Open-access Entre a psicanálise e a fenomenologia de Merleau-Ponty: traçando caminhos para uma noção de experiência

Between psychoanalysis and Merleau-Ponty’s phenomenology: tracing paths towards a notion of experience

Entre el psicoanálisis y la fenomenología de Merleau-Ponty: trazando caminos hacia una noción de experiencia

Entre la psychanalyse et la phénoménologie de Merleau-Ponty : traçant des chemins vers une notion d’expérience

Resumo

Partindo de uma articulação entre a psicanálise e a fenomenologia de Merleau-Ponty, o objetivo deste artigo é traçar um caminho na psicanálise para uma noção de experiência. A experiência, seja pensada a partir de problemáticas levantadas pela psicanálise contemporânea, mais especificamente no que concerne aos estados limites, seja a partir da fenomenologia, não pertence a um sujeito, mas comporta uma abertura para o mundo. Com base em certas noções e interpretações de diferentes autores na psicanálise, buscam-se caminhos que permitam alcançar um deslocamento de uma posição idealista ou objetivista. Seguindo as indicações de Winnicott, três eixos são destacados como hipóteses centrais para definir a experiência: a corporeidade, o tempo e o sentido. Por fim, propõe-se um questionamento sobre a possibilidade de conceber a experiência como um conceito para a psicanálise contemporânea.

Palavras-chave: psicanálise; fenomenologia; experiência

Abstract

By articulating psychoanalysis and Merleau-Ponty’s phenomenology, this article traces a possible path towards a notion of experience. Experience, whether based on the problems raised by contemporary psychoanalysis (limit states) or on phenomenology, does not belong to a subject; rather, it includes an opening to the world. Based on certain notions and interpretations by different authors in psychoanalysis, we sought paths that allow a shift from an idealistic or objectivist position. Following Winnicott’s propositions, we highlight three axes as central hypotheses to define experience: corporeality, time, and sense. Finally, we question whether experience can be conceived as a concept for contemporary psychoanalysis.

Keywords: psychoanalysis; phenomenology; experience

Resumen

Partiendo de una articulación entre el psicoanálisis y la fenomenología de Merleau-Ponty, el objetivo del artículo es trazar un posible camino en el psicoanálisis hacia una noción de experiencia. La experiencia, ya sea basada en los problemas planteados por el psicoanálisis contemporáneo, más específicamente con respecto a los estados límite, o basada en la fenomenología, no pertenece a un sujeto, sino que incluye una apertura al mundo. A partir de ciertas nociones e interpretaciones de diferentes autores en el psicoanálisis, buscamos formas que permitan lograr un cambio desde una posición idealista u objetivista. Siguiendo las indicaciones de Winnicott, se destacan tres ejes como hipótesis centrales para definir la experiencia: corporalidad, tiempo y sentido. Finalmente, se hace una pregunta sobre la posibilidad de concebir la experiencia como un concepto para el psicoanálisis contemporáneo.

Palabras clave: psicoanálisis; fenomenología; experiencia

Résumé

En articulant la psychanalyse et la phénoménologie de Merleau-Ponty, cet article trace un chemin en psychanalyse vers une notion d’expérience. L’expérience, qu’elle soit fondée sur les problèmes soulevés par la psychanalyse contemporaine (états limites) ou sur la phénoménologie, n’appartient pas à un sujet, mais comporte une ouverture au monde. Basé sur certaines notions et interprétations de différents auteurs en psychanalyse, on cherche des voies permettant le passage d’une position idéaliste ou objectiviste. Suivant les propositions de Winnicott, trois axes sont mis en évidence comme hypothèses centrales pour définir l’expérience: la corporéité, le temps et le sens. Enfin, on discute de la possibilité de concevoir l’expérience comme un concept pour la psychanalyse contemporaine.

Mot-clé: psychanalyse; phénoménologie; expérience

Introdução

A articulação entre a psicanálise e a fenomenologia, mais especificamente a teoria de Merleau-Ponty, é um assunto deveras contemplado. Como se sabe, Merleau- Ponty demonstrou interesse pela psicanálise desde seus primeiros escritos, ainda na década de 1940, mas foi somente nos anos 1950 que consolidou esse diálogo, trazendo concepções importantes sobre o inconsciente, a memória, o sonho e o simbolismo. Para além da relação amistosa com Lacan e Pontalis, a psicanálise é um eixo importante no seu percurso teórico - um eixo, aqui, não significa um ponto de partida, mas, sobretudo, um campo de aproximações e distanciamentos. Ayouch (2012) afirma que a psicanálise e a fenomenologia de Merleau-Ponty são duas vias convergentes que comportam aspectos aparentemente separados.

Ao prefaciar o livro do psicanalista Angelo Hesnard, L’œuvre de Freud et son importance pour le monde moderne, Merleau-Ponty (1960/2000) observa que “é pelo que a fenomenologia subentende ou desvela em seu limite - por seu conteúdo latente ou inconsciente - que está em consonância com a psicanálise” (p. 14). E prossegue dizendo que elas não são paralelas, mas se dirigem à mesma latência - a problemática do inconsciente é, portanto, um ponto nodal desse diálogo. No entanto, para além de uma aproximação entre esses campos, o objetivo deste artigo consiste em traçar um caminho na própria psicanálise que fomenta esse diálogo e, simultaneamente, buscar subsídios na perspectiva de Merleau-Ponty para iluminar algumas problemáticas da psicanálise contemporânea, mais especificamente no que concerne a uma noção de experiência.

Essa discussão parte de certos questionamentos articulados à psicanálise contemporânea - é evidente que essa noção não é simples, mesmo porque toda psicanálise é contemporânea de seu tempo. No intuito de melhor definir alguns parâmetros, Green (2002), no livro Idées directrices pour une psychanalyse contemporaine - título que remete à obra de Husserl -, destaca uma série de eixos, entre os quais nos interessa particularmente um. Trata-se do que Green (2002) denominou configurações dos eixos da patologia. Para o autor, se na época de Freud a problemática da histeria configurava uma espécie de paciente típico, os estados-limites ocupam o centro das questões que nos inquietam nos dias atuais (Green, 2002).

A noção de estados-limites, no entanto, por vezes se torna uma espécie de conceito coringa utilizado com frequência quando não se sabe ao certo como definir alguns fenômenos clínicos - se não parece uma neurose, nem uma psicose: o saco das patologias-limite está aberto. Green (2002), todavia, foi um teórico que denunciou essa imprecisão e propôs traçar uma definição mais clara dos casos-limites, ou estruturas não neuróticas, elevando a noção de limite ao estatuto de conceito na psicanálise. Um limite, nessa perspectiva, é considerado uma fronteira móvel e flutuante, sendo impossível tratá-lo em termos de representação figurada. Ou seja, o limite (tanto entre o psiquismo e o mundo quanto internamente, no próprio aparato psíquico) só pode ser concebido em termos da relação entre força e sentido - trata-se de um processo. Diferentemente da preocupação relativa à neurose que comportava, sobretudo, certas discussões em torno do funcionamento psíquico e seus mecanismos (como o conceito de recalque, as discussões em torno das instâncias psíquicas etc.), uma preocupação central na psicanálise contemporânea diz respeito ao processo e às configurações de limites tanto entre o Eu e o Outro quanto em relação às instâncias psíquicas. Isto porque, nos casos limites, os limites não podem ser tomados como dados ou garantidos, mas se configuram como a problemática em questão.

Trabalhar nos limites implica a necessidade de manter sempre em tensão as fronteiras entre o Eu e o mundo, deslocando a discussão da dinâmica intrapsíquica para uma problemática que só pode ser concebida enquanto tal no plano interpsíquico (Roussillon, 1991). É justamente nesse ponto que a fenomenologia de Merleau-Ponty pode servir como uma espécie de guia capaz de iluminar certos aspectos obscuros no campo psicanalítico. Conforme aponta o autor:

Ser uma consciência, ou, antes, ser uma experiência, é comunicar interiormente com o mundo, com o corpo e com os outros, ser com eles em lugar de estar ao lado deles. Ocupar-se da psicologia é necessariamente encontrar, abaixo do pensamento objetivo que se move entre as coisas inteiramente prontas, uma primeira abertura às coisas sem a qual não haveria conhecimento objetivo. O psicólogo não podia deixar de redescobrir-se enquanto experiência [ênfase adicionada], quer dizer; enquanto presença sem distância ao mundo, ao corpo e ao outro, no momento mesmo em que ele queria perceber-se como objeto entre os objetos. (Merleau- Ponty, 1945/2015, p. 113)

Nesse trecho, as palavras “ser” e “experiência” se articulam para deixar entrever o trabalho do psicólogo a partir de uma espécie de abertura para o mundo. A “presença sem distância do mundo” (Merleau-Ponty, 1945/2015, p. 113) parece ser algo que coloca os limites em questão - é justamente nesse sentido que certa noção de experiência se torna objeto de uma discussão importante para a psicanálise contemporânea. Retomando o caminho empreendido por Merleau-Ponty quando este discute a obra de Husserl, o filósofo revista a problemática da consciência, lançando mão da intencionalidade como marca de qualquer fenômeno da experiência vivida. No prefácio do livro Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty (1945/2015) destaca que a fenomenologia é uma filosofia “para qual o mundo está sempre ‘ali’, antes da reflexão, como uma presença inalienável” (p. 1). O esforço, nesse sentido, é de reencontrar esse contato com o mundo” (p. 3).

A experiência, dessa perspectiva, não pode ser concebida como psicológica, introspectiva ou como experimentação passiva de estímulos, mas como uma abertura para o mundo. Não se trata, portanto, de uma experiência subjetiva, uma vez que “não há homem interior; o homem está no mundo, e é no mundo que ele se conhece” (Merleau-Ponty, 1945/2015, p. 5). É interessante notar a afirmação de Ayouch (2012) de que é mediante o “desvio à fenomenologia husserliana que pode surgir uma convergência entre fenomenologia e psicanálise” (p. 12).

A psicanálise, por sua vez, marca um ponto de inflexão na história das teorizações sobre a experiência. Afinal, a postulação freudiana do inconsciente coloca em questão o próprio sujeito da experiência: o inconsciente sinaliza o ápice da crise do conceito moderno fundado sobre o sujeito cartesiano. Remetida claramente a uma terceira dimensão, a experiência inconsciente não é, de fato, uma experiência subjetiva, especialmente se a aproximarmos de uma experiência do eu. É nesse sentido que Figueiredo (2002) afirma que:

O “inconsciente” psicanalítico não veio absolutamente para ocupar um lugar central, para assumir uma posição de origem da história ou de fundamento da experiência (funcionando como um texto subliminar que organizasse dos bastidores os jogos da consciência), mas, ao contrário, para destituir a subjetividade de qualquer centro e de qualquer originariedade, problematizando em definitivo a própria noção de experiência (p. 25).

Ora, se tanto a problemática da psicanálise contemporânea quanto a fenomenologia de Merleau-Ponty convergem para a discussão da experiência articulada à questão dos limites, esta não pode ser concebida como psicológica, introspectiva ou como experimentação passiva de estímulos, mas, sim, deve perseguir as bordas (entre o Eu e o mundo, entre objetivo e subjetivo, entre corpo e psiquismo). Para circunscrever uma definição de experiência para a psicanálise, portanto, o percurso deverá necessariamente fazer-se a partir de um recorte entre diferentes autores que podem ajudar a pensar em tais limites (limites, em última instância, do próprio pensamento). Considerando que a tensão deve ser mantida nas fronteiras, a noção de experiência não pode se inserir em uma perspectiva subjetivista, ou seja, na proposta de o sujeito constituir uma via privilegiada no processo perceptivo (no acesso ao mundo), muito menos de uma perspectiva objetivista (que afirma a supremacia do mundo em relação ao sujeito). Isso porque essas duas nomenclaturas são usadas justamente para caracterizar posições claras de divisão entre sujeito e objeto - da perspectiva objetivista privilegia-se o objeto como portador de sentido, da subjetivista, o sujeito será a chave do objeto. De certa forma, essas duas perspectivas são os dois lados da mesma moeda, pois ambas concebem objeto e sujeito, dentro e fora, interior e exterior, como extremos opostos - mas qual é o lugar da psicanálise diante dessas posições?

Ao longo da história da psicanálise, tanto em Freud quanto em outros autores, alternam-se posições: por vezes idealistas, por vezes objetivistas. É possível, todavia, destacar alguns caminhos que permitem uma extrapolação dessas categorias, isto é, que não priorizam nem o sujeito nem o mundo externo - permitindo uma obnubilação entre essas fronteiras. Diante dessa questão, a própria intercessão entre a obra de Merleau-Ponty e a psicanálise, bem como de alguns psicanalistas que também dialogaram com esse autor (tais como Pontalis e André Green), permitem vislumbrar que a fenomenologia pode servir como um ponto de apoio para questões aparentemente não convergentes. O caminho, portanto, seria menos fazer coincidir a fenomenologia de Merleau-Ponty com a psicanálise e mais entrever na própria psicanálise uma via para discutir a experiência - sendo a fenomenologia um guia para melhor encaminhar a discussão. Esse percurso será traçado a partir de certas noções e interpretações de diferentes autores que buscam um deslocamento de uma posição idealista ou objetivista.

Costurando uma noção de experiência para a psicanálise

De saída, cabe destacar que Freud não tem uma definição precisa do que é a experiência - alguns trechos de sua obra, todavia, deixam entrever certas considerações. A primeira discussão importante em torno dessa questão diz respeito à experiência primária de satisfação (Befriedigungserlebnis) descrita por Freud no “Projeto para uma psicologia científica” (Freud, 1895[1950]/1977). Grosso modo, a experiência de satisfação consiste em um esquema que marca a constituição do aparato psíquico articulando-a a uma dimensão intensiva e à presença de um Nebenmensch (literalmente “homem ao lado”). Mas qual seria o estatuto da experiência neste caso? O “homem ao lado” (Nebenmensch) está lá, pronto para ser conhecido objetivamente pelo bebê? Pode-se realizar uma leitura dessa passagem tomando em conta um aparato movido por impulsos (exigências da vida) dirigidos para objetos, caracterizando uma experiência que deixa uma marca, uma via de facilitação para a composição da representação. Os impulsos, em outro momento, reencontrarão esse traço na tentativa de satisfação. Dessa perspectiva, é preciso relembrar a tão citada frase de Freud (1905/1972), segundo a qual “encontrar um objeto é na realidade reencontrá-lo” (p. 126). Ou seja, o encontro com o mundo estaria inevitavelmente articulado à representação dessa primeira experiência e teria como palco o psiquismo. Nesse sentido, a relação com o mundo externo é tributária de certa atitude ou função intencional. Seria possível, portanto, afirmar que a experiência na metapsicologia freudiana se articula a uma lógica na qual os sintomas e ações são concebidos como a consequência causal de processos mentais - posição esta que a aproximaria do idealismo? Tratar-se-ia de uma experiência subjetiva do bebê, posto que ela inaugura o seu contato com o mundo externo, considerado uma realidade objetiva acessível apenas ao psiquismo do bebê? A noção de representação reafirmaria essa perspectiva ao marcar o acesso ao mundo exterior a partir de uma marca no psiquismo? Nos parece que tanto a experiência primária de satisfação quanto a noção de representação comportam visadas que as colocariam em trilhas teóricas bastante heterogêneas dentro da obra freudiana. A experiência e a representação podem ser realçadas como o experimentar e o representar, verbos que podem nos fazer intuir um processo no mundo.

Dessa forma, se recortarmos a experiência em Freud de modo chapado e unívoco, deixamos de lado uma problemática crucial, a qual torna a experiência mais complexa e difícil de ser encaixada nesses rótulos. Trata-se da impossibilidade de coincidência total entre vida psíquica e consciência - esta última, portanto, não pode ser o ponto nodal do sentido da experiência. Na própria experiência de satisfação, o sujeito percebe o objeto fonte de prazer (a ajuda estrangeira) sem ter consciência dessa percepção - a percepção inconsciente, todavia, será mais bem elaborada em textos mais tardios. Neste contexto, a experiência pode deixar de ser considerada um produto ativo do psiquismo de um sujeito no encontro com um mundo existente, o que abre espaço à intercessão entre impressão perceptiva e psiquismo. É possível encontrar inúmeras passagens na obra freudiana que permitem borrar a fronteira clara entre objeto e sujeito - fornecendo subsídios para traçarmos uma noção de experiência que pretende se deslocar de uma perspectiva tanto objetivista quanto idealista. Pode-se dizer que “as oposições entre externo e interno, entre real e fantasiado estão no centro de toda discussão metapsicológica” (Coelho Junior, 2016, p. 334).

Muito embora não seja possível um maior aprofundamento desses temas neste artigo, deixaremos indicadas algumas passagens da obra freudiana que refletem essa preocupação: (1) no “Projeto para uma psicologia científica” (Freud, 1895[1950]/1977), texto que discute certos registros ou índices inconscientes de caráter primário, culminando na possibilidade de processos de percepção inconscientes ou até mesmo supor que os registros de percepção podem ser inicialmente inconscientes (Coelho Junior, 2016); (2) na famosa “Carta 52” (Freud, 1896 [1950]/1977), em que os registros perceptivos não articulados à consciência são sustentados para além do paradigma representacional; (3) nos textos “Além do princípio do prazer” (Freud, 1920/1977) e “A negativa” (Freud, 1925/1977), por meio da suspensão da oposição entre identidade de pensamento e identidade de percepção; (4) certos aspectos da discussão em torno da angústia - principalmente no que concerne à transformação da angústia automática para a angústia sinal; e (5) na problemática em torno da melancolia, mais especificamente, no que concerne ao borramento de fronteiras caracterizado pela máxima identificatória da sombra do objeto que recai sobre o Eu.

Diante dessas possibilidades abertas por Freud, um caminho interessante para dar continuidade a essa discussão na psicanálise consiste nos questionamentos levantados por Ferenczi, considerado por Green (2013) o pai da psicanálise contemporânea. Ferenczi de fato traz algumas contribuições originais e outras complementares ao pensamento freudiano. A noção de mutualidade, decorrente da experiência de análise mútua (descrita no diário clínico [Ferenczi, 1990]), engendra uma perspectiva de emergência do psiquismo inovadora à época, ao levar até as últimas consequências a consideração da significação do Outro no processo de uma análise. Isso porque, ao considerar a possibilidade de uma espécie de comunicação entre os inconscientes, a noção de mutualidade, conforme aponta Green (1996), abre espaço para outra leitura da experiência primária de satisfação. Em vez de ser pensada a partir de duas unidades separadas, ou seja, a de um bebê que sofre as exigências da vida e a de outro que irá apaziguá- las, pode-se abordar questões que são circunscritas por meio das expressões “atributo comum” e “fluxo mútuo”, remetidas a uma espécie de troca no âmbito de uma “unidade dual” (Ferenczi, 1933/1992, p. 99).

Nesse campo, o psiquismo do Outro é também convocado. A postulação de uma unidade-dual que comporá a base do psiquismo é a marca da experiência de mutualidade. Não se pode pressupor um bebê e outro como unidades separadas de saída; trata-se justamente de uma unidade heterogênea calcada em uma comunicação mútua. Nesse sentido, Ferenczi configura-se como uma figura central da passagem de um momento na psicanálise no qual o enfoque residia, sobretudo, na realidade histórica do paciente - movimento claramente marcado pelo modelo freudiano caracterizado pela descoberta do inconsciente e da transferência - para o deslocamento do interesse em direção às relações de objeto abordadas de maneiras bastante distintas por autores como Melanie Klein, Fairbain, Balint, Spitz, entre outros (Green, 1990). Trata-se, segundo as indicações de Green (1990), da passagem de uma psicanálise pensada a partir o modelo de one body psychology para o que se convencionou chamar de two body psychology.

Dando continuidade a essa perspectiva, a teoria de Melanie Klein, mais especificamente as noções de fantasia e de identificação projetiva, fornece caminhos importantes para pensarmos a experiência em psicanálise. Isso porque a noção delineada por Melanie Klein e mais bem circunscrita por Suzan Isaacs torna a fantasia o correlato subjetivo das pulsões e o conteúdo básico da vida mental - o que desloca a ênfase do conteúdo das fantasias para o processo de fantasiar. Nada do que ocorre no corpo e na mente deixa de estar, de alguma forma, associado a essa atividade inconsciente e criativa que dá sentido e valor afetivo a tudo. Embora, para Freud, a possibilidade de a fantasia ser de saída inconsciente já esteja posta, a posição mais corrente deriva as fantasias de representações conscientes e pré-conscientes recalcadas. Diferentemente das fantasias em sua maioria articuladas a representações, para Melanie Klein, as fantasias inconscientes não dependem destas e não derivam de instâncias psíquicas.

Nesse contexto, o conceito de fantasia obnubila a distinção freudiana entre a metapsicologia e a fenomenologia, posto que valoriza o processo de tornar algo psíquico em detrimento de esse algo ser puramente derivado de mecanismos ou de conflitos entre instâncias psíquicas. Ora, o processo de tornar psíquico pressupõe justamente uma discussão sobre o que está “fora” e o que está “dentro” do psiquismo - permite-se, assim, contemplar a problemática de como se dá o processo de tornar psíquico aquilo que não o é. A noção de identificação projetiva, por exemplo, é um conceito que deixa clara essa discussão: trata-se de uma defesa característica da fase esquizoparanoide, na qual se engendra a expulsão de partes de si mesmo para o objeto. Segundo as indicações de Ogden (2014), as noções de fantasia como processo mental e de identificação projetiva como possibilidade de comunicação interna e externa são temas centrais para uma espécie de virada na psicanálise da era “Freud-Klein” para a era “Bion-Winnicott”.

Bion, por sua vez, retirou essa noção de uma articulação estrita à fase esquizoparanoide e a tornou uma atividade básica para comunicar emoções e para conceber uma origem do pensar - trata-se de uma pedra angular de seu arcabouço teórico. Se no texto kleiniano a identificação projetiva reflete, predominantemente, os aspectos do mundo interno (posto que se enfatizam a fantasia e a projeção no objeto), em Bion, o conceito passa a pertencer, de forma mais evidente, ao campo interpessoal. Isso porque o autor destaca uma espécie de elo própria da identificação projetiva entre seu aspecto comunicativo e seu aspecto de transformação. Nesse contexto, o Outro deixa de ser uma folha em branco (dividida por seus efeitos entre bom e mau na versão kleiniana) que recebe uma projeção, para tornar-se uma espécie de extensão de si mesmo. Ele seria capaz de “digerir” e devolver os conteúdos psíquicos - uma espécie, portanto, de continente para os conteúdos. O processo de transformação (antes articulado à fantasia) passa, assim, a ser intersubjetivo - o que permite, ainda, encaixar a teoria de Bion em uma two body pschology. É, no entanto, a partir de Winnicott que um terceiro momento começa a ser delineado.

Conforme apontam Abran e Hinshelwood (2018), uma diferença importante entre as teorias kleiniana e winnicottiana consiste no fato de que nesta última o bebê não é capaz de diferenciar claramente, desde o início, o objeto. Ele não pode distinguir o que vem do seu corpo do que acontece externamente (fome e mãe oferecendo o seio, por exemplo). Cabe lembrar o famoso trecho de Winnicott no qual ele afirma que os impulsos internos podem ser percebidos da mesma forma que um trovão (Winnicott, 1960/1965). Nesse sentido, diferentemente de certa interpretação da experiência primária de satisfação, na qual a motivação para um contato com o mundo vinha justamente das exigências da vida e, mais tarde, da pulsão, para Winnicott essa impossibilidade de sentir os impulsos como internos não permite colocar a pulsão como impulsionadora da experiência - o ponto de partida não pode ser nem externo nem interno. Sabemos que as definições de pulsão e de instinto na obra de Winnicott são bastante polissêmicas, especialmente quando descritas em períodos precoces do desenvolvimento emocional. Suas discordâncias em relação a versões internalistas da pulsão, veiculadas especialmente por certas correntes da psicanálise anglo-saxã de sua época, referem-se à primazia constitutiva da sexualidade, por um lado, e do ódio como produto direto da pulsão de morte, por outro - tudo isso tendo uma fonte interna.

Pode-se, dessa forma, assinalar uma perspectiva distinta, mas não oposta, em relação à psicanálise freudiana, posto que Winnicott aponta outros aspectos determinantes no processo de constituição do humano que não aqueles ligados às excitações corporais e ao princípio do prazer. O que o psicanalista inglês descreve não é a libido, que passa por diferentes fases ou fixações objetais; é o humano que se temporaliza, gerando, gradualmente, um si-mesmo integrado, tanto internamente quanto nas oscilações de suas fronteiras (não físicas) com o mundo. Portanto, o tema central para esse psicanalista não consiste na descrição de funções isoladas, sejam elas biológicas, mentais ou sexuais, mas na continuidade de ser. Aqui, a dimensão processual, já presente na noção de experiência de Melanie Klein e Bion, fica mais evidente: a ênfase está no processo de estar vivo no mundo e nas diferenciações e indiferenciações em relação a este.

A teoria winnicottiana é precursora de um terceiro momento descrito por Green (1990) na história da psicanálise. Isso porque a preocupação desse psicanalista se articula constantemente com outra dimensão (nem objetiva, nem subjetiva). Nas suas palavras:

Temos utilizado os conceitos de interior e de exterior, e necessitamos de um terceiro. Onde estamos quando fazemos o que em verdade fazemos durante boa parte do tempo, quer dizer, quando nos divertimos? O conceito de sublimação abarca todo o panorama? Podemos obter alguma vantagem se examinarmos este assunto da possível existência de um lugar para viver, que os termos “exterior” e “interior” não descrevem de forma adequada? (Winnicott, 1971/1975, p. 140)

A noção de espaço potencial, que busca dar um destino a esses questionamentos, permite uma tentativa de deslocamento dos eixos interno e externo, abrindo caminho para um terceiro eixo. Dessa forma, também se abre espaço para outra perspectiva que necessariamente implica pensar a situação analítica não somente a partir de um (paciente) ou dois (analista e paciente), mas em torno do que se convencionou chamar de configurações da terceiridade (Coelho Junior, 2015). A partir de uma discussão em torno das configurações da terceiridade, o problema deixa de estar concentrado no conhecimento do Outro ou do mundo, para levar em consideração a experiência do próprio analista quando em contato com o outro - não é possível privilegiar, nessa perspectiva, a via do conhecimento de um dos lados.

Diante desse quadro, é importante destacar que a teoria bioniana, por meio de uma apropriação e de uma modificação das influências de Freud, Ferenczi e Melanie Klein, engendra a possibilidade de vislumbrar uma noção de experiência que não seja objetivista ou subjetivista. Consideramos que, em Winnicott, por outro lado, a questão do limite e do paradoxo é o fio condutor, permitindo mais claramente um deslocamento de uma postura subjetivista ou objetivista. Winnicott, a nosso ver, leva esse projeto às últimas consequências. Todavia, aqueles que estão habituados com a sua obra notam - e ele mesmo o confessa - o modo não sistematizado de transmitir suas considerações. É evidente que não se encontra nos seus textos uma definição precisa do que é experiência e de autores que possam colaborar ou se contrapor a ela. Justamente por isso, manter o fio condutor apoiado no pensamento de Merleau-Ponty será um caminho interessante no sentido de alavancar subsídios para melhor circunscrever essa noção.

Uma das assertivas mais precisas, mas não por isso clara, que encontramos na obra winnicottiana sobre a experiência está em uma carta de Winnicott a Money- Kyrle: “a experiência é um trafegar constante [ênfase adicionada] na ilusão, uma repetida procura da interação entre [ênfase adicionada] a criatividade e aquilo que o mundo tem a oferecer” (Winnicott, 1952[1987]/2005, p. 53). Ora, as palavras grifadas apontam a necessidade de conceber a experiência não como um evento estático (trafegar constante) e muito menos como algo que se dá subjetivamente (interação entre). Contudo, como definir uma noção de experiência para a psicanálise? Quais seriam os pontos principais dessa noção? Para melhor circunscrevê-la, destacaremos três eixos nodais:

(1) corporeidade; (2) tempo; e (3) sentido - é nesse ponto que o diálogo possível entre certas considerações de Winnicott e a fenomenologia de Merleau-Ponty entram em cena e em contato.

A experiência para a psicanálise: entre corporeidade, tempo e sentido

Retomando a discussão sobre a experiência na obra freudiana, pode-se assinalar uma espécie de esquecimento do corpo na psicanálise a partir de certa interpretação da experiência primária de satisfação que ganhou espaço ao longo do século XX. De acordo com Simanke (2016), o “esquecimento do corpo” se concretizou principalmente a partir da articulação da obra freudiana com o pensamento hegeliano, constituindo uma espécie de antropologia filosófica. Ainda segundo Simanke (2016), isso cria um problema para a questão da corporeidade, na medida em que os seres emergentes são concebidos como puras consciências. Nas palavras do autor, “nesse tipo de reinterpretação da dialética hegeliana, a concepção desses sujeitos de cujo embate nasce o mundo propriamente humano é despojada de toda e qualquer materialidade” (Simanke, 2016, p. 92). A impressão é de que essa ruptura, que permite a emergência do ser, acontece mesmo que os sujeitos não tenham corpos - os corpos não contam em nada no processo. Mais do que isso, é possível afirmar que seus corpos e aquilo que remete à vida animal devem ser necessariamente negados, isto é, abandonados para que o sujeito possa emergir. Nessa interpretação, a experiência primária de satisfação pode ser concebida como uma experiência que funda o psiquismo e que prescinde (e até mesmo deixa para trás) de tudo aquilo que está ligado ao corporal - outro corpo, um corpo tecido pelo simbólico e pelo imaginário, é o único capaz de entrar em cena; seu resto é um furo.

Apesar dessa interpretação, outra perspectiva da experiência de satisfação permite avançar na ideia de que uma experiência corporal compartilhada é indispensável ao processo de constituição do mundo e do sujeito. Segundo Simanke (2016), muito embora essa experiência possa conter subsídios para ser a perspectiva mais objetivista de todos os estágios do percurso do pensamento freudiano, ela guarda uma teoria que se aproximaria da noção de intercoporeidade (ou co-corporeidade) presente na obra de Merleau- Ponty. Nesse âmbito, o corpo não pode ser considerado apenas algo a ser ultrapassado, negado, superado ou neutralizado, mas, sim, um agente indispensável do próprio processo de humanização.

A teoria de Winnicott, a nosso ver, enfatiza alguns aspectos (já encontrados na obra freudiana) que valorizam as impressões sensíveis e a corporeidade no processo do desenvolvimento emocional primitivo. Nesse contexto, desde o princípio, o corpo e a psique não são concebidos separadamente (a possibilidade de separação entre eles oscila durante a vida e se constrói de maneira diferente na patologia e na normalidade). A noção de psique-soma caracteriza essa indistinção. A separação relativa entre psique e soma consiste em um processo de elaboração imaginativa das funções do corpo - um dos aspectos fundamentais do desenvolvimento emocional primitivo. O sentimento de que se vive no próprio corpo é uma conquista que pode ser alcançada ou não, reforçada ou perdida no caminho. O corpo, dessa forma, além de ser o ponto de partida, enquanto psique-soma, de toda a possibilidade da atividade psíquica, nunca é abandonado - seja pela aquisição da linguagem, seja pelo desenvolvimento do psiquismo. A corporeidade, portanto, além de ser um ponto de partida, permanece como indissociável da experiência. Mas o que exatamente configura a corporeidade?

O pensamento de Merleau-Ponty é útil para melhor circunscrever a noção de corpo que compõe um dos eixos da experiência. Para o filósofo, assim como a percepção não pode ser entendida de maneira interna, subjetiva ou objetiva, o corpo não pode ser concebido como um corpo próprio de um sujeito. A noção de intercorporeidade, em harmonia com a de percepção, é fundamental para a construção de uma filosofia que enfatiza o campo de intensidades sensíveis como solo da experiência e impassível de ser ultrapassado hierarquicamente.

Para o filósofo, é por meio do corpo que se age e que se tem um mundo - mundo este entendido como o conjunto de aspectos do universo que afetam o corpo e ao qual ele se dirige. Pra designar essa imbricação entre corpo e mundo, Merleau-Ponty lança mão da noção de “quiasma” como a superposição e a identidade de pares, mantendo sua diferença do conceito de “carne” que descreve no plano ontológico a interdependência do corpo, do mundo e do tempo. Muito embora não seja necessário um maior aprofundamento nesses conceitos, é importante destacar que ambos marcam uma indissociação entre mundo e corpo e assinalam este último como via principal da experiência.

É interessante notar que, no livro póstumo e inacabado O visível e o invisível, Merleau-Ponty (1964/2014) afirma que “fazer uma psicanálise da Natureza, é a carne, a mãe” (p. 321). É bastante tentador fazer uma analogia direta entre essa assertiva e as proposições de Winnicott sobre a unidade não homogênea que se forma entre mãe e bebê nos primórdios. O que nos interessa aqui é o fato de que o corpo, tanto para Winnicott com a ideia de soma, quanto para Merleau-Ponty com a noção de carne, é central na constituição do humano e não está isolado, pelo contrário, é o “nosso ancoradouro no mundo” (Merleau-Ponty, 1945/2015, p. 171). Não se pode dizer que se tem um corpo, mas que se é um corpo.

Nesse sentido, acompanhando a sugestão feita por Coelho Júnior (2010), a palavra “corporeidade”, em vez de “corpo”, aplica-se melhor a esse contexto. Isso porque esta última é claramente marcada pela tradição que opõe corpo e mente, carregando os vestígios de suas posições na história de nossa cultura. Aquela, por sua vez, remete a uma lógica ao mesmo tempo interna e externa, sendo abertura permanente para o mundo. As dimensões da sensorialidade, da intensidade e do sentido marcam essa noção de corporeidade, assinalando uma distinção em relação ao corpo pensado como oposto à mente, mas, também, a um corpo fechado em suas próprias fronteiras. É pela corporeidade e a partir da corporeidade que se pode falar de experiência. Dessa perspectiva, a experiência envolve necessariamente a corporeidade ou, para sermos mais precisos, a experiência é corporal. Nossa primeira hipótese, portanto, supõe que corporeidade e experiência sejam indissociáveis.

Para desenvolver um segundo eixo fundamental da noção de experiência, remeto-me à expressão “trafegar constante” usada por Winnicott na carta a Money-Kyrle. O verbo no infinitivo “trafegar” indica que a experiência se articula a um tempo que não é estanque, mas processual. Ora, desse modo, não é possível conceber a experiência como algo que se dá fora do tempo ou a partir de um tempo serial, cronológico ou mesmo marcado por cortes. Conforme destacado anteriormente, as proposições de Melanie Klein e Bion abrem espaço para a concepção de um tempo processual: seja ele o de fantasiar, seja ele o da transformação dos elementos beta em elementos alfa, por meio da função alfa. Para Winnicott, o tempo do desenvolvimento emocional primitivo também pode ser articulado a um processo - não se trata de uma trajetória predelineada. A experiência, portanto, está articulada a esse tempo processual - mas como defini-lo mais precisamente?

Antes, uma sugestão: afirmar que a experiência se insere ou tem um tempo não permite traçar mais precisamente a articulação entre experiência e tempo. Há alguma experiência que prescinda do tempo? Buscando mais uma vez subsídios em Merleau-Ponty (1945/2015), pode-se dizer que o tempo não se dobra a um espectador absoluto, ele não é “para” alguém, mas “é” alguém. Sob esse viés, “somos obrigados a fazer-nos do tempo e do sujeito uma concepção tal que eles se comuniquem do interior” (p. 549). Desse modo, é preciso considerar o tempo não para “tirar as consequências de uma concepção preestabelecida da subjetividade” (Merleau-Ponty, 1945/2015, p. 550), mas para concebê-lo como a matéria de que o sujeito é feito - o tempo “nasce da minha relação com as coisas e o passado, o presente e o futuro e está presente no mundo” (p. 555). Trata-se, portanto, de um deslocamento de uma lógica espacial (a experiência não se dá em algum lugar) para uma lógica temporal. A experiência não tem um lugar específico (como poderíamos remeter ao espaço potencial de Winnicott, por exemplo), mas ela é composta de tempo. No entanto, assim como em relação à corporeidade, não é possível falar de tempo como algo dado, organizado de modo consensual. Como bem sublinhou Santo Agostinho (1987), temos a sensação de saber definir o tempo até que nos perguntem o que é o tempo. Um segundo eixo fundamental da noção de experiência está, portanto, circunscrito: a experiência é indissociável do tempo.

A terceira hipótese e eixo central para circunscrever uma noção de experiência diz respeito à questão do sentido. Retomando a discussão em torno da experiência primária de satisfação, certa interpretação poderia conceber o sentido como decorrente da possibilidade de representação, isto é, a partir do investimento nas marcas deixadas por essa experiência. Quando concebido nesse contexto, o sentido surge, inicialmente, como tributário de uma operação de nomeação, ou seja, o universo do sentido seria consequência da atribuição de nomes às coisas, em que palavras e objetos se associam uns aos outros na mente e na experiência dos sujeitos (Gabbi Júnior, 2005). Nesse contexto, o sentido não estaria articulado à experiência em si (como destacamos a partir do conceito de fantasia de Isaacs e Klein), mas decorre da possibilidade de representação (seja ela coisa ou palavra). O sentido seria consequência de um mecanismo e, teria, portanto, uma origem extralinguística. Sua origem remete a um objeto externo ao sujeito e externo à linguagem, subsistindo e podendo ser concebido independentemente de sua relação com ambos, que, ao se associar de maneira contingente com uma ideia de palavra, lhe confere significação. Conforme aponta Gabbi Júnior (2005), certo objetivismo pode ser depreendido sob esse viés, posto que a significação tem um lugar específico e externo.

Conforme destacado anteriormente, no caminho traçado que se apoia em um deslocamento de uma perspectiva objetivista e subjetivista, o sentido não pode ser localizado no mundo nem nas ideias. Nessa mesma direção, articulando a experiência artística ao sentido, Merleau-Ponty (1948/1996) afirma que “quando nos confrontamos com uma novela genuína, um poema, uma pintura ou um filme, sabemos que um contato foi estabelecido com alguma coisa, que alguma coisa foi adquirida para os humanos” (p. 3). O autor aponta que o sentido adquirido não pertence nem ao pensamento daquele que criou algo nem daquele que o percebe - o sentido está articulado à experiência (Merleau-Ponty, 1948/1996).

Apoiando-se mais uma vez no pensamento de Merleau-Ponty, a experiência não revela um sentido que algo carrega, mas “cria de um só golpe, com a constelação de dados, o sentido que os une - que não apenas descobre o sentido que eles têm, mas faz com que tenham sentido” (Merleau-Ponty, 1945/2015, p. 75). Faz-se importante destacar, todavia, que a questão não gira em torno da noção do significado - há, portanto, uma dissociação entre sentido, significado e linguagem.

Esse deslocamento entre sentido e linguagem impede uma coincidência absoluta entre a noção de inconsciente e sua perspectiva representacional. Isso porque o sentido passa a poder estar articulado ao plano pré-reflexivo, a um contato não mediado pela linguagem ou pelo pensamento, mas que tem como origem a sensorialidade. Certa noção de inconsciente, que o concebe como um sistema formado por representações, baseia-se em um privilégio da linguagem e do mundo do pensamento, posto que se funda justamente na ruptura entre representações-coisas e representações- palavra. Nessa perspectiva, uma maneira de abordar o inconsciente ressaltada por Merleau-Ponty desloca-o da noção de representação; o inconsciente não reside no mais profundo de nós mesmos (até porque não se trata de um lugar) nem mesmo está velado atrás das coisas, mas está “diante de nós mesmos como articulações do nosso campo” (Merleau-Ponty, 1964/2014, p. 234). Dessa maneira, abre-se a possibilidade de afirmar uma noção de inconsciente articulada à experiência que constitui uma espécie de dobra do visível, um invisível que não se esconde atrás do visível, mas que se situa entre o atual e o virtual, um entrelaçamento comum, uma textura presente no entrelaçamento corpo-mundo (Coelho Júnior, 1991). Diante desse quadro, a noção de experiência aqui delineada está articulada ao tempo e a corporeidade, mas também ao sentido . Nossa terceira hipótese supõe, portanto, que sentido e experiência sejam indissociáveis.

A experiência entre a psicanálise e a fenomenologia: um conceito?

A partir dessas considerações, foi possível delinear três eixos fundamentais de certa noção de experiência - no entanto, sua articulação com a experiência analítica ainda comporta uma série de problemas. Nesse ponto, uma questão fundamental colocada por Ayouch (2012) com relação ao inconsciente pode também ser estendida para a experiência: assim como o inconsciente, a experiência na psicanálise, diferentemente da fenomenologia, deve estar intimamente articulada à experiência analítica - vinculada à clínica e à teoria. Qual seria, então, o estatuto da experiência na psicanálise?

Seguindo as indicações de Ayouch (2012), Merleau- Ponty assinala a necessidade de “formular o tesouro de experiência que se oculta na comunicação psicanalítica” (p. 68). A experiência na psicanálise seria, portanto, inevitavelmente articulada à “comunicação analítica”, e somente a partir desta seria possível um psicanalista ancorar suas hipóteses. No entanto, seria a experiência um acontecimento concreto? A experiência consistiria, então, em um termo analítico básico?

É evidente que, no escopo deste artigo, não seria possível responder a essas perguntas - nossa hipótese se ancora na perspectiva de que, para conceituar a experiência no âmbito analítico, é necessário concebê-la não como um bloco único, mas como semelhança e diferença. A experiência poderia ser compreendida como um fundamento da situação analítica, mas qual seria, então, a sua dimensão epistemológica? Como de fato poderíamos angariar parâmetros para circunscrever uma experiência? A experiência, ainda que não pertença a um sujeito, pode e deve se tornar uma experiência subjetiva que, talvez, só tenha possibilidade de se constituir enquanto tal a posteriori. Como, então, circunscrever a dimensão ontológica, ôntica e, principalmente, clínica nesse conceito? Um caminho profícuo talvez se delineie em um diálogo ainda mais detalhado com outros autores da filosofia. Nesse sentido, na esteira da noção de semelhança de família1 de Wittgenstein (1982), o conceito de experiência não consiste em um bloco unívoco, mas comporta uma pluralidade ao mesmo tempo semelhante e heterogênea. Essas são algumas das perguntas que, ainda que não possam ser respondidas, esperamos que ressoem no leitor de modo a vislumbrar um caminho teórico-clínico que possa iluminar certos desafios enfrentados pela psicanálise contemporânea.

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  • 1
    Witttgenstein (1982) apresenta esse conceito a partir de um diálogo com um interlocutor imaginário que o acusa de apresentar os jogos de linguagem sem em nenhum momento defini-los mais precisamente, isto é, sem circunscrever o que há de essencial em todos eles. O filósofo responde que de fato não há algo essencialmente igual em todos os fenômenos, mas que eles são aparentados e, a partir daí, sustenta a definição de semelhança de família - fenômenos semelhantes que podem ser definidos pelo mesmo conceito, mas que não são essencialmente iguais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Jul 2022
  • Aceito
    08 Mar 2023
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