Resumo
A arte e a literatura estão presentes de maneira significativa, tanto em Freud quanto em Lacan, entretanto elas se inscrevem de diferentes formas nas duas teorias, isso pode ser melhor observado quando os autores se debruçam sobre uma mesma obra, como Hamlet de William Shakespeare. Além desta, Macbeth é outro drama shakespeariano que interessará a Freud por conta da personagem de Lady Macbeth. Diante disso, o artigo analisou as interpretações de Freud acerca dessas duas tragédias shakespearianas, assim como as de Lacan sobre Hamlet, investigando algumas particularidades acerca de relações com a arte e com a literatura. Embora impliquem em interpretações diversas, essas obras reúnem elementos importantes e por vezes com um valor de exemplo paradigmático para reflexões no campo da psicanálise.
Palavras-chave: psicanálise; Freud; Lacan; Hamlet; Macbeth
Abstract
Both Freud and in Lacan make extensive, albeit different, use of art and literature in their theories. This can be better observed when they focus on the same work, such as Hamlet and, in Freud’s case, Macbeth by William Shakespeare. Thus, this article analysed Freud’s readings of these two Shakespearean tragedies, as well as Lacan’s analysis of Hamlet, investigating some particularities about their relations with art and literature. Despite differences in interpretation, these works bring together important elements valuable as a paradigmatic example of psychoanalytic reflections.
Keywords: psychoanalysis; Freud; Lacan; Hamlet; Macbeth
Résumé
Freud et Lacan font tout deux un usage intensive, mais différent, de l’art et la littérature dans leurs théories. Cela peut être mieux lorsque les auteurs se concentrent sur la même œuvre, comme Hamlet et, dans le cas de Freud, Macbeth de William Shakespeare. Cet article donc analyse la lecture de Freud de ces deux tragédies shakespeariennes, ainsi que l’analyse de Lacan sur Hamlet, en étudiant certaines particularités de leurs relations avec l’art et la littérature. Bien qu’ils impliquent des interprétations différentes, ces travaux rassemblent des éléments importants et ont parfois valeur d’exemple paradigmatique pour les réflexions psychanalytiques.
Mots-clés : psychanalyse; Freud; Lacan; Hamlet; Macbeth
Resumen
El arte y la literatura están presentes de manera significativa, tanto en Freud como en Lacan, sin embargo se inscriben de diferentes formas en ambas teorías, esto se puede observar mejor cuando los autores se enfocan en una misma obra, como Hamlet de William Shakespeare. Además de esto, Macbeth es otro drama de Shakespeare que a Freud le interesará por el personaje de Lady Macbeth. Por tanto, el artículo analizó las interpretaciones de Freud sobre estas dos tragedias de Shakespeare, así como las interpretaciones de Lacan sobre Hamlet, investigando algunas particularidades sobre sus relaciones con el arte y la literatura. Aunque implican diferentes interpretaciones, estas obras reúnen elementos importantes y, en ocasiones, con el valor de un ejemplo paradigmático para las reflexiones en el campo del psicoanálisis.
Palabras clave: psicoanálisis; Freud; Lacan; Hamlet; Macbeth
Introdução
Há um histórico diálogo da psicanálise com outros saberes. Freud (1926/2014) apontava que o analista deixaria de compreender grande parte do seu material de trabalho caso não possuísse conhecimento de outras áreas, tais como história da civilização, mitologia, psicologia, religião e literatura. Consequentemente, a pesquisa psicanalítica não desconsidera a relevância de tais áreas na construção de seu campo de investigação.
Lacan, ao escrever sua tese Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade, em 1932, já aproximava psicanálise, arte e literatura. De acordo com Safatle (2017), “com sua tese, Lacan procurava constituir uma teoria em que clínica, reflexão social e tematização da produção estética se articulassem de maneira orgânica. Desde o início, essa teoria é um programa interdisciplinar [ênfase adicionada] cuidadosamente montado” (pp. 19-20).
Os artistas aparecem como interlocutores recorrentes na obra freudiana. Isso pode ser notado em textos em que ele se detém em assuntos ligados ao campo artístico, e também em escritos nos quais a estética não é o assunto central do texto freudiano. Um exemplo de artista cujos dramas e personagens são recorrentemente citados, referenciados ou estudados por Freud é William Shakespeare.
Além de epígrafes e menções ao poeta inglês que aparecem ao longo de diversos trabalhos, há também escritos nos quais as peças do Bardo são analisadas mais detidamente - é o caso de Hamlet e de Macbeth. Destaca-se que Hamlet chamou a atenção também de Lacan, embora este lhe interprete de forma distinta, como pode ser notado no Seminário 6: o desejo e sua interpretação.
Diante do exposto, o presente artigo se propõe a explanar a leitura lacaniana de Hamlet, assim como se debruçar nos escritos freudianos acerca das tragédias shakespearianas Hamlet e Macbeth. Inicialmente, será demarcado o modo que a arte e literatura se apresentam nas teorias de ambos, destacando-se a ocorrência da interface psicanálise e literatura em suas obras e, consequentemente, como isso se apresenta nas suas interpretações desses dramas de Shakespeare.
Serão destacadas algumas características em comum entre as duas tragédias, pois, além de serem peças do cânone shakespeariano, são obras que possuem elementos que as aproximam, fato que é apontado de modo recorrente por críticos literários, como Harold Bloom (2000) e A. C. Bradley (1904/2009).
A arte na psicanálise freudiana
Em Freud é notável a presença de referências a trabalhos literários e dramatúrgicos em diversos textos, e não somente naqueles em que as produções artísticas são tema principal. A influência desse campo permeia toda a obra freudiana, incidindo inclusive no seu modo de fazer ciência; “seu modelo de cientista aparece aqui muito mais moldado pela figura do artista transgressor do que pela do pesquisador em seu laboratório de fisiologia” (Chaves, 2015, p. 18). Isso pode ser também percebido na escrita adotada por Freud, afinal, “seu próprio estilo de escrita e argumentação é bastante ‘literário’”. (Loureiro, 2006, p. 374).
Contudo, tal influência não transforma a psicanálise em uma forma de literatura, nem anula a sua cientificidade. Koyré (1951/2011) havia constatado que a filosofia, metafísica e religião não estavam apartadas da ciência, mas encontram-se intimamente ligadas à evolução do pensamento científico. Da mesma forma, a presença da literatura na psicanálise é uma características necessária para que essa teoria possa existir, como aponta Iannini (2016) ao dizer que “a psicanálise freudiana não seria possível sem uma peculiar coabitação de duas vertentes aparentemente heterogêneas: a escrita científica, com seus protocolos, e a escrita literária, com seus procedimentos próprios” (p. 114).
A escrita literária não é adotada como uma simples particularidade de estilo de redigir um texto. Iannini (2016) aponta que tal regime discursivo não é empregado por conta de preferências pessoais, mas devido à natureza do seu objeto de estudo. A literatura vai além de apenas um instrumento de pesquisa, mas parte fundamental da psicanálise e da epistemologia freudiana “do mesmo modo como a ciência é condição para a psicanálise, não é exagero dizer que a literatura é condição da psicanálise” (Iannini, 2016, p. 115).
Como já foi dito, mesmo em textos que não abordam assuntos ligados ao universo artístico, a importância da literatura nessa escrita científica é um aspecto que permeia toda a obra de Freud. Além dessa característica, percebe-se a importância legada ao campo da estética ao longo de trabalhos cuja temática principal era artistas, como Michelangelo e Da Vinci, ou escritores e poetas como Shakespeare, Goethe, Sófocles, Jensen, Dostoiévski, e suas obras. Acerca da presença de tais referências literárias, Tavares (2007) ressalta que a aproximação de Freud com esses autores influenciou e fundamentou o saber psicanalítico.
Com esses escritos é possível circunscrever um determinado modo de pensamento adotado por Freud para refletir sobre a estética a partir da psicanálise. Em O Moisés, de Michelangelo, Freud (1914/2015) afirma que as obras de arte sempre exerceram um forte efeito sobre ele, em especial as obras literárias e esculturas. Acerca desse fascínio, ele descreve: “Percebi com frequência que o conteúdo de uma obra de arte me atrai mais fortemente do que suas qualidades formais e técnicas” (Freud, 1914/2015, p. 183).
Segundo Villari (2002 como citado em Tavares, 2012, p. 19), há na teoria de Freud duas vertentes de diálogo entre literatura e psicanálise, uma aditiva e outra extrativa. A vertente aditiva “que desde a aurora da Psicanálise gerou muita crítica e ainda hoje faz se criar reservas quanto a qualquer trabalho multidisciplinar que envolva a Psicanálise, uma vez que esta procuraria esclarecer conteúdos até então obscuros à Literatura, assim como às artes plásticas” (Tavares, 2012, p. 19). Seria o caso das famigeradas psicanálises de autores (Tavares, 2012), que aparece nos textos Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci (1910) e Dostoiévski e o parricídio (1928).
Apesar das críticas que acusavam Freud de reduzir a obra de arte a apenas um reflexo da neurose do artista, Ernani Chaves ressalta que: “Não se trata . . . de descobrir a neurose no criador, mas de considerar que o processo de criação artística segue o modelo de constituição da neurose. Assim sendo, tal como no processo analítico, não se pode negligenciar nenhum detalhe” (Chaves, 2015, p. 11). Mesmo com as críticas, há importância nesses textos, pois neles se observa uma determinada postura investigativa que, como aponta Chaves (2015), tem como ponto de partida “restos” e “rastros”.
Já na vertente extrativa, “a Psicanálise busca na cultura, em suas diversas manifestações e referenciais epistêmicos, o substrato que sustente e dá corpo às suas elaborações conceituais . . . entre as quais se destaca a literatura” (Tavares, 2012, p. 20). Isto é, ao invés de uma psicanálise aplicada a autores, veríamos a literatura como um aspecto essencial para a psicanálise e para as suas fundamentações teóricas. Seria “o caso, nessa segunda vertente, das referências a Édipo Rei de Sófocles e a Hamlet de Shakespeare” (Tavares, 2012, p. 19).
A arte na psicanálise lacaniana
As obras de arte também estão presentes na teoria de Lacan, juntamente com outros saberes advindos “da Linguística, da Lógica e da Topologia entre outras matrizes” (Tavares, 2012, p. 20). Esses campos “vem revolucionar o estatuto conceitual e estrutural da Psicanálise” (Tavares, 2012, p. 20). Safatle (2017) diz que não há casos clínicos em Lacan, porém é possível apontar que há um uso das criações artísticas para se pensar questões da prática psicanalítica. Safatle (2017) demarca que no ensino lacaniano “há um recurso massivo às artes, em especial à literatura, ao teatro e à pintura, que acaba por desempenhar a função de descrever e, muitas vezes, de induzir processos que podem operar na clínica” (pp. 71-72).
A reflexão da psicanálise sobre a arte levou Lacan “a repensar os modos de subjetivação disponíveis à clínica a partir de uma certa configuração da reflexão estética sobre a arte” (Safatle, 2006, p. 274). É notável como a presença da influência da literatura ao longo do ensino de Lacan abarca trabalhos de escritores dos mais diversos estilos, tais como Edgar Allan Poe, Marguerite Duras, Shakespeare, Sófocles, Marquês de Sade, Claudel, dentre outros.
Lacan (1959/2016) diz que: “já não podemos considerar a obra de arte como uma transposição, ou sublimação . . . da realidade. Já não se pode dizer que ela opera na imitação” (p. 429). Uma vez que, nessa perspectiva, a arte não é tida como uma sublimação da realidade, então de que modo essas obras operam para a psicanálise lacaniana? A resposta não é única, afinal é importante ressaltar que “Há, em Lacan, dois regimes de recurso psicanalítico à arte” (Safatle, 2006, p. 272).
Um desses regimes “estrutura-se em torno do problema do estatuto próprio ao objeto estético em sua irredutibilidade” (Safatle, 2006, p. 273). Ou seja, percebe-se que nesse regime “Lacan procura, na verdade, coordenadas que lhe permitam compreender a especificidade da formalização estética e de seus modos de subjetivação” (Safatle 2006, p. 273). Tal regime pode ser demarcado nas reflexões de Lacan sobre temas como sublimação, visibilidade da imagem estética e a letra (Safatle, 2006).
O outro modo de recurso psicanalítico à arte está ligado a investigação acerca do desejo (Safatle, 2006). Nesses casos o que ocorre é: “uma interpretação do material estético como desvelamento da gramática do desejo” (Safatle, 2006, p. 272). Para ocorrer tal desvelamento, a obra de arte é tratada “como espaço de organização de uma gramática do desejo” (Safatle, 2006, p. 272). Safatle (2006) aponta que isso é perceptível nos comentários e interpretações que Lacan faz acerca de obras literárias como A carta roubada, de Edgar Allan Poe, O balcão, de Genet, O despertar da primavera, de Wedekind, e no Hamlet, de Shakespeare.
Diante disso, é possível notar que Shakespeare interessa tanto a Lacan quanto a Freud, e ambos estudaram uma mesma obra do dramaturgo inglês: Hamlet. Dentre as tragédias shakespearianas, há outra sobre a qual Freud se debruça mais detidamente: Macbeth. A atenção que Freud dedica a essas duas peças é algo interessante a ser ressaltado, uma vez que Hamlet e Macbeth são tragédias dentro do cânone shakespeariano que possuem elementos que as aproximam, como é demarcado por críticos literários, como Harold Bloom (2000) e A. C. Bradley (1904/2009).
Paralelos entre Hamlet e Macbeth
Bloom (2000) ressalta que Hamlet e Macbeth são personagens com uma estranha afinidade e que projetam uma aura de intimidade com o público. Além dessa aproximação, é possível perceber nas duas tragédias elementos em comum, embora cada uma com sua particularidade, pois, como aponta Bradley (1904/2009), cada tragédia shakespeariana possui uma atmosfera própria. Contudo, mesmo com personagens e tramas distintas, é possível perceber que Hamlet e Macbeth são peças dotadas de características semelhantes.
Ambas iniciam apresentando elementos e personagens sobrenaturais, como a aparição das bruxas ao início de Macbeth, ou a chegada do Espectro, na primeira cena de Hamlet, após um diálogo entre personagens secundários que expõem o cenário em que se encontra o reino da Dinamarca. Essas cenas estabelecem um estranhamento e ressaltam a impressão de que há algo de inusual acontecendo ou prestes a acontecer. Em seguida, em ambas, Shakespeare introduz coadjuvantes, e não os protagonistas, “a falar sobre o herói, mantendo-o fora de vista por algum tempo para que aguardemos sua entrada com curiosidade” (Bradley, 1904/2009, p. 31).
Nesses dois dramas não há antagonistas que planejam o mal de Hamlet e Macbeth. Diferentemente de peças onde adversários elaboram maquinações para produzirem desgraça, tendo um papel central na elaboração e no desenvolvimento da trama, como é o caso de Iago em Otelo, ou Goneril, Regan e Edmund em Rei Lear. Ao contrário, em Macbeth e Hamlet, as adversidades que são impostas aos personagens-título, por Cláudio e Macduff, são consequências das ações que os próprios protagonistas tomaram. Bradley aponta que a popularidade de ambas “deve-se em parte a algumas dessas características em comum, especialmente ao fascínio do sobrenatural, à inexistência de um espetáculo de sofrimento profundo e imerecido, à ausência de personagens que causam horror e repulsa” (Bradley, 1904/2009, p. 255).
Ademais, as duas peças têm como um ponto de relevância central a importância de um ato para o protagonista. Hamlet é ordenado pelo Espectro a assassinar Cláudio, atual rei que usurpou o trono. Macbeth assassina Duncan, rei da Escócia, e assim consegue a coroa. Esses dois regicídios são duas ações de extrema importância para os protagonistas e em seu entorno se moverá toda a trama.
Contudo, a relevância desse ato incide de forma distinta nos dois personagens. Hamlet irá postergar o cumprimento dessa tarefa até o final da peça. Já Macbeth assassinará Duncan logo no começo do segundo ato. Um sucumbe a recriminações contra si próprio por estar sempre protelando, e o outro executa uma ação e nunca mais recupera a tranquilidade após tê-la realizado.
Embora a um tenha sido delegado realizar a vingança como um dever a ser cumprido e o outro tenha engendrado o ato como um meio para atingir uma ambição, os resultados serão nefastos em ambos os casos. Bradley (1904/2009) aponta que se tivesse obedecido prontamente ao Espectro, Hamlet teria poupado de sete a oito vidas. Macbeth age e conquista o que almejava para então passar a ver inimigos em todos os lugares e nunca mais encontrar repouso, como ele diz após cometer o assassinato: “Me parece / Que ouvi uma voz gritar ’Não dorme mais! / Macbeth matou o sono’” (Shakespeare, 1606/2016, p. 685). Adiando ou executando, as consequências serão trágicas
E é indiferente se suas intenções eram boas ou más. . . . Hamlet, recuando diante do amargo dever da vingança, é arrastado a uma carnificina com que nunca sonhou . . . Lady Macbeth, que se imaginava capaz de esmigalhar o crânio do próprio filho, vê-se até a morte perseguida pelo cheiro de sangue de um estranho. Seu marido acredita que para assegurar a coroa arriscaria a vida futura, mas depois descobre que a coroa foi responsável por todos os horrores desta vida. Em toda parte nesse mundo trágico, o pensamento do homem, tornado em ato, se transforma no oposto de si mesmo. (Bradley, 1904/2009, p. 20)
Pode-se apontar que o “mundo trágico é um mundo de ação” (Bradley, 1904/2009, p. 19). Isto é, para além de Hamlet e Macbeth, o ato é um elemento de importância central no gênero trágico de modo geral, como Bradley (1904/2009) aponta: “o fulcro da tragédia está no ato que provém do caráter, ou no caráter que se manifesta no ato.” (p. 9). O que observamos nas tragédias são atos que “geram outros, até que essa série de atos interligados leva . . . a uma catástrofe. O efeito de uma série desse tipo sobre a imaginação é fazer-nos pesar o sofrimento que a acompanha e a catástrofe na qual ela resulta” (Bradley, 1904/2009, p. 8).
Se, por um lado, o ato é um elemento essencial no gênero trágico, por outro, o que se ressalta é que nestes dois casos há um ato específico em torno do qual a peça se desenvolve. Em um drama, em torno da necessidade de executá-lo, e em outro pelo fato de ter sido realizado. E essa relevância capital é uma particularidade que não vemos em outras tragédias shakespearianas. Nas demais, vemos personagens cujas ações atrairão catástrofes para si próprios e para os que estão ao seu redor, mas, em nenhuma delas há a relevância de uma ação específica, de um ato a ser cometido, de algo a ser feito, que incida com tamanho peso sobre os protagonistas, acarretando tamanho conflito, interno e externo, de modo que passe a ser o ponto central que une o enredo e faz desenrolar os acontecimentos da tragédia, como vemos em Hamlet e Macbeth.
Contudo, as posturas desses dois protagonistas perante o ato a ser executado são distintas, enquanto um posterga, o outro executa. Em Macbeth, observamos um nobre guerreiro, que acolhe Duncan, rei da Escócia, em seu castelo e na calada da noite, embaixo de seu teto, Macbeth mata o rei que estava dormindo indefeso. Os guardas, que estavam desacordados devido à embriaguez, são incriminados como os autores do crime e executados. Isso tudo ocorre no início da peça. O primeiro ato “Precipita-se por sete cenas muito curtas, nas quais o suspense é crescente, até uma crise brutal, à qual chegamos com o assassinato de Duncan, no início do Segundo Ato” (Bradley, 1904/2009, p. 256).
Com esse assassinato, Macbeth assume o trono e a partir disso observa-se “uma alma torturada por uma agonia que não oferece um momento de descanso, precipitando-se febrilmente para a própria perdição” (Bradley, 1904/2009, p. 256). Ele passará a ver possíveis inimigos e traidores em todos os lugares, tornando-se cada vez mais sanguinário ao eliminar essas prováveis ameaças, mas nunca se sentindo a salvo. Macbeth “se torna cada vez mais assustador, aterrorizando a todos, inclusive a si mesmo, à medida que se transforma no nada por ele próprio projetado” (Bloom, 2000, p. 639). E ao sucumbir no final da tragédia não sentimos alívio, como se tivéssemos presenciado o fim de um tirano, como em Ricardo III. Mesmo se tornando sanguinário, não é possível classificar Macbeth como maligno, pois, como é destacado por Bloom (2000), há uma “intrigante simpatia que o protagonista desperta. Shakespeare previu a nossa cumplicidade com Macbeth” (p. 639).
Com Hamlet observamos alguém que adia a tarefa que tem que cumprir e que se recrimina por isso. Ao refletir em seus solilóquios ele queixa-se por não agir e se corroí e se insulta violentamente: “Eu sou o próprio asno! Não é estranho, esplêndido / Que eu, filho de um querido pai assassinado, / Propelido à vingança pelos céus e os infernos / Fique como puta airando a alma com frases / E rogando praga feito uma bisca vadia, / Feito lavadeira! Uh, é muito nojento!” (Shakespeare, 1599-1600/2015, p. 106). Tais autoacusações não são ocorrências pontuais, mas uma constância na peça inteira, se tornando uma das características do príncipe da Dinamarca.
Tal atitude de Hamlet, perante a vingança que tem que executar, nos apresenta uma nova forma de personagem, que, até então, não havia sido visto na literatura ou no teatro. A tragédia de vingança não foi uma criação shakespeariana, já sendo bastante popular na Inglaterra do século XVI, como é apontado por Carpeaux (1959/2011), ao dizer que: “A tragédia de vingança tornou-se permanente no teatro inglês” (p. 717).
Apesar da popularidade das tragédias de vingança na Inglaterra elisabetana, Shakespeare inaugura em Hamlet algo distinto. Como é pontuado por Pereira (2015) possui em sua consciência irônica a sua maior originalidade. É tal consciência que se sobressai na peça, transformando-a em algo para além da trama de um filho tendo que vingar a morte de seu pai, conforme Bloom (2000) descreve: “Hamlet tem uma consciência que não caberia em Hamlet; tragédia de vingança não pode conter a maior representação de um intelectual criado no Ocidente. Mas Hamlet não é, na verdade, a tragédia de vingança que finge ser. É teatro do mundo” (p. 479). Perante as reflexões do personagem, a trama da vingança contra Cláudio fica em um plano menor, e ganha destaque aquilo que o príncipe da Dinamarca tem a nos dizer. Enquanto em Macbeth, ressalta-se aos olhos a transformação sofrida pelo casal de usurpadores.
Essa maestria em transpor com sua pena a complexidade do gênero humano foi um dos fatores que tornou Shakespeare, não somente um dos poetas mais consagrados da literatura, mas também possibilitou o seu fascínio e influência para além dos estudos literários. Isso pode ser notado na própria presença das criações shakespearianas na psicanálise desde os seus primórdios, nos textos de Freud.
Hamlet e Macbeth em Freud
Ernest Jones (1953/1989) afirma que Freud “lia e relia em especial Shakespeare . . . estando sempre pronto a fazer uma citação pertinente extraída de suas peças. Admirava seu extraordinário poder de expressão e, ainda mais, sua ampla compreensão da natureza humana” (pp. 34-35). Tavares (2007) assinala a importância de Shakespeare para Freud e diz que, além do Bardo, somente Goethe exerceu tamanha influência no psicanalista.
Citações e referências a diversas obras dramatúrgicas shakespearianas são recorrentes em Freud, mesmo quando essas peças, tais como Ricardo III, Rei Lear, Sonho de uma noite de verão, Henrique IV, não constituem o assunto principal do escrito freudiano. Entretanto, além dessas ocorrências, há momentos em que Freud se detém de modo mais detalhado em peças específicas e em suas personagens, para, com o auxílio delas, poder investigar determinados temas - isso ocorre com Macbeth e Hamlet.
Os personagens da tragédia Macbeth são analisados no texto Os que fracassam no triunfo, que é a segunda parte de um escrito maior intitulado Alguns tipos de caráter encontrados na prática psicanalítica (1916). Em tal trabalho, Freud (1916/2015) discorre acerca dos indivíduos que adoecem quando atingem o êxito, ou seja, ocasiões em que “o adoecimento apareceu pela realização de um desejo, tornando nulo o seu gozo” (p. 235).
Para tratar dessa questão, Freud (1916/2015) se valerá, dentre outros casos, da personagem de Lady Macbeth para comentar sobre circunstâncias em que “as pessoas oportunamente adoecem quando um desejo profundamente enraizado e por muito tempo nutrido por elas se realiza” (pp. 233-234). Esse tipo de situação pode ser observada em Lady Macbeth que, ao alcançar a ambição de se tornar rainha, após o assassinato do rei da Escócia, gradativamente cede ao processo que a enlouquecerá.
Com esse estudo de Freud, podemos refletir que em Macbeth nos deparamos com as consequências da realização do ato almejado. Macbeth matará Duncan logo na primeira cena do segundo ato, e, embora o protagonista reflita e hesite, ele o executará uma vez que é instigado e estimulado por Lady Macbeth.
Importante ressaltar que o encontro de Macbeth com as bruxas no início da peça não institui nenhuma imposição, mas flerta com uma ambição já existente, afinal, “As bruxas nada acrescentam àquilo que já está na mente de Macbeth” (Bloom, 2000, p. 650). Quando elas profetizam que ele se tornará rei, não há qualquer menção a assassinato: “As bruxas, aliás, em momento algum sugerem que Macbeth mate o rei, ou que isso fosse necessário para que Macbeth chegasse a usar a coroa” (Bloom, 2000, p. 658). É o próprio casal quem escolhe o caminho da usurpação para chegar ao trono, não há nenhum desígnio do sobrenatural que os obrigue a agirem assim.
Tardiamente, na penúltima cena da peça, Macbeth reconhece que foi ele quem interpretou as palavras das bruxas de acordo com suas próprias esperanças, que deram curso às suas ações: “Não creia mais ninguém em falsas bruxas, / Que nos enganam com sentidos duplos. Cada palavra é dada ao nosso ouvido, / Mas traída se agimos com esperança” (Shakespeare, 1606/2016, p. 751). Isso expõe um dos aspectos das tragédias shakespearianas: “as calamidades da tragédia não sobrevêm, pura e simplesmente, e tampouco são enviadas; decorrem, precipuamente, de atos, e atos humanos” (Bradley, 1904/2009, p. 8)
Na última cena do primeiro ato, Macbeth hesita momentaneamente no plano de assassinar o rei da Escócia, mas muda de ideia após dialogar com sua esposa. Porém, isso não equivale a dizer que ele seja uma marionete manejada ao bel prazer de Lady Macbeth, afinal, como nos lembra Heliodora (2016): “não há herói trágico shakespeariano que não seja integral e exclusivamente responsável por seus atos” (p. 658). O sangrento ato do casal Macbeth é planejado e calculado, não se trata de uma ação impulsiva.
Freud (1916/2015) aponta que há apenas um único momento de relutância por parte de Lady Macbeth. Isso ocorre no ato 2 cena 2, quando ela diz que o que a impede de apunhalar Duncan é o fato de que, ao dormir, o rei se parecer com seu pai. “Se ele, dormindo, não parecesse / Com meu pai, eu o faria eu mesma” (Shakespeare, 1606/2016, p. 684). Essa é a mesma personagem que, algumas cenas atrás, tinha declarado que: “Eu já amamentei, / E sei o quanto é doce o sugar do neném; / Mas poderia, enquanto me sorria, / Roubar-lhe o seio da gengiva mole / E arrebentar-lhe o cérebro, se houvesse / Jurado que o faria” (Shakespeare, 1606/2016, p. 679). Para Lady Macbeth, o infanticídio é algo mais executável do que assassinar o rei que se assemelha ao seu pai.
Bloom (2000) lembra que o rei da Escócia também tinha o valor de figura paterna para Macbeth, caracterizando Duncan como “um homem que é, ao mesmo tempo, primo, convidado, rei e, simbolicamente, pai de Macbeth” (p. 649). Tal laço afetivo leva Freud (1916/2015) a concluir que “a morte do bondoso Duncan nada mais é do que um parricídio” (p. 240).
Após o casal chegar ao trono com esse ato que, na visão de Freud (1916/2015), é quase equivalente a um parricídio, observa-se um caminho inusitado na obra trágica shakespeariana: “A partir do assassinato de Duncan é que Macbeth envereda pelo caminho que a distingue de todas as outras tragédias, ou seja, o da observação das consequências do crime para a experiência de vida do criminoso” (Heliodora, 2016, p. 658). Nunca veremos o casal regozijando a fruição de terem conquistado o trono. Pelo contrário, ao desenrolar da trama Lady Macbeth vai enlouquecendo e seu esposo vai se tornando cada vez mais sanguinário.
Usufruir dos ganhos da usurpação não é algo possível para Macbeth e sua esposa, pois o peso de sua conquista incide sobre eles. Freud (1916/2015), detendo-se em especial em Lady Macbeth, se indagará sobre essa atitude, questionando: “deveríamos investigar indícios que nos aproximaria desta crise por meio de uma profunda motivação humana?” (p. 267).
O prosseguimento do raciocínio do texto freudiano leva a concluir que tal colapso de Lady Macbeth tem relação direta com o complexo de Édipo: “as forças conscientes, que se deixam adoecer devido ao êxito em vez de, como antes, na renúncia, estão intimamente relacionadas com o complexo de Édipo, com as relações com o pai e a mãe, como talvez, em geral, nossa consciência de culpa” (Freud, 1916/2015, p. 253). Na leitura de Freud as repercussões do ato que concretizou a ambição do casal Macbeth estão ligadas a questões edípicas decorrentes do assassinato da figura paterna simbolizada por Duncan.
Se em Macbeth acompanhamos personagens que sucumbiram após alcançar uma ambição através da execução de um ato, em Hamlet vemos um protagonista a quem uma tarefa foi imposta, mas que não consegue executá-la. Em Personagens psicopáticos no palco, escrito entre 1905 e 1906, mas publicado postumamente em 1942, Freud (1942[1905-1906]/2015) diz que Hamlet é o primeiro drama moderno. Ele denomina esse tipo de drama de psicológico, e assim o caracteriza, pois “na vida anímica do próprio herói o sofrimento acontece numa luta criada entre diferentes moções, uma luta que não deve terminar com o declínio do herói, mas o declínio de um afeto” (Freud, 1942[1905-1906]/2015, p. 49).
Na obra dramatúrgica de Shakespeare, Hamlet é uma tragédia que se destaca. De acordo com Bloom (2000), o protagonista homônimo está para outros personagens assim como Shakespeare está para outros autores, isto é, trata-se de uma personalidade única e diferenciada por sua grandeza cognitiva e estética. Um dos fatores que demarcam essa diferenciação é a profundidade reflexiva do protagonista, que descortina uma nova forma de expressão do ser humano na ficção (Bloom, 2000). Com Hamlet, estamos diante de “um personagem dramático que se transforma cada vez que fala, mas que, ao mesmo tempo, preserva a sua identidade” (Bloom, 2000, p. 515). Bloom (2000) ressalta que Hamlet escuta a si mesmo, e isso não é algo que o deixa imutável, pois essa forma de falar e se ouvir, permite a ele refletir e a partir disso, se transformar diante desse contato que estabelece consigo mesmo.
Hamlet pondera sobre a missão que lhe foi incumbida pela aparição fantasmagórica de seu pai, isto é, vingar o seu assassinato que foi cometido por Cláudio, seu tio. Contudo, mesmo tendo o dever de realizar a vingança, não a executa. Procrastina e reflete sobre esse dever, e, apesar de ter oportunidade para realizar tal tarefa, ele não o faz. Fica ponderando sobre sua missão e sobre sua inação, e por causa disso se culpa e se recrimina.
A incapacidade de Hamlet em executar a vingança é algo que desperta a curiosidade de críticos, literatos, psicanalistas, leitores e plateias no geral. Freud (1900/2019) situa a inação em realizar o ato como o ponto central da tragédia: “a peça é construída sobre a hesitação de Hamlet em realizar a tarefa da vingança; o texto não diz quais são as razões ou motivações dessa hesitação” (p. 306).
As autocensuras de Hamlet e o fato de ele não conseguir agir serão interpretados por Freud (1900/2019) a partir do complexo de Édipo: “Hamlet pode fazer qualquer coisa, menos se vingar daquele homem que afastou seu pai e ocupou seu lugar ao lado de sua mãe, daquele homem que lhe mostra a realização de seus desejos reprimidos da infância” (p. 306). Na perspectiva de Freud (1940/2018), nesse protagonista se desvela uma reedição do conflito edípico: “o príncipe fracassa na tarefa de punir outra pessoa pelo que corresponde ao teor de seus próprios desejos edípicos” (p. 253).
De acordo com a leitura freudiana, Cláudio teria escancarado a questão edípica para Hamlet ao assassinar seu pai e tomar a sua mãe, gerando no príncipe o sentimento de culpa por identificar, nas ações do homem de quem deveria vingar, seus próprios desejos inconscientes: “A repugnância que deveria impeli-lo à vingança é substituída por remorsos, por escrúpulos da consciência, que o acusam, num sentido literal, de não ser melhor do que o pecador que deve ser punido” (Freud, 1900/2019, p. 306).
Tais conclusões de Freud permitem relacionar Hamlet ao mito de Édipo, desse modo, evidenciando sobre o desejo, uma vez que “a origem infantil do desejo é calcada no mito de Édipo” (Quinet, 2019, p. 75). Com Hamlet é possível refletir sobre o desejo como foi teorizado a partir do complexo de Édipo. Contudo, nesse drama isso se realiza em uma perspectiva diferente, pois aquilo que é evidenciado para o personagem grego de Sófocles é recalcado no protagonista shakespeariano: “em Édipo, a fantasia de desejos subjacente na imaginação da criança é trazida à luz e realizada como que num sonho; em Hamlet, ela permanece reprimida” (Freud, 1900/2019, p. 305).
Diante disso, percebe-se um aspecto destacado por Freud nessas tragédias: a relação dos personagens com suas ações, isto é, Hamlet e sua inação, e o casal Macbeth e as consequências do regicídio para eles. Ademais, em HamletFreud (1900/2019) pontua que o príncipe está impossibilitado de agir por remorsos e escrúpulos de consciência ao identificar suas questões edípicas na figura de Cláudio, enquanto Lady Macbeth enlouquece pela culpa de ter assassinado a figura paterna do rei Duncan (Freud, 1916/2015). Com isso é evidenciado que a leitura de Freud ressalta, em Hamlet e em Macbeth, o aspecto da consciência de culpa nos personagens. Além disso, a peça Hamlet, ao expor o complexo de Édipo de um modo recalcado, evidencia uma maneira de Freud se valer de uma obra de arte para embasar um conceito psicanalítico.
Hamlet em Lacan
De acordo com Safatle (2006), a leitura lacaniana de Hamlet ocorre no momento de seu ensino onde se evidencia um regime de recurso psicanalítico à arte ligado a um desvelamento da gramática do desejo. As lições de Lacan sobre essa tragédia se encontram justamente no seminário intitulado O desejo e sua interpretação, exposto entre 1958 e 1959. Importante ressaltar que a leitura efetuada por Lacan não almeja tratar esse protagonista como um estudo de caso: “Hamlet não é um caso clínico” (Lacan, 1959/2016, p. 312). E por isso, ele não se detém em investigar esse personagem buscando nomeá-lo como histérico ou obsessivo.
Lacan (1959/2016) nomeia Hamlet como a tragédia do desejo e frisa que ao iniciar seu estudo, ele tinha como objetivo “dar ou voltar a dar sentido à função do desejo na análise e na interpretação analítica . . . . o que distingue A tragédia de Hamlet . . . é, essencialmente, o fato de ser a tragédia do desejo” (p. 271).
Assim como Freud, Lacan demarca à hesitação de Hamlet um ponto importante. Além de ser a tragédia do desejo, Hamlet é nomeada por Lacan (1959/2016) como a peça da procrastinação. O ato que o príncipe tem a executar é de extrema importância “e toda a sua posição de sujeito depende disso” (Lacan, 1959/2016, p. 267). Porém, saber o que deve fazer não é o suficiente para que Hamlet aja: “todas as vezes que tem oportunidade de executar o ato em questão, ele o adie para mais tarde” (Lacan, 1959/2016, p. 268).
Lacan (1959/2016) questiona acerca desse ato que Hamlet não consegue executar: “A pergunta que se coloca é saber o que significa o ato que lhe é proposto” (p. 268). Além de ser convocado pelo fantasma do pai para que o vingue, Hamlet soma a isso a sua “tendência a querer defender a mãe e guardá-la para si, que devem fazê-lo ir na mesma direção: matar Cláudio” (Lacan, 1959/2016, p. 302). Contudo, apesar dessa dupla motivação, a postergação se mantém. “Como é que duas coisas positivas dariam como resultado: zero? É uma coisa curiosa” (Lacan, 1959/2016, p. 302).
A necessidade de vingar o pai e querer proteger a mãe não é o suficiente para fazer Hamlet urgir em cumprir sua tarefa, embora saiba que deva fazê-lo. A relação desse ato com o desejo é que torna o ato tão difícil de executar: “há algo que torna o ato difícil para Hamlet, que torna sua tarefa repugnante para ele, que o põe efetivamente numa posição problemática com relação a sua própria ação, e esse x é seu desejo” (Lacan, 1959/2016, p. 302).
A psicanálise lacaniana possibilita interpretar a dificuldade de Hamlet em realizar a vingança como decorrente de dois aspectos: “é em decorrência do conhecimento, por parte do pai, em relação à própria morte, assim como do insaciável no desejo da mãe (e não por ela), que Hamlet se encontra impedido de agir” (Vorsatz, 2013, pp. 158-159).
O Espectro aparece no palco nos primeiros minutos da peça, e algumas cenas depois, ele confabula com seu filho, revelando como foi assassinado e urgindo vingança. Na perspectiva lacaniana, é essa transmissão de saber que acarretará no impasse de Hamlet, diferentemente de Édipo que executa suas ações justamente por não saber: “Édipo não tinha de titubear vinte vezes diante do ato, ele o cometera antes mesmo de pensar, e sem saber” (Lacan, 1959/2016, p. 319), Hamlet sabe, pois seu pai lhe transmitiu um saber: “o pai sabia. E, porque ele sabia, Hamlet também sabe” (Lacan, 1959/2016, p. 319).
Uma vez que o espectro revelou a verdade sobre sua morte para seu filho: “Levanta-se um véu, aquele que pesa, justamente, sobre a articulação da linha inconsciente” (Lacan, 1959/2016, pp. 319-320). Agora que tem conhecimento disso, graças ao desvelamento desse véu, Hamlet não pode agir, pois “justamente porque o sujeito não sabe - isto é, o saber inconsciente que comanda é opaco, inassimilável pelo sujeito -, ele é convocado a tomar posição” (Vorsatz, 2013, p. 160). Esse saber já não é mais opaco e Hamlet reluta em se posicionar e agir.
Outro fator para a inação do príncipe seria o desejo da mãe de Hamlet. Isto é: “Esta, ignorando o imprescindível tempo de luto, no qual a bateria significante é convocada a contornar a perda instaurada no real, imediatamente desposa Claudius, irmão e assassino de seu marido” (Vorsatz, 2013, p. 159). Para Lacan (1959/2016), o protagonista se confronta com o desejo de sua mãe, a rainha Gertrudes
aquilo com que Hamlet tem de lidar, e o tempo todo, aquilo com que se debate, é um desejo, mas que está muito longe de ser o seu. Considerando-o ali onde está na peça, é o desejo não por sua mãe, mas de sua mãe. Na verdade, é somente disso que se trata. (p. 303)
Para Lacan (1959/2016), quando Hamlet e Gertrudes travam diálogo, na última cena do terceiro ato, deparamo-nos com o personagem-título confrontando o desejo da mãe, e vemos: “aqui o movimento de oscilação próprio de Hamlet. Ele vocifera, xinga, esconjura e, depois, vem a recaída de seu discurso, um abandono que reside nas próprias palavras, o desaparecimento, desmaio de seu apelo no consentimento ao desejo da mãe” (p. 304). Mas esse é um desejo que não é possível confrontar: “O desejo da mãe recupera, então, para ele, o valor de algo que não poderia de jeito nenhum ser dominado, cerrado, encerrado” (Lacan, 1959/2016, p. 304). Diante disso, percebe-se que, para Lacan (1960/2008), são esses dois fatores que ocasionam a procrastinação da tarefa exigida ao príncipe
Tentei mostrar-lhes que a singular apatia de Hamlet se deve ao móvel da própria ação, que é no mito escolhido que devemos encontrar seus motivos, que é em sua relação com o desejo da mãe e com a ciência do pai referente à própria morte que devemos encontrar sua fonte. (p. 298)
A inação de Hamlet viabiliza uma investigação acerca do desejo, como ressalta Lacan (1959/2016) ao considerar que: “Ele é pura e simplesmente o lugar do desejo” (p. 312). Lacan (1959/2016) ressalta que, independente de estrutura clínica, com Hamlet é possível observar como o mecanismo do desejo atua, pois, essa tragédia permite vislumbrar que nesse protagonista “opera, com todo o seu caráter mais essencialmente problemático, o problema do desejo” (p. 280).
Embora Lacan não elabore um comentário sobre Macbeth, é possível demarcar que, apesar de serem perspectivas diversas, tanto Freud quanto Lacan se debruçam acerca das tragédias shakespearianas, circunscrevendo-as como obras que contêm elementos que interessam à psicanálise. A partir dessas diferentes leituras de peças de Shakespeare, é possível perceber que o papel e a influência da arte e da literatura são distintos no corpo teórico freudiano e no lacaniano.
Considerações finais
O artigo evidenciou a presença da arte e da literatura nas teorias de Freud e Lacan, e ressaltou as distintas formas que a estética se apresenta nos trabalhos de ambos. Em Freud a relevância das obras artísticas se consubstancia na contribuição da literatura como referencial epistemológico e no auxílio à formulação de conceitos teóricos psicanalíticos, como é o caso da relação de Hamlet com o complexo de Édipo. Já no ensino de Lacan, as obras de arte podem auxiliar na explanação acerca do desejo, tornando possível pensar sobre os modos de subjetivação, a partir da reflexão estética (Safatle, 2006).
A distinção entre os dois psicanalistas fica mais evidente ao se comparar a leitura realizada por ambos de um mesmo autor e sua obra, como foi observado através dos seus respectivos estudos sobre duas tragédias de Shakespeare, Hamlet e Macbeth, peças as quais possuem convergências, de acordo com teóricos literários, e que se evidenciam por serem justamente os dois dramas shakespearianos que auxiliam Freud a refletir sobre temáticas de interesse da investigação psicanalítica.
Nota-se que na obra de Freud, aspectos tanto de Hamlet quanto de Macbeth são interpretados a partir do complexo de Édipo, o que evidencia a relevância de uma obra de arte para fundamentar um conceito psicanalítico, como foi possível perceber a partir da sua leitura da tragédia do príncipe da Dinamarca, ao expor o complexo de Édipo de um modo recalcado no protagonista. Lacan, por sua vez, também se debruça na tragédia de Hamlet, tomando esse personagem como fundamental para compreender o desejo, evidenciando a importância da dramaturgia e da literatura para a elaboração de um constructo teórico psicanalítico no ensino desse psicanalista.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Mar 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
04 Abr 2023 -
Aceito
16 Maio 2023