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A IGREJA “EM SAÍDA” À LUZ DA KENOSIS ECLESIAL

The Church “Going Forth” in the Light of Ecclesial Kenosis

RESUMO

O artigo apresenta as consequências da proposta da Igreja “em saída”, à luz do conceito teológico da kenosis eclesial de Balthasar, possibilitando-a ser mais missionária e próxima da vida das pessoas, com o prosseguimento irreversível do Concílio Vaticano II. O objetivo do artigo é tornar este estudo uma contribuição valiosa para o caminho da Igreja “em saída” que ruma em direção às demandas atuais, olhando sempre os sinais dos tempos. Considera-se o conceito primeirear, necessário a este processo, de colocar-se “em saída”, assim como o ato de inclinar-se para escutar e servir melhor. A experiência cristã revela que a missão da Igreja se desenvolve melhor em comunidades “em saída”, prontas e abertas ao diálogo e ao serviço no mundo. Contudo, é necessária uma conversão pastoral. A transformação das estruturas implica processos contínuos, portanto, a teologia e a pastoral da Igreja “em saída” devem ser feitas de joelhos, sobressaindo o caráter kenótico e sinodal.

PALAVRAS-CHAVE
Igreja “em saída”; Kenosis Eclesial; Primeirear

ABSTRACT

The article presents the consequences of the proposal of the Church “going forth”, in the light of Balthasar’s theological concept of ecclesial kenosis, enabling it to be more missionary and closer to people’s lives, with the irreversible continuation of the Second Vatican Council. The aim of the article is to make this study a valuable contribution to the journey of the “outgoing” Church, which is moving towards today’s demands, always looking at the signs of the times. It considers the concept of primeirear, necessary for this process, of going “out”, as well as the act of leaning in to listen and serve better. Christian experience shows that the Church’s mission is best carried out in “outgoing” communities, ready and open to dialog and service in the world. However, pastoral conversion is necessary. The transformation of structures implies continuous processes, so the theology and pastoral care of the Church “going forth” must be done on its knees, emphasizing its kenotic and synodal character.

KEYWORDS
Church “Going forth”; Ecclesial kenosis; Primeirear

Introdução

O artigo nasce por ocasião da passagem dos 10 anos de pontificado do Papa Francisco que segue concretizando a sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. Procura-se compreender a proposta da Igreja “em saída”, de forma a se despojar e se inclinar. O caminho é avançar e prosseguir a dinâmica irreversível do Concílio Vaticano II, com a reflexão teológica que a Igreja “em saída” nos leva a primeirear1 1 Primeirear é o neologismo utilizado pelo Papa Francisco para a Igreja “em saída” tomar a iniciativa na sua atuação missionária, como Jesus fez ao se inclinar no lava-pés (EG, n. 24). novos caminhos a partir do diálogo construtor de pontes.

As três partes dessa reflexão propõem valorizar os elementos do Concílio Vaticano II para a Igreja “em saída”, e a segunda dessas partes, compreender teologicamente a colaboração do conceito da kenosis eclesial de Balthasar. Esses processos construídos com a Igreja “em saída” iluminam uma teologia e pastoral decididamente missionária e primeireadora. A sua preocupação não será repetir procedimentos para a manutenção e conservação de estruturas ultrapassadas, e sim o engajamento e protagonismo dos batizados na missão.

Dessa maneira, participar nos processos contínuos da renovação eclesial é se colocar “em saída”. Caminhando segundo o Espírito Santo e se inclinando diante dos desafios fará a Igreja alegre e credível, construindo pontes e avançando frente aos sinais dos tempos. Por isso, caminhar juntos possibilitará novos caminhos, e essa realidade é o futuro da Igreja.

1 Igreja “em saída” dinâmica irreversível do Concílio Vaticano II

A proposta da eclesiologia “em saída” está em prosseguir com os fundamentos teológicos do Concílio Vaticano II, para novos caminhos missionários (EG, n. 46-49). O Papa Francisco com seu magistério oral, escrito e prático provoca a Igreja a desinstalar-se de si mesma para ter suas portas abertas ao mundo. O novo da Igreja “em saída” é discernir os dias atuais e suas questões, com o movimento exigente de colocar-se de joelhos, vestida com o avental e abaixar-se para lavar os pés dos feridos reais e existenciais. Esse caminho teológico e pastoral se constrói com as ferramentas teológicas do discernir os sinais dos tempos, o sensus fidei e o povo de Deus em seu tempo histórico.

A dinâmica eclesial provocada pela continuidade conciliar é prosseguida com o Papa Francisco, que promove o amadurecimento dos seus processos e práticas. Com essa recepção e maturação este pontificado promove iniciativas necessárias, que ficaram engavetadas em pontificados anteriores com as posturas clericais e conservadoras. Os exemplos desse engavetamento estão nas várias questões levantadas para o Sínodo da sinodalidade, como a participação efetiva do laicato, o papel ministerial das mulheres, o abuso dos clérigos etc. O conteúdo programático do seu pontificado presente na exortação apostólica Evangelii Gaudium desdobrada nas demais exortações e encíclicas como Laudato Si, Amoris Laetitia e Fratelli Tutti. Assim como o Vaticano II propõe uma Igreja mais global e engajada (GS, n. 1), a continuidade pós-conciliar da Igreja “em saída” está com a consciência primaveril movida pela força do Espírito Santo.

O Papa João XXIII esperava que o Concílio Vaticano II fizesse da Igreja um jardim fervilhante de vida no seu porvir (ALMEIDA, 2015ALMEIDA, J. A. In: PASSOS, J. D.; SANCHEZ, W. L. (Eds.). Dicionário do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2015. p. 8-11., p. 8). E nesse jardim brota a proposta “em saída”, possibilitando a renovação eclesial permanente. As letras do Concílio aplicadas na colegialidade, sinodalidade, pastoralidade e missionariedade. A recepção do Concílio após Medellin possibilitou a teologia ser mais próxima da vida das pessoas com a experiência pastoral e social, e avançar com mais uma primavera eclesial. É um protagonizar de novos processos teológicos, pastorais e missionários.

Por isso, uma Igreja inserida no mundo se torna mais servidora e pronta a curar e se abaixar aos feridos da estrada, como afirma o Papa Francisco em entrevista à Spadaro:

Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o açúcar alto. Devem curar-se as suas feridas. Depois podemos falar do resto. Curar feridas, curar feridas... E é necessário começar de baixo

(SPADARO, 2013SPADARO, A. Entrevista com o Papa Francisco. São Paulo: Paulus, 2013., p. 19).

É uma teologia prática realizada de joelhos pronta a se abaixar e se humilhar (FRANCISCO, 2015FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Si’: sobre a Casa Comum. São Paulo: Paulus, 2015.), para a missão apostólica no tempo acelerado com o paradigma tecnocrático (LS, n. 101). A missão hoje do anúncio do Evangelho se faz com a prática evangélica, e não na repetição de doutrinas ou catecismos. A conversão da estrutura cristalizada e rígida do clericalismo tanto dos clérigos e dos movimentos leigos ocorrerá pelo antídoto da sinodalidade, abrindo-se ao novo do Espírito Santo. Evangelizar e capacitar os clérigos e laicos é o caminho da Igreja “em saída” vestir o avental e pôr-se de joelhos.

O aggiornamento conciliar é hoje primeireado pela Igreja se aproximando das realidades que causam as guerras, a violência, a migração, a dor, o sofrimento, a indiferença, o descaso com a Casa Comum, a polarização ideológica e os descartados. É urgente que a Igreja “em saída” faça a sua missão pastoral ajoelhada diante das pessoas concretas para escutá-las, curá-las e servi-las. O processo é sair das sacristias em direção às feridas humanas, sem medo de cair e pronta para se levantar (EG, n. 49). Essa é a irreversível e inadiável renovação eclesial com a doçura do Espírito Santo através da peregrinação do povo santo fiel de Deus na história.

O povo santo fiel de Deus é a base da organização missionária e renovadora da Igreja. Essa teologia proposta no Concílio Vaticano II contribui nas construções de pontes necessárias e urgentes na humanidade. O povo in credendo abre novos horizontes na universalidade, partindo de baixo para cima e não da hierarquia eclesiástica para baixo. Pensar “em saída” é propor com o povo de Deus a consciência eclesiológica da revelação do mistério da Trindade na história. As realidades periféricas, da vida humana e do planeta faz nos compreender a atuação missionária (LG, n. 9-7).

A pastoral orgânica e o protagonismo do laicato necessitam serem reavivados e encarnados nas realidades populares e da sociedade. Essa é a proposta assumida e integrada no pontificado do Papa Francisco:

A imagem da Igreja de que gosto é a do povo santo e fiel de Deus. É a definição que uso mais vezes e é a Lumen Gentium, no número 12. A pertença a um povo tem forte valor teológico: na história da salvação salvou um povo. Não existe plena identidade sem pertença a um povo. Ninguém se salva sozinho, como individuo isolado, mas Deus atrai-nos considerando a complexa trama de relações interpessoais que se realizam na comunidade humana. Deus entra nessa dinâmica do povo... O povo é sujeito. E a Igreja é o povo de Deus a caminho na história, com alegrias e dores. Sentire cum Ecclesia é para mim, pois, estar neste povo

(SPADARO, 2013SPADARO, A. Entrevista com o Papa Francisco. São Paulo: Paulus, 2013., p. 16).

O pensamento e a práxis do Papa Francisco contribui para a teologia com elementos antropológico, cultural, social e político. Essa reflexão teológica diante da Igreja em um mundo plural direciona-se aos temas necessários das relações humanas e planetárias. A teologia e a Igreja vestidas de avental serão facilitadoras do diálogo, e não autorreferenciais das decisões. Será o tempo oportuno de alicerçar os novos caminhos de processos contínuos e comunitários, aproximando-se das fronteiras e periferias humanas. Amoris Laetitiae é um fruto colhido e já semeado para se aprofundar passos teológicos e pastorais, dialogando com as questões que ferem a família e os modelos familiares reais e existentes.

Após uma escuta sinodal de temas familiares, podemos observar como o Papa Francisco tem prosseguido as temáticas e questões abordadas. O sínodo para a sinodalidade dentro da Igreja é um exemplo evidente desse iniciar processos, pois casais de segunda núpcias e casais homossexuais são inclusos na vida eclesial. A simples forma de tratar o acolhimento e a inclusão deles está presente na Fiducia Supplicans. É uma forma de trazer para a mesa teológica e pastoral o cotidiano do povo de Deus. São as alegrias e dores escutadas e conversadas na mesma mesa, que não ficaram engavetadas, independentemente dos favoráveis ou críticas à temática.

A maneira cuidadosa, corajosa e pastoral do Papa Francisco faz os temas de difícil abordagem na Igreja avançarem. As equipes de teólogos e teólogas prosseguem as fundamentações para essas questões, constituindo a possibilidade do diálogo aberto e necessário. Essa perspicácia de Bergoglio é notada também com os temas importantes recebidos para o sínodo da sinodalidade, contudo, aprofundados nas instâncias competentes. Assim, evita-se a discussão polarizada e avança-se no processo da Igreja de ser sinodal em seu ser do presente e lançado para o futuro. A próxima fase deste sínodo sobre a sinodalidade terá seu foco na mudança fulcral, contudo, sem ignorar as demais questões trazidas na ampla consulta sinodal ao povo de Deus nas suas Igrejas locais.

A Igreja povo de Deus peregrinando na história é paradigma para o desenvolvimento missionário “em saída”, deixando aberto o diálogo para relações humanizadoras e transformadoras. As renovações, mudanças e transformações eclesiais e no mundo acontecerão na perspectiva da conversão dos seus membros ao Evangelho. A transformação institucional e pastoral não acontece com decisões decretadas, mas construídas dentro do espaço dos processos. A proposta teológica da Igreja “em saída” não deverá seguir o risco de se impor, e sim de conduzir a conversão evangélica. As mudanças e aplicações serão frutos desses processos, vindo de baixo para cima pela adesão comunitária. Por isso, o Papa Francisco incentiva a uma teologia evangelizadora e em diálogo:

É essencial que vocês, teólogos, façam isso em sintonia com o povo de Deus, eu diria “de baixo para cima”, ou seja, com um olhar privilegiado para os pobres e simples, e ao mesmo tempo se colocando ‘de joelhos’, porque a teologia nasce da adoração a Deus

(FRANCISCO, 2023FRANCISCO. A Igreja é “mulher”, devemos desmasculinizá-la. 2023. Vaticannews. Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2023-11/papa-audiencia-comissao-teologica-internacional-30-11-2023.html. Acesso em: 04 jan. de 2024.
https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/...
).

O Espírito Santo possibilita a Igreja peregrinante alcançar as estruturas eclesiásticas nas quais não conseguem ou não pensam ir. As sementes de uma Igreja popular lançadas em Medellín com as CEBs possibilitam hoje as comunidades fecundarem uma pastoral mais próxima da realidade do povo de Deus. A teologia latino-americana da Libertação ou do Povo na Argentina contribuem para a necessidade da Igreja se colocar “em saída”. Hoje, dentro do processo histórico e urbano globalizado, sugere-se pensar a atuação das comunidades com ousadia evangélica. O protagonismo comunitário fará o testemunho das lutas florescerem para as mudanças e transformações nos vários âmbitos como pessoal, social, comunitário, pastoral, missionário e estrutural.

As comunidades de hoje têm os perigos e obstáculos dos retrocessos, contudo, necessitam da conversão contínua do povo de Deus para superá-los. O frescor do Evangelho alimenta as comunidades para avançarem no testemunho (EG, n. 11), sem esquecerem as suas raízes históricas dos caminhos feitos. Caminhar e semear o novo possibilitará as comunidades “em saída” irem sempre mais além (EG, n. 21). Essa possibilidade não está nas ordens clericais, e sim na dignidade batismal com a prática da sinodalidade. A comunhão e a participação da Igreja acontecem com o testemunho das comunidades espalhadas no mundo, e fazendo a construção de uma sociedade melhor. Apesar de ser um processo lento, convoca a ação do sujeito histórico:

Este povo de Deus está encarnado nos povos da Terra, cada um com a sua cultura. A noção de cultura é um instrumento precioso para compreender as diferentes expressões de vida cristã presentes no povo de Deus, é o estilo de vida de uma determinada sociedade, a forma peculiar que os seus membros têm de se relacionarem entre si, com as outras criaturas e com Deus, entendida desta forma, a cultura inclui a totalidade da vida de um povo. Cada povo, em seu desenvolvimento histórico, desenvolve sua própria cultura com legítima autonomia. Isso se deve ao fato de que a pessoa humana, “por sua própria natureza, necessita absolutamente de uma vida social” e sempre se refere à sociedade, onde há uma forma concreta de se relacionar com a realidade. O ser humano está sempre situado culturalmente: “natureza e cultura estão intimamente ligadas”. A graça pressupõe cultura, e o dom de Deus se encarna na sua cultura de quem o recebe

(EG, n. 115).

A teologia “em saída” parte da base popular e não necessita disputar espaços, mas construir pontes interligando os lugares periféricos. Ela não ficará somente nos espaços acadêmicos, mas ligada e participando da vida cotidiana. Os lugares periféricos correspondem aos lugares reais e existenciais, pois são nesses lugares que se adquire o cheiro das ovelhas (EG, n. 24). O discurso teológico distante do povo torna-se vazio. Dessa maneira, a teologia “em saída” fará várias aberturas e novos olhares, aproximando a Igreja do seu povo. O diálogo com os diversos saberes enriquecerá o caminhar teológico-pastoral, ampliando os horizontes. A pertença do povo fiel e santo de Deus nesse caminho protagoniza a missão evangelizadora.

A presença dos batizados nas decisões e passos da Igreja não se limita em ser um simples receptor dos serviços religiosos, e sim sujeitos capazes de repensar os esquemas inadequados da paroquialização e instâncias eclesiásticas burocráticas. A atualidade “em saída” tem proposto a participação do povo batismal nos momentos de decisão e encaminhamentos renovadores, propondo a saída do clerical para a comunhão. A renovação vaticana nas instâncias curiais, teológicas e econômicas estão em curso com a nomeação dos fiéis, valorizando a presença das mulheres (AZEVEDO, 2021AZEVEDO, W. F. O Papa nomeia sete mulheres de uma só vez para formarem parte do Dicastério da Vida Religiosa. IHU. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/590699-o-papa-nomeia-sete-mulheres-de-uma-so-vez-para-formarem-parte-do-dicasterio-da-vida-religiosa. Acesso em: 04 jan. 2024.
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/5...
). A falta da inclusão e responsabilidades para o laicato fere a eclesiologia do povo de Deus, pois a proximidade entre ministros ordenados e o laicato testemunha a comunhão batismal.

A pastoral também se tornará mais próxima onde estiverem missionando juntos os clérigos e o laicato. O nosso momento contemporâneo provoca os pastores da Igreja a deixarem de ser funcionários curiais e do sagrado, e sim servidores para avanço comunitário. A participação eclesial do povo santo e fiel é aquela que sai pelo Espírito Santo a partir do que se crê, colaborando para uma Igreja ser ministerial. E na perspectiva eclesial “em saída” afirma o Papa Francisco:

Em todos os batizados, desde o primeiro ao último, atua a força santificadora do Espírito que impele a evangelizar. O povo de Deus é santo em virtude desta unção, que o torna infalível “in credendo”, ou seja, ao crer, não pode enganar-se, ainda que não encontre palavras para explicar a sua fé. O espírito guia-o na verdade e o conduz à salvação. Como parte do seu ministério de amor pela humanidade. Deus dota a totalidade dos fiéis com um instinto da fé – o sensus fidei – que os ajuda a discernir o que vem realmente de Deus. A presença do Espírito confere aos cristãos uma certa conaturalidade com as realidades divinas e uma sabedoria que lhe permite captá-las intuitivamente, embora não possuam os meios adequados para expressá-las com precisão

(EG, n. 119).

A Igreja “em saída” ressalta a importância do sensus fidelium para ultrapassar as barreiras da clericalização institucionalizada. O processo de descentralização missionária das “elites” pastorais de católicos isolados contribui para construir uma Igreja além do burocrático-empresarial do mercado religioso, consistindo na sinodalidade com todos os batizados. A mentalidade sinodal abrirá olhos, ouvidos e mentes para a leitura dos sinais dos tempos e a construção dos consensos necessários. Essa capacidade é diferente de sustentar as práticas devocionistas, pois ela impulsiona a corresponsabilidade de todos os batizados e não a sua participação alienante.

O sensus fidei é a capacidade batismal nutrida pelo Evangelho e o Espírito Santo na vida comunitária. A communium fidelium no exercício do sacerdócio comum fundamenta e promove a comunidade na sua missão evangelizadora. Todas as comunidades são impelidas a saírem da passividade religiosa dura e fechada, para com seus dons e carismas fazerem a missão alegre e contagiante. A contribuição teológica dada pelo Concílio Vaticano II amplia a participação dos batizados, evitando buscar soluções e refúgios em modelos eclesiais do passado ou imediatistas. A sua perspectiva amplia a construção comunitária para as respostas necessárias aos desafios de hoje.

A pauta da teologia “em saída” aponta o testemunho e participação evangélica dos seus membros, para a clareza do sensus ecclesiae responder às questões plurais. A riqueza desse caminho está na Persona Ecclesiae animada pela Persona Spiritus santificando o mundo, possibilitando a todos serem incluídos e caminharem juntos. Os conflitos presentes nas periferias reais e existenciais necessitam do testemunho evangélico das comunidades caminhando em suas direções. São a teologia, o magistério eclesial e o povo indo conjugadamente às realidades precárias da vida plena (Jo 10,10).

A contribuição “em saída” está no progredir apostólico do Concílio Vaticano II, conduzida pelo Espírito Santo aos lugares desafiadores. O pontificado maduro do pós-concílio com o Papa Francisco possibilita avançar passos dados pelo Concílio, com ousadias pastorais. Os sinais dos tempos hoje trazem os desafios da migração, guerras, polarizações, globalização da indiferença, mudanças climáticas, pluralidades e fundamentalismos, exigindo a paciência e suportação apostólica com o “estilo missionário”. Assim, a necessidade missionária no mundo atual acontecerá com uma Igreja mais colegial, sinodal, ecumênica e aberta às outras religiões. As questões religiosas, econômicas, políticas sociais e ambientais exigem uma nova consciência e humanismo, descentralizado e a partir das periferias.

Pensar a partir da periferia e não do centro permitirá à Igreja realizar o diálogo, evitando a verticalidade e possibilitando a horizontalidade. O Papa Francisco expressou esse caminho ao CELAM em 2013 na sua visita ao Brasil por ocasião do JMJ:

a posição do discípulo-missionário não é uma posição de centro, mas de periferias: vive em tensão para as periferias... incluindo as no encontro com Jesus Cristo. No anúncio evangélico, falar de “periferias existenciais” descentraliza e, habitualmente, temos medo do sair do centro. O discípulo-missionário é um “descentrado”: o centro é Jesus, que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais

(FRANCISCO, 2013FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus, 2013., p. 71).

O Evangelho preconiza a descentralização como proposta divina com a encarnação do Filho, permitindo a Igreja tomar a iniciativa de sair para as periferias do mundo. Pensemos como o Sínodo da Amazônia permitiu toda a universalidade da Igreja conhecer e escutar as ricas contribuições e indagações teológicas e pastorais. A esfera da colegialidade e da sinodalidade trará uma nova etapa e novas formas eclesiais necessárias. A proposta é superar a mentalidade eclesial do semper eadem (sempre o mesmo) que adoece e envelhece a Igreja. Primeirear a Igreja “em saída” é chave teológica para a missionariedade abandonar o cômodo critério pastoral do “sempre foi assim” (EG, n. 33).

A proposta “em saída” se faz livre para avançar os fundamentos do Concílio Vaticano II com o novo ar primaveril, possibilitando sanar as enfermidades eclesiásticas. Essa práxis articulada com a cultura do encontro como dinâmica irreversível do Concílio, abre as portas da Igreja para vínculos, processos, proximidade, escuta e diálogos. A Igreja “em saída” oferece um modo de proceder através do discernimento comunitário, inspirando os novos caminhos para a Igreja. Diante das tensões polarizadas os princípios bergoglianos ajudam a construir sempre processos, e não o desgaste nas disputas estéreis por espaços. Chamamos de princípios bergoglianos a síntese que o Papa Francisco faz do seu estudo sobre Romano Guardini na obra “A oposição polar”, para superar as tensões.

É possível compreender que estes quatro princípios “o tempo é superior ao espaço” (EG, n. 226), “a unidade prevalece ao conflito” (EG, n. 227) “a realidade é superior a ideia” (EG, n. 228) e “o todo é superior à parte (EG, n. 229) permitem sairmos das discussões estéreis. Construir a convivência fraterna pelo projeto comum será privilegiar iniciar os processos que contemplam as possibilidades, e não os espaços tomados pelos jogos de interesses. A “síndrome de Pilatos” criam “os ismos” e deturpam a realidade, enquanto, a estratégia “em saída” com os princípios bergoglianos significam alargar o olhar das fronteiras existentes, apontando caminhos além da parcialidade.

A figura do poliedro reúne esses princípios e possibilita ver as tensões, para abrir os diálogos. Trata-se de não reduzir a realidade, e sim progredir na unidade mesmo com as tensões e conflitos, buscando as soluções e diálogos abertos nos espaços consensuais. A “varinha mágica” ou a “caneta dos decretos” dão lugar ao processo iluminador para superar conflitos e passos concretos das mudanças necessárias, a partir da construção das mentalidades. Assim, o importante é o processo ao longo do tempo, e não as disputas ou espaço de poderes, evitando-se os imediatismos efêmeros.

Os caminhos a serem feitos poderão conduzir a Igreja a se converter da sua riqueza para assumir a pobreza, fazendo-a estar com os pobres. Uma Igreja que se torna pobre para os pobres, como foi a recepção conciliar na América Latina (Md, p. 45). A “inclusão social dos pobres” (EG, n. 186-216) será a realidade vivida pela Igreja com os pobres protagonizando a transformação profética. O profetismo e opção reassumida da Igreja “em saída” pelos pobres traz a marca kenótica assumida pelo Cristo (Jo, 10,10; Jo1,14; 2 Cor 8,9). A postura do Papa Francisco de renunciar ao palácio vaticano para viver em um quarto simples de hospedaria, despir-se das pompas, uso de um carro simples e se preocupar com as causas do descarte que leva a miséria e a pobreza hoje é o testemunho em ação da opção “em saída” pelos pobres.

Os bispos “das catacumbas”2 2 Documento redigido e assinado por 40 padres conciliares (bispos latino-americanos), no dia 16 de novembro de 1965 na catacumba de Domitila, em Roma. Esses bispos se comprometeram a levar uma vida simples, com os pobres, sem ostentação e privilégios do poder no seu ministério pastoral. durante o Concílio Vaticano II deram esse primeiro testemunho, e agora vemos o Papa Francisco convidando a Igreja a escutar o grito dos pobres e do planeta. A Igreja tem a sua frente a possibilidade de sair das tentações da riqueza, assumindo as causas que geram a pobreza e a fome como as guerras, interesses econômicos e políticos. Afastar-se dos pobres será escolher o caminho de cúmplice das injustiças encobertas pelos diversos interesses. Por isso, a Igreja necessita se despojar das ostentações e ajoelhar-se para compreender as dores dos pobres.

A proposta teológica da Igreja “em saída” está na discussão e construção de uma economia solidária e inclusiva contra uma economia que mata e descarta (EG, n. 53). Junto aos economistas jovens e com a experiência eclesial dos que sempre estiveram ao lado dos pobres será a busca de superar esse sistema injusto cristalizado. A lógica samaritana fará distinguir os estilos de vida dominantes que anestesiam com a cultura do bem-estar. A anestesia social faz a sociedade se tornar insensível às dores dos pobres descartados, enquanto o anúncio do Evangelho provoca a Igreja a organizar o povo para um futuro melhor.

Essa é a proposta da “economia de Francisco e Clara” feita pelo Papa Francisco aos jovens, intelectuais e economistas do mundo em Assis (2022). Abrir as estruturas eclesiais às questões humanitárias como a dos 3 “Ts” (teto, terra, trabalho) é implicar-se com todos os sofredores da economia injusta. Significa trazê-los com seus dramas para a pastoral dentro da perspectiva da cultura do encontro, dialogando dentro e fora da Igreja sobre as questões necessárias de transformação.

O diálogo é palavra-chave em tempos marcados pelo retrocesso religioso, econômico e social, pois será capaz de gerar e promover consciências capazes de uma geração mais humana, fraterna, amiga e solidária (FT, n. 114). Esse processo dialogal é inclusivo, capaz de encontrar os novos hábitos, culturas e estilos sem descartar a pessoa humana e a Casa Comum. Construir a cultura do encontro será proporcionar o diálogo facilitador de pontes. Por mais difícil e duro que seja esse diálogo, se faz necessário para bases sólidas desse futuro com esperança.

2 Kenosis eclesial

O texto bíblico de Fl 2,6-11 traz o Cristo que se encarnou, humilhou, abaixou e aniquilando-se assumiu a humanidade e a sua condição. A teologia da kenosis é desenvolvida pelo teólogo Hans Urs von Balthasar, pensando a primeira forma da kenosis na relação intratrinitária das Pessoas divinas. Ele reúne seus escritos e pensamentos dessa relação pericorética e kenótica da Trindade nos 5 volumes da Teodramática. Nesta obra apresenta a abertura de uma Pessoa para com a outra e o movimento divino participando da história humana à luz da revelação e encarnação do Filho. Deus e o ser humano estão no mesmo palco da história, sem roteiro definido.

O Deus Trino na sua decisão de doar-se a si mesmo e sair em direção ao mundo o faz participante dos dramas humanos. Esse Deus vivo e verdadeiro não se anula ao esvaziar-se de Si mesmo para a prática do seu amor absoluto, experimentando a miséria, desencontros e rejeição humana. O ápice dessa entrega acontece na cruz. Nessa perspectiva teológica a continuidade da missão da Igreja no mundo é pensada como uma kenosis eclesial, doando-se, esvaziando-se e participando dos dramas humanos, mesmo que seja também rejeitada na sua proposta.

Balthasar elabora uma teologia sobre a kenosis eclesial (2005bBALTHASAR, H. U. von. Spirito e Istituzione. Brescia: Morcelliana, 2005b.), fazendo-a sair das suas muralhas em direção ao mundo. A credibilidade eclesial acontecendo com o gesto pastoral de se inclinar com a bacia e a jarra do lava-pés, realizando constantemente as atitudes de abaixar-se e despojar-se ao servir a humanidade (Jo 13, 4-5). Nos seus ensaios eclesiológicos, aproxima o tema da kenosis divina como consequência para a vivência eclesial. A pastoral é assumir a opção solidária com as dores dos sofredores, marginalizados e pobres, pois eles são vítimas dos atos desumanos da história.

A kenosis eclesial proposta por von Balthasar está em pensar o movimento e a práxis realizada por Jesus com a sua encarnação e o anúncio do Reino de Deus (BALTHASAR, 1993BALTHASAR, H. U. von. My work in retrospect. San Francisco: Ignatius, 1993., p. 20). Esse caminho kenótico apresenta Deus próximo e provoca a uma forma eclesial, não no poder absoluto e sim no amor absoluto. O Deus presente e agora encarnado no meio do seu povo caminha pacientemente no meio dele, aguardando a sua resposta e protagonismo. Dessa maneira, a Igreja como povo de Deus caminhante na história é chamada a escutar os sinais dos tempos, repensando a sua organização e missão. Estar aberta ao novo do Espírito será o primeiro passo para sua organização estrutural e pastoral, possibilitando ser uma estrutura pneumatológica e não burocrática.

O pensamento teológico de Balthasar propõe a eclesialidade à luz da kenosis de Jesus, estendendo a encarnação através do gesto do lava-pés e da cruz. A Igreja ao prosseguir esse movimento kenótico necessita se esvaziar e ir ao encontro das realidades humanas. Ao sair de si mesma possibilitará a humanidade o testemunho transformador da convivência humana, despindo-se do orgulho, ódio, consumismo, prepotência e individualismo que impedem a fraternidade e amizade social. O teólogo da kenosis propõe a compreensão do cristianismo como o agir de Deus se abaixando para criar a comunhão do discipulado do seu Filho pelo Espírito, atuando com o amor (BALTHASAR, 2005aBALTHASAR, H. U. von. Mysterium Paschale: The Mystery of Easter. San Francisco: Ignatius, 2005a., p. 49).

A vida eclesial na comunidade de fé se torna uma relação kenótica, pois possibilita a iniciativa de sair de si mesma para se abaixar diante do outro. Esse poderá ser o paradigma pastoral de sair para encontrar e dialogar com as pessoas a possibilidade de um mundo melhor e humanizado. O próprio Deus ao renunciar a sua onipotência e onisciência livremente escolhe entranhar a sua misericórdia com os feridos e caídos das estradas do mundo. Esse gesto da solidariedade divina deveria provocar as novas decisões e missão da Igreja.

A vocação da Igreja decididamente missionária acontece em realizar o mesmo ato da renúncia divina, fazendo uma kenosis eclesial. O discernimento eclesial missionário à luz do Espírito Santo para o testemunho de Cristo fará a Igreja ser digna de credibilidade e fé. Esse caminho está em prosseguir evangelicamente os passos realizados pelo Cristo encarnado, constituindo o lugar que a Igreja deverá estar, com os que sofrem a ausência do amor e têm a sua voz silenciada pela lógica do desamor humano. Eis o locus teológico da kenosis eclesial.

A teologia da kenosis permite compreender a escolha divina de tornar-se próximo, acessível e no meio da humanidade. Mesmo com a possibilidade do fracasso dessa Missio Dei que culminou com a rejeição na cruz, a kenosis traz a mesma esperança na manhã do Ressuscitado com a força da efusão do Espírito Santo. A Igreja conduzida pela força do Espírito Santo seguirá a sua pastoral missionária buscando a vida às novas gerações. Balthasar destaca a esperança da construção do futuro ampliando o conceito e as perspectivas da missão:

Primeiro, existe a relação com quem envia, e por quem está presente na missão, identificando com quem é enviado. Segundo, existe a missão de perspectiva de futuro: devendo-se ser cuidadoso com as energias humanas de quem é enviado, assim ele é livre, e a implementação será com as circunstâncias que precisam ser consideradas, planejadas e testadas

(BALTHASAR, 1998BALTHASAR, H. U. von. A Los Creyentes desconcertados. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1998., p. 168).

A kenosis é a estratégia missionária de Jesus, o enviado do Pai, para a realização do seu serviço salvífico. Balthasar destaca a abertura da Igreja ao Espírito como o medo dos eclesiásticos, sejam clérigos ou laicos. Estes preferem manter a sua segurança dentro da instituição, gerando o fechamento e adoecimento. O diálogo é necessário para as decisões humanas, e dessa maneira, a Igreja necessita estar atenta aos sinais dos tempos e as demandas humanas. Escutar e enxergar as realidades humanas principalmente com as dores dos pobres e mais simples do Reino será promover as primaveras eclesiais (BALTHASAR, 2005bBALTHASAR, H. U. von. Spirito e Istituzione. Brescia: Morcelliana, 2005b., p. 54).

Balthasar propõe escutar o Espírito Santo para se renovar a Igreja constantemente, valorizando a corresponsabilidade batismal. A missionariedade será tecida com o encontro com as pessoas, possibilitando criar relações e vínculos comunitários. Essa liberdade do Espírito abrirá as portas da Igreja nas suas comunidades fechadas por medo do encontro e suas realidades (Jo 20,19-22). O novo do Espírito tecido através do diálogo e norteado pelo Evangelho. Assim, a teologia balthasariana indica três princípios evangélicos para seguir na perspectiva kenótica na práxis eclesial.

O primeiro é o princípio mariano destaca características femininas do ser envolvente e materno para a pastoral da Igreja, e não do rigor canônico. A maternidade envolvente da Igreja fará a relação entre os batizados e sua missão evangelizadora compreender as demandas pastorais e missionárias, que ferem a humanidade. Outro ponto de abertura será de pensar uma Igreja com a participação efetiva das mulheres nas pastorais, ministérios e principalmente nas decisões eclesiais.

A imagem patrística Ecclesia-Sponsa provoca a figura patriarcal eclesiástica, fazendo a Igreja assumir a postura da maternidade madura. Ela poderá pensar a pastoral entranhada na vida concreta, e não cumpridora de normas, burocracias, ativismos, administração financeira (BALTHASAR, 1981BALTHASAR, H. U. von. El complejo antirromano. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1981., p. 210). Essa característica mariana fará o atuar eclesial livre e próxima, avançando nos processos de escuta e discernimento dos caminhos a serem feitos. A presença da Igreja na sociedade não será de vigia ou disputa de poderes ou honrarias, e sim da disponibilidade de servir e reconciliar.

O segundo princípio é petrino-paulino, pois a hierarquia constituída deverá estar dedicada a missão de congregar e reconciliar. Esse princípio estabelecido à luz da teologia e noção do povo de Deus. O teólogo Balthasar publicou obras aplicando esse princípio como Sponsa Verbi, Complexo Antirromano e Espírito e Instituição. Nessas obras, propõe pensar a ministerialidade eclesial e missão para sanar os machucados históricos causados pelos papados e clericalismos, criticados pelas suas práticas no mundo contraditórias ao Evangelho.

A visão da Igreja não deve estar limitada a estrutura piramidal da carreira dos seus eclesiásticos, e sim expandir os dons e carismas batismais do povo de Deus. O princípio petrino não fica isolado e fechado em si mesmo, restringindo-se a rigidez doutrinal estéril (BALTHASAR, 1981BALTHASAR, H. U. von. El complejo antirromano. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1981., p. 35). A unidade e comunhão eclesial com o princípio petrino-paulino comporá com as várias comunidades eclesiais espalhadas na missão no mundo, fazendo o ofício pastoral acontecer na lógica evangélica e apostólica da comunhão.

O terceiro princípio é o paradigma do discípulo amado com a marca do amor e do serviço na mesa eucarística com o abaixar-se do lava-pés. O seguimento da comunidade acontece kenoticamente para realizar o gesto credível da comunidade. É prosseguir as relações trinitárias despojando-se de si mesmo e das próprias convicções, assumindo como movimento eclesial o se abaixar ao outro. O princípio do amor do Espírito Santo atua na comunidade, conduzindo-a a ser credível pela atração (BALTHASAR, 2005dBALTHASAR, H. U. von. Spiritus Creator. Brescia: Morccelliana, 2005d., p. 140). A comunidade se abaixa para escutar sensível as demandas humanas, e acontece o lava-pés.

O ensino testemunhal do Mestre deveria provocar a Igreja a ser livre para amar. Esse é o escopo apontado por Balthasar para a Igreja colocar-se no meio do mundo a serviço. Os paradigmas eclesiológicos destacam a dimensão da kenosis, pois trazem a mística, a práxis do despojamento, o gesto do abaixar e do desprendimento para ir ao encontro. Conjuntamente possibilitam a conversão da Igreja para servir ativamente, e não ser um funcionalismo ativista ou manter sua sacramentalização.

O envolvimento, a colegialidade e serviço amoroso promovem o diálogo aberto pelo sensus fidei, evitando-se instrumentalizar o Evangelho e o Espírito Santo. Uma Igreja missionária em perene construção aberta à Missio Dei irá ao encontro das pessoas com misericórdia na práxis pastoral. A proposta de Balthasar procura provocar o pensamento da necessidade contínua do diálogo com o mundo. Sair das muralhas eclesiásticas em direção a pluralidade da realidade, que desafiam e provocam atitudes dialogais (BALTHASAR, 1994aBALTHASAR, H. U. von. Razing the bastions. San Francisco: Ignatius, 1994a., p. 52).

A kenosis eclesial transformará a mentalidade cristã para a característica teológica da proximidade pastoral na missão. O semper reformanda será transformador e não uma aparente pintura de parede, pois partirá sempre das páginas do Evangelho. Escutar os sinais dos tempos possibilitará o protagonismo do serviço missionário, que renovará a instituição eclesial perenemente. O Espírito Santo movimentará a Igreja para se abaixar e encurtar as distâncias entre as próprias pessoas.

A Igreja missionária sairá renovada de si mesma para com a ânfora e a bacia do lava-pés lavar as realidades marcadas pelo ódio e a violência desfiguradora. Assim a sua pastoral tem um paradigma: inclinada para o lava-pés (BALTHASAR, 2005cBALTHASAR, H. U. von. Sponsa Verbi. Brescia: Morccelliana, 2005c., p. 193). O ministério pastoral fundamentado nos dons e carismas do Espírito Santo, deixando o abstrato e teórico para o concreto da sua existência eclesial. Balthasar na linha pastoral do Concílio Vaticano II propõe à Igreja missionária na sua pastoralidade dialogar ecumenicamente, criar laços comunitários, ter atitudes fraternas e exercer a solidariedade. A sua atuação é oferecer a misericórdia sem medida e estar junto com os pobres (BALTHASAR, 2000BALTHASAR, H. U. von. Antiguo Testamento. Glória VI. Madrid: Encuentros, 2000. v. V., p. 274).

A existência e institucionalidade da Igreja está na pequena comunidade de irmãos e irmãs reunidos ao redor da palavra, do pão e do seu modo de viver (BALTHASAR, 1975BALTHASAR, H. U. von. ¿Por qué soy todavia Cristiano? Por qué permanezco en la Iglesa. Salamanca: Sígueme, 1975., p. 15). Essas comunidades tornam a Igreja mais missionária com a força do Espírito Santo, gerando novas formas de vida eclesial necessárias ao seu tempo. O abaixamento samaritano será outra característica da kenosis transformadora pelo sensus ecclesiae da atuação missionária da comunidade, criando a comunhão e participação diante das tensões eclesiais e sociais:

A Igreja é chamada a sair: não somente para o “mundo” que se encontra fora da Igreja, senão também a sair do “mundo” que está dentro da Igreja. A consequência deste chamado é invariavelmente sempre o mesmo: “imediatamente deixaram as redes e o seguiram” (Mt 4, 22)

(BALTHASAR, 1994bBALTHASAR, H. U. von. Estados de vida del cristiano. Madrid: Encuentros, 1994b., p. 107).

Sair e vivenciar as novas primaveras suscitará as novas formas de vida, ministérios e participação na Igreja, possibilitando amadurecer o sensus fidelium. A acomodação e a duplicidade espiritual são os obstáculos das novas primaveras eclesiais, pois fecham a Igreja em si mesma, adoecendo-a. A Igreja-Comunidade com os vários paradigmas da ação da kenosis leva a presença junto aos feridos. A kenosis eclesial busca responder o chamado da Igreja de estar no mundo e abrir novos horizontes.

3 Inclinar-se para primeirear “em saída”

Primeirear é o neologismo utilizado pelo Papa Francisco que provoca a Igreja a tomar a iniciativa de sair de si mesma, para se abaixar como o seu Senhor e envolver-se com a humanidade (EG, n. 24). Assim, a Igreja poderá assumir a sua pastoral de maneira kenótica, abaixando-se para se aproximar e lavar os pés daqueles que encontrar pelo caminho. Essa nova postura eclesial e pastoral conduzirá a saída missionária com misericórdia. O processo primeireador convida à um itinerário de despojamento através do se envolver, acompanhar, frutificar e festejar (EG, n. 24).

A Igreja ao realizar sua saída em direção ao mundo buscará primeirear diálogos. Esse caminho fará a Igreja mais próxima das realidades concretas dos sinais dos tempos. O gesto do lava-pés (Jo 13) conduz a transformação e atuação necessária das comunidades eclesiais com as questões existentes. O inclinar-se eclesial exigirá desapegar-se das próprias seguranças (BALTHASAR, 2005bBALTHASAR, H. U. von. Spirito e Istituzione. Brescia: Morcelliana, 2005b., p. 41), para sem medo arriscar-se “em saída”. As crises causadas pelos avanços tecnocráticos e novas formas de pensamentos ou retrocessos colocam as pessoas em crises pessoais e sociais.

A mudança de época vigente propõe aos cristãos ir ao encontro das dores e sofrimentos à luz do Evangelho, deixando de lado as doutrinações e moralismos. A kenosis eclesial propõe a instituição religiosa rever suas atitudes e constituições, de acordo com as necessidades emergentes, renovando-se a si mesma. As estruturas da Igreja necessitam converter-se constantemente e se colocar totalmente a serviço da missão. O paradigma da Igreja alegre e pronta para se abaixar a fará mais missionária.

O primeirear eclesial se trata da saída consciente dos desafios e obstáculos que encontrará pelo caminho. Esses desafios e obstáculos serão superados sem se perder a coragem, alegria e ousadia (EG, n. 109). A posição kenótica levará a Igreja despojar-se das estruturas burocráticas e esquema defasados, para possibilitar uma nova postura missionária. Isso é promover uma nova forma eclesial, e não uma nova Igreja:

A Igreja “em saída”, que o Papa Francisco está promovendo com vigor, em muitos aspectos tem implicações de caráter pragmático em vez de teórico. Trata-se de um apelo a sair dos recintos da liturgia, das devoções, da vida interna da comunidade, para ir aos pobres e entrar nos ambientes dos quais parece que Deus se afastou. Na realidade, é muito mais. É a Proposta de uma nova forma ecclesiae

(DIANICH, 2018DIANICH. S. A descoberta do “outro” em uma Igreja em saída. IHU. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/579941-a-descoberta-do-outro-em-uma-igreja-de-saida-artigo-de-severino-dianich. Acesso em: 07 jun. 2018.
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/5...
).

Esse trecho citado descreve como a teologia “em saída” exige a práxis kenótica na sua constituição e pastoralidade missionária, pois exige a convicção e coragem de sair de si mesmo e dos confortos internos das Igrejas (BALTHASAR, 1981BALTHASAR, H. U. von. El complejo antirromano. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1981., p. 15). A Igreja que os devocionalistas sustentam e provocam nas pessoas a ilusão de culto efêmero e mercadológico. A lógica de garantir a salvação pela oferta constante das suas práticas de devocionismos, desprovidos da proposta encarnatória do Cristo. Entrar na vida e causa da pobreza fará a Igreja ser presença visível e certeza de fé, que Deus nunca se afastou dos pobres.

Primeirear a Igreja com o frescor evangélico possibilita descobrir as surpresas de Deus nos encontros reais. Ecoar e receber a primavera da atualidade do Concílio Vaticano II está na capacidade de abrir-se ao novo do Espírito do Ressuscitado (BALTHASAR, 2005bBALTHASAR, H. U. von. Spirito e Istituzione. Brescia: Morcelliana, 2005b., p. 189), para como Ele despojar-se de poderes para poder se aproximar. Ao aproximar-se se poderá caminhar conjuntamente, escutando a existência real e criando os processos pela sinodalidade concretizada. Trata-se de realizar a comunhão e missão eclesial sem superioridades ou respostas prontas.

A preocupação da missão da Igreja não será proselitista ou das síndromes de aumentar números ou porcentagens. Ser a maioria não é o seu escopo, e sim pela abertura ao Espírito Santo optar pela convivência fraterna e solidária. A sensibilidade com a outras pessoas humanas estará na capacidade de se aproximar para se envolver, acompanhar com compaixão diante dos sofrimentos. Frutificar novos caminhos com diálogo possibilitará festejar a alegria de estar junto neste processo (EG, n. 24). Isso significa não cair no perigo da impaciência e resultados imediatistas.

A comunidade será primeireadora “em saída” sempre que busca aprender e encaminhar suas ações à luz do Evangelho e com abertura ao Espírito Santo. O seu proceder paciente garante que o processo renovador da fé aconteça e permita compreender as questões sem superficialidades. O conceito teológico da kenosis eclesial possibilita a Igreja “em saída” ser com suas comunidades de fé sempre missionária. Sair em direção das periferias reais e existenciais será despojar-se constantemente, encurtando as distâncias (EG, n. 24).

O laicato se tornará maduro e não passivo ou infantilizado para ser repetidor religioso ou do clericalismo, e sim com protagonismo atuante e comunitário. A lógica desse modelo kenótico “em saída” está na Trindade. Concretizar e aplicar essa lógica neste paradigma será criar comunitariamente as aberturas das estradas onde encontram-se as vítimas da desumanização. Antecipar-se aos males pela desenvoltura de convivência humanizada.

A teologia colabora e ilumina a prática pastoral com a reflexão às possibilidades nascentes da atitude da inclinação, serviço e inclusão misericordiosa. Sanar as feridas implica o gesto da kenosis, indo ao encontro dos feridos, descartados e afastados. Olhando a imagem do lava-pés e da forma lucana de se abaixar para servir e praticar o amor encontramos a figura samaritana (Lc 10, 26-25). A parábola do samaritano provoca a nossa reflexão com a práxis do lava-pés, pois evoca o se abaixar e realizar o serviço. E tanto esse gesto lucano do samaritano como o joanino do lava-pés trazem o ensino do mandamento do amor do Mestre.

O ensino do Mestre está no se inclinar diante do ser humano, para o exercício do mandamento do amor. A práxis kenótica possibilita a compreensão do ato de servir e do ato de curar. Esses dois atos evangélicos da kenosis encontramos no ícone trinitário, na cidade de Basileia na Suíça. O ícone apresenta o gesto do Pai misericordioso levantando o ser humano ferido e caído, para o exercício do amor curativo do lava-pés realizado pelo Filho. E o Espírito Santo os envolvendo e tocando o ser humano com o beijo do amor.

A Trindade na missão das suas Pessoas divinas encontrando e resgatando o ser humano oferece a possibilidade da relação kenótica por toda a humanidade (BALTHASAR, 2005bBALTHASAR, H. U. von. Spirito e Istituzione. Brescia: Morcelliana, 2005b., p. 135). A encarnação do Filho reúne a sua comunidade para o exercício kenótico e do amor. Assim, a Igreja “em saída” realiza o testemunho da revelação divina da Trindade, e prossegue atuando com a missão evangelizadora no mundo. A pastoral kenótica realizada pela Igreja “em saída” se realiza pela práxis misericordiosa de sanar as feridas das pessoas encontradas e festejando cada passo e gesto (EG, n. 24).

As encruzilhadas do mundo serão os lugares privilegiados para a ação pastoral da Igreja que sai para se inclinar (EG, n. 24). Esse princípio teológico motiva a saída pastoral das comunidades espalhadas nos diferentes lugares, fazendo-as reconfigurar o seu estilo missionário. A proposta se torna clara e desafiadora para assumir as dores, sofrimentos e limitações humanas, como foi a escolha do Deus Trino. A escolha de livremente doar-se e não usar o seu poder absoluto, e sim o amor absoluto e solidário com as mazelas humanas (BALTHASAR, 2005bBALTHASAR, H. U. von. Spirito e Istituzione. Brescia: Morcelliana, 2005b., p. 212). A Igreja para manter a sua fidelidade à revelação divina deverá recriar as suas relações comunitárias, e despindo-se do seu poder temporal para o poder do amor e do serviço.

Fazer teologia “em saída” será sair dos escritórios acadêmicos e estar junto ao povo de Deus. Ela requer sair com a força de abaixar-se e aproximar-se da vida das pessoas e questões da Casa Comum (FRANCISCO, 2016FRANCISCO. Discurso do Papa Francisco aos participantes no Congresso eclesial da Diocese de Roma. 2016. Disponível em: http://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2016/june/documents/papa-francesco_20160616_convegno-diocesi-roma.html. Acesso em: 05 jan. 2024.
http://www.vatican.va/content/francesco/...
). Essa nova forma da Igreja existir e pastorear acontece como cuidado da proximidade materna com cada fiel. Destaca-se a capacidade de gerar filhos e filhas, para que eles possam crescer, amadurecer, pensar e praticar a sua fé comunitariamente e na missão. A sua aplicação acontece sem burocracias canônicas ou agendas intermináveis de compromissos, pois destaca-se a necessidade de olhar as pessoas e o lugar que vivem.

O amor e a profundidade do olhar possibilitarão a aproximação, fazendo que o plano espiritual se desenvolva com a presença do povo de Deus guiado pelo Espírito Santo. Esse plano se torna pastoral porque apresenta a força da mística. O primeiro passo é kenótico, convidando a despojar-se. O ato de despojar possibilita se livrar dos perigos da maldade, interesses pessoais, hipocrisias e invejas (1Pd 2,1). Os membros da comunidade poderão superar as atitudes que obstaculizam a prática pastoral da Igreja. O despojamento se torna a única norma, pois permiti evitar o perigo da autorreferencialidade para a prática desinteressada do amor cristão.

A Igreja “em saída” ao se referenciar com o paradigma joanino (EG, n. 24) propõe a construção de bases eclesiais, pastorais e missionárias ao se abaixar e sempre ser próxima, sem calcular o esforço do amor. Assim, viverá a simplicidade e autenticidade do estilo missionário. A Igreja como comunidade missionária primeirea se envolvendo e acompanhando os seres humanos com as suas alegrias e suas dificuldades. O seu processo contínuo “em saída” abrirá novos horizontes, possibilitando a capacidade da sinodalidade se tornar duradoura no jeito de ser, decidir e agir eclesial.

O estilo aberto por novos horizontes recuperará o modo mais orgânico e simples às realidades urbanas com os seus cuidados necessários. A articulação fará as paróquias se integrarem com o projeto comum de anunciar o Evangelho e incluir todos para receberem o bálsamo da misericórdia. Enfatizar a relação pastoral missionária e misericordiosa será manter presente o profetismo. As pequenas comunidades serão o lugar privilegiado para manifestar a ânfora da misericórdia. Elas exercerão a capacidade de olhar, sentir e curar através do acompanhar e dialogar.

As comunidades “em saída” são por excelência livres para ir ao encontro do outro, e diante de situações desumanizadoras profetizar com e pela misericórdia. A denúncia será para construir novas relações de altruísmo e justiça (MV, n. 21). As atitudes de misericórdia são proféticas, pois marcam a ousadia da proposta “em saída”. Elas abrem caminhos para os direitos humanos e a responsabilidade diante do outro. O profetismo é difundir a solidariedade em favor com todos os pequenos, pobres, sofredores, marginalizados, caídos e feridos (MV, n. 7).

As obras de misericórdia remetem a justiça social frente a indignação constatada das mazelas da sociedade política e religiosa corrompidas. Ver, sentir e tocar as dores dessas mazelas será ir profeticamente as suas causas, procurando evitar a geração da miséria desumanizadora. A práxis não está na escolha laxista ou rigorosa de profetizar, e sim em acolher, conviver e integrar comunitariamente os descartados e as suas necessidades de mudança. A misericórdia não é fraqueza, e sim força profética para estender as mãos e estar com os pobres.

A misericórdia com suas obras proféticas traz a coragem de escutar para construir caminhos melhores. A Igreja “em saída” se direciona a construir esses caminhos, por isso, denuncia o clericalismo dos ordenados e dos leigos chefes ou passivos. A maneira dos clérigos viverem sem sensibilidade a vida do povo, com síndrome dos príncipes e distantes de serem exemplos morais impedem tanto a prática da misericórdia como do profetismo. A atitude omissa dos leigos cúmplices dos padres para serem chefes dos outros ou a passividade do conformismo com uma Igreja clericalista, confirma o mal instalado e o adoecer da Igreja sacramentalista e devocionista.

O remédio é sair de si para o mundo com a postura da kenosis eclesial (BALTHASAR, 2005bBALTHASAR, H. U. von. Spirito e Istituzione. Brescia: Morcelliana, 2005b., p. 44). O caminho construído “em saída” necessita testemunhar a força da conversão, para aprender a se abaixar, escutar, dialogar, discernir e integrar sinodalmente. Essa prática sinodal kenótica cria a consciência eclesial da conversão, apontando a necessidade do diálogo para construir o consenso. O conjunto dos passos feitos possibilitará efetivar as mudanças e decisões, reforçando a dimensão do sensus ecclesiae. A horizontalidade cultiva a conscientização, comunhão e participação comunitária e verdadeiramente missionária.

O processo sinodal traz as aberturas e riscos, pois possibilita as diversas opiniões para as temáticas missionárias e eclesiais. O repensar eclesial escutando os seus membros e até os não membros. A presença e contribuição da Igreja no mundo deverá acontecer pela escuta, para se pensar qual tem sido o seu testemunho. Assim, a prática do sínodo concretiza a forma de ser Igreja, desde as bases das suas comunidades até as instâncias finais das suas estruturas. É a oportunidade de redescobrir a sua vocação missionária presente em todos os tempos da história.

A tentação em se deter nas estruturas obsoletas e institucionalizadas como a paroquialização, tornando-se um perigo de domesticar o “Espírito Santo” (KASPER, 1980KASPER, W; SAUTER, G. La Chiesa luogo dello Spirito: Linee di ecclesiologia pneumatologica. Milano-Brescia: Di Andrea/Queriniana, 1980., p. 73). A maneira dos bispos pensarem a presença e o serviço pastoral da Igreja criando paróquias, desrespeita a criatividade da evangelização pelas comunidades. Os padres se tornam funcionários preocupados em transmitir as taxas, burocracias curiais e um vocabulário distante da vida do povo e das letras do Evangelho. Sem contar com o despreparo dos “senhores sacerdotes” na fé, no intelecto e na dedicação pastoral. Infelizmente a pastoral se resume aos horários do padre em atender, celebrar e inventar novenários.

Reduzir as comunidades serem um “telefone sem fio” da cúria passando pela sede administrativa da paróquia (matriz) faz a Igreja retroceder séculos, para manter o poder e conforto dos clérigos e da instituição religiosa. Esses modelos são contrários a própria teologia do Vaticano II e várias iniciativas presentes na América Latina, como as CEBs e documento da 101 da CNBB Comunidades de Comunidades. É válido lembrar a necessidade da própria revisão do Código de Direito Canônico sobre normativas distantes do Concílio Vaticano II. O povo de Deus acaba reduzido a experiências pífias da fé, contudo, chamados a questionarem essas estruturas anti-evangélica.

O modelo da comunidade reunida ao redor da Palavra e do Pão eucarístico é o referencial dinâmico deixado por Jesus (BALTHASAR, 2005bBALTHASAR, H. U. von. Spirito e Istituzione. Brescia: Morcelliana, 2005b., p. 21), no seu memorial. Nessa proposta comunitária a Igreja com a comunhão e participação renovam a vida eclesial, escutando as indicações dadas pelo Espírito Santo. Assim, o caráter da sinodalidade será preparado desde as bases da Igreja que são suas comunidades e não as unidades funcionais chamadas paróquias. Trata-se de buscar conviver com o espírito evangélico, avançando às questões construtoras do amanhã.

O Papa Francisco tem realizados gestos claros e fortes desse caminho, como também proposto reflexões e convidado a teologia a participar do processo. A cada tempo novo necessita-se de planos novos e formas novas de desempenhar a pastoral, valorizando o caminho feito até agora para discernir os novos. Hoje a proposta de primeirear a Igreja “em saída” pela kenosis eclesial propõe a criatividade de novas formas pastorais e ministeriais para o anúncio alegre e convicto do Evangelho.

O Espírito Santo se colocará como o explicador3 3 O termo explicador vem da tradução de ausleger e auslegung presente na obra original de Balthasar Spiritus Creator. Também possível a tradução de intérprete ou explicitador. Na obra italiana utilizada nesta tese, o termo explicador parece mais apropriado. desse caminho horizontal aberto pelo Concílio Vaticano II (BALTHASAR, 2005dBALTHASAR, H. U. von. Spiritus Creator. Brescia: Morccelliana, 2005d., p. 59), e primeireador da Igreja “em saída”. Reavivar a vida das pequenas comunidades as farão missionárias no mundo urbano, pois a pastoral urbana é uma realidade crescente com características humanas próprias. Essas características colocam desafios diferenciados da territorialidade do passado, pois a vida urbana é imprevisível e cheia de movimento. Assim dialogar com o mundo urbano exige sair da realidade de massas e das comunidades presas ao redor de si mesmas, para ir direção as suas necessidades e chorar com as cidades. Isso fará a pastoral urbana olhar com esperança o futuro das relações humanas dentro das cidades.

A Igreja ao escutar o Espírito Santo se coloca nesse caminho de reunir as pessoas (BALTHASAR, 2005dBALTHASAR, H. U. von. Spiritus Creator. Brescia: Morccelliana, 2005d., p. 198), proporcionando a conversão permanente, pessoal, comunitária e da pastoral missionária. A paróquia deixará de ser uma institucionalidade caduca, e sim o local privilegiado das comunidades atuarem missionariamente. A linha pastoral da eclesiologia “em saída” que se abaixa para ir ao encontro é de atuar missionariamente com seus membros batizados, convencidos do Evangelho que anunciam. Essa é a fidelidade à Jesus, caminhar como Ele de modo itinerante para incluir a todos no Reino de Deus. Estar “em saída” é estar constantemente em missão itinerante encontrando com as pessoas reais e suas demandas.

O Espírito Santo possibilita sair da pastoral massificadora ilusória, para a realidade desafiadora das pessoas. As pequenas comunidades movidas pelos vínculos constituem artesanalmente as relações e caminhos a serem feitos. Os contatos desfazem as complexidades da atuação missionária, primeireando os novos caminhos de convivência evangélica e sacramental. A proposta da comunidade estar pronta para acolher e ir em direção de todos, sem as alfândegas doutrinais.

Conclusão

O desenvolvimento teológico nesse artigo propôs a pensar a importância da Igreja “em saída”, a primeirear a luz da kenosis eclesial. O processo teológico levará a renovação eclesial proposta pelo Papa Francisco, e “em saída” para uma Igreja mais próxima das pessoas e das questões emergentes deste tempo acelerado de mudanças, que exigirá passar constantemente por uma conversão pastoral e comunitária. Essa conversão conduzirá para uma Igreja “em saída”.

As implicações teológicas à irreversível dinâmica do Concílio Vaticano II e à disposição da Igreja em se despojar e se abaixar possibilitarão novos processos contínuos capazes de provocar novos horizontes. O povo fiel e santo de Deus em suas comunidades missionárias fomentará o caminhar pastoral diante dos desafios dos sinais dos tempos. Trata-se da tarefa contínua da semper reformanda, manifestando a possibilidade de uma renovação das estruturas concretamente.

Caberá aos teólogos conjuntamente com o povo de Deus contribuírem para uma visão comprometida com a pastoralidade e realidades existentes. Assim como o Cristo fez a sua kensois, a Igreja poderá se inclinar para iniciativas fomentadoras de diálogo, construindo as pontes com e entre a humanidade. Essas iniciativas poderão ser capazes de transformar a Igreja para caminhar junta, participante e de comunhão. Essa atitude primeireadora e kenótica é o modo característico da Igreja estar “em saída”.

Siglas

  • EG   Evangelii Gaudium
  • LS   Laudato Sì’
  • MV   Misericordi Vultus
  • GS   Gaudim et Spes
  • LG   Lumen Gentium
  • Md   Medellín
  • FT   Fratelli Tutti
  • 1
    Primeirear é o neologismo utilizado pelo Papa Francisco para a Igreja “em saída” tomar a iniciativa na sua atuação missionária, como Jesus fez ao se inclinar no lava-pés (EG, n. 24).
  • 2
    Documento redigido e assinado por 40 padres conciliares (bispos latino-americanos), no dia 16 de novembro de 1965 na catacumba de Domitila, em Roma. Esses bispos se comprometeram a levar uma vida simples, com os pobres, sem ostentação e privilégios do poder no seu ministério pastoral.
  • 3
    O termo explicador vem da tradução de ausleger e auslegung presente na obra original de Balthasar Spiritus Creator. Também possível a tradução de intérprete ou explicitador. Na obra italiana utilizada nesta tese, o termo explicador parece mais apropriado.

Referências

  • ALMEIDA, J. A. In: PASSOS, J. D.; SANCHEZ, W. L. (Eds.). Dicionário do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2015. p. 8-11.
  • AZEVEDO, W. F. O Papa nomeia sete mulheres de uma só vez para formarem parte do Dicastério da Vida Religiosa. IHU Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/590699-o-papa-nomeia-sete-mulheres-de-uma-so-vez-para-formarem-parte-do-dicasterio-da-vida-religiosa Acesso em: 04 jan. 2024.
    » http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/590699-o-papa-nomeia-sete-mulheres-de-uma-so-vez-para-formarem-parte-do-dicasterio-da-vida-religiosa
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  • BALTHASAR, H. U. von. ¿Por qué soy todavia Cristiano? Por qué permanezco en la Iglesa. Salamanca: Sígueme, 1975.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2024
  • Aceito
    13 Maio 2024
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