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JOÃO BATISTA LIBANIO: UM DISCÍPULO AMADO

João Batista Libanio: a Beloved Disciple

RESUMO

Neste artigo pretendemos investigar a influência de Henrique Cláudio de Lima Vaz no percurso intelectual de João Batista Libanio. Para isso assumiremos como ponto de partida o texto “Lições do Mestre”, escrito por Libanio. Também examinaremos o artigo “Cristianismo e pensamento Utópico” e a resenha sobre a obra “Teologia da Libertação: roteiros didáticos para um estudo”, ambos escritos por Lima Vaz. Trata-se de investigar de que modo a influência de Lima Vaz marcou o modo de fazer teologia próprio de Libanio.

PALAVRAS-CHAVE
Lições; Influência; Mestre; Discípulo

ABSTRACT

In this article we intend to investigate the influence of Henrique Cláudio de Lima Vaz on the intellectual route of João Batista Libanio. For this, we took as a starting point the text “Lições do Mestre”, written by Libanio. We will also examine the article “Cristianismo e pensamento utópico” and the review of the book Teologia da Libertação: roteiro didático para um estudo, both written by Lima Vaz. The aim is to investigate how Lima Vaz’s influence marked Libano’s own way of doing theology.

KEYWORDS
Lessons; Influence; Master; Disciple

Introdução

João Batista Libanio nutria relação de amizade e proximidade com Henrique Cláudio de Lima Vaz, de quem havia sido aluno em Nova Friburgo e com quem conviveu por vários anos em Belo Horizonte. Neste artigo, pretendemos indicar possíveis “influências” que Libanio recebeu de Lima Vaz, a quem considerava como Mestre. Para isso, assumiremos como ponto de partida o texto escrito pelo próprio Libanio por ocasião da comemoração dos oitenta anos de vida de Lima Vaz. Trata-se do capítulo intitulado “Lições do Mestre”. Propomos, então, retomar essas lições que podem ser compreendidas como “sinalizações a que os discípulos recorrerão à medida que necessitarem” (LIBANIO, 20023 LIBANIO, J. B. Lições do Mestre. In: MAC DOWELL, J. A. Saber Filosófico, história e transcendência. São Paulo: Loyola, 2002, p. 361-372., p. 372).

Importa ter presente, ao examinar essas lições, que Libanio conferia grande importância à dimensão simbólica. Em consequência, parece bastante sugestivo que ele tenha elencado um número determinado de lições. Esse número não nos parece ter sido escolhido de modo aleatório. Trata-se de escolha cuidadosa, que nos diz muito da influência recebida. Por isso, ao retomar o texto “Lições do Mestre”, parece-nos fundamental olhar com atenção para esse dado.

Além disso, cabe indicar que, se por um lado o teólogo reconhecia o filósofo como Mestre, por outro, o filósofo também nutria admiração e respeito pelo trabalho realizado por seu “discípulo”. Como exemplo desse reconhecimento podemos citar uma resenha escrita por Lima Vaz a respeito do livro Teologia da Libertação: roteiro didático para um estudo, publicado em 1987. Na resenha, Lima Vaz tece considerações muito elogiosas ao trabalho realizado. Ele diz:

No livro de Pe. Libanio brilha indiscutivelmente as qualidades didáticas que o tornaram um dos mais solicitados expositores de temas teológicos e pastorais da América Latina e em diversos países da Europa. À sua excelente formação teológica, de resto profundamente clássica, o Pe. Libanio acrescenta uma sólida e ampla base humanista, formado que foi na antiga Ratio Studiorum S.J., e uma rigorosa preparação filosófica. Com este fundamento o seu trabalho teológico alcança um nível de elaboração intelectual que marca inconfundivelmente esse e outros livros seus

(LIMA VAZ, 19887 LIMA VAZ, H. C. de. Resenha do livro Teologia da Libertação: roteiro didático para um estudo. Síntese, Belo Horizonte, v. 16, n. 43, p. 89-94, maio/ago. 1988. , p. 90).

Tal posição nos leva a defender que, apesar de possíveis diferenças, havia certa comunhão no trabalho intelectual desenvolvido por esses dois importantes pensadores brasileiros. Isso nos conduz a afirmar que na relação entre Mestre e “discípulo” havia sintonia de perspectivas. Isso porque ambos assumiram com responsabilidade “o amor a uma vida séria de estudos como serviço à cultura e à fé” (LIBANIO, 20023 LIBANIO, J. B. Lições do Mestre. In: MAC DOWELL, J. A. Saber Filosófico, história e transcendência. São Paulo: Loyola, 2002, p. 361-372., p. 372). Esse reconhecimento do importante papel assumido pelo “discípulo”, torna-se nítido quando Lima Vaz afirma que

Quanto à TdL (Teologia da Libertação) [...] trata-se de um importante movimento de ideias e de iniciativas pastorais no seio das Igrejas cristãs, sobretudo da Igreja Católica na América Latina, com irradiação para o resto do 3º mundo e mesmo do 1º, que já produziu resultados apreciáveis e pode produzir novos e melhores frutos se consentir em se reciclar metodológica e tematicamente, se se fizer um pouco menos militante e um pouco mais interrogante, se aceitar emprenhar-se num diálogo mais profundo e mais exigente com a tradição teológica. Penso que o livro do Pe. Libanio aponta essas direções e, portanto, deve ser saudado como início de nova e auspiciosa fase da TdL

(LIMA VAZ, 19887 LIMA VAZ, H. C. de. Resenha do livro Teologia da Libertação: roteiro didático para um estudo. Síntese, Belo Horizonte, v. 16, n. 43, p. 89-94, maio/ago. 1988. , p. 93-94).

Considerando, portanto, o importante lugar atribuído a Libanio por Lima Vaz, ou seja, o espaço de alguém que é capaz de inaugurar uma nova fase da Teologia da Libertação, arriscamos supor que, se por um lado, Libanio afirma explicitamente o reconhecimento de Lima Vaz como Mestre, por outro lado, Lima Vaz, também nutria certo “orgulho” de seu “discípulo” com quem estabeleceu profunda amizade ao longo da vida. Nesse sentido, ao propor investigar possíveis influências de Lima Vaz no pensamento de Libanio, propomos pensar Libanio como “um discípulo amado”.

Com objetivo de refletir sobre as influências de Lima Vaz na reflexão de Libanio dividiremos, então, este artigo em três partes. Na primeira, veremos que a escolha do número de lições não parece ser um acaso, mas revela o profundo reconhecimento que o discípulo nutria pelo Mestre. Na segunda, procuraremos relacionar o conteúdo das lições recebidas com a “tarefa” de inaugurar uma nova fase da Teologia da Libertação. Finalmente, ao retomar o livro Teologia da Libertação: roteiro didático para um estudo, veremos que a proximidade entre Mestre e discípulo revela uma comunhão de perspectiva e de compreensão do sentido do trabalho intelectual.

1 A dimensão simbológica das "lições do mestre"

Ao homenagear Lima Vaz em seu aniversário de oitenta anos, Libanio elenca lições que diz ter apreendido com o seu Mestre. A escolha do número de lições elencadas parece ser algo premeditado. Seguramente, não estamos diante de um número aleatório. Libanio sempre utilizava metáforas e símbolos em seus discursos e textos. Há, portanto, no texto uma mensagem implícita que Libanio queria transmitir. Mas, qual seria essa mensagem? Libanio não escolheu qualquer número, mas um número especial: o sete. A escolha de sete lições seguramente tem uma razão de ser. Ao nosso ver, pretende exprimir também de modo implícito e ainda mais forte o grande reconhecimento e reverência que Libanio possuía em relação a Lima Vaz.

Paul Ricoeur, no texto “O símbolo dá que pensar”, publicado na revista Esprit, 27/7-8 (1959)8 RICOEUR, P. O símbolo dá o que pensar. Esprit 27/7-8, 1959. In: https://www.uc.pt/fluc/uidief/textos_ricoeur/o_simbolo_que_da_que_pensar. (falta a data de acesso)
https://www.uc.pt/fluc/uidief/textos_ric...
, defende que o sentido nos é dado pelo símbolo. Contudo, o que o símbolo nos oferece não é algo completamente pronto. Ele nos dá “sobre o que pensar”. Considerando a escolha do número sete, podemos supor que ao organizar todo o conteúdo das lições a partir dessa dimensão simbólica, Libanio quis conferir um sentido ainda mais definitivo às suas palavras. Um sentido dado pelo símbolo que, justamente por não estar completamente determinado, nos dá “sobre o que pensar”. Neste caso nos faz pensar sobre a profunda influência que Lima Vaz teve sobre Libanio.

Mas, por que a escolha do número sete é tão significativa? De acordo com Araújo e Souza, o sete (hepta) é o número que aparece mais vezes na Bíblia. Na maioria das vezes em que aparece, o seu sentido é simbólico. Ele vem associado às noções de “plenitude, totalidade, perfeição” (SOUZA; ARAÚJO, 20239 SOUZA, C. B. de; ARAÚJO, M. F. Número Sete em Apocalipse 4,1-11,19: simbologia e estrutura do texto. Reflexus – Revista Semestral de Teologia e Ciências das Religiões 17.1 (2023): 545-559., p. 551). Apenas para citar dois exemplos desse uso, podemos indicar os sete dias da criação e os sete dons do Espírito Santo. O número sete, portanto, possui forte carga simbólica que termina por conferir à homenagem feita por Libanio a Lima Vaz um tom de reverência ainda maior. Não foram quaisquer lições apreendidas. Lima Vaz não é um mestre qualquer. A suas lições podem ser lidas num sentido de plenitude. Isso significa que estamos diante de lições que marcam de modo definitivo o discípulo e que não são assumidas por ele como dogmas, mas como caminhos nos quais podem ser encontrados “incentivos e estímulos” (LIBANIO, 20023 LIBANIO, J. B. Lições do Mestre. In: MAC DOWELL, J. A. Saber Filosófico, história e transcendência. São Paulo: Loyola, 2002, p. 361-372., p. 272).

2 As lições apreendidas do mestre

Ao considerar a grande importância das lições de Lima Vaz para Libanio, torna-se fundamental indicar quais são essas lições e como Libanio as interpreta e assume. Vejamos, então, todas elas: 1) “Pensar é situar todo pensamento, conceito, tema, no contexto histórico mais amplo”; 2) “Recorrer sempre aos clássicos como critérios de juízo dos Derniers cris”; 3) “Elaborar com rigor os conceitos, desarmando as afirmações generalizadas, simplistas, unilaterais, superficiais”; 4) “Manter o equilíbrio entre o nível da criticidade teórica rigorosa e a prática simples e fiel da fé”; 5) “Vida intelectual é opção de vida, disciplina, austeridade”; 6) “Liberdade diante das vaidades acadêmicas e suas intrigas internas, mantendo uma modéstia diante do próprio trabalho unida à consciência de sua seriedade e de seu valor”; e 7) “Um pensamento crítico em relação às ideias, mas respeitoso das pessoas, avesso às polêmicas e aos protestos, guardando silêncio respeitoso e sofrido diante de incompreensões na Ordem e na Igreja” (LIBANIO, 20023 LIBANIO, J. B. Lições do Mestre. In: MAC DOWELL, J. A. Saber Filosófico, história e transcendência. São Paulo: Loyola, 2002, p. 361-372.). Procuraremos, então, compreender o sentido de cada uma dessas sete lições.

Libanio defende que a “escola de Lima Vaz” o ensinou que os “pensamentos não são criaturas in vitro. Têm úteros naturais. Não são plantas de estufa. Têm raízes fincadas em solos diferentes. Não basta colocá-los no microscópio do instante. Cada um deles fez e faz seu processo”. Nesse sentido, não é possível confundir a capacidade de pensar com a mera capacidade de acolher informações. Para desenvolver a capacidade de pensar é fundamental “analisar as mudanças, captar as compreensões e buscar-lhes explicações por várias vias”. Sendo assim, não se trata de simplesmente acumular dados, mas os “conhecimentos históricos são os riachuelos que explicam a natureza do percurso, o caudal dos sistemas” (LIBANIO, 20023 LIBANIO, J. B. Lições do Mestre. In: MAC DOWELL, J. A. Saber Filosófico, história e transcendência. São Paulo: Loyola, 2002, p. 361-372., p. 362).

Vivemos em um mundo no qual a “habilidade tecnológica triunfa sobre silenciosos estudos acadêmicos”. Contudo, é fundamental reconhecer que pensar é muito diferente de ter conhecimento. Pensar não se restringe à capacidade de acumulação e “manipulação de dados, de abordagens objetivas das coisas do mundo, da obtenção de resultados precisos” (LIBANIO, 2021, p. 34). Pensar é muito mais exigente. Supõe a capacidade de inserir os dados em relações temporais que tornam possível compreendê-los de um ponto de vista histórico. Supõe ainda a capacidade de relacioná-los e situá-los com outros dados e contextos.

A primazia do acúmulo de informação sobre a capacidade de pensar conduz a assumir o tempo de um ponto de vista voltado ao presente. Isso significa que os indivíduos passam a se orientar considerando como válida apenas “a experiência imediata, visível. Desaparece o passado. Não se pensa no futuro” (LIBANIO, 20121 LIBANIO, J. B. A arte de formar-se. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2012 (Coleção FAJE)., p. 37). Essa situação, caracterizada pelo que Libanio chama de “terrível sincronia”, é indicada por Lima Vaz como característica da experiência do niilismo. Sem referências, nos vemos diante do vazio de significação e de normas para a ação. Emerge, então, um pragmatismo generalizado, incapaz de pensar. Esse pragmatismo, Lima Vaz denuncia como risco ao qual pode incorrer a Teologia da Libertação. Contudo, ao mesmo tempo, ao reconhecer em Libanio a capacidade de desenvolver uma Teologia da Libertação a partir de um outro método, Lima Vaz parece distanciar a perspectiva de Libanio dessa ótica pragmatista. E, para Libanio, esta lição de que não devemos assumir a praxis de modo desvinculado do passado e do futuro, foi uma das lições aprendidas com o Mestre.

Uma segunda lição diz respeito à capacidade de rememoração histórica, ou ainda, à necessidade de voltar aos clássicos. Aqui são indicadas duas questões fundamentais. A primeira diz respeito à necessidade de ter coragem e persistência para afrontar textos consistentes. O caminho mais curto, apresentado por comentadores ou divulgadores, pode ser atraente, mas não afasta a importância da leitura, provavelmente bem mais difícil, das próprias fontes.

A segunda questão, intimamente vinculada à primeira, está ligada à sedução das últimas modas. É importante estar atualizado a respeito do desenvolvimento do saber. É até permitido impressionar pela leitura da publicação mais recente. Contudo, o pensar não se desenvolve apenas com a leitura do último livro. Ele precisa estar ancorado em bases mais sólidas. Não nos devemos deixar formar pelo livro da moda, mas precisamos ser capazes de confrontá-lo com os clássicos a fim de visualizar com lucidez o seu verdadeiro valor. O valor da novidade não se encontra nela mesma. Ele só pode ser percebido à medida que o novo é inserido e confrontado com a linha histórica da tradição.

A terceira lição indicada por Libanio, intimamente relacionada com a anterior, relaciona-se com a importância de não se deixar conduzir por posições superficiais. Ela é elaborada nos seguintes termos: “Elaborar com rigor os conceitos, desarmando as afirmações generalizadas, simplistas, unilaterais, superficiais” (LIBANIO, 20023 LIBANIO, J. B. Lições do Mestre. In: MAC DOWELL, J. A. Saber Filosófico, história e transcendência. São Paulo: Loyola, 2002, p. 361-372., p. 365). A cultura contemporânea, caracterizada pela “corrida atrás de links”, ou ainda, pela tradução de conceitos abstratos em ícones, é marcada por um processo de valorização do imediato e simultâneo que é rapidamente descartado numa sucessão interminável de novas conceituações e afirmações. Como consequência, assistimos a um esvaziamento de conceitos importantes por meio de “incontrolável deterioração semântica” (LIBANIO, 20023 LIBANIO, J. B. Lições do Mestre. In: MAC DOWELL, J. A. Saber Filosófico, história e transcendência. São Paulo: Loyola, 2002, p. 361-372., p. 367). Logo, se queremos conhecer efetivamente a realidade, não podemos nos deixar seduzir por divulgações pouco rigorosas. Precisamos resgatar o sentido denso dos conceitos, recorrendo, antes de tudo, à etimologia de termos fundamentais.

Neste sentido, Lima Vaz defende que, para que possamos investigar a respeito da realidade, precisamos, em primeiro lugar, definir o aspecto do real que será tema de pesquisa. Na sequência, é necessário elaborar as categorias capazes de dizer aquele aspecto do real que se tornou objeto de investigação. Isso significa verificar quais os termos são mais adequados para exprimir a realidade. Contudo, existe uma inadequação entre as categorias e a própria realidade expressa por elas. Por isso, há um movimento progressivo na direção de encontrar categorias cada vez mais aptas a exprimir o real. Finalmente, as categorias precisam ser articuladas em discurso. Por meio do discurso, procuramos dizer a realidade na sua inteligibilidade (LIMA VAZ, 20065 LIMA VAZ, H. C. de Antropologia Filosófica I. 8. ed. São Paulo, Loyola, 2006, p. 146-156., p. 150-152).

Elaboração rigorosa de conceitos não é sinônimo, para Lima Vaz, de conhecimento claro e preciso. A realidade é dita no discurso de modo delimitado, a partir de um eidos constitutivo. Contudo, na sua singularidade, a realidade escapa a qualquer tentativa de determinação completa. Ela é em ato. Ela se põe para além das categorias. Neste sentido, o princípio de ilimitação tética revela a inadequação da categoria que não é capaz de dizer completamente o real tal como ele é. O princípio de totalização surge, então, como responsável por apontar a direção do horizonte caracterizado pela identidade entre a categoria e a realidade. Isso significa que o conhecimento do real passa por um processo rigoroso que tem em mira exprimir, de modo adequado, a realidade no discurso (LIMA VAZ, 20065 LIMA VAZ, H. C. de Antropologia Filosófica I. 8. ed. São Paulo, Loyola, 2006, p. 146-156., p. 153).

O processo de conhecimento, portanto, está vinculado a um esforço rigoroso que, quando deixado de lado, confere espaço a discursos apressados, não fundamentados e que terminam por conduzir a visões de mundo superficiais e empobrecidas. Uma das críticas que Lima Vaz faz à Teologia da Libertação está vinculada justamente a essa questão. Para ele, havia uma pressa em “agir” que impedia “agir com lucidez”. Essa pressa conduz muitos teólogos a se apropriarem de conceitos e análises da história baseados naquilo que ficou conhecido como “análise marxista”. Neste sentido, ele alerta que

Num momento qualquer, que deve situar-se entre 1965 e 1969, entre o fim da Ação Católica e a Igreja pós-Medellín, a utilização de algumas categorias básicas da teoria da história e, em primeiro lugar, da teorização marxista da sociedade de classes, passou a predominar na expressão conceptual do ver e julgar dos militantes cristãos. Provavelmente é ainda cedo para se empreender uma reconstituição histórica rigorosa das causas desse glissement teórico. Em todo o caso, elas estão ligadas a uma conjuntura histórica de violenta repressão política, de tentação quase irresistível das opções oferecidas pelo radicalismo revolucionário, de desarticulação e dissolução das organizações mais atuantes do laicato católico, provocando em contrapartida o crescimento, na Igreja, do fenômeno que o historiador do futuro irá, talvez, denominar “clericalismo de esquerda”. Como quer que seja, cremos permitido exprimir-se aqui a convicção de que essa recepção do que mais tarde se chamou impropriamente de “análise marxista” não se deveu a qualquer resultado comprovado de uma análise da realidade e sim à poderosa atração de um pensamento utópico que fazia chegar até um hoje obscuro e doloroso a luminosa promessa dos “amanhãs que cantam”

(LIMA VAZ, 19846 LIMA VAZ, H. C. de. Cristianismo e pensamento utópico: a propósito da teologia da libertação. Síntese, Belo Horizonte, v. 11, n. 32, p. 5-19, set./dez. 1984. Editorial., p. 9).

Lima Vaz alerta para a incompatibilidade radical entre uma filosofia da história que se apoia no Fato Cristão e uma filosofia da histórica materialista e utópica que está na base de tal “análise marxista”. Muitos teólogos da libertação, sem refletir de modo adequado, assumiam a “análise marxista” como ponto de partida de seu discurso e de sua prática. Contudo, o marxismo se exprime em categorias que se caracterizam por “forma extrema de utopia secularizada, estruturalmente ateia” (LIMA VAZ, 19846 LIMA VAZ, H. C. de. Cristianismo e pensamento utópico: a propósito da teologia da libertação. Síntese, Belo Horizonte, v. 11, n. 32, p. 5-19, set./dez. 1984. Editorial., p. 8). Logo, para Lima Vaz é indiscutível a existência de profunda oposição entre pensamento utópico e pensamento cristão.

O discurso utópico é ateu porque “transfere para o próprio devir histórico na sua imanência o predicado divino da aseidade (o que existe e se explica exclusivamente a partir de si mesmo)”. Nesse sentido, o pensamento utópico não tem nenhuma referência com a dimensão transcendente. Embora tenha consciência de que nenhuma teologia da libertação afirmará sua identidade como um discurso que termina na imanência, Lima Vaz defende ser importante colocar em evidência “o metadiscurso historiológico subjacente ao discurso das teologias que acolhem confiantemente a chamadas ‘análise marxista’” (LIMA VAZ, 19846 LIMA VAZ, H. C. de. Cristianismo e pensamento utópico: a propósito da teologia da libertação. Síntese, Belo Horizonte, v. 11, n. 32, p. 5-19, set./dez. 1984. Editorial., p. 10-11). Isso se mostra imprescindível à medida que a visão cristã de história se revela diametralmente oposta àquela subjacente ao pensamento utópico.

Diante deste contexto, apenas um esforço rigoroso de pensar as próprias categorias de um ponto de vista de uma filosofia/teologia da história capaz de assumir como centro o fato cristão, pode servir como base adequada para uma teologia da libertação que se mantenha fiel à experiência cristã. Nesse sentido, trata-se de, ao invés de ceder à sedução da facilidade de aderir a conceitos já dados, fazer um esforço para elaborar conceitos rigorosos que permitam pensar de modo adequado “a história a partir de Deus feito homem e presente na história e no tempo como sua Norma absoluta e como ator situado na sua fatualidade”. Esse esforço se constitui como fundamental, pois é por meio dele que se torna possível pensar “a teoria da prática histórica do cristão que proclama sua fé na Encarnação” (LIMA VAZ, 19846 LIMA VAZ, H. C. de. Cristianismo e pensamento utópico: a propósito da teologia da libertação. Síntese, Belo Horizonte, v. 11, n. 32, p. 5-19, set./dez. 1984. Editorial., p. 7).

Ora, Libanio reconhece a importância de pensar de modo rigoroso. Ele reconhece a importância de a Teologia da Libertação estar vinculada a uma teoria da ação que seja sólida e esclarecida. Essa necessidade de elaboração de conceitos rigorosos que dão acesso a um conhecimento da realidade bem fundamentado que escapa à superficialidade, Libanio indica como sendo uma das lições apreendidas com o Mestre. Neste aspecto, ao não se deixar seduzir pela “facilidade” das “análises marxistas”, Libanio segue os passos do Mestre procurando se manter fiel a uma teoria da história que tenha no seu centro o Fato Cristão.

A quarta lição, por sua vez, é formulada nos seguintes termos: “Manter o equilíbrio entre o nível da criticidade teórica rigorosa e a prática simples e fiel da fé”. Apesar de certa tendência das sociedades atuais que apontam na direção da separação entre a atividade intelectual e a experiência de fé, Libanio reconhece que em Lima Vaz essas duas dimensões estão intimamente vinculadas. Neste sentido ele defende que

H. Vaz filosofou sempre como alguém que crê. Para espanto de muitos intelectuais que lhe conhecem a inteligência e a vasta cultura, ele permanece fiel a sua fé. Se fosse um filósofo trancado na fortaleza fechada do neotomismo, como tantos outros filósofos religiosos, não teria provocado nenhuma surpresa. As filosofias dos seminários e das faculdades católicas foram, e em alguns casos ainda são, castelos medievais cercados por valas profundas, sem ponte de acesso e saída. Mas Pe. Vaz é alguém que estendeu pontes culturais para todas as filosofias moderas, conhecendo-as por dentro, desposado-lhes teses, e se manteve na simplicidade de sua fé cristã até expressões singelas de piedade. Por isso, ele torna-se, pelo menos, um ponto de interrogação para a tranquilidade evidente de que “razoavelmente instruído” significa “descrer ou prescindir da fé”. E para muitos de nós é um ponto de exclamação

(LIBANIO, 20023 LIBANIO, J. B. Lições do Mestre. In: MAC DOWELL, J. A. Saber Filosófico, história e transcendência. São Paulo: Loyola, 2002, p. 361-372., p. 368).

Guiado pela dialética agostiniana entre fé e razão que aponta para a necessidade de “crer para entender e de entender para crer”, Lima Vaz foi alguém que sempre viveu de modo coerente a sua vida de fé em consonância com o exercício intelectual rigoroso. Libanio, por sua vez, também seguiu esse caminho.

Para o teólogo, o exercício crítico da razão, desvinculado da experiência de fé, pode conduzir a atividade racional não preocupada com a coerência e incapaz de se autoavaliar. Também pode levar a um contentamento com o empiricamente verificável e com a análise e avaliação dos efeitos. Neste caso, “permanece-se no nível instrumental da eficiência, da competência, do recurso aos meios aptos para obter o objetivo desejado, independentemente de qualquer consideração de sentido e de valor”. A rejeição de todo fundamento termina, então, por conduzir ao relativismo (LIBANIO, 20082 LIBANIO, J. B. Em busca de lucidez: o fiel da balança. São Paulo: Loyola, 2008., p. 89).

Por outro lado, a experiência de fé desligada do exercício da razão traz a marca do subjetivismo, do emotivismo, conduz ao fanatismo e ao fundamentalismo. Por isso, Libanio defende que

cabe fundamentalmente chamar a razão, diante da tentação do uso absoluto, ao limite criatural e situá-la em face de um Absoluto real, o Mistério maior de Deus. Ela faz a razão assumir o papel humilde e limitado da consciência do Deus semper maior, enquanto a razão traz a fé para o horizonte humano dos sinais da credibilidade, de razoabilidade, mostrando a consentaneidade de ambas”

(LIBANIO, 20082 LIBANIO, J. B. Em busca de lucidez: o fiel da balança. São Paulo: Loyola, 2008., p. 90).

Portanto, deve haver relação de complementariedade entre fé e razão.

Na quinta lição, Libanio afirma que “vida intelectual é opção de vida, disciplina, austeridade”. Ele defende que a vida intelectual depende da conjugação de “dois elementos fundamentais: vocação e disciplina, entusiasmo e regularidade”. Lima Vaz foi alguém que, com seu próprio testemunho, ensinou a importância de não se deixar “embalar pelo canto das sereias”. As agitações política e eclesiais não o desviaram do ardo e austero caminho de estudos assumido como compromisso social e com o objetivo de “colaborar responsavelmente no Projeto de Deus” (LIBANIO, 20023 LIBANIO, J. B. Lições do Mestre. In: MAC DOWELL, J. A. Saber Filosófico, história e transcendência. São Paulo: Loyola, 2002, p. 361-372., p. 369).

Importa recordar que Lima Vaz viveu, no final dos anos 50 e início dos anos 60, em contexto bastante tumultuado. O marxismo ganhava força entre os jovens que, insatisfeitos com a realidade histórico social, pretendiam militar em prol de uma sociedade mais justa e igualitária. Muitos desses jovens, membros da Juventude Universitária Católica (JUC), viram em Lima Vaz uma espécie de mentor político. Passaram a procurá-lo com o objetivo de buscar bases mais sólidas para as suas posições. Neste contexto, embora não tenha sido adequadamente compreendido, Lima Vaz escreveu alguns textos sobre Marx, o marxismo, o cristianismo e o conceito de consciência histórica. Neles, o filósofo jesuíta se distancia do marxismo, procurando mostrar a existência de verdadeira incompatibilidade entre o cristianismo e o marxismo.

O modo como ele assumiu a vida intelectual como modo de vida, o levou a um exercício muito exigente de leitura da realidade que fazia ir além de dados que se apresentam imediatamente para conseguir captar o sentido mais profundo dos acontecimentos. Foi justamente essa disciplina e esse modo de vida adotado por ele que fez com que assumisse certo posicionamento crítico a uma Teologia da Libertação que se deixava seduzir por posições marxistas. Ao se considerar como precursor de uma teologia ou filosofia da libertação, Lima Vaz via com desconfiança a possibilidade de a teologia se deixar seduzir pelo canto “das sereias” (LIBANIO, 20023 LIBANIO, J. B. Lições do Mestre. In: MAC DOWELL, J. A. Saber Filosófico, história e transcendência. São Paulo: Loyola, 2002, p. 361-372., p. 369). A reflexão o permitiu vislumbrar uma contradição insuperável entre cristianismo e marxismo. Por isso, sua insistência na importância dos estudos, não como mera atividade intelectual, mas como atividade que compromete a pessoa como um todo e que a faz assumir responsabilidade diante do mundo.

A sexta lição, por sua vez, diz respeito a capacidade de não se deixar seduzir pelas vaidades acadêmicas. Para Libanio, ficou “a lição de que importam não as exterioridades da vida acadêmica, mas a verdade que se pesquisa”. Neste sentido, “aprende-se na escola de Pe. Vaz a valorizar o ser, e não tanto o ter”. A consciência da responsabilidade intelectual deve conduzir ao compromisso com o saber, isto é, com a busca da verdade. Há aqui um verdadeiro apelo em defesa da honestidade intelectual. A busca da verdade deve ser acompanhada pela simplicidade e pela modéstia que impedem o intelectual de se deixar levar por “honrarias e vaidades que nada acrescentam ao ser da pessoa” (LIBANIO, 20023 LIBANIO, J. B. Lições do Mestre. In: MAC DOWELL, J. A. Saber Filosófico, história e transcendência. São Paulo: Loyola, 2002, p. 361-372., p. 370).

Finalmente, a sétima e última lição diz respeito à importância de desenvolver pensamento crítico que seja respeitoso em relação às pessoas. O que é passível de contestação rigorosa são as ideias. Mesmo assim, é preciso evitar polêmicas e protestos. Libanio recorda que nos anos que antecederam ao golpe militar de 1964, Pe. Vaz enfrentou vários ataques. Ele foi acusado de “infidelidade teórica ao tomismo, de relativismo diante dos ensinamentos sociais da Igreja e de pagar tributo ao pensamento marxista do momento”. Diante de todas as acusações infundadas, ele preferiu “a resposta da caridade sempre aberta, mesmo àqueles que, em dado momento, lhe fizeram objetivamente injustiça” (LIBANIO, 20023 LIBANIO, J. B. Lições do Mestre. In: MAC DOWELL, J. A. Saber Filosófico, história e transcendência. São Paulo: Loyola, 2002, p. 361-372., p. 371).

A distinção entre as ideias e as pessoas conduz a perceber que cabe crítica aguda às fragilidades teóricas, à dinâmica dos textos. Mas, ao mesmo tempo, leva a afirmar que as pessoas merecem “tolerância, respeito, silencioso” (LIBANIO, 20023 LIBANIO, J. B. Lições do Mestre. In: MAC DOWELL, J. A. Saber Filosófico, história e transcendência. São Paulo: Loyola, 2002, p. 361-372., p. 371). Diante desse cenário, Libanio indica dois caminhos: o do silêncio e o do protesto profético. Lima Vaz teria escolhido o testemunho do silêncio. Embora não possamos afirmar de modo categórico que Libanio teria escolhido o mesmo caminho, podemos defender que a distinção entre crítica às ideias e respeito às pessoas é uma lição importante que acompanhou Libanio ao longo de sua trajetória intelectual.

3 A Teologia da Libertação

Tendo presente todas essas sete lições indicadas por Libanio como tendo sido apreendidas de Lima Vaz, voltaremos rapidamente, então, nossa atenção para a obra “Teologia da Liberdade: roteiro didático para um estudo”. Trata-se, como mostramos no início deste artigo, de texto elogiado por Lima Vaz como sendo capaz de instaurar novo método, inaugurando nova fase da Teologia da Libertação.

Publicado em 1987, o livro tem como objetivo ajudar o leitor a se situar de modo mais lúcido diante de grande volume de escritos sobre a Teologia da Libertação que povoava, naquele momento, o universo teológico. Partindo da tomada de consciência da Teologia da Libertação como sendo um “fato social e eclesial”, o texto propõe um movimento de aprofundamento progressivo que permite compreensão de elementos que a definem e que tornam possível situá-la de maneira adequada. Trata-se de texto rigoroso, no qual Libanio procura pensar a Teologia da Libertação de um modo sistemático.

Tal compreensão inicia com reflexão a respeito da conjuntura político-social e eclesial latino-americana e brasileira que faz surgir uma teologia diferente da “europeia”. Trata-se de uma teologia que “encarna todas as forças progressistas de libertação que se referem e relevam de inspiração cristã” (LIBANIO, 19874 LIBANIO, J. B. Teologia da Libertação: roteiro didático para um estudo. São Paulo: Loyola, 1987 (Coleção Fé e Realidade)., p. 17). Mas isso precisa ser adequadamente compreendido. Libanio procura mostrar, então, que há associações indevidas entre a teologia da liberdade e aquilo que ele denomina como teologia da violência. Também não é apropriada a associação feita da Teologia da Libertação e o marxismo. Para ele a “opinião de que a TdL é uma forma de penetração do marxismo dentro da Igreja pertence à luta ideológica em curso e corresponde a uma visão conspiratória da história” (LIBANIO, 19874 LIBANIO, J. B. Teologia da Libertação: roteiro didático para um estudo. São Paulo: Loyola, 1987 (Coleção Fé e Realidade)., p. 42).

Era comum ainda associar a teologia da libertação à Teologia moral, pastoral, ou a uma teologia desvinculada da teoria teológica e caracterizada exclusivamente como “teoria sociológica ou de uma bandeira ideológica em vista da implementação de escatologia puramente terrestre e temporal” (LIBANIO, 19874 LIBANIO, J. B. Teologia da Libertação: roteiro didático para um estudo. São Paulo: Loyola, 1987 (Coleção Fé e Realidade)., p. 45). Diante dessa situação, Libanio defende, então, em relação à Teologia da Libertação que “nem a violência, nem o marxismo, nem a carência de cientificidade podem realmente defini-la corretamente. Antes impedem sua compreensão” (LIBANIO, 19874 LIBANIO, J. B. Teologia da Libertação: roteiro didático para um estudo. São Paulo: Loyola, 1987 (Coleção Fé e Realidade)., p. 47).

Ele propõe um longo caminho de estudos que parte do contexto sócio-político-econômico e social no qual ela nasce. Examina também os contextos eclesial e teológico que estão na sua origem. Em seguida, defende que toda teologia nasce de uma experiência espiritual de Deus e que as diferenças entre as teologias estão relacionadas ao “caráter sócio-histórico” dessa experiência. Nesse sentido, ele afirma que a

situação social e eclesial da América Latina permite e oferece um contexto próprio, concreto, histórico, para a experiência de Deus. E dessa experiência brota a TdL. Em outros termos, a experiência de Deus irrompe na vida do cristão no interior de uma Igreja, plantada dentro do continente latino-americano em determinado momento histórico-social

(LIBANIO, 19874 LIBANIO, J. B. Teologia da Libertação: roteiro didático para um estudo. São Paulo: Loyola, 1987 (Coleção Fé e Realidade)., p. 109).

As opções fundamentais da Teologia da Libertação, enquanto teologia que “quer ser explicitamente uma teologia na práxis” (LIBANIO, 19874 LIBANIO, J. B. Teologia da Libertação: roteiro didático para um estudo. São Paulo: Loyola, 1987 (Coleção Fé e Realidade)., p. 117), o exame aprofundado do termo “Libertação”, para que “resulte claro o significado assumido pela teologia” (LIBANIO, 19874 LIBANIO, J. B. Teologia da Libertação: roteiro didático para um estudo. São Paulo: Loyola, 1987 (Coleção Fé e Realidade)., p. 137) e o exame cuidadoso das regras internas de construção do discurso teológico também são temas do livro. Além disso, todo um capítulo é dedicado ao “problema da análise marxista”. Ao examinar a trilogia do ver, julgar e agir que molda a pastoral, Libanio procura indicar de que modo o “encontro com o marxismo se dá na interpretação da realidade, e não na interpretação da Revelação. E só indiretamente influencia nessa leitura da Palavra de Deus ao elucidar a contextura do real social, a partir de onde se interpreta tal Palavra de Deus” (LIBANIO, 19874 LIBANIO, J. B. Teologia da Libertação: roteiro didático para um estudo. São Paulo: Loyola, 1987 (Coleção Fé e Realidade)., p. 205). Neste sentido, ele defende que

Em relação à análise marxista, a tendência é não assumi-la como um todo, nem mesmo no nível dito de simples análise social. Retêm-se dela somente alguns elementos, destacados de seu conjunto teórico, sem preocupar-se se tal operação é justificável ou não em termos marxistas. A finalidade não é ser fiel à análise marxista e justificar-se teoricamente diante dos cientistas sociais marxistas, mas entender corretamente a realidade social da América Latina. E, à medida que algumas categorias sócio-analíticas marxistas ajudam a tal, elas são usadas sem nenhum voto de fidelidade à ortodoxia marxista

(LIBANIO, 19874 LIBANIO, J. B. Teologia da Libertação: roteiro didático para um estudo. São Paulo: Loyola, 1987 (Coleção Fé e Realidade)., p. 277).

Libanio procura mostrar, portanto, em que sentido e em que medida a análise marxista pode ser assumida pela Teologia da Libertação. Além disso, ele estabelece distância entre a análise marxista e a própria Teologia da Libertação. À medida que possui consciência dos limites da análise marxista, a Teologia da Libertação não corre o risco de desviar-se do seu caminho que tem na experiência de Deus a sua fonte e fermento.

Ora, ao retomar neste artigo alguns elementos da obra Teologia da Libertação: roteiro didático para um estudo, temos como objetivo apontar duas questões importantes. A primeira diz respeito ao esforço feito por Libanio para oferecer um roteiro de reflexão que pretende ser capaz de situar a proposta teórica da Teologia da Libertação em um contexto teórico mais amplo, não se deixando seduzir pela moda, optando pelo caminho rigoroso da elaboração de conceitos e da não adoção de posições generalizadas, simplistas, unilaterais e superficiais. Esse esforço procura manter em equilíbrio a criticidade teórica rigorosa, que não pretende atacar pessoas, mas examinar ideias, com a mais singela experiência de Deus. Além disso, todo esse esforço só pode ser empreendido à medida em que Libanio assume a vida intelectual como opção de vida disciplinada e austera que o permite se colocar para além do nível das vaidades acadêmicas e reconhecer com modéstia a importância de um trabalho teológico sério. Logo, podemos defender que todo esse esforço demostra que Libanio, já na década de oitenta, havia se apropriado das lições que ele indica, em dois mil e dois, ter recebido de Lima Vaz. As lições já estavam sendo colocadas em prática na década de oitenta. E, neste sentido, podemos defender que as “Lições do Mestre” moldam o modo de fazer teologia próprio de Libanio.

A segunda questão que gostaria de chamar a atenção está relacionada com a conclusão do texto “Lições do Mestre”. Nela Libanio afirma:

Lições de um Mestre se guardam. Não são dogmas. Não são nem caminhos feitos. Mas sinalizações a que os discípulos recorrerão à medida que necessitarem. Que mais discípulos encontrem nelas incentivos e estímulos. No final dessas comemorações, fique o que H. Vaz sempre quis: não o culto a sua pessoa, mas o amor a uma vida séria de estudos como serviço à cultura e à fé

(LIBANIO, 20023 LIBANIO, J. B. Lições do Mestre. In: MAC DOWELL, J. A. Saber Filosófico, história e transcendência. São Paulo: Loyola, 2002, p. 361-372., p. 372).

Chamo a atenção para essa conclusão porque, ao que tudo indica, por reconhecer Lima Vaz como Mestre e para se manter fiel a ele, Libanio não cultuava a sua pessoa. Para se manter fiel ao Mestre, Libanio parece travar com Lima Vaz verdadeiro confronto de ideias, assumindo verdadeiramente “os estudos como serviço à cultura e à fé”. Mas, por que chego a essa posição?

Lima Vaz publicou, em 1984, o artigo Cristianismo e pensamento utópico: a Propósito da Teologia da Libertação. É neste texto que ele trava duras críticas à Teologia da Libertação. Em 1988, no entanto, ele escreve a resenha sobre o livro publicado por Libanio, um ano antes: Teologia da Libertação: roteiro didático para um estudo. Esse movimento nos parece revelar que havia entre eles uma espécie de diálogo. É possível até mesmo supor que Libanio tenha sido provocado por Lima Vaz, com quem convivia, a escrever o livro.

Na obra, Libanio faz um esforço rigoroso para afastar a Teologia da Libertação de posições superficiais e pouco lúcidas a respeito da realidade. Além disso, dedica todo um capítulo a discussão sobre a “análise marxista”, tema de crítica direta feita por Lima Vaz, no texto de 1984. Ao assumir posição sobre o tema, embora não cite o artigo de Lima Vaz, Libanio parece pretender mostrar, dentre outras coisas, os limites também da crítica tecida pelo filósofo, à Teologia da Libertação. É muito provável que Libanio tenha lido o artigo Cristianismo e pensamento utópico, publicado por Lima Vaz, em 1984.

Conclusão

Guiados pelo texto “Lições do Mestre” procuramos identificar influências de Lima Vaz no percurso intelectual de Libanio. Essas influências nos parecem determinantes para Libanio e, por isso, a nosso ver, ele as enumerou em sete lições.

Contudo, se, por um lado, Libanio reconhecia Lima Vaz como Mestre, pretendemos inferir que também o Mestre via Libanio como “discípulo amado”. Chegamos a essa conclusão porque, ao atribuir a Libanio o lugar de alguém capaz de inaugurar uma nova fase da Teologia da Libertação, Lima Vaz parece manifestar grande respeito e reconhecimento pelo trabalho desenvolvido. Esse lugar não confere a Libanio, no entanto, nenhum tipo de privilégio. Libanio também não é reconhecido por Lima Vaz por assumir as posições do “Mestre” como dogmas. Mas, o reconhecimento manifestado por Lima Vaz a Libanio nos parece decorrer do fato de ele ter assumido com responsabilidade o exercício intelectual, mesmo que isso signifique se contrapor, em certos momentos, às posições do próprio “Mestre”.

O amor, portanto, aqui está relacionado com a capacidade de acolher uma voz que pode ser dissonante, justamente, por reconhecer nela um esforço de lucidez, uma busca responsável pela verdade e pelo bem. Nesse sentido, Libanio pode ser considerado discípulo amado não por ter acatado as posições de Lima Vaz como verdadeiras, mas por ter assumido, seguindo os passos do “Mestre”, a vida intelectual como exercício vinculado a uma enorme responsabilidade social. Nesse sentido, a influência que Lima Vaz exerceu sobre Libanio pode ser considerada, à luz da simbologia do número sete, sob a ótica da plenitude, da totalidade, da perfeição. Isso porque a influência de Lima Vaz sobre Libanio parece ter marcado o seu próprio modo de fazer teologia.

Referências

  • 1
    LIBANIO, J. B. A arte de formar-se 6. ed. São Paulo: Loyola, 2012 (Coleção FAJE).
  • 2
    LIBANIO, J. B. Em busca de lucidez: o fiel da balança. São Paulo: Loyola, 2008.
  • 3
    LIBANIO, J. B. Lições do Mestre. In: MAC DOWELL, J. A. Saber Filosófico, história e transcendência São Paulo: Loyola, 2002, p. 361-372.
  • 4
    LIBANIO, J. B. Teologia da Libertação: roteiro didático para um estudo São Paulo: Loyola, 1987 (Coleção Fé e Realidade).
  • 5
    LIMA VAZ, H. C. de Antropologia Filosófica I 8. ed. São Paulo, Loyola, 2006, p. 146-156.
  • 6
    LIMA VAZ, H. C. de. Cristianismo e pensamento utópico: a propósito da teologia da libertação. Síntese, Belo Horizonte, v. 11, n. 32, p. 5-19, set./dez. 1984. Editorial.
  • 7
    LIMA VAZ, H. C. de. Resenha do livro Teologia da Libertação: roteiro didático para um estudo. Síntese, Belo Horizonte, v. 16, n. 43, p. 89-94, maio/ago. 1988.
  • 8
    RICOEUR, P. O símbolo dá o que pensar. Esprit 27/7-8, 1959. In: https://www.uc.pt/fluc/uidief/textos_ricoeur/o_simbolo_que_da_que_pensar (falta a data de acesso)
    » https://www.uc.pt/fluc/uidief/textos_ricoeur/o_simbolo_que_da_que_pensar
  • 9
    SOUZA, C. B. de; ARAÚJO, M. F. Número Sete em Apocalipse 4,1-11,19: simbologia e estrutura do texto. Reflexus – Revista Semestral de Teologia e Ciências das Religiões 17.1 (2023): 545-559.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2024
  • Aceito
    20 Mar 2024
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