluto, é personalidade tri-hipostática que na única consciência pessoal reune todos os modos da personalidade: eu, tu, ele, nós, vós [...]

(1990, p. 150).

Observa-se que para o teólogo russo, o Ser de Deus é compreendido como Espírito ou como Sujeito tri-hipostático (CODA, 1998, p. 90). Com essa afirmação, Bulgakov quer oferecer com sua reflexão que pensar a Deus como Espírito significa a ampliação do termo pessoa aplicado analogicamente a Deus. Recorda-se que para a teologia da Trindade o termo "pessoa" adquire total significação, uma vez que, expressa o modo mais perfeito de ser da substância. Em Deus, a pessoa significa relação de origem, essência divina considerada como subsistente.

Com efeito, Bulgakov busca na teologia trinitária de Santo Agostinho aquilo que para ele a teologia ortodoxa carece. Em suas palavras: [...] Agostinho faz uma veritável descoberta trinitária e pneumatológica, quando exprime, pela primeira vez, uma ideia perfeitamente estranha à teologia oriental, a saber: a Santíssima Trindade considerada como Amor (BULGAKOV, 1996, p. 49). De fato, o Bispo de Hipona compreende a relação das pessoas tri-hipostáticas na perspectiva do amor. Para ele, em Deus há uma relação de mutualidade e de reciprocidade de amor. Sendo assim, a compressão da Trindade como Amor significa compreender que em sua natureza íntima, Deus se revela como Amante, como Amado e como Amor. O incremento mutual entre Deus e o Amor é para Bulgakov um axioma ontológico fundamental, uma vez que, para o teólogo russo, a afirmação “Deus é amor” implica compreender Deus como amor e o amor como Deus. Então, se para ele em Agostinho se dá a descoberta trinitário-pneumatológica, isso permite ao pensamento teológico, tanto ocidental como oriental, aprofundar que o ser de Deus existe na medida em que se entrega a si mesmo, em generosidade interior no encontro, ou ainda, na comunicação pessoal. Como afirma Xavier Pikaza: “Deus é um encontro de amor (circuminsessio), uma espécie de festa de glória onde cada uma das pessoas encontra o seu sentido e plenitude na outra” (2005, p. 147).

No horizonte semântico dessa compreensão do ser de Deus, seria hoje inconsistente imaginar qualquer possibilidade de uma oposição ontológica entre o Ser e o Amor. Se a afirmação dos Padres gregos de que cada Pessoa divina existe em si mesma existindo na outra, os termos in-habitação dialógica ou pericorética, bem como circuminsessio, permitem dizer que em Deus tudo é movimento, círculo virtuoso de Amor, onde cada Pessoa existe à medida que caminha para a outra em processo circular (circum) que culmina no Espírito. Com efeito, como afirma Bruno Forte: “foi a teologia do oriente que pôs em evidência o papel de abertura que o Espírito exerce no relacionamento entre o Pai e o Filho: ele é em pessoa o dom do amor, o êxtase do Amante e do Amado, o seu sair de si para dar-se ao outro na eternidade e no tempo” (1995, p. 164).

Ainda nesse enfoque sistemático de se pensar a questão do Ser e o Amor, o célebre anacoluto joanino que “Deus é amor” (1Jo 4,16), continua a inspirar uma gama de pensamentos teológicos que dialogam e se complementam com o pensamento de Bulgakov a considerar a essência divina como um ato de amor, infinito, subsistente e sacrificial nas três Pessoas divinas e, consequentemente, compreender a criação como kenósis e esplendor do Seu Amor eterno.

Nesse sentido, com a redescoberta da categoria amor para referir-se a Deus torna-se a aportação mais importante da teologia atual que redimensiona a leitura metafísica do Ex 3,14 (Eu sou o que sou). Como afirma Lucas M. Mateo-Seco: “O amor é a forma em que existe o ser. A história da salvação brota da infinita e soberana liberdade de Deus. Pois esta liberdade soberana é exercida por Deus em coerência com sua íntima natureza, que é amor e gratuidade” (1988, p. 639). Em efeito, uma ontologia que não esclareça previamente o sentido do ser, permanece insatisfatória para dar conta de sua tarefa fundamental.

8 A não-separação entre Deus e o mundo

Inúmeros teólogos não só do Oriente, mas também do Ocidente se inclinam a considerar que a ideia da kénosis originária de Deus encontra-se inserida no coração da revelação cristã (HAUGHT, 1998, p. 31). Com efeito, a ideia do autoesvaziamanto de Deus na base da criação toma cada vez mais consistência numa reflexão teológica que não se exime de olhar a essência de Deus Tri-Uno como mistério de Amor. Quando se tem como base a forma em que Deus tem revelado a sua vida íntima, o fazer teológico finca suas raízes epistemológicas lá onde Deus diz tudo de si mesmo: Sua autocomunicação se corporifica em palavras e atos de amor. Em sua revelação, Deus se manifesta primordialmente como mistério de Amor que assume uma fisionomia corporal no coração da história, lugar por excelência de sua presencialidade.

Nas palavras de Bruno Forte, é a kénosis do amor eterno “que permite ao ser finito vir à existência e nela permanecer, na contingência da liberdade” (1995, p. 258). Na criação, a auto-humilhação de Deus é o respeito do Criador com a alteridade da criatura. Continua o teólogo napolitano: “o Deus trinitário ‘abre espaço’ em si mesmo à sua criatura: a gratuidade absoluta do amor, que motiva o Pai a executar o ato criador, o impele a autolimitar-se para que a criatura exista na liberdade” (1995, p. 257). Observa-se que Forte, próximo da teologia de Bulgakov, compartilha a ideia da criação como [emanação] de Deus no seu eterno movimento de autorretrair-se para dar espaço para que o outro seja. A criação assume a configuração de ser o outro de Deus. Porém, a alteridade garantida não significa separação entre Deus e o mundo criado, pois como afirma Bulgakov: não há separação entre o Mundo e Deus (1984, p. 46-47).

Bem entendida essa afirmação bulgakoviana, compreende-se que Deus não priva a criação do seu poder divino, ao contrário, o seu poder atua no coração do mundo. Como se encontra no Evangelho de João: “Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez (Jo 1,3).” Essa concentração cristológica preexistente revela também que o mundo divino é a essência do mundo criado. Nas Palavras de Bulgakov, o mundo criado “não contém nada ontologicamente novo para Deus. Nele se revelam as palavras do verbo eterno, que faz o conteúdo ideal da Sofia divina, da vida de Deus” (Ibidem, p. 46). É o Espírito Santo com seu poder vivificante, em sua kénosis no mundo, que doa ao mundo criado a sua razão ontológica de ser, revelando a beleza das palavras que cria e recria. Com o seu Verbo e sua Pneuma, Deus cria e recria o mundo. Dá-lhe sempre uma ordem. Nessa tintura da existência, na dinâmica da origem está a Palavra que se precipita do eterno Silêncio; está o Alento que tudo ordena, o sopro de Deus que age no mundo harmonizando-o, tornando-o belo e límpido, um mundo transparente segundo o seu sentido mais original, pensado e querido por Deus, seu criador.

Olhar a criação à luz da autolimitação divina é reconhecer a relação entre o criador e a criatura não somente no horizonte da contingência histórica que delimita a distinção e a assimétrica alteridade entre ambos, mas os fundamentos eternos e divinos que conferem à criação a sua condição de inacabamento. Como afirma John F. Haught: “na resposta da fé à imagem kenótica de Deus encontra-se o surpreendente modo de dar sentido novo ao nosso senso normalmente confuso do mistério [...]” (1998, p. 31).

9 A Kénosis do Espírito Santo e o princípio de alteridade

Em que consiste a kénosis do Espírito Santo na criação para Bulgakov? O teólogo afirma que na criação do mundo o Espírito Santo, que é plenitude e profundidade divina, humilha-se a descer e revelar-se na Sofia criada. Em suas palavras, aquele que é, na vida divina, a profundidade de Deus por um ato único e eterno, no ser criado, é a força do ser e a doação à vida; “porém esse ser e essa vida, seguindo a noção mesma de criatura, não existem como devir, isto é, não como plenitude, mas somente em um elan que se direciona para o último” (BULGAKOV, 1996, p. 211).

Observa-se aqui que Bulgakov não somente herda uma visão trinitário-pneumatológica dos Padres gregos, conservando o equilíbrio entre as duas missões das Pessoas divinas na criação, como também amplia a compreensão da originalidade da missão do Espírito em seu aspecto kenótico. De fato, a teologia nos ensina que na economia salvífica dois movimentos divinos caracterizam a sua fisionomia corporal: o movimento do Pai que cria pela mediação do Filho e, concomitantemente, o seu movimento de aperfeiçoamento de toda a obra criada na ação do Espírito Santo. Por outro lado, a ação kenótica do Espírito Santo deve ser compreendida em sua relevância soteriológica igual à do Filho, porém distinta, pelo fato de não se encarnar. Sua kénosis está no permanecer na revelação sem rosto e de rebaixar-se à liberdade humana em sua lentidão para o acolher. É aqui o nexo entre cristologia e pneumatologia, uma vez que a força da salvação cristã não pode ser irradiada e não ser por alguém igual ao Filho. A kénosis de Cristo, maturação de toda capacidade e vontade divina de fazer a experiência humana, estende-se e realiza-se no evento da cruz e na série de abandonos experimentados por Jesus (Mc 15,34; Mt 27,46). É em analogia à kénosis do Filho que é possível falar sobre a kénosis do Espírito Santo, uma vez que a primeira é chave de compreensão da segunda. Se o cumprimento da divinização do homem é obra do Espírito, evidencia, portanto, que a característica do Espírito é a radical kénosis de Si. O Espírito se apresenta em Bugakov como o guardião do mistério em Deus, e ao mesmo tempo ad extra. Há uma dinâmica pericorética imanente e econômica.

10 A Criação como kénosis do amor

Do ponto de vista de Bulgakov, o vínculo trinitário é vínculo de amor. “O amor divino na Trindade, o ser em si de Deus, é o fundamento do amor de Deus, que sai de Si para o mundo em kénosis criadora” (1990, p. 183). A criação é obra divina, mas o ser de Deus é eterno e sem princípio. Enquanto obra querida por Deus, a criação traz em si a inspiração do amor, o que se liga à terceira Pessoa da Trindade, a Ruah divina. Na criação do mundo cada pessoa da Trindade age de forma correspondente a sua qualidade. O Pai, enquanto princípio e Vontade primordial. Conforme atributo pessoal da hipostasis paterna, o amor que se difunde, emerge como Criador do céu e da terra, das coisas visíveis e invisíveis. Do Pai procede a vontade exodal de Si mesmo mediante o “fiat” criador.

Dessa forma, a kénosis do Pai na criação consiste em sair de si para o mundo, o Absoluto-relativo. O transcensus em direção ao mundo é o sacrifício do amor do Pai, análogo à geração do Filho na vida ad intra trinitária, onde o Pai gera eternamente o Filho dando tudo de Si. O Pai cria com a Palavra, (a DABAR), do verbo ser, concluindo os seis dias da criação, o que equivale às seis palavras do Verbo proferido do Pai. O Filho é o conteúdo da criação em suas formas e aspectos. Em saída do seio do Pai, o Filho adentra-se na criação, identificando-se com essa, o que já demonstra uma kénosis. Bulgakov apresenta que o Cordeiro de Deus é eternamente imolado na criação, uma nova forma do amor oblativo de Deus, pois tal amor não significa apenas a saída verso ao mundo, mas, também o envio do Filho com o qual se inicia a oferta da vítima. Do ponto de vista de Bulgakov,

Deus é amor, e a criação do mundo é obra do seu amor e de sua autorrevelação. Deus é amor e esta é sua autodeterminação ontológica, mas esse amor se rebaixou, se fez pobre em diversos modos. Outro é o amor de cada uma das hipóstasis em relação às outras hipóstasis; outro é o amor da Santa Trindade à própria natureza, que é a sofia, como também outro é o amor dessa última à santa Trindade, outro enfim é o amor de Deus a sua própria criação

(1991, p. 83-84).

A lógica da criação e a sua beleza é o amor de Deus, em que a força advém da abnegação e do autossacrifício, e da kénosis recíproca do tudo, onde se encontra a própria plenitude da própria glória. Existe uma relação recíproca de amor entre a verdade e a beleza da Sofia divina. Em Deus tudo é perpassado pelo amor. O amor trinitário é oferecido reciprocamente como abnegação das hipóstasis, onde cada uma é compenetrada, pericoretizada pela outra. Nesse sentido complexo qual eterna kénosis, onde cada uma supera no comum amor trinitário e na perfeita beatitudini (Ibidem, p. 85). Outrossim, a relação trinitária nos confrontos da natureza, isto é, da Sofia, é altamente kenótica. A Sofia divina, por seu próprio conteúdo qual mundo divino, é o autopor-se de Deus. A criação do mundo é inclusa no autopor-se sofiânico de Deus e consiste no fato de que o ser divino recebe, na Sofia, um ser-outro no mundo. Há uma dupla forma na Sofia. Uma na eternidade e outra no criatural. A criação insere-se na eternidade divina onde encontra sua raiz e seu cume (BULGAKOV, 1991, p. 449). Portanto, a Sofia se apresenta, no pensamento de Bulgakov, como a autorrevelação do trinitário no tempo, no cosmo, na kénosis e na parusia: inseparável daquele que se revela e, portanto, subsistente em si como conteúdo da revelação. A Sofia é o Ícone de Deus em Deus mesmo. Bulgakov compreende o amor de Deus como esvaziamento. O amor não é uma qualidade em Deus, mas a essência mesma do amor.

Afirmar que Deus cria por amor é compreender que antes que tudo fosse, a criação já estava em Deus. Nesses termos, enquanto ato do Amor Incriado, a criação é um outro ato kenótico de si mesmo. No entendimento de Bulgakov, a criação é um outro autoesvaziamento de Deus tal como o compreendeu a mística judaica ao referir-se a essa realidade como um êxodo de Deus. Para o teólogo russo a criação é um ato kenótico de Deus em sua contínua e dinâmica autodesapropriação intratrinitária. Nesse sentido, a kénosis é o elemento interior revelativo e constitutivo da dinâmica concreta do amor; dinâmica na qual o Espírito representa a realidade resolutiva da kénosis em Deus. Bulgakov compreende que não há amor sem sacrifício. Com efeito, para ele, o amor trinitário pode ser nesse sentido, compreendido pela kénosis. (CODA, 1988, p. 44). Na Trindade, a kénosis consiste no renunciar o próprio eu para estar e ser no outro. Nessa dinâmica, o Espírito é a hipóstasis da beleza e da alegria na qual o Pai e Filho gozam de seu recíproco doar-se. Nesse aniquilamento sacrificial se cumprem a beatitudine do amor, a autoconsolação do Consolador, a alegria de Si, a beleza, a autodileção, e o ápice do amor. (BULGAKOV, 1987, p. 145). O mundo recebe o Pneuma somente porque Esse em sua kénosis é condescendente à medida da criação. A criatura recebe o Espírito Santo progressivamente, enquanto o Verbo possui o Espírito imensuravelmente e o doa sem medida; mas somente na eschaton, na transfiguração do mundo a criatura poderá devir na plenitude pnematófora (Ibidem, p. 401). O Espírito reveste o mundo de beleza, é indicado como graça da criação. O Espírito se apresenta como o artista do mundo, o princípio da forma e a forma das formas (Ibidem, p. 99). Na economia do AT, tanto o Filho como o Espírito aparecem escondidos kenoticamente na hipóstasis do Pai. Bulgakov, influenciado por Filarete de Moscou, trata a questão do Logos como o cordeiro de Deus imolado antes da criação do mundo (BULGAKOV, 1991, p. 413). Desta feita, não hesita em dizer que a kénosis do Espírito Santo é tal, que Ele não desdenha morar no último dos pecadores, tal é a virtude do Espírito Santo:

Espírito desce nas trevas, no vértice da escuridão e habita no espaço do não ser. Aqui novamente está sua kénosis, sem a qual sua comunhão com a criatura se torna impossível. Impossível medir o amor e a grandeza de Deus em sua condescendência para com a humanidade. Isto é toda a criação traz em si o fogo do amor divino e o esplendor fulgurante de sua beleza (BULGAKOV, 1991, p. 432).

11 A kénosis do Espírito e a creatio contínua

Nas palavras do teólogo: “Deus ao criar o céu e a terra, isto é, o conjunto de tudo que está criado, deixou sua natureza entrar na liberdade criativa do não ser, chamado a ser” (Ibidem). Cabe aqui recordar que para a dogmática cristã, na economia salvífica, existem dois movimentos que constituem a ato criador de Deus-Pai: ele cria por meio do Filho e aperfeiçoa sua criação por meio do Espírito, sua destra atuante no mundo. O Espírito possui uma relevância soteriológica igual à do Filho, pois pela sua ação, as energias divinas transformam o mundo criado e o diviniza. O Espírito Santo é potência, energia e inspiração, sendo assim, precede e segue o Filho, desde o princípio da criação e em toda a criação, até à glorificação escatológica.

Nesse sentido, quando os Padres da Igreja situavam a vontade livre do criador como categoria determinante da fundamentação e da explicação do mundo, a poética bíblica de Gn 1,1-2,4a serve como instrumento hermenêutico para ressaltar o motivo da criação. O Creatio ex nihilo da tradição filosófica platônica grega foi reinterpretado pelos teólogos da Igreja primitiva como Creatio ex amore. Segundo a fé cristã, a criação não surge por uma necessidade interna divina, mas é um dom gratuito e incompreensível do criador que atua no mundo com plena e total liberdade. O que se observa é que no relato bíblico da criação, o da cosmogonia de Gn 1, a palavra e o espírito criadores estão precedidos por um caos hostil à vida, que não pode ser confundido como um material autônomo previamente dado e destinado a ser modelado pelo criador. Caos, como explica Bulgakov, denota que a terra informe e vazia, que a escuridão do abismo, estão dotados de capacidade de ser, isto é, possuem uma força elementar que existe em si no seu estado informe e vazio (BULGAKOV, 1984, p. 56). Se de um lado, é um caos reduzido a seus limites, por outro lado, é capaz por si mesmo de dar espaço ao cosmos pleno e inteiramente criado por Deus e às condições favoráveis à vida. Nesse sentido, é incompatível pensar o caos como realidade anterior ao ato criador, isso implicaria a existência de um princípio da realidade que marcaria limites à onipotência divina. Então é preciso pensar, como afirma Bulgakov: “uma criação não mais ex nihilo, mas a partir de uma matéria primeira, como de uma matriz original e fecunda chamada a participar da criação que é feita segundo o seu modo: a ‘terra’ responde aos chamados criadores” (BULGAKOV, 1984, p. 58). Esta é a sua força procriativa inata, força terrena da energia criativa de Deus, segundo a natureza théo-crística dos diferentes atos criadores. Como afirma Bulgakov: “a naturans é criada primeiro, plena de força em vista de todas as ações possíveis dos seres particulares; pois a partir dela e nela, são criados os diferentes gêneros da natura naturata” (Ibidem).

Ao criar o céu e a terra, Deus-Pai criador potencializa universalmente a terra, de tal forma que desde a sua origem ela participa, como uma espécie de potentia obedientialis, ao chamado de Deus à existência de todas as coisas por Ele criadas. Do caos Deus chama ao cosmos, do informe e vazio ao cosmético e harmonioso. A terra está potencializada pelo ato criador a responder positivamente ao chamado de Deus à vida. Ela participa sem restrições ao poder de Deus, que tudo ordena e determina. A matéria possui um espírito permeável e de abertura, condição de sua capacidade positiva de resposta ao criador. Esta sua capacidade ontológica tem por condição a kénosis do Espírito de Deus que atua na criação. “Desde sua origem, a criatura tem o Espírito de Deus, ela o porta, bem que essa capacidade conhece a sua medida” (BULGAKOV, 1996, p. 213). Em virtude dessa manifestação do Espírito natural a criatura é capaz de receber o espírito por uma benção, o fiat de Deus. (Ibidem).

Na poética bíblica do relato da criação do Gn 1, a resposta da terra aos múltiplos chamados de Deus atesta com evidência a alteridade entre Deus e a terra

que produz como a natura naturans de onde surge a natura naturata. Deus bendiz a sua criação dizendo: faça-se... e, então se fez... Ao bendizer a matéria, o fiat criador de Deus, sua força de vida e de ser, a sua graça natural, constitui o fundamento do ser criado, pois na carne do mundo, na substância mundial, na recepção do Espírito está a condição da santificação de toda a criação

(BULGAKOV, 1996, p. 212).

Com efeito, a narrativa bíblica da criação, lida à luz da condição da kénosis do Espírito, permite-nos intensificar o caráter sagrado do texto a partir do seu valor teológico e poético. Com efeito, nesse horizonte fecundo da ação do Espírito, o sentido da criação contínua (creatio continua) exige que se pense também que a criação de Deus tem sido confiada ao homem, enquanto administrador de Deus, como dom precioso a ser cultivado (Gn 1 e 2). Sendo assim, o conceito do homem como administrador se converte em uma ideia reiterativa tal como se apresenta no Livro da Sabedoria.

Deus de nossos pais, e Senhor de misericórdia, que todas as coisas criastes pela vossa palavra, e que, por vossa sabedoria, formaste o homem para ser senhor de todas as vossas criaturas, governar o mundo na santidade e na justiça, e proferir seu julgamento na retidão de sua alma

(Sb 9, 1-4).

A compreensão do homem como administrador legítimo da criação, além de se converter em uma ideia reiterativa do livro da Sabedoria 9, 1-4, lança um olhar renovado sobre o homem desde as verdades da revelação judaico-cristã. Deus em sua fidelidade, não somente mantém a existência da sua criação, mas fundamenta-a na lógica do seu amor superabundante. Deus cria e conserva sua criação por amor. Nesse sentido, compreende-que a ideia do Creatio ex amore da Igreja primitiva autoriza a fé a falar, com razão, da conservação da criação – conservatio mundi –, pois esta conservação se insere essencialmente na ação criadora de Deus.

12 A criação e a ética ecológica

É aqui, na consciência de que toda a criação supõe um devir, um desdobramento, que a responsabilidade ético-teológica ganha cada vez mais sentido, isto porque a relação de alteridade entre o homem e a natureza, tal como se deu no paraíso do Éden, é paradigma da exigente ação humanizadora do mundo natural. Para Bulgakov o homem é chamado a humanizar o mundo natural (1984, p. 242). Nesse sentido, segundo o teólogo, é preciso que busquemos em nós mesmos a inspiração daquele potencial escondido, reservado no mais íntimo do nosso existir, capaz de nos impulsionar a uma atuação criativa orientada sofianicamente para a integração, para o Adão coletivo, uma vez que, a humanidade é una pela unidade de sua natureza e una pela unidade de sua vida.

Nesses termos, por um lado, é preciso compreender que para Bulgakov ressaltar a relação do homem com a natureza no Éden, não se trata de afirmar a saudade do Paraíso terrestre, mas apontar para a esperança que dele emerge. Esperança essa que nos obriga a buscar o potencial inato em nós, aquele que se encontra mais escondido em nós e que caracteriza a alegria criativa do sentido que teve o Paraiso originário. Por outro lado, compreender a unidade genérica panantrópica de Adão, ou melhor, a unidade de Adão, o Adão coletivo, como afirma o teólogo, duas realidades se colocam em evidência: a consciência e a ação. “A consciência é uma função da unidade de Adão, da humanidade que se realiza nele [...] Porém, essa unidade não se efetua somente pela consciência, mas também pela ação do homem no mundo” (1984, p. 243).

Diante disso, fica-nos evidente que a relação do homem com a natureza, isto é, com seu entorno natural, com o mundo criado, insere-se, por conseguinte, para o crente, no âmbito, de mais amplo alcance, cujas raízes do ser humano se submergem no oceano profundo da vida divina. É a relação entre Deus e o homem que se configura como sinal original e originante de todo processo de humanização e que a fé judaico-cristã antepõe a atuação eticamente responsável do homem na e sobre a natureza. A nossa condição unitiva como terra, casa comum, ou ainda, nas expressões de Bulgakov, o Adão coletivo que somos todos, enquanto humanidade una pela natureza e pela vida, apresenta-nos no mundo como “sujeito transcendental da economia que tem uma ação geral e comum dos homens no mundo” (1984, p. 243).

Nessa perspectiva, o pensar a sofiologia de Bulgakov como pauta da agenda das discussões ético-teológicas da atualidade nos provoca a resgatar a sua ideia de economia sofiológica. Considerando que o mundo é “plástico” e que a relação do homem com a natureza é uma atividade criativa que requer intenção e possibilidade, esta pode ser recriada em diferentes modos. Para Bulgakov, por meio da atividade econômica, o homem é capaz de transformar a natureza de acordo com a sua vontade, pois está dotado de uma capacidade criativa e envolta à Sofia divina. Em suas palavras: “a natureza sempre percebe seu reflexo no homem, assim como, apesar de suas falhas, o homem sempre percebe seu próprio reflexo na Sofia” (2000, p. 145). De fato, para Bulgakov, o conhecimento, a economia, a cultura e a arte, participam da Sofia divina, isto porque nesses campos refletem os raios do Logos divino que esclarecem o enigma da criatividade humana (Ibidem). Se a economia participa da Sofia divina, é no mínimo provocativo revisitar este conceito tão pertinente na atualidade na perspectiva bulgakoviana.

Estamos diante do grande desafio da atualidade: repensar uma nova economia diante da dramática realidade da desigualdade social e da devastação do planeta. É urgente repensar a função da economia na sociedade atual, porém a partir de outras nuanças que não sejam aquelas que se pautam na lógica do lucro e do consumo. Há uma inteligência econômica que precisa ser resgatada; nesse sentido, parece-nos que a ideia de economia sofiológica de Bulgakov tem algo a nos dizer. A relação do homem com a natureza não pode continuar sendo pautada na lógica do utilitarismo e no mero valor da produtividade. A economia deve estar a serviço da vida e do bem comum. Se como afirma nosso autor: “na atividade econômica, o novo mundo da cultura toma forma” (BULGAKOV, 2000, p. 143); então, é urgente, não somente ver Deus em todas as coisas, mas santificar toda a criação. Nas palavras de Medard Kehl, reencontrar o sentido religioso da criação, “leva à crença de que, por trás das obras elegantes do mundo, esconde-se um ‘artista divino’ que de maneira admirável, dá a cada coisa a forma que ela merece de acordo com suas ‘idéias’” (2012, p.160).

Para Bulgakov, quando a economia se deixa conduzir pela Sofia divina, as forças divinas do Logos irrompem no mundo, “desempenhando um papel na natura naturans em relação a natureza, o que torna o ser humano uma criatividade possível” (Ibidem). Se assim o for, a economia diante da natureza não pode valer-se do poder do preço e da lógica do consumo, mas refletindo a luz da Sofia deve esforçar-se para superar a natureza e pela cultura humanizá-la verdadeiramente. “A natureza é basicamente já nata, criada, mas também é natura, recriada. A cultura recria a natureza” (Ibidem, 149). Pensar a relação do homem com a natureza à luz da economia sofiológica de Bulgakov nos inspira a reafirmar o que se encontra expresso na Evangelli Gaudium: a abertura do homem à transcendência, “poder-se-ia formar uma nova mentalidade política e econômica que ajudaria a superar a dicotomia absoluta entre economia e o bem comum social” (EG 205). Pensar uma sociedade que se construa a partir da circularidade do amor divino, a eterna autorrevelação da Trindade.

Conclusões

Para Bulgakov, a kénosis do Espírito Santo no ato da criação caracteriza-se sob a forma de benção da matéria. Para ele, essa condição kenótica do criador manifesta o seu fiat, sua força de vida e do seu ser; sua graça natural toca a carne do mundo e a marca potencialmente (1996, p. 212). Em suas palavras: “essa graça natural constitui o fundamento mesmo do ser da criatura, é na carne do mundo, na substância mundial; ela é a condição da santificação por meio da recepção do Espírito Santo” (1996, p. 212). Mas ele mesmo pergunta: “Como as coisas e a matéria podem ser benditas, isto é, receber e reter a ação do Espírito Santo à graça sobrenatural?” (1996, p. 213). Somente o espiritual pode receber o espiritual. Nesse sentido, pensar a kénosis do Espírito Santo com sua graça invisivelmente descida, com o eclipsar-se que lhe é próprio, é penetrar a alma do mundo, isto é, o princípio que vincula e organiza a multiplicidade do mundo.

Assim como para os Padres da Igreja, também para Bulgakov, o Espírito cria e recria e com o seu poder ordenador se apresenta como o “artista do mundo”. Com efeito, a criação está dotada de um aspecto estético, ou ainda, nela, a manifestação da Sofia divina se nos dá como Beleza do Cosmos, a sofianidade sensível do mundo. Então, o “artista do mundo”, o Espírito Santo, introduz de maneira efusiva a pessoa humana na ontologia do mundo, lá onde a emoção estética tem a ver com admiração e fascínio, e, consequentemente, com a interpelação que afeta o ser humano a elevar-se para a centralidade ética da beleza do sentir e do cuidar.

Para Bulgakov: “O existir para o homem tem uma função estética única: a criação da beleza, a arte” (1984, p. 244). A arte consiste em conhecer a beleza e revestir-se dela; sendo assim, na atualidade, frente ao progresso incontrolado em que se vive e a exploração desmedida da natureza, é urgente revestir-se da arte do cuidado e tomar consciência que a união do homem com a totalidade da criação de Deus tem consequências ético-teológicas efetivas. Então como não pensar, como o fez Bulgakov, no célebre anacoluto dostoievskiano: “a beleza salvará a humanidade”. Mas qual beleza? A beleza ordenada do Espírito, aquela que envolve o ser humano numa relação de alteridade com o Criador e com a criação. A beleza ética em que o ser humano é, concomitantemente, colaborador, pensador e artesão do amor. A beleza do amor que impulsiona o ser humano a sair de si para buscar o outro, para dar-se ao outro, para permitir que o outro seja verdadeiramente outro. Beleza que não combina com utilitarismo ou instrumentalização do outro; que não tem nada a ver com interesses mesquinhos e com as tragédias ambientais provocadas intencionalmente por interesses sócio-político-econômicos.

A fé bíblica apresenta a criação para todos os homens e para todas as gerações como casa comum. Nesse sentido, a ideia do Adam-coletivo ou único Adão de Bulgakov é pertinente, isto porque atesta a afirmação bíblica originária de que cada pessoa humana é responsável pela transmissão às futuras gerações desta certeza de fé. Para o teólogo russo, “a humanidade é una pela unidade de sua natureza e pela unidade de sua vida [...], cada pessoa participa da história, porém, o sujeito único é todo gênero humano” (Ibidem, p. 243). Assim, cresce a responsabilidade do ser humano de salvaguardar a criação para não transmitir um deserto árido e infecundo, mas um jardim a ser cultivado, uma vez que, a consciência é uma função da unidade de Adão (Ibidem). Nasce daqui uma ética ecológica que marca a ação do ser humano no mundo enquanto sujeito transcendental desta economia (Ibidem). De fato, como afirma Willis Jenkins: “o tema de Bulgakov sobre a humanização percebe essa possibilidade na criatividade sofiânica de uma sabedoria ecológica (2013, p. 214).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2020
  • Aceito
    10 Ago 2020
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