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O Percurso de uma Nova Área de Pesquisa na UFSC

O PERCURSO DE UMA NOVA ÁREA DE PESQUISA NA UFSCAR 1 1 Apresentado no Simpósio "Carolina M. Bori: a Psicologia brasileira como missão" , realizado durante a XXIV Reunião Anual de Psicologia - SBP, Ribeirão Preto, SP, 1994.

Deisy das Graças de Souza

Centro de Educação e Ciências Humanas

Universidade Federal de São Carlos

A segunda metade da década de 70 foi um período de intensas atividades e inovações no Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos. Foi o período de liderança da Doutora Carolina Bori na função de Diretora daquele Centro. Com permissão da Universidade de São Paulo para colaborar com a UFSCar, a Professora Carolina passava dois ou três dias por semana na UFSCar. Eram dias intensos, longos e produtivos para todo do Centro. O "clima" mudava quando Carolina estava presente. As pessoas que viveram naquele cenário certamente se lembram da efervescência que se disseminava por todo o ambiente, a começar pelos corredores de entrada... Eram os efeitos da presença dinâmica de Carolina. Todos queriam vê-la, falar com ela, dar notícias do que estavam fazendo ou do que planejavam fazer, solicitar sugestões e assessorias. Ela não falava muito; não fornecia respostas prontas nem simples, não dava ordens, não cobrava (nem precisava). Mas formulava muitas perguntas, sempre. Perguntas curtas, às vezes; desconcertantes outras; e sempre instigantes e exigentes. Uma delas foi sobre a vocação do CECH: "O que está fazendo este Centro de Educação? Que rumos pretende tomar? Que contribuições pode dar à Educação Brasileira? Que soluções será capaz de apontar? Para que tipos de problemas?" Perguntas como estas resultaram na constituição de vários grupos de estudo, com a finalidade de caracterizar problemas que poderiam ser alvo da atuação do Centro, pensar alternativas de solução e propor estratégias para alcançá-las. Nesse contexto, foram conduzidas acaloradas discussões e desenvolvido um intenso trabalho de estudo e reformulação do Curso de Pedagogia, que naquela época era o único Curso de Graduação na área de Ciências Humanas da UFSCar. O mesmo ocorreu com as Licenciaturas. As discussões, que envolveram praticamente todo o Centro, tiveram a liderança de Carolina que, entre outras coisas, levou aquele grupo a sonhar os sonhos de Anísio Teixeira para a formação de professores em nível superior.

Na procura de alternativas para o Curso de Pedagogia, que representassem uma possibilidade de solução para problemas educacionais relevantes, um dos grupos de estudo focalizou as estatísticas sobre a população de deficientes do país e as carências de atendimento de todo o tipo, entre elas, as educacionais. Aquela era a época de florescimento das habilitações em Educação Especial nos cursos de Pedagogia, decorrente da institucionalização, no Estado de São Paulo, de um sistema de Educação Especial (Bueno, 1993). Esta iniciativa do governo estadual ocasionou a implantação quase que explosiva de habilitações em Educação Especial nos cursos de graduação em Pedagogia, sem que se contasse, para isto, com corpo docente qualificado. Não foi difícil descobrir também que esta era uma área em que a produção de conhecimentos era quase inexistente no país. Havia, assim, uma necessidade urgente, detectada com muita clareza: a de formação de pesquisadores e de pessoal de alto nível em condições de atuar junto a instituições e a programas de formação e aperfeiçoamento de pessoal para lidar com o indivíduo especial (de Rose, 1990; Souza, Guidi, Prado & Prado, 1981).

Estudos realizados naquela oportunidade evidenciaram essa carência não apenas em nível regional, mas no plano nacional. Apontava-se a existência de uma grande população com necessidades especiais, quase completamente desassistida, devido à falta de pessoal qualificado e à ausência ou deficiência de programas educacionais voltados para suas necessidades. Paralelamente, a pesquisa na área era incipiente: o número de pesquisadores era extremamente reduzido e os pesquisadores ativos atuavam isoladamente, na falta de políticas instituicionais para o desenvolvimento de um trabalho integrado de pesquisa e de formação de recursos humanos. Os cursos de graduação então existentes não vinham conseguindo, de um modo geral, formar profissionais em condições de atender às exigências de trabalho na área. Ao que tudo indicava, havia um círculo vicioso, onde a carência de recursos humanos impedia a própria implementação de programas eficazes de formação profissional.

Mesmo com esta caracterização da situação, o grupo de estudos aventava a possibilidade de implantar uma habilitação em Educação Especial no Curso de Graduação em Pedagogia. Diante de tal proposta, a pergunta de Carolina foi mais ou menos esta: "Este Centro vai fazer mais um Curso de Graduação nesta área, o‘ enésimo’ do Estado, sem recursos qualificados para dar conta de uma tarefa tão exigente?" Ela estava, uma vez mais, usando a estratégia de nos ensinar a, primeiro, qualificar um problema e só então buscar soluções, contra a prática usual - que estávamos exercendo novamente, de dar soluções sem ter clareza sobre qual o problema e, portanto, sobre que resultados buscar...

Sob supervisão de Carolina e da assessoria que ela convidou para discutir com o grupo local (entre as quais o Professor Isaías Pessotti, da Universidade de São Paulo e o Professor Larry Williams, da Manitoba University no Canadá, que viriam a ter um papel central no futuro dos trabalhos), pareceu que uma solução mais apropriada para o problema seria a formação, o mais rápida possível, de pessoal para iniciar e nuclear a produção de conhecimento científico, que viesse embasar a tomada de decisões em diferentes níveis e sobre diferentes aspectos do problema. Para isto, uma estratégia que poderia se qualificar como promissora, para romper o mencionado círculo vicioso, seria a formação de pós-graduandos para atuar em pesquisa e no ensino em nível superior, em virtude do efeito potencialmente multiplicador de sua atuação e da rapidez com que esse efeito poderia começar a ser obtido. Estaríamos, assim, formando professores para ensinar naqueles cursos já implantados e para iniciar uma tradição de pesquisa na área. A possibilidade residia na perspectiva de se iniciar tal formação não com base em conhecimento acumulado, que seria "transmitido" ou copiado, mas fazendo o aprendiz começar a fazer perguntas para a realidade, a buscar os dados e a pensar sobre eles e a partir deles. Esta constatação serviu de base para a implantação do Programa de Mestrado em Educação Especial, em 1978, e para a proposição de seus objetivos, que vêm sendo mantidos desde então: os de formar profissionais para a pesquisa e a docência em nível superior e para a implantação e orientação de programas e serviços na área de Educação Especial.

Este programa de pós-graduação foi concebido, assim, de uma maneira diferente da usual: não porque houvesse docentes qualificados e disponíveis na instituição, que esses não existiam - nem no Centro, nem no país -, mas para solucionar um problema. Não havia na instituição um núcleo com tradição de pesquisa e ensino de graduação na área, com disposição para ampliar seu nível de atuação, dando um passo "natural" na evolução acadêmica. Além disso, faltavam recursos humanos com a qualificação que permitisse, de imediato, a formação de pessoal no nível considerado apropriado e necessário. Os recursos tiveram que ser buscados, quer na colaboração de colegas de outras instituições e até do exterior, quer no redirecionamento de interesses e de pesquisas de docentes do Centro.

Exatamente por se dedicar a uma área de extrema carência de recursos humanos no país, e cujos limites estão além da Psicologia e da Educação, o Programa enfrentou muitas dificuldades para sua implementação e consolidação, mas a meta de institucionalizar um centro de produção ativa e sistemática de conhecimento, como um ambiente propício para a formação de pessoal em Educação Especial, tem sustentado os esforços para superar as dificuldades.

Os professores que assumiram o projeto do curso, pesquisadores em Psicologia, Filosofia e Educação, dispuseram-se a fazer e a supervisionar pesquisa na área, como essência da estratégia da formação dos novos mestres. Docentes da área de Psicologia redirecionaram suas linhas de pesquisa, passando a atuar em campos relacionados à deficiência mental ou à problemática mais geral do atendimento a necessidades especiais. Intercâmbios sistemáticos foram estabelecidos e mantidos com pesquisadores e instituições do exterior que fazem trabalho de ponta em Educação Especial e que estudam deficiências de vários tipos. O Centro de Educação e Ciências Humanas apoiou este esforço, promovendo a capacitação de professores no exterior - em nível de doutorado e pós-doutorado - em Educação Especial e áreas correlatas. Algumas das contratações que o Centro pôde efetuar foram direcionadas para recrutamento de pesquisadores com maior proximidade à área. Mais recentemente, vários egressos do Programa foram contratados por diferentes departamentos da UFSCar, passando a colaborar com esta pós-graduação. Professores titulados de outras áreas da própria Universidade vieram se incorporar ao corpo docente e contribuir para uma diversificação na orientação em relação a problemas que requerem visão e competências de múltiplas áreas de conhecimento. A parceria com o Programa de Pós-Graduação em Educação tem sido extremamente importante para uma discussão do papel da Educação Especial no contexto e no cenário da Educação Brasileira. E a colaboração de docentes de instituições da região veio complementar a atuação dos docentes da própria Universidade. Assim, o Programa tem lutado para conferir um maior equilíbrio interdisciplinar ao seu corpo docente e à sua produção científica, tendo obtido um relativo sucesso nessa direção.

A estrutura curricular do Programa - concebida inicialmente por Carolina Bori, Isaías Pessotti e Larry Williams -, visa garantir ao aluno uma formação sólida, que o capacite a dominar tanto os conteúdos essenciais, quanto a instrumentação para o trabalho de investigação e intervenção. A organização curricular atual, resultado de um minucioso trabalho de reorganização do programa coordenado pelo Professor Júlio de Rose no início desta década, inclui cinco disciplinas obrigatórias às quais o aluno deve acrescentar, por sua própria escolha, e em função de seu problema de dissertação, mais quatro ou cinco, dentre um rol de ofertas de disciplinas de nível avançado e de natureza complementar. Entre as disciplinas obrigatórias, duas constituem os chamados Seminários de Pesquisa, que também trazem a marca das concepções de Carolina sobre condições necessárias para a formação do pesquisador. Uma terceira disciplina trabalha a formação do educador, com ênfase na Análise e Programação de Condições de Ensino.

As atividades de investigação, por sua vez, são direcionadas no contexto de cinco linhas de pesquisa que norteiam a produção científica dos grupos de pesquisa atualmente envolvidos com o Programa. No quadro atual, há muitos pontos de convergência nos trabalhos dos pesquisadores que compõem o Programa. As metas de investigação focalizam, por um lado, os processos básicos, em suas múltiplas dimensões (biológicas, psicológicas, sociais), e por outro lado, a proposição e avaliação de intervenções educacionais, comportamentais e de saúde, para a prevenção de deficiências e para o desenvolvimento integral do indivíduo com necessidades especiais.

As diretrizes estabelecidas para lidar com seriedade com o problema da produção de conhecimento e formação de pessoal em uma área carente de recursos humanos, assim como o gradual aprimoramento de sua estrutura curricular e organizacional, estão permitindo ao Programa de Pós-Graduação em Educação Especial apresentar, em sua fase atual, um saldo bastante positivo. Superadas muitas das dificuldades dos últimos anos, o Programa ostenta hoje uma relação de aproximadamente 170 dissertações defendidas (ao longo de 19 anos) e cerca de 50 trabalhos de pesquisa em desenvolvimento. O conjunto de dissertações, juntamente com os trabalhos de autoria de membros do corpo docente, constituem uma parcela bastante expressiva da produção brasileira nesta área. Comparada com a produção da década passada, o volume de hoje representa uma contribuição significativa e de impacto. Mas quando se confronta o conhecimento produzido com as necessidades da área, constata-se que, apesar da tendência promissora, a produção ainda está muito aquém do nível e do montante de conhecimento requerido para embasar e promover as mudanças necessárias na realidade nacional na área de Educação Especial. A esperança de superação dessa situação está no potencial de trabalho dos pesquisadores que forem sendo formados e se somarem àqueles já qualificados, seja por este programa, seja por outras instâncias formativas. É na existência de recursos humanos preparados, científica e conceitualmente, para identificar as armadilhas de concepções e procedimentos equivocados, que reside a possibilidade de alterar a realidade da Educação Especial no país.

Os objetivos iniciais do Programa, de qualificar pessoal para atuar nos cursos de graduação que habilitam professores de educação especial, bem como nas instituições de ensino especial, parecem estar sendo sistematicamente atingidos, quando se considera a situação ocupacional dos egressos. De mais de 170 mestres qualificados até maio de 1997, aproximadamente setenta por cento estão profissionalmente envolvidos com o ensino na área, constituindo núcleos efetivos de ensino e de produção de conhecimento em Educação Especial, em instituições de ensino superior. O mais importante é constatar que vários deles não estão atuando sozinhos, mas vieram a constituir grupos ativos na produção científica e na formação sistemática de pessoal na área. Basta considerar, por exemplo, a situação nas instituições do Estado de São Paulo que mantém cursos de graduação em Educação Especial: UNESP de Marília, UNESP de Araraquara, UNESP de Bauru e o Hospital de Reabilitação de Bauru - USP, UNIMEP de Piracicaba, UNICAMP, USP-SP e USP-RP. Na própria UFSCar, nossos ex-alunos colaboram em vários departamentos: Psicologia, Educação, Fisioterapia, Enfermagem e Terapia Ocupacional. Finalmente, nossos ex-alunos também colaboram em várias universidades em outro estados: UFBa, UFAc, UFES, UFMS, UFPa, UFPb, UFPi, UFPr, UFU e UnB. Mais de 30 dos egressos já concluíram o doutorado e 27 estão cursando programas nesse nível, em diferentes universidades no Brasil e no exterior. Carolina tem orientado alguns deles.

Além da formação de alunos e da produção de pesquisa, o Programa tem oferecido também uma contribuição para o desenvolvimento dos serviços de Educação Especial na cidade de São Carlos e na região em que se insere.

Docentes do Programa atuaram ou vêm atuando em projetos de interesse para a comunidade, tais como a organização e supervisão de classes especiais para portadores de deficiência auditiva e visual na rede municipal; consultoria a equipes técnicas e corpo docente de escolas da APAE da região; orientação e supervisão de trabalho docente em escolas de primeiro grau e em pré-escolas; orientação a mães visando a prevenção de atraso no desenvolvimento de seus bebês; orientação a atendentes de creches; atendimento a alunos de escolas da periferia da cidade que apresentam dificuldades de alfabetização, entre outros.

Acrescente-se a estas iniciativas o esforço do programa em promover regularmente um evento científico, o Ciclo de Estudos sobre Deficiência Mental, fórum privilegiado para a discussão dos problemas e da pesquisa que vem sendo realizada na área. A repercussão desses eventos pode ser avaliada também pela divulgação escrita dos trabalhos apresentados nos Ciclos, publicados como trabalhos completos, com revisão por pares. Intitulada Temas em Educação Especial, esta publicação passou a constituir referência indispensável na área.

Os problemas que deram origem à proposta deste curso de pós-graduação têm dimensões que continuam requerendo o investimento intensivo e sistemático para formar um corpo significativo de recursos de alto nível e para consolidar, no país, tradição de pesquisa e condições institucionais para lidar com questões de relevância para populações que requerem condições especiais, entre elas, o ensino especial. A profunda sensibilidade de Carolina criou essa direção e vem contribuído sistematicamente para a definição dos novos rumos que o Programa vem procurando encontrar, na contínua busca por seus objetivos. Mesmo fora do cargo e do local, Carolina continuou a acompanhar esse Programa e a assessorar docentes e coordenadores que recorressem à sua ajuda.

Embora uma ação mais direta de Carolina estivesse na origem e nas fases iniciais de implantação do Programa, a razão pela qual descrevi seu desenvolvimento ao longo do tempo, é que esta parece ser uma demonstração riquíssima de como os efeitos da atuação de uma pessoa, quando estabelece estratégias, podem se disseminar e se estender no espaço e no tempo. Carolina disse, recentemente, que o que ela fez ou faz é fruto das circunstâncias que ela viveu; mas ela não pode negar que aquilo que ela faz cria e constitui circunstâncias e condições para o que outras pessoas fazem. Nunca deixo de me impressionar e de me emocionar com o poder gerador de novas ações que reside no que Carolina faz e diz. No horizonte do Programa está agora a perspectiva de avançar para o nível de doutorado, e mais uma vez, o caráter mais inovador e as proposições mais exigentes que este projeto contém vieram de Carolina.

É muito bom poder concluir esta apresentação dizendo que as contribuições de Carolina para o desenvolvimento científico desta área - uma efetiva contribuição da Psicologia para a Educação - não terminaram: estão em processo, já lançaram sólidas bases no passado, sustentam o presente e deverão criar um futuro novo....

  • BUENO, J.G.S. Educaçăo especial brasileira: integraçăo/segregaçăo do aluno diferente Săo Paulo, EDUC, 1993.
  • DE ROSE, J.C. Programa de Pós-Graduaçăo em Educaçăo Especial: solicitaçăo de renovaçăo de credenciamento Săo Carlos, Universidade Federal de Săo Carlos, 1990. Documento submetido aos colegiados superiores da UFSCar, ŕ CAPES e ao CFE.
  • SOUZA, D.G.; GUIDI, M.A.A.; PRADO, L.E.S.; PRADO, B. Programa de Mestrado em Educaçăo Especial: organizaçăo e perspectivas Săo Carlos, Universidade Federal de Săo Carlos, 1981.
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    Apresentado no Simpósio "Carolina M. Bori: a Psicologia brasileira como missão"
    , realizado durante a XXIV Reunião Anual de Psicologia - SBP, Ribeirão Preto, SP, 1994.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Nov 1998
    • Data do Fascículo
      1998
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