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Evidências de Adequação Psicométrica da Escala de Infidelidade Financeira

Evidence of psychometric adequacy of the Financial Infidelity Scale

Evidencias de adecuación psicométrica de la Escala de Infidelidad Financiera

Resumo

A infidelidade financeira consiste em omitir do parceiro questões relacionadas às finanças. Pode ser tanto causa quanto consequência de conflitos conjugais e é um assunto ainda pouco explorado pela literatura. O objetivo foi adaptar e buscar evidências de validade e precisão da Financial Infidelity Scale (FIS) no Brasil. Dois estudos contaram com a participação de 513 pessoas casadas, em união estável ou coabitação, que responderam à FIS e a questões sociodemográficas. Os dados foram analisados por meio da análise fatorial exploratória e confirmatória, validade convergente e pela Teoria de Resposta ao Item. Os resultados demonstraram a unidimensionalidade do instrumento com adequada consistência interna, além de propor uma versão curta da escala, que também apresentou estrutura confiável e unidimensional. Ambas as versões apresentaram uma estrutura unidimensional confiável e apresentaram correlações semelhantes com neuroticismo, conscienciosidade e amabilidade. A FIS mostrou-se apropriada para uso em pesquisas futuras no país.

Palavras-chave:
finanças; relações conjugais; validação; precisão; psicometria

Abstract

Financial infidelity involves withholding financial matters from one’s partner. It can be both a cause and a consequence of marital conflicts and is a topic still underexplored in the literature. The objective was to adapt and seek evidence of validity and accuracy for the Financial Infidelity Scale (FIS) in Brazil. Two studies involved 513 married individuals, in stable unions or cohabiting, who responded to the FIS and sociodemographic questions. Data were analyzed using Exploratory and Confirmatory Factor Analysis, convergent validity and Item Response Theory. Results demonstrated the instrument’s unidimensionality with appropriate internal consistency, as well as proposing a short version of the scale that also presented a reliable and unidimensional structure. Therefore, both versions exhibited a reliable unidimensional structure and showed similar correlations with neuroticism, conscientiousness, and agreeableness. The FIS proved suitable for use in future research in the country.

Keywords:
finances; marital relationships; validation; accuracy; psychometrics

Resumen

La infidelidad financiera implica ocultar cuestiones financieras a la pareja. Puede ser tanto causa como consecuencia de conflictos conyugales y es un tema aún poco explorado en la literatura. El objetivo fue adaptar y buscar evidencias de validez y precisión para la Financial Infidelity Scale (FIS) en Brasil. Dos estudios contaron con la participación de 513 personas casadas, en unión convivencial o cohabitación, que respondieron a la FIS y a preguntas sociodemográficas. Los datos fueron analizados mediante Análisis Factorial Exploratorio y Confirmatorio, validez convergente y Teoría de Respuesta al Ítem. Los resultados demostraron la unidimensionalidad del instrumento con una consistencia interna adecuada, además de proponer una versión abreviada de la escala que también presentó una estructura confiable y unidimensional. Ambas versiones mostraron una estructura unidimensional confiable y presentaron correlaciones similares con neuroticismo, responsabilidad y amabilidad. La FIS resultó adecuada para su uso en investigaciones futuras en el país.

Palabras clave:
finanzas; relaciones conyugales; validación; precisión; psicometría

Introdução

A vida conjugal exige que os parceiros renunciem alguns de seus desejos e preferências individuais em favor das necessidades do casal. Assuntos comumente delicados, como os de ordem financeira, que necessitam de organização, planejamento e controle, são esteio para uma vida conjugal salutar, entretanto, nem sempre estão em comum acordo entre o casal, o que pode acarretar conflitos de interesses, desentendimentos e estresse nas relações amorosas (Archuleta & Assebelo, 2021Archuleta, K. L., & Asebedo, S. D. (2021). Journal of Financial Therapy, 12(1), 1-18. https://doi.org/10.4148/1944-9771.1283
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).

As atividades que envolvem dinheiro, renda, gastos, pagamentos, dívidas, uso de cartão de crédito, empréstimo e compras, podem não estar alinhadas entre os parceiros, visto que é possível uma das partes economizar para quitar uma dívida, como o financiamento da casa própria ou o débito do cartão de crédito, enquanto o outro prioriza uma recompensa imediata, advinda de seus desejos e necessidades individuais, como a aquisição de um smartphone de última geração. Tais desacordos financeiros podem ser fortes preditores de conflitos, divórcio e implicações na qualidade conjugal (Ford et al., 2020Ford, M. R., Ross, D. B., Grable, J., & DeGraff, A. (2020). Examining the role of financial therapy on relationship outcomes and help-seeking behavior. contemporary family therapy, 42, 55-67. https://doi.org/10.1007/s10591-019-09511-y
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). Nesse sentido, há um tipo de infidelidade, diferente da comumente conhecida que envolve sexo, amor e paixão, que também merece atenção por afetar negativamente os relacionamentos: a infidelidade financeira.

Inclui esconder do parceiro compras, contas em instituições bancárias e cartões de crédito, e isso corresponde a uma traição financeira, ou seja, quando um parceiro (ou os dois) omite ou altera informações acerca de gastos e dívidas, contas bancárias ou valores exatos (Jeanfreau et al., 2020Jeanfreau, M. M., Holden, C., & Brazeal, M. (2020). Our money, my secrets: Why married individuals commit financial infidelity. Contemporary Family Therapy: An International Journal, 42(1), 46-54. https://doi.org/10.1007/s10591-019-09516-7
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). Diz respeito ao envolvimento em qualquer comportamento financeiro que envolva a expectativa de desaprovação do parceiro e a intenção de não revelar tal comportamento ao outro, sendo este o conceito adotado no presente trabalho (Garbinsky et al., 2019Garbinsky, E. N., Gladstone, J. J., Nikolova, H., & Olson, J. G. (2019). Love, Lies, And Money: Financial infidelity in romantic relationship. Journal of Consumer Reserarch, 47, 1-24. http://doi.org/10.1093/jcr/ucz052
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).

A infidelidade financeira tem sido considerada um fenômeno proeminente, pois as questões financeiras são pivô de conflitos, estresse e até divórcio nos relacionamentos românticos, podendo afetar diretamente os níveis de satisfação conjugal e estabilidade conjugal (Saexy et al., 2022Saxey, M. T., LeBaron-Black, A. B., Dew, J. P., & Curran, M. A. (2022). Menos do que totalmente honesto: Decepção financeira em relacionamentos românticos adultos emergentes. Emerging Adulthood, 10(6), 1529-1542. https://doi.org/10.1177/21676968221089190
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). Portanto, é possível afirmar que as finanças estão relacionadas à qualidade do relacionamento (Gladstone et al., 2022Gladstone, J. J., Garbinsky, E. N., & Mogilner, C. (2022). Pooling finances and relationship satisfaction. Journal of Personality and Social Psychology, 123(6), 1293-1314. https://doi.org/10.1037/pspi0000388
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).

Tem se revelado com mais frequência por meio de comportamentos, como: contas bancárias ocultas (35%), dívida de cartão de crédito (23%) e empréstimo (8%) (TD Bank, 2017TD Bank. (2017). 2017 love and money survey. Recuperado de https://stories.td.com/us/en/article/2021-love-money-survey
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). De acordo com pesquisa realizada com adultos nos EUA, sobre finanças do consumidor, 41% dos respondentes revelaram cometer enganos financeiros com seus parceiros e 75% admitiram que esse tipo de comportamento afetou suas relações de maneira negativa (National Endowment for Financial Education, 2021NEFE/The Harris Poll. (2021). “Financial Infidelity 2021.” Recuperado de www.nefe.org/research/polls/2021/financial-infidelity-2021.aspx
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).

Em estudo com 414 habitantes do estado norte-americano do Mississipi, os resultados revelaram que 27% dos participantes indicaram manter algum segredo financeiro do seu parceiro, o que afetou diretamente os níveis de satisfação conjugal e com a vida (Jeanfreau et al., 2020Jeanfreau, M. M., Holden, C., & Brazeal, M. (2020). Our money, my secrets: Why married individuals commit financial infidelity. Contemporary Family Therapy: An International Journal, 42(1), 46-54. https://doi.org/10.1007/s10591-019-09516-7
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). No contexto brasileiro, uma pesquisa realizada com 54 brasileiros heterossexuais casados apontou que 99% desses indivíduos cometeram infidelidade financeira em algum momento do casamento, com pequenos ou grandes gastos, além de revelar que, quanto maior o número de filhos, maior a propensão de ser infiel financeiramente (Rossato, Simor, Sathes, & Cenci, 2018Rossato, M. L., Simor, C. C. G., Sathes, M. N., & Cenci, C. M. B. (2018). Infidelidade financeira com heretossexuais casados. IMED. Recuperado de https://soac.imed.edu.br/index.php/mic/xiimic/paper/view/910
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).

Apesar de não haver na literatura um consenso acerca da definição do comportamento de infidelidade financeira, Garbinsky et al., (2019Garbinsky, E. N., Gladstone, J. J., Nikolova, H., & Olson, J. G. (2019). Love, Lies, And Money: Financial infidelity in romantic relationship. Journal of Consumer Reserarch, 47, 1-24. http://doi.org/10.1093/jcr/ucz052
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) apresentam um conceito bem elaborado e com base teórica sólida acerca do construto. Além disso, construíram uma medida psicométrica unidimensional que busca medir a variação individual da propensão à infidelidade financeira, a Financial Infidelity Scale (FIS), justificando assim a escolha do conceito e do instrumento no presente trabalho.

De acordo com esses autores, a infidelidade financeira compreende comportamentos desde o consumo à abertura de contas bancárias secretas, ocultação de renda ou dívidas. É caracterizada por dois componentes - um ato seguido de uma ocultação: (1) um comportamento financeiro que se espera que gere desaprovação do parceiro e (2) a omissão desse comportamento. Assim, se um comportamento não reflete ambos, não é considerado infidelidade financeira (Garbinsky et al., 2019Garbinsky, E. N., Gladstone, J. J., Nikolova, H., & Olson, J. G. (2019). Love, Lies, And Money: Financial infidelity in romantic relationship. Journal of Consumer Reserarch, 47, 1-24. http://doi.org/10.1093/jcr/ucz052
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).

Por exemplo, se alguém gasta expressivamente com compras de roupas e o parceiro está ciente do gasto, tais compras não constituirão infidelidade financeira (a ocultação está ausente). Do mesmo modo, economizar dinheiro sem o parceiro saber para comprar um presente de aniversário para ele também não constituirá infidelidade financeira, pois, embora oculte o comportamento, não se espera que esse ato gere desaprovação (o comportamento que pode gerar desaprovação está ausente).

A conceitualização da infidelidade financeira aqui reportada não requer desaprovação real de um comportamento do parceiro, mas a expectativa de desaprovação. Essa proposta é consistente com a teoria do comportamento planejado, que afirma que um dos principais preditores do comportamento são as crenças dos indivíduos sobre como as pessoas com quem se preocupam interpretam o comportamento (Ajzen & Fishbein 1980Ajzen, I., & Fishbein, M. (1980). Understanding attitudes and predicting social behavior. Englewood Cleefs. , 2005Ajzen, I., & Fishbein, M. (2005). The influence of attitudes on behavior. Erlbaum.). Ademais, o conceito abrange um certo grau de interdependência financeira entre o casal, por isso, a pesquisa original de construção do instrumento é voltada para casais casados e em união estável, que compartilham as responsabilidades e os objetivos financeiros conjuntamente (Garbinsky et al., 2019Garbinsky, E. N., Gladstone, J. J., Nikolova, H., & Olson, J. G. (2019). Love, Lies, And Money: Financial infidelity in romantic relationship. Journal of Consumer Reserarch, 47, 1-24. http://doi.org/10.1093/jcr/ucz052
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). Na presente pesquisa, em contexto brasileiro, há o acréscimo amostral de casais que praticam a coabitação, visto também compartilharem as obrigações financeiras.

Nesse sentido, a FIS foi desenvolvida com 1.053 indivíduos em Oxford, na Inglaterra com base nesses pressupostos por meio de 12 estudos. Primeiramente foi realizado um estudo piloto para os participantes listaram os comportamentos que consideravam caracterizar a infidelidade financeira, os quais foram classificados em 12 categorias, utilizadas para gerar os itens da escala. No Estudo 1, a lista inicial de 30 itens foi refinada para uma medida com 12 itens, testando-se sua unidimensionalidade. Estudos posteriores testaram a confiabilidade do teste-reteste dentro da mesma relação, confirmando-a. Depois, em mais nove estudos, analisaram possíveis antecedentes psicológicos e as consequências do comportamento, além da sua validade preditiva (Garbinsky et al., 2019Garbinsky, E. N., Gladstone, J. J., Nikolova, H., & Olson, J. G. (2019). Love, Lies, And Money: Financial infidelity in romantic relationship. Journal of Consumer Reserarch, 47, 1-24. http://doi.org/10.1093/jcr/ucz052
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).

No geral, foram realizados dez estudos de laboratório, um estudo de campo e outro em parceria com um aplicativo móvel de gerenciamento de dinheiro para analisar dados reais das contas bancárias dos participantes. Os resultados corroboraram a unidimensionalidade da FIS, com fortes propriedades psicométricas, composta por 12 itens, explicando 48,7% do construto, com cargas fatoriais variando de 0,56 a 0,74 e alfa de Cronbach = 0,90, considerados parâmetros satisfatórios (Garbinsky et al., 2019Garbinsky, E. N., Gladstone, J. J., Nikolova, H., & Olson, J. G. (2019). Love, Lies, And Money: Financial infidelity in romantic relationship. Journal of Consumer Reserarch, 47, 1-24. http://doi.org/10.1093/jcr/ucz052
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).

Os indivíduos em uma relação de interdependência exercem influência mútua um sobre o outro, então o que fazem afeta o bem-estar (financeiro e emocional) do outro e a questão financeira do casal como um todo, podendo a infidelidade financeira causar danos financeiros (impedindo o casal de alcançar objetivos conjuntos) ou emocionais (falta de confiança, conflitos, estresse, angústia) que prejudicam o relacionamento (Garbinsky et al., 2019Garbinsky, E. N., Gladstone, J. J., Nikolova, H., & Olson, J. G. (2019). Love, Lies, And Money: Financial infidelity in romantic relationship. Journal of Consumer Reserarch, 47, 1-24. http://doi.org/10.1093/jcr/ucz052
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). Assim, entende-se que investigações empíricas possibilitarão uma melhor compreensão acerca desse comportamento e de estimativas quanto a sua prevalência e possíveis antecedentes e consequentes.

A tendência ao engajamento em comportamentos de infidelidade financeira pode ser resultado tanto da dinâmica do relacionamento quanto das características do próprio indivíduo (Garbinsky et al., 2019Garbinsky, E. N., Gladstone, J. J., Nikolova, H., & Olson, J. G. (2019). Love, Lies, And Money: Financial infidelity in romantic relationship. Journal of Consumer Reserarch, 47, 1-24. http://doi.org/10.1093/jcr/ucz052
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), o que justifica a inclusão da variável personalidade nesta pesquisa a fim de identificar quais traços favorecem uma maior ou menor propensão a cometer infidelidade financeira. Um estudo com 414 norte-americanos revelou que o traço de personalidade conscienciosidade apresentou diferença significativa quando relacionada à infidelidade financeira, o que significa que indivíduos mais organizados, autodisciplinados e responsáveis, que prezam pelo planejamento em suas ações, são menos propensos a manterem segredos financeiros (Jeanfreau et al., 2018Jeanfreau, M., Noguchi, K., Mong, M. D., & Stadthagen, H. (2018). Financial infidelity in couple relationships. Journal of Financial Therapy , 9(1), 1-20. http://doi.org/10.4148/1944-9771.1159
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). Tal achado reforça a premissa de que a personalidade tem relação direta com o comportamento e que a infidelidade financeira é fruto dos indivíduos e de suas relações, podendo variar de acordo com o que prezam (Garbinsky et al., 2019Garbinsky, E. N., Gladstone, J. J., Nikolova, H., & Olson, J. G. (2019). Love, Lies, And Money: Financial infidelity in romantic relationship. Journal of Consumer Reserarch, 47, 1-24. http://doi.org/10.1093/jcr/ucz052
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).

Algumas lacunas existentes nos estudos sobre a infidelidade financeira apontam para a importância de estudá-la, como o fato de ser um comportamento geralmente velado, que passa despercebido por quem comete, pois acredita ser um comportamento trivial que não gera consequências, portanto, é difícil de ser observado diretamente; e a ausência de uma medida psicométrica no contexto brasileiro que capture de forma válida, precisa e parcimoniosa, a propensão dos indivíduos em cometerem infidelidade financeira. Dessa forma, faz-se necessária a validação de uma medida em relacionamentos próximos para explorar a temática e descobrir o que motiva os indivíduos se envolverem nesse processo e suas possíveis consequências. Portanto, por ser uma medida com embasamento teórico e índices psicométricos satisfatórios, é importante dispor de uma versão em português brasileiro da Financial Infidelity Scale (FIS).

Especificamente no Brasil, testar as propriedades psicométricas da FIS pode auxiliar no desenvolvimento de programas de educação financeira e no manejo clínico com casais que procuram terapia para a elaboração de estratégias de enfrentamento dos problemas e conflitos financeiros, evitando rupturas familiares por meio do divórcio. Pode também fomentar trabalhos acerca da mediação de conflitos com casais em litígio devido problemas de ordem financeira e ajudá-los no enfrentamento destes, desenvolvendo habilidades sociais de comunicação, por exemplo, a fim de prezarem pelo bem-estar da relação por meio do diálogo, de maneira salutar e honesta entre si. Também, pode possibilitar a realização de estudos transculturais, testando o efeito de variáveis individuais, sociais e sociodemográficas na propensão à infidelidade financeira.

Dessa forma, o presente estudo visa adaptar a FIS para o contexto brasileiro, reunindo evidências de validade (estrutura interna e convergente), precisão e parâmetros individuais de seus itens (dificuldade, discriminação e informação psicométrica). Para isso, dois estudos foram realizados: o Estudo 1, que objetivou adaptar a FIS ao contexto brasileiro por meio da análise de sua estrutura fatorial e parâmetros individuais (análise fatorial exploratória). Com base nesses parâmetros, através da Teoria de Resposta ao Item, propôs-se uma versão reduzida da escala selecionando os melhores itens. E, no Estudo 2, foram realizadas análise fatorial confirmatória e validade convergente para as duas versões da medida a fim de confirmar sua estrutura e replicabilidade.

Estudo 1. Adaptação e Evidências de Estrutura Interna da Financial Infidelity Scale

Método

Participantes

Contou-se com uma amostra não probabilística (de conveniência) de 202 indivíduos. 85,6% dos respondentes são do sexo feminino, com idades entre 18 e 58 anos (M = 32,22; DP = 8,89), 53% casados; 34,7% em união estável e 12,3% em coabitação. A maioria pertence ao estado da Paraíba (85,6%), seguido de Pernambuco (6,9%). 55,2% disseram ter filhos, com média de tempo de relacionamento de 8,45 anos (DP = 7,45) e renda familiar entre dois e cinco salários-mínimos (60,2%). Dentre estes, 70,4% afirmaram haver interdependência financeira em seu relacionamento.

Instrumentos

Financial Infidelity Scale (FIS; Garbinsky et al., 2019Garbinsky, E. N., Gladstone, J. J., Nikolova, H., & Olson, J. G. (2019). Love, Lies, And Money: Financial infidelity in romantic relationship. Journal of Consumer Reserarch, 47, 1-24. http://doi.org/10.1093/jcr/ucz052
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). Avalia a variação individual na tendência à infidelidade financeira, ou seja, probabilidade de um parceiro se envolver em comportamentos financeiros que provavelmente provocarão desaprovação do outro e intencionalmente evita revelá-los. É uma medida unidimensional que avalia parceiros de forma individual por meio de 12 itens, respondida em uma escala tipo Likert de 1 = Discordo totalmente a 7 = Concordo totalmente (Item 1: “Se eu quisesse comprar algo e meu parceiro/a não aprovasse o preço, eu consideraria comprá-lo de alguma maneira e não diria a ele/a.”; Item 5: “Esconderia uma dívida do/da meu/minha parceiro/a para evitar perturbá-lo/la.”; Item 12: “Prefiro manter informações sobre minha renda privadas do/da meu/minha parceiro/a.”). O instrumento apresentou boa consistência interna com um alfa de Cronbach de 0,90.

Questionário sociodemográfico. Para caracterizar a amostra, é composto por questões acerca de idade, sexo, estado civil, estado em que reside, filhos, tempo de relacionamento, renda familiar e interdependência financeira entre o casal.

Procedimento

A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética (CAAE: 38340820.5.0000.5188). Após aprovação, o instrumento passou pela técnica de tradução back translation, na qual dois tradutores bilíngues, sem contato durante o processo de tradução, traduzem a medida do português para o inglês e vice-versa, que foram comparadas e consideradas equivalentes. Assim, houve a aplicação do estudo piloto para a equivalência dos itens, tendo a autorização dos autores originais da medida para tradução, a qual está explícita no próprio artigo.

Em seguida, realizou-se a análise semântica dos itens com a população-alvo de 10 participantes que, após assegurados os princípios de sigilo e anonimato das respostas, concordaram com a sua participação por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE. Nessa etapa, foram perguntados aos participantes sobre o nível de dificuldade de compreensão dos itens e da maneira de resposta. Nenhuma dificuldade na compreensão dos itens e escala de resposta foi apontada, portanto, não necessitou de reformulações, o que permitiu o avanço para a etapa seguinte.

Posteriormente, respeitando os aspectos éticos das Resoluções 510/16 e 466/12 do CNS, solicitou-se aos participantes que respondessem a pesquisa por meio de questionário on-line, por meio do Google Forms, cuja página inicial corresponde ao TCLE, informando objetivo da pesquisa, sigilo, anonimato e caráter voluntário, sem ônus para desistência a qualquer momento. O tempo previsto para completar a pesquisa foi de 15 minutos.

Análise de Dados

Por meio do software Factor 10.10.03 (Ferrando & Lorenzo-Seva, 2017Ferrando, P. J., & Lorenzo-Seva, U. (2017). Program FACTOR at 10: Origins, development and future directions. Psicothema, 29(2), 236-240. http://doi.org/10.7334/psicothema2016.304
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) foi realizada uma Análise Fatorial Exploratória (AFE) com o objetivo de avaliar a estrutura fatorial da FIS. A análise foi implementada utilizando uma matriz policórica e método de extração Robust Diagonally Weighted Least Squares (RDWLS).

Além disso, levou-se em conta o alfa de Cronbach e o ômega de McDonald com o intuito de verificar a consistência interna, e o método Hull Comparative Fit Index (CFI), considerado um dos melhores indicadores para testar a dimensionalidade de um conjunto de itens (Lorenzo-Seva et al., 2017). Ressalta-se ainda que, pelo fato de o instrumento avaliado ser de autorrelato, mais especificamente a escala de resposta ser do tipo Likert, foram consideradas relações policóricas, cujos dados são estimados como ordinais.

Para avaliar os parâmetros dos itens da FIS, por meio do software R com uso do pacote mirt, realizou-se uma análise de Teoria de Resposta ao Item (TRI) para avaliar a capacidade do item em diferenciar pessoas no traço latente, limiares e quantidade de informação psicométrica. Tendo em vista a natureza ordinal e politômica dos itens, o modelo utilizado foi o Modelo de Resposta Graduada.

Resultados

Por meio de uma análise fatorial categórica robusta (500 reamostragens por meio de Bootstrap), inicialmente foi observada a adequação da matriz de correlações policóricas à AFE, sugerindo sua interpretabilidade [KMO = 0,81 (IC95% = 0,781 - 0,872) e χ2 Bartlett (66) = 1.323,5 e p < 0,001]. Portanto, a AFE foi realizada, com estimador DWLS, sem rotação, resultando em um único fator com valor próprio > 1 (50,89) que explicou 49,1% da variância total, o que fora reforçado pelo método Hull, que também sugeriu um único fator como sendo o mais representativo para os dados (CFI = 0,98).

Em complemento, os indicadores de unidimensionalidade (Ferrando & Lorenzo-Seva, 2018) Unidimensional Congruence (UniCo > 0,95), Explained Common Variance (ECV > 0,85) e Mean of Item Residual Absolute Loadings (MIREAL < 0,30) também suportaram a unidimensionalidade da escala (UniCo = 0,97/IC95% = 0,926 - 0,986; ECV = 0,86/IC95% = 0,831 - 0,901; MIREAL = 0,22/IC95% = 0,176 - 0,234. A fim de conhecer com maior precisão os parâmetros individuais dos itens e melhor avaliar a medida de propensão à infidelidade financeira, utilizou-se a TRI (GRM).

Os itens apresentaram cargas fatoriais adequadas, acima de 0,30, como é esperado pela literatura. Assim, é possível observar na Tabela 1 que todos os 12 itens saturaram no fator Infidelidade financeira com cargas fatoriais variando de 0,43 (Item 01. “Se eu quisesse comprar algo e meu parceiro/a não aprovasse o preço, eu consideraria comprá-lo de alguma maneira e não diria a ele/a.”) a 0,82 (Item 06. “Se eu precisasse de dinheiro apenas por alguns dias, pegaria crédito e não diria ao/a meu/minha parceiro/a.”). Os valores da consistência interna, por meio do alfa de Cronbach (α = 0,90) e ômega de McDonald (ω = 0,91), foram considerados adequados, superiores ao que recomenda a literatura (≥ 0,70; Taber, 2018Taber, K. S. (2018). The use of cronbach’s alpha when developing and reporting Research Instruments in science education. Research in Science Education, 48, 1273-1296. http://doi.org/10.1007/s11165-016-9602-2
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).

Tabela 1
Estrutura Fatorial, Discriminação, Limiares e Quantidade de Informação da FIS

Quanto à TRI, com o intuito de avaliar a capacidade do item em diferenciar pessoas no traço latente, identificar limiares e quantidade de informação psicométrica, obteve-se a capacidade média de discriminar pessoas (M a = 1,64; DP a = 0,54), variando de 0,75 (item 01) a 2,69 (item 06), os quais são considerados valores moderado e muito alto, respectivamente (Baker & Kim, 2017Baker, F. B., & Kim, S. (2017). The basics of Item Response Theory using R. Springer.). Os limiares, indicadores dos níveis de theta (θ), fornecem informações sobre o quão é necessário que se endosse a categoria superior na escala de resposta, fazendo menção à dificuldade do item, ou seja, valores baixos são característicos de itens considerados mais fáceis, ao passo que níveis altos caracterizam os mais difíceis.

Assim, os menores limiares (b1-6) foram identificados nos itens 07 e 08, tendo médias de b1-6 de 0,55 e 0,60, respectivamente, caracterizando-se como os itens que requerem menores níveis de propensão à infidelidade financeira para serem endossados completamente (ver Tabela 1). Por outro lado, os itens que requerem níveis mais elevados para serem completamente endossados são os itens 10 e 11, com médias de 1,60 e 1,73, respectivamente. Na Figura 1, podem ser observadas as curvas de informação dos itens e do teste.

Figura 1
Curvas de informação dos itens e do teste.

No que tange à quantidade de informação psicométrica I(θ; -4/+4) dos itens (Tabela 1), tem-se uma média de informação I(θ) de 3,12 (DP = 1,40), com variabilidade de 1,18 (item 01) a 5,97 (item 06). De acordo com a avaliação gráfica das curvas de informação dos itens e do teste, é possível perceber que uma ampla faixa do traço latente (-0,98 a 3,51) é coberta pelo teste, além de ser possível identificar oito itens como os mais informativos (02, 04, 06, 07, 09, 10, 11 e 12) e, portanto, mais centrais para propensão à infidelidade financeira. Dessa forma, uma versão reduzida da FIS é sugerida, composta por oito itens, avaliada por meio da EFA e TRI (ver Tabela 1).

Para a EFA com os oito itens mais informativos da FIS, foram seguidas as mesmas especificações da realizada com a versão original de 12 itens. A estrutura encontrada também foi unidimensional (Eigenvalue = 4,77; HullCFI = 0,978), cujas cargas fatoriais foram acima de 0,60, sendo (α) e (ω) = 0,90. Quanto à discriminação dos itens, percebe-se valores de alto (item 10, a = 1,60) a muito alto (item 06, a = 2,58), com média 1,91 (DP = 0,32). Já os limiares permitem indicar que os itens cobrem extensa amplitude do traço latente (b1-4 entre -0,22 e 2,43), sendo o item 07 (b1-6 médio = 0,54) o que requer menor nível de traço latente para ser completamente endossado e o item 11 (b1-6 médio = 1,67) o que requer maiores níveis. Diante disso, tem-se que, em ambas as versões - de 12 itens e oito itens (versão reduzida) - a versão mais curta pode ser uma alternativa plausível sem perda de informação psicométrica.

Estudo 02 - Análise Fatorial Confirmatória e Validade Convergente

Método

Participantes

A amostra foi composta por 311 pessoas recrutadas de forma não probabilística, por conveniência. Dentre estes, 83,9% são do sexo feminino, entre 18 e 60 anos de idade (M = 31,9; DP = 8,12), coabitando (35%), casadas (33,8%) e em união estável (31,2%). De diferentes estados brasileiros (20,6% de São Paulo, 14,8% do Rio Grande do Sul, 11,3% do Rio de Janeiro e 10,9% do Paraná), 70,4% afirmaram não ter filhos, com média de 7,64 anos de relacionamento (DP = 6,69) e renda familiar entre dois e seis salários mínimos (52,4%). Ademais, 76,2% disseram haver interdependência financeira em seu relacionamento.

Instrumentos

Os participantes responderam os mesmos instrumentos descritos no Estudo 1, acrescidos de:

  • Inventário dos Cinco Grandes Fatores da Personalidade: versão reduzida e adaptada ao contexto brasileiro, composta por 20 itens, respondida em uma escala tipo Likert de 5 pontos, com alfa de Cronbach de 0,70, que interpela como o indivíduo percebe-se (Andrade, 2008Andrade, J. M. (2008). Evidências de validade do inventário dos cinco grandes fatores de personalidade para o Brasil. (Tese de Doutorado). Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, DF, Brasil. Recuperado de https://repositorio.unb.br/handle/10482/1751
    https://repositorio.unb.br/handle/10482/...
    ).

Procedimento

Os procedimentos foram os mesmos descritos no Estudo 1, obedecendo as orientações previstas nas Resoluções 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde para pesquisas com seres humanos.

Nesse ínterim, é importante ressaltar que não houve divisão amostral por região, foi uma pesquisa por conveniência. Uma possível justificativa para a diferença regional dos estudos é o fato de a pesquisa ter sido desenvolvida no período pandêmico da COVID-19, portanto, a fim de completar a amostra para realização das análises, foi preciso disseminar a pesquisa de forma on-line, no WhatsApp, Facebook e Instagram, para que atingisse o maior número de respondentes possível e isso pode corresponder ao alcance de diversas regiões do país.

Análise de Dados

A fim de descrever os participantes deste estudo, foram realizadas análises descritivas através do software SPSS. Com o software R, por meio do pacote Lavaan, realizou-se uma análise fatorial confirmatória categórica (ordinal) com estimador Weighted Least Squares Mean and Variance­-Adjusted (WLSMV), recomendado para dados ordinais e que não apresentam distribuição normal.

Assim, os seguintes indicadores foram considerados para avaliar o modelo proposto (Hair, Black, Babin, & Anderson, 2019Hair, J. F., Black, W. C., Babin, B. J., & Anderson, R. E. (2019). Multivariate Data Analysis. Cengage Learning. ): (1) Comparative Fit Index (CFI) - índice comparativo que considera valores a partir de 0,90; (2) Tucker-Lewis Index (TLI) - medida de parcimônia que varia de 0 a 1, tendo valores acima de 0,90 como aceitáveis; (3) Root-Mean-Square Error of Approximation (RMSEA) e seu intervalo de confiança de 90% (IC90%), cujos valores devem ser menores que 0,08. Além disso, calculou-se a precisão da medida por meio do alfa de Cronbach e ômega de McDonald.

Ademais, realizou-se ainda uma análise de validade convergente baseada na sua relação com variáveis externas (personalidade), por meio da Modelagem por Equações Estruturais, com estimador WLSMV, considerando magnitudes entre 0,20 e 0,50.

Resultados

Análise Fatorial Confirmatória - AFC e Validade Convergente

Para testar a estrutura unifatorial encontrada no Estudo 1, reunir evidências complementares acerca da medida e ofertar mais robustez ao estudo, tanto para a versão original (12 itens) quanto para a reduzida (oito itens), foram realizadas AFCs com estimador WLSMV. Os resultados apresentaram bons ajustes para os dois modelos testados: original [CFI = 0,98; TLI = 0,98; RMSEA = 0,06 (IC90% = 0,057 - 0,075 e p > 0,05]; e reduzido [CFI = 0,99; TLI = 0,99; RMSEA = 0,05 (IC90% = 0,016 - 0,070 e p > 0,05)]. Os indicadores de consistência interna sugeriram boas evidências de fidedignidade (FIS12itens, α e ω = 0,90; FIS08itens, α = e ω = 0,88), os quais são considerados valores altos (Kline, 2015).

Para calcular a validade convergente, recorreu-se à Modelagem por Equações Estruturais, com estimador WLSMV, coerente com a natureza das medidas utilizadas. Assim, foram dois modelos (um com a versão FIS12itens e outro com FIS08itens) com seis variáveis latentes cada um: um representando a FIS (composta pelos 12 ou oito itens, em modelos separados) e outros cinco representando os traços de personalidade - abertura à experiência, conscienciosidade, extroversão, amabilidade e neuroticismo (cada um com quatro itens). Para o modelo com a versão da FIS de 12 itens, observou-se que a variável latente de propensão à infidelidade financeira apresentou peso de regressão de modo positivo com o traço neuroticismo (λpadronizado = 0,20; p = 0,002) e negativo com conscienciosidade (λpadronizado = -0,088; p = 0,02) e amabilidade (λpadronizado = -0,19; p = 0,001), apresentando bom ajuste [CFI = 0,97; TLI = 0,97; RMSEA = 0,028 (IC90% = 0,019/0,035; p = 1,00)]. Para a versão de oito itens, a propensão à infidelidade financeira foi explicada de forma positiva com neuroticismo (λpadronizado = 0,20; p = 0,001) e negativa com amabilidade (λpadronizado = -0,18; p = 0,001), com um modelo de ajuste também semelhante ao anterior [CFI = 0,97; TLI = 0,96; RMSEA = 0,030 (IC90% = 0,021/0,039; p = 1,00)]. Para mais detalhes ver Figuras 2 e Figura 3.

Figura 2
Validade convergente da FIS em sua versão de 12 itens.

Figura 3
Validade convergente da FIS em sua versão de oito itens.

Discussão

Embora a infidelidade financeira seja um construto relativamente novo e, portanto, pouco estudado, é importante unir esforços para entender seu impacto na relação entre casais, visto que carecem de pesquisas empíricas que abordem possíveis variáveis influentes nos desacordos financeiros e propensão à infidelidade financeira, o que torna pertinente considerar outros fatores a fim de melhor compreender o que pode impulsionar comportamentos dessa ordem (Jeanfreau et al., 2018Jeanfreau, M., Noguchi, K., Mong, M. D., & Stadthagen, H. (2018). Financial infidelity in couple relationships. Journal of Financial Therapy , 9(1), 1-20. http://doi.org/10.4148/1944-9771.1159
https://doi.org/http://doi.org/10.4148/1...
).

As finanças costumam ser um dos aspectos mais árduos de um relacionamento. Trair o parceiro em relação a questões financeiras e mentir sobre isso pode causar efeitos negativos na vida do casal e repercutir no contexto familiar, pois está comumente atrelado ao sigilo e ao engano, o que pode culminar na perda de confiança, conflitos, estresse e divórcio, com potencial de criar distância entre parceiros, sentimentos de traição e outros processos disfuncionais de relacionamento (van Raaij et al., 2020).

Alguns pesquisadores têm até se referido à IF como um exemplo de distúrbio financeiro que afeta a qualidade de vida e o bem-estar financeiro de uma pessoa (Zaniani et al., 2021Zaniani, N. T., Taherinia, M., Jalali, D., & Givaki, E. (2021). The effectiveness of acceptance and commitment group financial therapy on financial literacy, Personal Financial management and mental accounting. International Journal of Finance and Managerial Accounting, 7(24), 227-239. Recuperado de https://ijfma.srbiau.ac.ir/article_18072_4437015a324e78a149bf133008bc8380.pdf
https://ijfma.srbiau.ac.ir/article_18072...
). Um potencial fator contribuinte para o conflito financeiro vivenciado pelos casais é ter diferentes crenças ou atitudes em relação ao dinheiro, pois podem causar uma brecha na compreensão da experiência interna de seu parceiro em relação ao dinheiro e levar a mal-entendidos e conflitos. (Harris et al., 2020Harris, J. W., Stephens, R., Sensenig, D., Pickard, S., McCoy, M. A., & Kahler, R. (2020). Integrating financial therapy within family-owned businesses: A theoretical case vignette with recommended strategies for consulting with copreneurs. Journal of Financial Therapy , 11(2), 79-94. https://doi.org/10.4148/ 1944-9771.1224
https://doi.org/https://doi.org/10.4148/...
; Olson & Rick, 2022Olson, J. G., & Rick, S. I. (2022). “You spent how much?” Toward an understanding of how romantic partners respond to each other’s financial decisions. Current Opinion in Psychology, 43, 70-74. https://doi.org/10.1016/j.copsyc.2021.06.006
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
).

Tais considerações demonstram a importância de estudar o fenômeno e reforçam a necessidade de se contar com instrumentos válidos e precisos que possibilitem avaliar e identificar adequadamente a prevalência e os possíveis antecedentes e consequentes da infidelidade financeira. Esses fatores impulsionaram o desenvolvimento da presente pesquisa, que objetivou adaptar a Financial Infidelity Scale (FIS) para o contexto brasileiro, reunindo evidências de validade e precisão.

Ressalta-se que a maioria das pesquisas realizadas no Brasil acerca da temática são de cunho qualitativo e, quando quantitativas, utilizam-se de questionários ou uma única pergunta para nortear a pesquisa (Harth & Falcke, 2017Harth, J., & Falcke, D. (2017). Manejo do dinheiro e qualidade conjugal. Interação em Psicologia, 21(1), 9-18. http://dx.doi.org/10.5380/psi.v21i1.32215
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.538...
; Harth, Mosmann, & Falcke, 2016Harth, J., Mosmann, C. P., & Falcke, D. (2016). Manejo do dinheiro pelo casal e infidelidade financeira. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 16(1), 260-276. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v16n1/v16n1a15.pdf
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v16n1/...
; Rossato et al., 2018Rossato, M. L., Simor, C. C. G., Sathes, M. N., & Cenci, C. M. B. (2018). Infidelidade financeira com heretossexuais casados. IMED. Recuperado de https://soac.imed.edu.br/index.php/mic/xiimic/paper/view/910
https://soac.imed.edu.br/index.php/mic/x...
). Na literatura nacional, é possível identificar um único artigo que aborda a infidelidade financeira, mas não se detém ao tema em si, é apenas um fator constituinte da escala utilizada, que remete à gestão de dinheiro conjugal (Schünke, Falcke, & Mosmann, 2022Schünke, L. K., Falcke, D., & Mosmann, C. P. (2022). Structural model of money management, conflict resolution strategies and marital adjustment. Journal Family Economic Issues, 44, 523-535. https://doi.org/10.1007/s10834-022-09851-2
https://doi.org/https://doi.org/10.1007/...
), sem tecer conhecimento ou informações mais aprofundadas sobre o construto. Tais apurações reforçam a necessidade de um instrumento psicométrico válido, preciso e informativo, que auxilie na disseminação do conhecimento e sistematização/mensuração mais precisa do fenômeno de IF.

Torna-se interessante especialmente no contexto clínico para auxiliar casais que estejam enfrentando problemas conjugais de ordem financeira, a exemplo da identificação de crenças acerca do parceiro e da relação, fomento da habilidade de comunicação e desenvolvimento de estratégias de enfrentamento dos desacordos financeiros.

Especificamente, no Estudo 1 foram reunidas evidências acerca da estrutura unifatorial da medida, cujos itens apresentaram cargas fatoriais adequadas, considerando a carga fatorial acima de 0,30, ponto de corte que é considerado minimamente aceitável, além do coeficiente de consistência interna comprovar a sua precisão. Avaliando de forma individual, foi observado que os itens apresentaram discriminação adequada, sendo informativos e cobrindo uma ampla gama da faixa do traço latente avaliado, a infidelidade financeira.

Portanto, foram selecionados os itens com maior informação psicométrica para compor a versão curta da Financial Infidelity Scale (FIS). A versão de oito itens se revelou tão informativa, válida e precisa quanto a versão original de 12 itens, sendo uma alternativa útil e mais parcimoniosa para o rastreio de pessoas com potencial para apresentarem comportamentos de infidelidade financeira.

No Estudo 2, a estrutura unidimensional da FIS foi corroborada em suas duas versões (a original de 12 e a reduzida de oito itens) com bons indicadores de ajuste do modelo aos dados empíricos (CFI e TLI ≥ 0,95 e RMSEA < 0,08) e coeficientes de consistência interna adequados (α e ω ≥ 0,70). Além disso, foram verificadas evidências de validade com base em correlações com variáveis externas. Concretamente, verificou-se que as duas versões de 12 e oito itens da medida se associam na direção esperada e com pesos de regressão com magnitudes similares com neuroticismo, conscienciosidade e amabilidade, desmonstrando evidências de validade convergente.

A tendência ao engajamento em comportamentos de infidelidade financeira pode ser resultado tanto da dinâmica do relacionamento quanto das características do próprio indivíduo (Garbinsky et al., 2019Garbinsky, E. N., Gladstone, J. J., Nikolova, H., & Olson, J. G. (2019). Love, Lies, And Money: Financial infidelity in romantic relationship. Journal of Consumer Reserarch, 47, 1-24. http://doi.org/10.1093/jcr/ucz052
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), podendo estar relacionada a variáveis de cunho individual, como a personalidade. Um estudo com 414 norte-americanos revelou que o traço de personalidade conscienciosidade apresentou diferença significativa quando relacionada à infidelidade financeira, o que significa que indivíduos mais organizados, autodisciplinados e responsáveis, que prezam pelo planejamento em suas ações, são menos propensos a manterem segredos financeiros (Jeanfreau et al., 2018Jeanfreau, M., Noguchi, K., Mong, M. D., & Stadthagen, H. (2018). Financial infidelity in couple relationships. Journal of Financial Therapy , 9(1), 1-20. http://doi.org/10.4148/1944-9771.1159
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). Tal achado reforça a premissa de que a personalidade tem relação direta com o comportamento e que a infidelidade financeira é fruto dos indivíduos e de suas relações, podendo variar de acordo com o que prezam (Garbinsky et al., 2019Garbinsky, E. N., Gladstone, J. J., Nikolova, H., & Olson, J. G. (2019). Love, Lies, And Money: Financial infidelity in romantic relationship. Journal of Consumer Reserarch, 47, 1-24. http://doi.org/10.1093/jcr/ucz052
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).

Os modelos testados apresentaram indicadores de ajuste adequados. Assim, mesmo que a versão original composta por 12 itens tenha apresentado indicadores levemente mais favoráveis, a versão reduzida segue o critério da parcimônia e avalia de forma similar o construto. Tais resultados são relevantes, pois demonstram evidências de validade referente à estrutura interna da medida e suprem uma lacuna existente na literatura, além de corroborrar que a prática da infidelidade financeira pode ser uma conduta explicada pelos traços de personalidade (Jeanfreau et al., 2018Jeanfreau, M., Noguchi, K., Mong, M. D., & Stadthagen, H. (2018). Financial infidelity in couple relationships. Journal of Financial Therapy , 9(1), 1-20. http://doi.org/10.4148/1944-9771.1159
https://doi.org/http://doi.org/10.4148/1...
).

Entretanto, apesar das evidências favoráveis, a presente pesquisa apresenta limitações, a exemplo da natureza transversal do estudo, que não permitiu avaliar a estabilidade temporal da FIS. Além disso, baseou-se em uma amostra reduzida, que não permite inferir generalizações para além da amostra considerada. Outra limitação consiste no fato de terem sido consideradas medidas de autorrelato, o que favorece o viés da desejabilidade social, inerente a construtos psicossociais. Além disso, é necessário ater-se às características das amostras desta pesquisa: expressivamente mulheres com pós-graduação. Esse dado merece ser discutido, visto que há diferenças entre homens e mulheres nos quesitos dinheiro e conjugalidade. Nesse ínterim, as características socioeconômicas da amostra devem ser levadas em consideração, pois provavelmente, a infidelidade financeira se expressa de forma distinta dependendo da capacidade econômica dos casais.

Devido a essas considerações, estudos adicionais devem ser realizados a fim de averiguar evidências psicométricas adicionais da FIS, tal como a validade externa da medida com diferentes construtos, já considerados em outros contextos, a exemplo da personalidade (Jeanfreau et al., 2018Jeanfreau, M., Noguchi, K., Mong, M. D., & Stadthagen, H. (2018). Financial infidelity in couple relationships. Journal of Financial Therapy , 9(1), 1-20. http://doi.org/10.4148/1944-9771.1159
https://doi.org/http://doi.org/10.4148/1...
) e do manejo do dinheiro (Harth et al., 2016Harth, J., Mosmann, C. P., & Falcke, D. (2016). Manejo do dinheiro pelo casal e infidelidade financeira. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 16(1), 260-276. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v16n1/v16n1a15.pdf
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v16n1/...
). Seria interessante avaliar a estabilidade temporal da FIS por meio do teste-reteste ou resultados associados com outras medidas e em diferentes grupos (por faixa etária, sexo/gênero, tempo e tipo de relacionamento, renda, escolaridade, amostras clínicas e não clínicas de casais vítimas de infidelidade financeira e que estão enfrentando conflitos de ordem financeira).

Finalizando, acredita-se que o estudo contribuiu com o campo científico, pois reuniu evidências de validade, disponibilizando uma medida sobre infidelidade financeira, na sua versão em português brasileiro, fornecendo uma medida mais curta e com qualidade comparável à versão original. Pode ser útil em pesquisas que considerem relacionar a infidelidade financeira com distintos construtos e possibilitem compreender os possíveis fatores antecedentes e consequentes desse comportamento, aumentando o escopo de pesquisas empíricas, e incentivem estudos, principalmente em contexto brasileiro, que possivelmente identifiquem maior ou menor propensão dos indivíduos a cometer tal ato de infidelidade e suas repercussões na vida conjugal e familiar, estimulem a discussão de estratégias de enfrentamento e prevenção desse comportamento, e intervenções clínicas com casais, cuja relação pode ser afetada de forma negativa pela prática da infidelidade financeira.

Referências

  • Nota dos autores:

    O presente artigo contou com apoio da CAPES por meio de bolsa de Doutorado à primeira autora (CAPES). Aproveitamos para demonstrar nossa gratidão a esta instituição.

Editado por

Editor:

Evandro Morais Peixoto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2022
  • Revisado
    28 Out 2023
  • Aceito
    08 Jan 2024
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