RESUMO
A relação conjugal é constituída por três realidades distintas que interagem e se mantêm. O estudo buscou compreender os significados da permanência na relação conjugal de quatro casais brasileiros. A obtenção dos dados ocorreu por meio de entrevistas semiestruturadas e grupo focal. Para a interpretação dos dados, utilizou-se a análise de conteúdo, considerando três tópicos temáticos: a concepção de família e o amor conjugal; o casal e a relação conjugal; o permanecer casados. A família nuclear e o amor conjugal permanecem idealizados e desejados; a relação conjugal constitui uma terceira realidade, um “nós” conjugal, que com o passar dos anos de convivência, modifica as individualidades e colabora para que os casais permaneçam unidos.
PALAVRAS-CHAVE: relação conjugal; individualidades; conjugalidade; permanência na relação conjugal
ABSTRACT
The conjugal relationship is constituted by three distinct realities that interact and hold each other. This study sought to understand the meanings of staying in the conjugal relationship of four Brazilian couples. Data were obtained through semi-structured interviews and focus group. Content analysis was used for data interpretation, taking into account three thematic topics: family conception and conjugal love; the couple and the conjugal relation; staying married. The nuclear family and conjugal love remain idealized and desired; the conjugal relation constitutes a third reality, a "we" conjugal, that over the years living together, modifies the individualities and collaborate so that the couples remain united.
KEYWORDS: marital relations; individualities; conjugality; permanence in the marital relation
A relação conjugal tem sido tema de inúmeros estudos e de significativa produção literária em diferentes ciências humanas, como a psicologia, a antropologia, a teologia, a sociologia, entre outras. Em alguns estudos psicológicos (e.g., Féres-Carneiro & Diniz Neto, 2010; Garcia & Tassara, 2003; Magalhães, 2009; Scorsolini-Comin & Santos, 2011), a relação conjugal normalmente é entendida como um processo organizacional complexo, contínuo e dinâmico entre duas individualidades que constroem uma identidade conjugal.
As individualidades na relação conjugal referem-se aos elementos próprios de cada pessoa que compõe essa relação. São pessoas únicas e irrepetíveis, com os seus desejos, seus significados, suas singularidades e diferentes experiências histórico-culturais, com suas formas sui generis de conceber a realidade, que provêm de estruturas e dinâmicas familiares distintas. Elas se relacionam com intenção, desejo e empenho para constituírem, de comum acordo, um compromisso de conviver e construir experiências cotidianas juntas (Féres-Carneiro, 1998; Féres-Carneiro & Diniz-Neto, 2010; Valle & Osório, 2004).
Na constituição da relação conjugal não existe a fusão de individualidades, mas o entrelaçamento da individualidade de cada cônjuge - “um entrelaçamento dos "eus" na conjugalidade” (Scorsolini-Comin & Santos, 2010) - por meio de negociações, ressignificação e conciliação de desejos e expectativas individuais, ou seja, uma contínua construção da relação a dois, considerando a individualidade de cada membro do casal, que só é possível porque o casal traz em si um elemento comum: a humanidade. Assim, existe uma unidade de humanidades que torna possível o encontro individual e a formação de um vínculo, de uma conjugalidade, de uma identidade a dois, de uma relação conjugal e de um “nós”, com considerada estabilidade e satisfação diante da influência dos diversos impactos sociais e culturais (Donati, 2012; Scabini & Cigoli, 2000).
Na humanidade dos cônjuges, as individualidades se relacionam e formam uma nova realidade intersubjetiva, que é a própria relação entre os cônjuges, isto é, um “nós” em contínuo e progressivo movimento. Assim, uma relação é vista como uma terceira realidade, gerada da interação comum das realidades individuais de cada pessoa humana que forma o casal, com vistas para um projeto comum. A formação de um “nós” conjugal não é uma relação dual constituída por uma junção ou justaposição de dois indivíduos que se encontram em um espaço em comum, mas por uma relação entre pessoas que requerem um pertencimento, proximidade e intimidade, com o objetivo de construírem uma vida em comum (Prandini, 2011). Na medida em que as pessoas, como um casal em sua individualidade, se relacionam, é gerado pertencimento, proximidade, intimidade e, muitas vezes, são estimuladas pela similaridade e/ou discordância entre elas e, assim, ocorre uma práxis (reflexibilidade e ação) que torna possível o surgimento da relação conjugal.
A reflexividade conjugal pode ser entendida pela expressão “o absoluto do casal” (Caillé, 1994), entendida como o movimento em que cada casal cria o seu modelo único de ser casal, uma maneira única de relação definida pela existência conjugal de duas pessoas que determinam suas fronteiras e significados. Enfim, são duas pessoas que encontram um jeito comum e próprio de serem dois em uma relação comum, o que Caillé indica com a expressão matemática “um e um somam três”.
A relação conjugal ultrapassa a díade conjugal e diz respeito ao processo por meio do qual as propriedades do vínculo conjugal se diferenciam da soma das identidades dos seus membros (Scabini & Manzi, 2011), permitindo que a própria relação de casal seja encarada como uma realidade distinta que leva à incorporação e manutenção da identidade individual das pessoas que compõem o casal (Badr, Acitelli, & Taylor, 2007), gerando sentido para a própria relação (Miller & Caughlin, 2013).
De fato, a relação conjugal não é uma realidade simples e muito menos linear, não podendo ser compreendida por meio de um “protocolo matematizável” (Esteves de Vasconcelos, 2002, p. 84) nem por meio de procedimentos de separação e redução dos fenômenos (Costa, 2010). Trata-se de uma realidade complexa, instável e intersubjetiva, por ser constituída pelas múltiplas e diversas interações contínuas entre o casal na própria relação conjugal em si e com o contexto socio-histórico, cultural e econômico em que estão inseridos.
Em outras palavras, a relação conjugal é marcada por um olhar de complexidade, instabilidade e intersubjetividade, porque deixa de ser concebida como estrutura mecânica coisificada e passa a ser compreendida como sistemas intersubjetivos compostos por agentes conscientes, intencionais, inseridos num determinado contexto em que cocriam a si mesmos e seu entorno, em uma permanente interação comunicativa e de construção de significados (Féres-Carneiro & Diniz-Neto, 2010). Daí que na relação conjugal reside todo fascínio e toda dificuldade de ser casal (Féres-Carneiro, 1998), um ato dramático e instável de duas pessoas diferentes com a demanda da criação de uma realidade comum de interação, de uma identidade relacional conjugal, ou seja, uma relação que envolve a tensão entre individualidades e o compartilhamento de valores, posturas e cuidados (Scorsolini-Comin & Santos, 2011).
Na realidade brasileira, a construção da relação conjugal é ainda mais complexa e instável, além de portadora de multiformes dificuldades na intersubjetividade dos casais, pois estes convivem com vários fatores complicadores e estressores - socioeconômico, político e social - que tendem a influenciar, fragilizar e desafiar a vivência conjugal na dinâmica do acolher, aceitar e integrar a unidade e a dualidade na totalidade da relação. Em especial, há como exemplo o desemprego, a dependência de álcool e drogas, a violência familiar, a precariedade de moradia e as especificidades étnicas, culturais, religiosas.
Considerar a complexidade, a instabilidade e a intersubjetividade da relação conjugal (Esteves de Vasconcellos, 2002) significa que o “nós” construído pelo casal não se reduz às suas individualidades, mesmo dependendo delas. A relação não está na soma das individualidades, mas é um processo compartilhado e contínuo a dois que forma uma terceira realidade, isto é, a relação conjugal. Esta possibilita a interação e a geração de um vínculo relacional afetivo e efetivo, favorecendo que o casal, inserido em seu contexto sociocultural, assuma, com certa disposição e empenho, uma relação de intimidade e convivência nas diversas experiências cotidianas, em vista de um projeto de vida comum de estabilidade e continuidade (Féres-Carneiro, 1998, 2008; Féres-Carneiro & Diniz Neto, 2008, 2010; Grandesso, 2000).
Este estudo considera a relação conjugal em sua complexidade, intersubjetividade e instabilidade (Esteves de Vasconcelos, 2002), por isso, leva em conta o processo pelo qual os casais, como atores sociais, por meio de suas “falas” e comportamentos durante as entrevistas e grupo focal, constroem significados e os descrevem, a partir da perspectiva e do sentido que eles mesmos atribuem à própria relação conjugal. Em outras palavras, este estudo busca compreender as representações, as crenças, os valores, as explicações e as opiniões que se referem à família e à relação conjugal dos casais.
Método
A pesquisa seguiu a proposta metodológica qualitativa, em que o pesquisador se posicionou no universo dos casais entrevistados e no grupo focal (Bogdan & Biklen, 1997; Denzin & Lincoln, 2006; Flick, 2009; Gatti, 2012; Minayo, 2010, 2013; Minayo & Guerriero, 2014; Streck, 2016). Este também foi um estudo sustentado por três princípios metodológicos: (1) o conhecimento é uma produção construtiva-interpretativa, que equivale à necessidade de dar sentido às expressões dos casais; (2) o processo de produção do conhecimento tem um caráter interativo, baseado em um processo dialógico entre entrevistados e entrevistador; e (3) a significação da singularidade como nível legítimo da produção do conhecimento (González-Rey, 2005). A proposta da investigação consistiu em se ater ao conjunto de práticas interpretativas, procurando compreender, nos relatos dos casais que mantêm o vínculo conjugal, o significado que eles dão à família e à relação conjugal e os recursos utilizados diante dos condicionamentos sociais, culturais, relacionais e familiares. Em outras palavras, visualizar e refletir a lógica interna que os casais, contextualizados na realidade brasileira, atribuem a suas ações, representações, sentimentos e opiniões no que se refere às relações domésticas.
Participantes
A definição dos quatro casais foi feita a partir do conceito de saturação teórica (Fontanella & Magdaleno, 2012) e da proposição deste estudo em proporcionar maior tempo e detalhes nas falas interativas dos casais, quer sozinhos, quer em grupo focal, com a intenção de maior aprofundamento dos conceitos e significados descritos pelos mesmos.
Participaram da investigação quatro casais brasileiros com renda média mensal entre dois e oito salários (um salário=R$788,00), na faixa etária de 30 a 59 anos, com Ensino Médio completo, com filhos e que mantêm a união conjugal há mais de 15 anos. Todos são moradores de cidades periféricas do centro do país (ver Tabela 1). Segue uma breve descrição dos casais:
Casal Camilo/Beatriz. No tempo de namoro, Beatriz ficou grávida e o casal decidiu morar junto; posteriormente, o casal casou-se no civil e no religioso. Migraram de outra região do país já como casal. Residiam, na época das entrevistas, em uma casa com um filho divorciado.
Casal Hélio/Sandra. O casal namorou escondido da família porque os pais dela não aprovavam o fato de Hélio ter poucos recursos financeiros e estudos; já os pais dele achavam que ela não era da mesma classe social dele. A não aceitação das famílias só foi amenizada com o noivado do casal e, posteriormente, com o casamento civil e religioso. Eles eram migrantes de outro estado, no qual nasceram. Moravam na mesma casa com dois filhos e com a mãe de Sandra.
Casal Walter/Márcia. O casal teve um tempo curto de namoro e são casados no civil e no religioso. Já casados, migraram do estado em que residiam. A esposa destacou a ajuda doméstica do marido como um fator que colaborou com a integração entre os membros da família. Ela considerou ter casado muito cedo, com 18 anos de idade. Ele insistiu para se casar o mais breve possível, porque não conseguia viver e se cuidar sozinho. Também tinha a intenção de sair da localidade em que moravam, na expectativa de condições melhores de vida.
Casal Valdir/Brenda. Valdir e Brenda, quando se conheceram, moravam um perto do outro - especificamente, no mesmo bairro (Brenda, com sua irmã, e Valdir, sozinho). O casal namorou alguns meses e Brenda foi morar na casa de Valdir. Não são casados no civil e nem no religioso. Nos dois primeiros meses de união, e já com a primeira gravidez, o casal passou a ter episódios contínuos de brigas e discussões, devido ao alcoolismo de Valdir. Isso gerou inúmeras separações e reconciliações que cessaram no décimo ano de casados, quando ele conseguiu manter-se sóbrio.
Instrumentos
Dentre as estratégias de pesquisa qualitativa, foi utilizada, primeiramente, a técnica das entrevistas semiestruturadas, com cada um dos participantes separadamente, seguindo um roteiro previamente elaborado. O roteiro compunha-se de cinco questões gerais, a saber: (1) concepções sobre família, casamento, papéis domésticos, manutenção do casamento; (2) descrição do cotidiano familiar e conjugal; (3) qualidade e satisfação do vínculo conjugal; (4) conquistas e situações difíceis na vida conjugal; e (5) estratégias na manutenção do casamento. As questões gerais foram subdivididas em outras perguntas, que facilitaram o diálogo e a compreensão ampla da opinião dos participantes isoladamente, em especial sobre suas concepções e significados de família e de relação conjugal (Flick, 2009; Mendonça & Matos, 2015).
Associado às entrevistas, o grupo focal (Gatti, 2012) foi outro recurso na obtenção de dados. Por meio da interação dos casais, pôde-se favorecer a obtenção das experiências e opiniões deles sobre a união conjugal (Gatti, 2012; Veiga & Gondim, 2001). O grupo focal seguiu um roteiro de tópicos: concepções de família, casamento, família e cônjuge ideal; qualidade e satisfação da vida a dois, bem como conquistas e situações difíceis na relação conjugal e, ainda, elementos para a manutenção do vínculo conjugal. O roteiro foi apresentado pelo moderador, a fim de obter dados e facilitar a inter-relação e o foco no tema do estudo durante as conversas.
Procedimentos
Para a entrevista, o pesquisador contatou pessoas conhecidas dele, oriundas de uma região central do país. Atento aos cuidados éticos, o pesquisador/moderador informou, tanto na entrevista como no grupo focal, sobre os objetivos do trabalho e solicitou a concordância dos participantes com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Com aqueles casais que se enquadravam no perfil e que concordaram em participar da investigação, foram marcados o dia e o horário das entrevistas. Na casa dos participantes, depois do rapport, o pesquisador, com o roteiro em mãos, fez as entrevistas com cada um dos membros do casal separadamente, obtendo os dados necessários para a investigação. Após as entrevistas, foi agendado um lugar comum para a realização do grupo focal.
No grupo focal, o pesquisador/moderador acolheu os casais, no dia e hora combinados e numa sala de um centro comunitário, apresentou-lhes a forma de funcionamento do grupo, enfatizando que não existe o “certo” ou o “errado”, que não se busca consenso na discussão a ser empreendida e que a divergência de perspectiva e experiências são bem-vindas. Com as regras gerais expostas, o moderador solicitou aos casais que se apresentassem de forma breve e, seguindo o roteiro de tópicos, motivou-os à exploração do foco de estudo.
A partir do modelo de grupo focal descrito por Gatti (2012), foi realizado em apenas um encontro de aproximadamente 2 h e possibilitou aos quatro casais um espaço de discussão e interação, de troca de experiências e opiniões sobre a vivência conjugal. Por meio de tópicos norteadores da discussão, combinados com o roteiro da entrevista, com enfoque na descrição e significados de família e de relacionamento conjugal, os casais foram estimulados ao debate e, ainda, favorecidos pela interação nas falas, permitindo que os temas abordados fossem mais problematizados do que em uma situação de entrevista individual.
Os dados obtidos nas entrevistas e no grupo focal foram gravados e, posteriormente, transcritos na íntegra e analisados com a proposta de designar elementos indicadores para a investigação. Os dados obtidos foram combinados com informações indiretas e omitidas pelos participantes, na percepção do pesquisador, e anotadas em um diário de campo. Os dados adquiriram significação com a interpretação do investigador e conduziram ao surgimento de novas construções de análise temática e de saberes (González-Rey, 2005).
As informações advindas do grupo focal foram integradas às entrevistas de cada membro do casal, procurando semelhanças e discrepâncias, ou mesmo complemento no conteúdo informado. Contudo, constatou-se que os resultados das entrevistas dos membros do casal foram semelhantes aos dados relatados no grupo focal, não havendo consideráveis discrepâncias.
A análise de conteúdo foi realizada, primeiramente, considerando individualmente as informações das entrevistas e do grupo focal, procurando compreender minuciosamente o material recolhido. Posteriormente, foi realizada uma análise horizontal de todas as informações obtidas, a fim de identificar semelhanças e diferenças nos relatos, tendo em vista a proposta do estudo em compreender as concepções e os significados que os casais tinham acerca da família, mais especificamente, da relação conjugal. O pesquisador definiu os seguintes tópicos temáticos para a análise: (1) a concepção de família e a prática do amor conjugal; (2) o casal e a relação conjugal; e (3) o permanecer casados. Os dados foram analisados com base no contexto sociocultural, econômico e político da família brasileira.
Resultados e Discussão
A Concepção de Família e o Amor Conjugal
De diversos modos, os casais referiram-se à família como unidade conjugal entre um homem e uma mulher, na qual estes se relacionam e geram filhos, através de um lugar e um espaço estável, em meio às instabilidades da vida, que favorece a prática de amor, união, respeito, cuidado e proteção entre um homem, uma mulher e seus filhos. A partir do modelo nuclear (pais e filhos) apresentado pelos casais, Camilo e Beatriz destacaram a importância de uma família unida, apesar das tensões e desafios dos relacionamentos familiares. Já o casal Hélio e Sandra enfatizou que a sua família de origem era um exemplo a se seguir e que, quando se fala de família, os filhos devem ser considerados como elemento principal na sua constituição. Por fim, os casais Walter/Márcia e Valdir/Brenda reservaram-se em apontar as qualidades dos seus cônjuges na dimensão parental e conjugal, sem deixarem de considerar os limites de cada um dos cônjuges.
A família foi descrita pelos entrevistados como lugar de amar, compreender e respeitar até a morte, o que é uma concepção em que não só acreditam, mas aprenderam com seus pais. De acordo com eles, na família é que acontece a união, o respeito, o companheirismo, a confiança e o diálogo do casal entre si e com os filhos.
Família para mim é um lar. Cuidar uns dos outros, é participar da vida do outro, como pai e como mãe. Tentar fazer o melhor para os filhos, como esposa fazer o melhor. (Sandra)
Ah, eu acho que porque ninguém consegue viver só, né? Então tem que ter um companheirismo. (Walter)
Apesar dos anos de relação conjugal e de admitirem que “os tempos mudaram”, os casais continuam a conceber a família e a relação conjugal reportando-se aos elementos constitutivos do modelo nuclear de família: um pai, uma mãe e filhos (biológicos ou não), em um lugar idealizado de harmonia, amor, dedicação mútua, proteção, companherismo, cumplicidade e afeto. Constata-se que esse é o modelo que permanece fortemente no imaginário coletivo da maior parte dos brasileiros (Carvalho & Almeida, 2003; Porreca, 2013a).
Independentemente dos desafios contemporâneos, até mesmo do divórcio, os casais participantes do estudo retomaram o desejo de ter e continuar a construir uma família aos moldes nucleares, mesmo havendo os desafios e riscos da vida a dois. É possível que o motivo disso seja por esta configuração ser mais socialmente aceita, vivida e valorizada no Brasil e ser considerada um meio possível de assegurar/garantir um mínimo de proteção, amparo e solidariedade, assegurando, assim, a privacidade, a intimidade e a continuidade da família. Além disso, outro motivo parece ser que a família nuclear ainda é uma das formas ideais mais aceita na sociedade brasileira, o que possibilita e assegura condições mínimas para estabelecer um vínculo conjugal, parental e fraternal mais ou menos estável e satisfatório (Oliveira, 2009; Porreca, 2013a). Contudo, é mister considerar que o modelo nuclear familiar é também portador de fragilidades e limitações e que pode ser fator de risco e conflitos para os relacionamentos domésticos. Além disso, outras configurações familiares podem proporcionar relações familiares saudáveis, vinculares e estáveis, que favoreçam a intimidade e a satisfação entre os membros da família. O que se observa é que, ainda que se constate a presença de uma pluralidade de estruturas e dinâmicas familiares para além da família nuclear, não se pode afirmar que o modelo nuclear está extinto da sociedade e cultura brasileiras (Grisard, 2003; Reis, 2010).
O modelo nuclear, descrito pelos casais participantes da pesquisa, evidenciou o relacionamento amoroso conjugal como um fenômeno complexo, com diferentes variáveis que implicam qualidade e estabilidade na relação. Esse fenômeno pode estar associado à ideia do amor romântico expressa em sentimentos como paixão, erotismo, amizade, doação, reciprocidade e confiança, e que deve ser praticado a qualquer preço (Rizzon, Mosmann, & Wagner, 2013). Tais sentimentos geram satisfação, segurança, proteção e certa estabilidade e, se desdobram nas atitudes de compromisso, intimidade, companheirismo, cumplicidade, caminhar juntos, dialogar, bem como no empenho do diálogo verdadeiro, no reassumir o compromisso assumido com o outro e no exercício da sinceridade, do cuidado e da paciência, principalmente na relação a dois, conforme exemplificado na fala a seguir: “Eu não sei se o que eu vou falar é certo, mas quando a gente gosta, né? Eu acho que o casamento é só amor, né?” (Márcia).
Outro elemento da conjugalidade relacionado ao amor e que esteve muito presente nos relatos dos casais foi a prática do elogio e da preocupação com o bem-estar do cônjuge, muitas vezes expressa nos cuidados e nos afazeres domésticos, tanto do homem quanto da mulher, bem como na realização de pequenos atos que demonstram interesse e apreço mútuo entre os cônjuges. Como exemplo, há atos cotidianos com aspectos triviais e funcionais que favorecem a boa e saudável convivência e o bem-estar geral entre o casal e que também são necessários para sensibilizar e estimular os cônjuges a conversarem sobre as várias dimensões da relação familiar e doméstica. É importante considerar que a prática do elogio e do cuidado está associada às diferentes percepções, expectativas e comportamentos que homens e mulheres têm diante dos problemas conjugais, das relações amorosas e do jeito de expressar (Dush & Taylor, 2012; Giddens, 2011). Os cuidados cotidianos são ilustrados nos seguintes relatos:
É, eu trabalho fora. Então quem chega primeiro, vai (organizando a casa). Os filhos, se tiver dever, quando era menor, né? Ele (marido) ia adiantando, ajudando... então sempre ele estava ali perto. Ajuda muito. (Márcia)
É o seguinte: se agente for fazer uma coisa, a gente tem que ser combinado. É igual aqui em casa, eu mais ela. Se eu for fazer uma coisa, eu combino com ela. Combinado é isso mesmo. (Valdir)
Os casais participantes convergiam na necessidade de favorecer e alimentar os sentimentos conjugais de acolhimento, proteção, compreensão, integração e pertença como prática do amor. Deve-se considerar que os casais participantes, quando falavam do amor, indicavam perdurar os ideais de amor romântico, principalmente quando concebiam a possibilidade do vínculo durável e a interdependência com o outro. Contudo, nota-se um processo de desvestimento dos ideais românticos na relação conjugal e, assim, percebe-se uma flexibilidade maior e diferentes adequações ao lidar com esses ideais. Isso ocorre porque, com o passar dos anos, o amor romântico começou a se fragmentar e exigiu que os casais dessem maiores espaços à vivência dos ideais mais contemporâneos, como: os do casal igualitário, do ser feliz e de ter um relacionamento satisfatório e de qualidade (Giddens, 2011).
Notou-se que as concepções de amor dos participantes do estudo estavam atreladas ao contexto socio-histórico, cultural, espiritual em que estavam inseridos e no fato deles já terem certa convivência. Os relatos indicam que a relação conjugal foi também tecida a partir de fatores determinados pelo tempo e por situações internas (domésticas), como a convivência, administração da casa, realidades de superação de dificuldades vividas entre o casal e, principalmente, a preocupação em educar os filhos, além de questões externas (sociais), como problemas financeiros, interferências de modelos culturais de relacionamento conjugal, tempo dedicado ao trabalho e outras vivências do casal ao longo da relação a dois (Souza, 2005).
Na prática do amor, os entrevistados fizeram notar as situações de sofrimento e desafio que também enfrentaram, principalmente quando não foram respondidos em suas expectativas de pessoa e de casal. De fato, os relatos indicaram que os relacionamentos domésticos também se basearam na satisfação pessoal de cada um e na qualidade da relação. Os casais expressaram primeiramente o bom da relação; depois, quase sempre, os desafios e limites. Talvez a dinâmica do bom e depois o menos bom esteja associada ao tempo de casamento, o que possibilitou uma certa adequação e aceitação, ou mesmo uma submissão de um ou de ambos, considerando que, das características de cada cônjuge se estabelece um contexto relacional único do par conjugal em que ambos estão implicados e pelo qual são corresponsáveis (Cundiff, Smith, & Frandsen, 2012). É um movimento paradoxal, provavelmente influenciado por diversas realidades desafiadoras que cada um ou ambos tiveram que enfrentar.
O Casal e a Relação Conjugal
Para os participantes deste estudo, a relação conjugal está intimamente relacionada ao companheirismo, ao cuidado e à dedicação amorosa entre os cônjuges, sendo descrita como uma realidade entre duas pessoas que não querem ficar sozinhas e desejam gerar filhos. Três casais, com exceção de Camilo e Beatriz, justificaram que se casaram porque faz parte da vida, ou seja, um evento sequencialmente lógico no processo da vida humana. A relação conjugal deles foi caracterizada por uma vivência de um projeto comum entre o casal, favorecida pelos gestos de cumplicidade, reciprocidade, fidelidade, zelo e outros. A presença dessas características tornou a relação conjugal mais segura e possibilitou um vínculo relacional mais forte e coeso (Ziviani, Féres-Carneiro, Scorsolini-Comin, & dos Santos, 2015).
Os casais relatam que a relação conjugal é uma realidade difícil de ser vivida - no dizer de Márcia, é constituída por “duas cabeças diferentes e duras” -, mas significativamente boa e desejosa de se viver, porque são pessoas que se amam. Percebe-se uma “dança” do ideal harmônico, romântico e estático de vida a dois e da realidade vivencial assimétrica em constante movimento e tensão, que requer dos casais perseverança, renúncia, dedicação e aceitação do jeito de ser da outra pessoa. Essa “dança conjugal” fica mais compreensiva quando os casais relatavam que eram diferentes um do outro, o que, em grande parte das vezes, favorecia briga e discussão, dificultando o ideal de vivência em harmonia e com estabilidade na relação.
Os dados analisados indicaram o caráter dinâmico e complexo e, portanto, processual da relação conjugal, principalmente quando os casais relataram que a construção e a permanência na relação conjugal como projeto comum acontecia em meio aos confrontos e conflitos de desejos, projetos, intenções e expectativas de caráter individualizado. Expressaram também que, na maioria das vezes, só era possível realizar as individualidades em um projeto a dois, por meio do potencial de flexibilização e adaptabilidade na relação, um exercício dinâmico em adequar, renunciar, submeter e, muitas vezes, até de reconstruir a relação conjugal de forma totalmente diferente daquela idealizada por eles de forma individual (Oslon, 2000).
A construção da relação conjugal supõe considerar que cada membro do casal traz para a relação as suas vivências, seus esquemas e concepções, bem como seus ideais e crenças, que podem estar ativos ou latentes. Os elementos individuais, de fato, irão influenciar a vida do casal, dependendo do grau de envolvimento das pessoas, dos esquemas mais primitivos e da capacidade de adaptação. Enfim, o relacionamento conjugal se construirá a partir da soma das habilidades individuais, estabelecendo-se um clima de cooperação e cumplicidade que fortalecerá a permanência da dupla conjugal e, também, de cada pessoa (Young, Klosko, & Weishaar, 2003), que poderá ser satisfatória e dirigida para o crescimento. Por outro lado, quando a escolha se dá com base em esquemas desadaptativos e impositivos, a relação se construirá de forma perturbada, repetitiva, tendendo a reforçar esquemas prejudiciais e pensamentos distorcidos em relação à vida conjugal, o que gera um clima de insatisfação e conflito crônico.
Os casais relataram que os conflitos e tensões eram presentes na vida conjugal, o que os levou, inúmeras vezes, a pensar em se separarem. Entretanto, esses elementos não foram determinantes para uma separação conjugal e os conflitos e tensões descritos pelos casais não foram necessariamente destrutivos e nem capazes de desfazer as relações. Quando os casais percebiam que a intensidade e a continuidade dos conflitos e tensões poderiam modificar a relação conjugal, ou mesmo levá-la ao término, os casais relataram que retomavam o desejo, a intenção e o ideal da vida conjugal e parental, muitas vezes auxiliados pelo argumento de “ficar com ele(a) é melhor do que sem ele(a)”, ou “como vão ficar os filhos”, ou ainda “isso passa”.
As situações de conflitos na relação conjugal podem acontecer devido ao processo de adaptação, sincronia e amadurecimento da relação ao longo do tempo (Bertoni & Bodenmann, 2010). No entanto, os conflitos poderão se caracterizar, normalmente, por interações de desacordo e invalidação ou por tentativas de reparar os problemas e validar os sentimentos e os pensamentos de cada cônjuge (Costa, Cenci, & Mosmann, 2016). Os conflitos e tensões conjugais, normalmente, estão atrelados aos contextos sociais e à cultura do casal e têm diferentes motivos, podendo estar relacionados à situação financeira, às divergências sobre a educação dos filhos, ao tempo que os parceiros ficam juntos, à divisão das tarefas domésticas, às questões legais, assim como a outros motivos (Bolze, Schmidt, Crepaldi, & Vieira, 2011). Os problemas podem envolver também a consistência do contrato conjugal (Tavora, 2009), a forma de se comunicar (Torossian, Heleno, & Vizzotto, 2009), as características individuais, como temperamento e autoestima, e os padrões de interação entre os cônjuges (Silva & Vandenberghe, 2009).
A habilidade do casal para lidar com os conflitos e tensões pareceu indicar os rumos a serem tomados na relação doméstica. Os casais destacaram que essa habilidade ultrapassa os recursos internos do casal, tais como diálogo, paciência, crenças, valores, necessitando de recursos externos, tais como emprego, dinheiro, moradia, educação, amizades, conforme sugere a fala abaixo:
A gente vive hoje muito bem. Não é que antigamente a gente não vivia bem, não. Mas numa vida a dois sempre tem um probleminha aqui, um probleminha ali e tal, e que você vai resolvendo na medida em que eles vão surgindo, vai se ajustando e vai vivendo melhor, cada dia melhor. (Camilo)
Segundo Camilo e Beatriz e Hélio e Sandra, as brigas e os conflitos fazem parte do processo de vivência de duas pessoas diferentes que querem viver juntas. Para esses casais, mesmo com momentos de crises, eles conseguiam superar as dificuldades e eram felizes porque os conflitos passavam. Contudo, disseram que é preciso pedir e dar o perdão e recomeçar, bem como buscar apoio nas pessoas amigas ou naquelas que têm capacidade para ajudá-los e pensar em como seria o futuro dos filhos se eles se separarem. De fato, os conflitos conjugais ocorrem, naturalmente, como fruto da interação de pessoas que almejam construir um projeto de vida em conjunto e, para tanto, precisarão discutir e negociar sobre pontos de vista divergentes e tentar chegar a um acordo (Bertoni & Bodenmann, 2010; Féres-Carneiro, 1998).
As superações dos conflitos e tensões conjugais, portanto, a manutenção da relação conjugal, podem ainda estar relacionadas ao sentido de pertencimento do casal, o que Costa e Penso (2014) chamaram de “a cola”, um sentimento que une membros da relação e dá a sensação de uma ligação diferente de outras, capaz de estabelecer experiências concretas de mútua proteção e amparo e doação recíprocas, bem como de prestação de serviço a um bem comum (Prandini, 2011). Trata-se também de uma relação que é portadora de uma recíproca interdependência, que pode ser alimentada e mantida pela prática do amor conjugal e que poderá ser entendida e vivenciada como uma terceira realidade na vida a dois. De fato, a relação conjugal não se reduz a uma agregação de pessoas de experiências e ações individuais, uma justaposição de construções; na verdade, é uma modalidade de um “nós”, que se constrói a partir das realidades individuais dos cônjuges, isto é, uma terceira realidade, que é a relação entre eles (Prandini, 2011).
Quando os casais expuseram, nas entrevistas e no grupo focal, o significado e a concepção que tinham do relacionamento conjugal, indicaram aquilo que um filósofo polaco, no início dos anos 60 do século passado, antecipava em suas reflexões (Wojtyla, 1982). Ele considerava a vida conjugal como um Communio Personna, isto é, uma modalidade de “ser com”, que pressupõe as individualidades de cada pessoa que compõe a relação conjugal, mas que não se reduz a elas e nem à junção ou justaposição das individualidades, mas na construção de uma nova realidade comum: a relação conjugal em si.
Notou-se nos relatos que a relação conjugal, a partir da intenção e do desejo dos dois cônjuges em construírem um projeto comum, favoreceu uma elaboração racional e empírica da relação, isto é, o ato de pensar e agir em função da relação comum, e não só nos aspectos individuais. Os casais, nesse processo complexo e dinâmico, construíram uma identidade de componente essencial da relação a dois que fortalece a ordenação das ações, experiências e finalidades de vida, diferente daquilo que teriam se estivessem sozinhos (Scabini & Manzi, 2011).
Os casais participantes indicaram que, com o passar do tempo e da convivência a dois, acontece um processo de amadurecimento natural das percepções, necessidades, expectativas e comportamentos diante dos conflitos conjugais (Costa et al., 2016). A maturidade na relação, pelo tempo de convivência nos diferentes ciclos de vida conjugal, também favoreceu os cônjuges para que tivessem mais consciência de que pertencem a um contexto socioeconômico, cultural e espiritual único, mas que se torna compartilhado ao se casar, por meio do diálogo e da flexibilidade na tomada de decisão que só poderá ser nominada, sentida e vivida por aquele par marital. O casal estabelece um padrão de funcionamento que guia suas decisões no transcorrer do casamento, no qual partilham, retroalimentam e reproduzem dinâmicas relacionais aprendidas também em sua vivência individual com as famílias de origem (Costa et al., 2016).
O Permanecer Casados
O ideal nuclear de “casarem-se para sempre até que a morte os separasse” e a presença dos filhos ocuparam o lugar de destaque no projeto de vida dos casais participantes da pesquisa e foram elementos importantes para a manutenção da relação conjugal destes (Borges, Magalhães, & Féres-Carneiro, 2014). Segundo os participantes do estudo, o ideal do “para sempre” colaborou para a manutenção da vida conjugal, especialmente por alimentar e desenvolver mais pensamentos e atitudes de aceitação, integração, recomeços e comunicação. O significado que eles tinham de família, com características do modelo nuclear, o qual idealiza uma relação de intimidade, estabilidade e com “certa” durabilidade vitalícia entre um homem e uma mulher, parece ter sido uma “matriz conjugal” que objetiva o empenho no “amarem-se acima de tudo” e gerarem/educarem os filhos. Foi evidenciado que o “para sempre”, como ideal a ser conservado e alimentado, estava presente em todos os relatos, muitas vezes submisso ao ideal de perpetuação da relação conjugal, com o objetivo de garantir segurança, proteção, construção e manutenção de uma família, assim como a qualidade da relação (Corbett, 2009). O relato apresentado a seguir ilustra o ideal do “para sempre”:
Casar para sempre é viver bem, eu acredito que a pessoa chega para casar até morrer, até os últimos dias, tanto do lado do marido, como do lado da esposa para poder conviver até o último dia de sua vida. (Hélio)
O ideal do “para sempre” não foi apresentado pelos casais como uma realidade sem movimento, e nem posto e acabado, mas foi observado que os casais tiveram fases de ajustes no processo conjugal, as quais ainda perduravam. Eles relataram que, no início do casamento, experimentaram uma descontinuidade da experiência de namoro, realidade esta que sentiam saudades, mesmos considerando que era uma realidade imatura e “fora” da realidade de um contexto de vida a dois.
A passagem do tempo de um ideal romântico do casamento e, talvez ingênuo, para uma dimensão mais realística, precisou de adaptações e aprendizagens relacionais e pessoais, que exigiram comunicação adequada e clara de um para com o outro, além de estratégias e renúncias para resolverem paulatinamente os conflitos e tensões da vida a dois. Dessa forma, nota-se que o ideal do “para sempre” não foi estático e nem inerte na relação dos casais, mas fazia parte de um processo relacional a dois, construído num contínuo movimento, em meio às realidades e situações boas e ruins vividas pelo casal (Fonseca & Neves Duarte, 2014).
No dizer de Márcia, parece que o “tempo de encanto e fantasia acabou” e foi possível uma convivência mais real. Até mesmo Beatriz e Camilo, que tiveram pouco tempo de convivência antes do casamento, sinalizaram a mudança que tiveram entre o tempo anterior e posterior ao casamento, explicando como foi promissor e importante o processo complexo, intersubjetivo e adaptativo da relação conjugal para a sua manutenção (Esteves de Vasconcellos, 2002).
As mudanças que ocorreram no processo contínuo da construção da relação conjugal favoreceram a permanência deles na relação conjugal. Os casais declararam que se descobriram diferentes do que previamente expectavam, principalmente em algumas dimensões pessoais e relacionais. Relataram, também, que passaram por uma maior flexibilização em lidar com a relação conjugal, sentiram maior necessidade de espaço individual, perceberam maior ou menor competência na gestão doméstica e ainda uma maior facilidade na desvinculação das figuras parentais que o casamento proporciona, elementos que possibilitaram a construção de uma identidade conjugal, o seu modus operandis (Fonseca & Neves Duarte, 2014). O relato de Camilo, a seguir, ilustra essas mudanças:
A gente só conhece mesmo a pessoa depois que você vive com ela ... mas não posso reclamar ... mas as coisas mudam do tempo de namoro, porque noivado não teve, ela ficou grávida … aí pulou essa fase. Com o tempo, a gente aprende a aceitar e conviver.
O caráter vitalício do casamento, apresentado pelos casais, não foi relatado como “eterno”, pois os casais consideraram a possibilidade de término da relação conjugal caso acontecessem circunstâncias extremas, situações que ultrapassassem qualquer limite humano. Muitas vezes, o caráter vitalício foi questionado devido à incompatibilidade deste com as perspectivas deparadas na vida social do casal, bem como pela longevidade dos casais. O “para sempre” tornou-se, em alguns momentos, distante demais. Homens e mulheres, ao viverem mais, têm maior espaço para questionarem e reavaliarem suas necessidades ao longo do ciclo vital (Diniz & Féres-Carneiro, 2012; Jablonski, 1994). O caráter vitalício do casamento foi favorecido, segundo os casais, pelo uso dos recursos do diálogo, da paciência, da renúncia, dos filhos, assim como outros elementos de ressignificação e, principalmente, a idealização da relação conjugal e familiar na forma nuclear de serem “para sempre”. O ideal de permanecerem casados desenvolveu nos casais um dever de manterem a qualquer preço a relação, até mesmo suportando “violências” domésticas (Diniz, 2011; Diniz & Féres-Carneiro, 2005).
A relação conjugal dos casais participantes, como projeto a dois, condicionou e, em muitos relatos, deixou evidente que modificou a individualidade dos cônjuges. O “nós” constitutivo da relação conjugal modificou seus constituintes. Podemos afirmar que as tensões e os conflitos existiram, principalmente quando envolveram tarefas, responsabilidades e compromissos que suscitaram divergências entre os casais. Esses conflitos ocorreram quando foram priorizados, valorizados ou emitidos comportamentos individualizados que revelavam isolamento ou neutralidade frente à construção e à manutenção de uma relação a dois. Assim, podem-se afirmar que quando indivíduos fechados em si mesmos e “imodificáveis” querem construir uma relação conjugal a partir de si mesmos, promovem um relacionamento conjugal tenso e conflituoso (Zordan, 2010). De fato, para construir um “nós” que permanecesse, não bastava estarem juntos, individualmente, mas considerar uma individualidade que se relaciona e que faz parte de um sistema real de relações, de um “nós” conjugal. Trata-se, portanto, de um “nós” que é portador de pertencimento entre os membros da relação (Satir, 1995).
O fato de terem casado no religioso e no civil legitimou o “para sempre”, ficando mais “oficial”, com mais públicos de conotação social fortemente simbólica e “legal”. O casar no religioso e civil significou, para os casais participantes, não apenas uma expressão de fé, tradição, rito de passagem ou legalidade, mas proteção, segurança e estabilidade na relação conjugal. Mesmo Brenda e Valdir, que não se casaram no civil nem no religioso, expressaram a necessidade futura de terem sua união reconhecida civil e religiosamente: “Eu não sou casada no papel, mas estou feliz assim...ele bebia muito....mas sabe como é...casar no papel e na Igreja fica melhor, dá mais segurança pra criar os filhos” (Brenda).
O permanecer casados não é um processo exclusivo do casal, mas uma realidade carregada pela influência das famílias de origem dos casais. As falas dos participantes evidenciaram as transmissões de sistemas de crenças, valores, mitos e ideário de continuidade de “casar para sempre” herdados da família de origem. Grande parte dos padrões herdados, dentre eles o de “até que a morte os separe”, foram aprendidos, assimilados, experimentados e repetidos pelos casais. Há um empenho dos casais participantes na reconstrução da história ancestral da subjetividade, um legado transmitido, elementos de uma metapsicologia familiar (Magalhães & Féres-Carneiro, 2005).
A gente sabe que é difícil (permanecer juntos), ainda mais hoje em dia. Mas quando lembro dos meus pais, crio forças e continuo com o Hélio. (Sandra)
Muitas vezes eu parava para pensar se devia continuar casado. Sabe? Mas parecia que a voz da minha mãe vinha e dizia, tenha paciência. (Walter)
A relação conjugal, em meio às tensões das individualidades nos anos vividos juntos e na convivência com outras pessoas, e no contexto em que está inserida, modificou as individualidades dos membros em relação e foi modificada por estes. Esse movimento é o que tornou fascinante e saudável a relação conjugal, pois em meio ao desafio de “um mais um”, convive-se com a possibilidade do “nós”.
Considerações Finais
Os dados indicam que o modelo nuclear idealizado de vida famíliar ainda existe na sociedade brasileira e emerge como realidade fundamental para o delineamento da identidade humana e social. Notou-se a busca desse ideal quando os membros da família reagiam aos condicionamentos e às mudanças do ambiente sociocultural e relacional que não favoreciam as características nucleares de família idealizada, bem como no empenho em adaptar e reorganizar a vida doméstica, ressignificando aspectos do ideal nuclear com a realidade em que estavam inseridos e encontrando novas formas de estruturação e dinâmica que, de alguma maneira, reconstituíssem e mantivessem a vida a dois e familiar.
Entre as características nucleares presentes na relação conjugal está o ideal do amor conjugal, que não é estático, mas construído e ajustado conforme o ciclo de vida familiar e o contexto doméstico e social em que os casais estão inseridos. Esse ideal se desdobra no respeito às diferenças, no cuidado pelo bem-estar e na segurança e proteção entre os membros da família. São práticas que pressupõem verdade e sinceridade na convivência cotidiana, fidelidade e compromisso assumidos como projeto comum, práticas no cuidado e no elogio mútuo, preocupação com o bem-estar do outro e desempenho igualitário dos papéis domésticos. O amor romântico idealizado, quase sempre é acompanhado pelo objetivo de permanecerem casados para sempre e de gerar e educar filhos, duas realidades que colaboraram para a manutenção da vida conjugal, especialmente por alimentar e desenvolver mais pensamentos e atitudes de aceitação, integração, recomeços e comunicação. Contudo, é importante considerar que a prática do amor conjugal talvez esteja submissa ao ideal de perpetuação da relação conjugal, que desconsidera a pessoa como indivíduo sui generis e a relação comum como processo de intersubjetividade. Dessa forma, ao invés de garantir segurança, proteção, construção e manutenção de uma família e, assim, de certa forma, também a qualidade da relação, torna-se um fator de risco para a insatisfação individual e conjugal, fragilizando a própria relação conjugal e até contribuir para o seu término.
A relação conjugal foi compreendida pelos casais participantes como um espaço com considerável estabilidade, em meio às instabilidades cotidianas vividas pelos seus membros, um lugar que pode favorecer a vivência das individualidades do casal associadas a uma terceira realidade, o “nós”, uma “dança” complexa e instável, que requer um processo contínuo de intersubjetividade (Esteves de Vasconcelos, 2002) na construção de um modus operandis de ser casal.
A relação conjugal, entendida como uma “dança” simétrica e assimétrica, abarca uma série de fatores que a constituem, a dinamizam e a mantêm. Assim, ela pode ser compreendida como um processo a dois, uma adequação de diferentes que buscam e desejam um projeto comum por meio do companheirismo, do cuidado, da dedicação e do bem-estar do outro. A relação conjugal dos entrevistados foi favorecida por gestos de cumplicidade, reciprocidade, fidelidade, zelo e outros elementos que eram recursos na continuidade de uma relação comum entre diferentes; estes gestos são os que tornaram a relação conjugal mais segura e protetiva e possibilitaram a permanência de um vínculo relacional mais forte e coeso entre os casais.
Compreender a relação conjugal como uma “dança”, portanto, em constante movimento e suscetível à “música” - isto é, ao contexto sociocultural onde está inserida -, é também entendê-la como uma realidade com tensões e conflitos, que, na maioria das vezes, são gerados pelas individualidades do casal na construção do projeto em comum, podendo ser satisfatória e dirigida ao crescimento ou portadora de esquemas desadaptativos e impositivos que propiciam um clima de insatisfação e potencialmente destrutivo.
O processo da construção e permanência do projeto de vida a dois, que articula individualidades e relação conjugal, de fato, como escreve Féres-Carneiro e Ziviani (2009), é um dos maiores desafios contemporâneos para os casais, por exigirem habilidades internas e externas para lidar com os conflitos e tensões e, principalmente, o entendimento e a construção de uma relação como uma terceira realidade gerada e diferenciada das individualidades. Nesse processo, é fundamental para a relação a dois uma postura mais flexível e tolerante diante dos problemas conjugais e limitações do cônjuge, uma percepção otimista dos conflitos e uma compreensão de que sua ocorrência e resolução envolvem responsabilidade dos dois. Essa postura favorece a união dos casais, principalmente por não alimentar competição e incentivar a prática de um “nós” formado, alimentado, desafiado, influenciado e influenciador da realidade em constante mudança.
Nos casais que vivenciaram a relação conjugal por mais de 15 anos, observa-se que a construção do “nós” passou por consideráveis adequações e aceitações ou mesmo submissões de um ou de outro, ou de ambos, vivenciando um movimento paradoxal que não foi suficiente para sucumbi-los na prática do amor na relação conjugal.
No que se refere ao caráter vitalício do casamento, os casais indicaram o propósito e o empenho de manterem compromisso de durabilidade e estabilidade na relação conjugal, que pode estar associado - e normalmente está - ao modelo nuclear de família e à herança familiar, que objetivam o esforço e o desempenho pessoal e a dois na manutenção da relação conjugal no cotidiano doméstico e na meta em manter a família unida, em especial os filhos. Essa dinâmica nada estática de manutenção revela que a família e a relação conjugal são realidades em movimento, processuais e inacabadas. Por isso, é importante pontuar que o “permanecer casados” não pode ser entendido como “eterno”, principalmente diante das ideias e práticas contemporâneas, marcadas pela longevidade dos cônjuges e pelas perspectivas de busca de felicidade e hedonismo a todo custo, bem como pelas transformações nas estruturas e dinâmicas familiares, como os papéis domésticos, casais igualitários, questões de gênero, entre outros.
Na dinâmica processual própria da relação conjugal, o caráter vitalício necessita ser ressignificado continuamente no cotidiano do casal, em meio aos conflitos e adaptações domésticas e pessoais, principalmente, quando o individualismo neutro, isolado, fechado e não modificado impera na relação conjugal. Em meio aos movimentos e instabilidades comuns da relação conjugal, em especial naquelas com um tempo maior de durabilidade, o “para sempre casados” necessita de um investimento contínuo na relação a dois, que se mantém no tempo e nas vicissitudes, especialmente por alimentarem e desenvolverem mais pensamentos e atitudes de aceitação, integração, recomeços e comunicação.
Um elemento a ser considerado por favorecer, mas não determinar, o permanecer casados é a dimensão parental, isto é, o cuidado e a educação dos filhos. Considerar a presença dos filhos e como permanecer ou não na relação conjugal, influencia a vida e o futuro dos filhos e, no caso deste estudo, também dos netos. Os casais ressignificam e reforçam o ideal de permanecerem casados, visto que, normalmente, os filhos desejam e se empenham na manutenção da união dos pais. Contudo, como aponta Porreca (2013b), os filhos e/ou netos não são considerados motivos suficientes para manter um relacionamento conjugal.
Com esse estudo, percebe-se que o significado da relação conjugal, os elementos que a compõem, bem como as estratégias que os casais utilizam para a prática do amor e para permanecerem casados não encerram em si a compreensão das dinâmicas conjugais. Contudo, este estudo aponta que a relação conjugal é complexa pelas individualidades e contexto onde está inserida, trazendo em seus fundamentos elementos constitutivos de uma certa instabilidade por ser uma “substância viva, um sistema evolutivo e criativo” (Caillé, 1994, p. 17) que ressignifica continuamente a própria relação diante de adaptações, conflitos e tensões, por meio da intersubjetividade ativa, pacienciosa, dialogal e dinâmica de um “nós”.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Out 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
-
Recebido
27 Jun 2016 -
Revisado
03 Mar 2017 -
Aceito
16 Fev 2018