Resumo
A psicologia do ego é reconhecida como uma releitura norte-americana da psicanálise, e teve Ernst Kris - que foi próximo de Freud - como um de seus fundadores. Apesar deste autor utilizar-se de textos freudianos para firmar os fundamentos de sua teoria, sustenta-se que a psicologia do ego mais se distancia do que se aproxima da obra de Freud. Este estudo visa demonstrar de que forma isso ocorre. Para isso, situa-se brevemente quem foi Ernst Kris e quais são as críticas já existentes à psicologia do ego. Num segundo momento, analisa-se o artigo “Ego Psychology and Interpretation in Psychoanalytic Therapy”, de Kris, em confronto com a teoria de Freud. Por último, expõe-se a crítica de Lacan. Destaca-se que a crítica lacaniana remete a questões referentes à ética da psicanálise e ao lugar do analista na direção do tratamento.
Palavras-chave: psicologia do ego; Ernst Kris; psicanálise; Freud; Lacan
Abstract
Ego Psychology is a North-American re-reading of psychoanalysis and had Ernst Kris - a man who was close to Freud - as one of its founders. Despite using Freudian texts to establish its foundations, Ego Psychology distances itself from Freud’s psychoanalysis. This study demonstrates how this occurs by briefly discussing who Ernst Kris was and the existing criticisms of Ego Psychology. Secondly, it analyzes Ernst Kris’s article “Ego Psychology and Interpretation in Psychoanalytic Therapy” against Freud’s theory, to finally present Lacan’s critique, which refers to issues related to the ethics of psychoanalysis and the analyst’s role in directing treatment.
Keywords: ego psychology; Ernst Kris; psychoanalysis; Freud; Lacan
Resumen
La Psicología del Yo se considera como una relectura estadounidense del psicoanálisis y tuvo a Ernst Kris -quien era cercano a Freud- como uno de sus fundadores. A pesar de que Ernst Kris utiliza textos freudianos para establecer los fundamentos de su teoría, se sostiene que la Psicología del Yo se aleja más de la obra de Freud que se acerca a ella. Este estudio tiene como objetivo demostrar cómo ocurre esto. Para ello, se sitúa brevemente quién es Ernst Kris y cuáles son las críticas ya existentes a la Psicología del Yo. En segundo lugar, se analiza el artículo “Ego Psychology and interpretation in psychoanalytic therapy”, de Ernst Kris, en confrontación con la teoría de Freud. Y, por último, se expone la crítica de Lacan. Se destaca que la crítica lacaniana remite a cuestiones relacionadas con la ética del psicoanálisis y el lugar del analista en la dirección del tratamiento.
Palabras clave: psicología del yo; Ernst Kris; psicoanálisis; Freud; Lacan
Résumé
La psychologie de l’égo est une relecture nord-américaine de la psychanalyse dont Ernst Kris, un homme proche de Freud, est l’un des fondateurs. Bien qu’elle utilise des textes freudiens pour établir ses fondements, la psychologie de l’égo s’éloigne de la pensée freudienne. Pour démontrer cet écart, cette étude aborde la figure de Ernst Kris et des critiques existantes à l’égard de la psychologie de l’égo. Ensuite, elle analyse l’article « Ego Psychology and interpretation in psychoanalytic therapy » par rapport à la théorie de Freud, pour enfin présenter la critique de Lacan, qui se réfère à des questions liées à l’éthique de la psychanalyse et au rôle de l’analyste dans la direction du traitement.
Mots-clés: psychologie de l’ego; Ernst Kris; psychanalyse; Freud; Lacan
Introdução
Foram muitos os teóricos que partiram da obra freudiana para fundar suas próprias teorias e, mais do que isso, pretenderam que suas teses fossem reconhecidas como pertencentes ao campo da psicanálise freudiana. A ego psychology, traduzida por psicologia do ego, é uma delas. Os discípulos e dissidentes de Freud criticaram uns aos outros em diversas obras, cuja apreciação deixamos ao leitor. Aqui, trataremos de uma crítica específica: a dirigida à psicologia do ego a partir da teoria lacaniana. Lacan fundamentou sua crítica a partir do artigo “Ego Psychology and Interpretation in Psychoanalytic Therapy”, de Ernst Kris, um dos fundadores da vertente. É neste artigo que Kris traz o caso conhecido como “o homem dos miolos frescos” e, quanto a isso, a crítica de Lacan (1963) é notória: na situação analítica de Kris e seu paciente, existe uma “transferência sem análise”: o acting-out (p. 140). Para além disto, este também é o texto em que Kris trata dos fundamentos de sua teoria a partir de textos freudianos. Dessa forma, pretendemos demonstrar, à luz da teoria lacaniana, como a psicologia do ego mais se distancia que se aproxima da psicanálise de Freud. Para tanto, situamos brevemente quem é Ernst Kris e quais são as críticas já existentes à psicologia do ego. Num segundo momento, analisamos o artigo de Kris em confronto com a obra freudiana e, por último, expomos a crítica de Lacan.
Este trabalho contribui para a história do movimento analítico, uma vez que aborda a problemática relativa às diferentes interpretações da obra de Freud. Além disso, contribui para a discussão em torno da prática clínica do analista, visto que a crítica em questão está relacionada à ética da psicanálise e à função do analista na direção do tratamento. Por fim, amplia a discussão em torno do famoso artigo de Ernst Kris, “Ego Psychology and Interpretation in Psychoanalytic Therapy”, abordado por Lacan em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (1958/1998).
As críticas à psicologia do ego
A psicologia do ego é considerada uma das grandes correntes do freudismo norte-americano. Foi fundada em 1939 em Nova York e é, até os dias atuais, vista como a principal componente da New York Psychoanalytic Society, renomada escola psicanalítica da Cidade Império (Roudinesco & Plon, 1998). Além de Ernst Kris, fizeram parte de sua fundação Heinz Hartmann e Rudolph Loewenstein. Kris chegou a ser muito próximo de Freud, como demonstra o fato de este ter lhe confidenciado a leitura de O homem Moisés e a religião monoteísta antes de sua publicação. Antes de estabelecer-se em Nova York, Kris acompanhou Freud em seu refúgio a Londres e, na década de 1950, foi publicamente reconhecido por Anna Freud, que o autorizou a editar, juntamente com Marie Bonaparte, os escritos inéditos de Freud a Wilhelm Fliess, publicados sob o título A origem da psicanálise (Adam, 1985).
A relevância de Kris é evidente e, apesar de seu nome e sua teoria estarem sempre ao lado da palavra “psicanálise”, ele se distanciou muito da construção freudiana, tendo sido criticado não só por Lacan, mas também por Heinz Kohut e Donald Winnicott, que estavam no interior da própria International Psychoanalytic Association (IPA) (Roudinesco & Plon, 1998).
O freudismo norte-americano “rejeitou a teoria freudiana da pulsão de morte, atribuindo à agressividade e à libido um papel essencial no desenvolvimento da personalidade, ambas devendo se pôr a serviço da adaptação” (Kaufmann, 1996, p. 763) e, de acordo com Roudinesco e Plon (1998),
É quase sempre perpassado por uma religião da felicidade e da saúde, contrária tanto à concepção vienense do mal-estar da Kultur quanto ao recentramento kleiniano do sujeito numa pura realidade psíquica, ou à visão lacaniana do freudismo como uma peste subversiva (p. 170).
No que diz respeito às instâncias psíquicas, os teóricos da psicologia do ego privilegiam o ego em detrimento do id. Dessa forma, “se opõe à pretensa decadência da velha Europa uma ética pragmática do homem, fundamentada na noção de profilaxia social ou de higiene mental” (Roudinesco & Plon, 1998, p. 170), o que deu margem para a generalização de uma psicanálise que se aproxima da psiquiatria e, com efeito, se distancia da psicanálise (Roudinesco & Plon, 1998).
Além da psicologia do ego contornar a pulsão de morte, também torna a centrar o inconsciente no pré-consciente. Modifica o conceito de transferência, pois postula que o analista deve ocupar o lugar do ego forte com o qual o paciente deve se identificar a fim de conquistar a autonomia do ego. Ao aproximar-se do annafreudismo, privilegia a análise das resistências em detrimento do que chamam de a interpretação dos conteúdos (Roudinesco & Plon, 1998).
Em síntese, essas são algumas das críticas já existentes à psicologia do ego. São acusados, em última instância, de levarem em conta apenas a segunda tópica freudiana e, consequentemente, de terem colocado a noção de ego consciente como conceito fundamental - o que, aliás, está em descompasso tanto com a primeira quanto com a segunda tópica (Baratto, 2003).
De acordo com Laplanche e Pontalis (2000), a descoberta freudiana pode, incontestavelmente, ser concentrada na palavra “inconsciente”. Assim, uma teoria cujo conceito fundamental é o ego consciente (Baratto, 2003), considerado o órgão especial de adaptação do homem (Baratto, 2003), parece mais se distanciar da psicanálise que se aproximar dela.
É bem verdade que, na conferência 31, Freud (1980/1933, citado em Baratto, 2003) diz que devemos fortalecer o ego para domar as paixões do id. Contudo, ele nunca fala em uma supremacia do ego em relação às outras instâncias psíquicas. Também veremos como o conceito de ego da vertente norte-americana se distancia do de Freud. Ademais, aprendemos com Lacan que o conceito de inconsciente dá lugar à noção de divisão psíquica e indica que não há centro ordenador no psíquico (Baratto, 2003). Sustentamos que toda releitura apresenta recortes, porém, a realizada pelos analistas do ego deixou de fora justamente o que existe de fundamental e revolucionário na teoria freudiana, e é propriamente elencada por Lacan como um desvio de Freud.
A psicologia do ego por Ernst Kris em confronto com os artigos técnicos freudianos
Em “Ego Psychology and Interpretation in Psychoanalytic Therapy”, Ernst Kris (1951) discorre sobre sua psicologia e defende que esta não só “ampliou extensivamente o escopo da terapia psicanalítica, mas a técnica da psicanálise das neuroses sofreu mudanças definitivas sob seu impacto” (Kris, 1951, p. 17). Aqui, já se faz evidente o que afirmam Baratto e Aguiar (2007): um dos objetivos dessa nova escola é, justamente, o novo: novas técnicas, novos conceitos, nova teoria, em nome de uma melhora da psicanálise proposta por Freud. O desvio é indubitável.
Kris (1951) situa dois dos mais importantes fundamentos para a psicologia do ego: a análise deve começar pela superfície e a resistência deve ser analisada antes da interpretação do conteúdo. E de onde derivam essas noções? De Freud, diz ele. Kris (1951) sustenta que, apesar de impor mudanças à psicanálise, todos os fundamentos da psicologia do ego encontram-se nos artigos técnicos freudianos.
Para exemplificar de que forma essas noções se dão, Kris (1951) se utiliza de um caso de Anna Freud. Uma criança de 6 anos, após relatar uma visita dolorosa ao dentista, começa a destruir vários objetos do consultório da analista e passa a quebrar pontas de lápis e depois a apontá-las. Esse comportamento pode ser analisado de três formas, afirma Kris (1951): pode apontar para 1. uma castração reconciliadora; 2. uma tentativa de passar de uma situação passiva para uma ativa; ou 3. demonstrar que o menino estava se identificando com o dentista. A primeira seria uma interpretação do id, ligada ao complexo de castração, enquanto as duas últimas seriam mecanismos de defesa. Ele afirma que as três interpretações, e até mesmo outras, seriam possíveis, e que a escolha de qual utilizar depende da fase da análise - nesse caso, a analista optou pela terceira interpretação, não só porque é a mais ampla, mas também porque oferece a possibilidade de o paciente aplicar a auto-observação, no sentido de “aprender a experimentar algumas de suas próprias reações como não pertencentes (ou seja, como sintomas) e, assim, dar um passo importante no caminho em direção à prontidão para o futuro trabalho psicanalítico” (Kris, 1951, p. 20).
Esse relato demonstra que, para os analistas do ego, a tentativa de somente comunicar o significado referente ao id apenas “representa o velho procedimento, o qual acreditamos ter se modificado integralmente pela mudança que falamos aqui” (Kris, 1951, p. 20). Ou seja, para a psicologia do ego, não se trata em psicanálise exclusivamente do que chamam de interpretação do id, que estaria “ligada ao complexo de castração”, mas também de “inserir interpretações mais próximas da superfície” (Kris, 1951, p. 21).
Cada teoria tem uma linguagem própria; entendemos aqui que por “interpretação do id” a psicologia do ego se refere às interpretações do que reside no inconsciente, e que “interpretações da superfície” trata-se do que está mais perto da consciência. Esse modo de intervenção se justifica pelo fato de considerarem desmedida a importância dos impulsos instintivos na psicanálise freudiana (Baratto, 2003). Para eles, o ego tem duas funções: as primárias e as secundárias. As secundárias são as funções defensivas originadas do conflito entre o ego e o id. Já as primárias, referem-se à “esfera do ego livre de conflito”: é o ego autônomo. Essa área é dotada de tendências autoconservadoras e, como tais, são consideradas o guia primário do indivíduo em direção à realidade. Estão, desde o início da vida, postas ao serviço da adaptação do organismo ao ambiente (Baratto, 2003).
O conceito de esfera do ego livre de conflito permitiu à psicologia do ego ampliar os conhecimentos sobre os processos de maturação e desenvolvimento do ego, estabelecendo como inegável o fato de que há no indivíduo processos de adaptação inatos e de que, portanto, os mecanismos defensivos do ego contra o id não são os únicos recursos adaptativos disponíveis ao ego (Baratto, 2003, p. 59).
É a partir da pressuposição de uma base egóica originalmente livre, independente e autônoma - ignorada por Freud, segundo eles - que conceberam o ego como sistema independente e imperial ao id. Além disso, para os analistas do ego, as funções de adaptação, síntese, integração e organização são consideradas inatas, com raízes biológicas. De acordo com Hartmann (1969, citado em Baratto, 2003), Freud teria se beneficiado da união da psicanálise com a fisiologia. Freud, contudo, afirmou em Sobre o narcisismo: uma introdução que tenta manter a psicologia isenta de tudo que lhe seja diferente em natureza, inclusive das linhas biológicas de pensamento (Baratto, 2003)
As funções secundárias do ego, por sua vez, originam-se da relação de conflito entre o ego e o id. Essas têm a capacidade de se liberar progressivamente dos impulsos instintuais, submetendo-se ao poder de diferenciação, síntese, controle e organização e, dessa forma, tornando-se independentes de suas fontes originárias, vindo a fazer parte da esfera livre de conflito. Quando essa troca de função, como denominada por Hartmann, não ocorre, é porque surgiram os chamados mecanismos regressivos, que representam uma falha no processo de adaptação. O trabalho em análise seria, então, o de consertar essa falha, fortalecendo o ego, que se torna independente do id e passa a dominá-lo e governá-lo. Daí o conceito de ego forte (Baratto, 2003).
Apesar de termos notícias de um Freud iluminista (Birman, 1997), afinal, foi ele quem falou em um fortalecimento do ego para racionalmente domar as paixões do id, fica evidente, a partir dos últimos parágrafos, que a apreensão do que seria o ego pela vertente norte-americana vai na contramão do que foi sustentado por Freud.
A teoria do ego na obra freudiana apresenta quatro grandes marcos: a introdução do ego na discussão sobre a experiência de satisfação; o dualismo pulsional - pulsão do ego versus pulsão sexual -; a discussão sobre o narcisismo; e o ego como instância psíquica (Moreira, 2009). A confusão surge, como apontado por Baratto e Aguiar (2007) e Moreira (2009), a partir da segunda tópica. Ao utilizar-se da metáfora do cavalo e do cavaleiro, Freud afirma que é o ego que torna possível a relação do id com o mundo e, dessa forma, em suas relações com o id, o ego se comportaria como o cavaleiro que, aparentemente, domina as forças maiores do cavalo, levando-o pelos caminhos já estabelecidos. Entretanto, não se pode esquecer que a energia do ego é, originalmente, energia do id, emprestada pelo ego do contexto narcísico no qual se instala. Ou seja, o ego nunca pode se separar inteiramente de sua necessária dependência energética do id. Assim, ele se comporta como um cavaleiro que permite ao cavalo a condução, mascarando-se de um poder que na verdade não tem (Naves & Féres-Carneiro, 2007). Segundo Julien (1993), o ego freudiano se encontra como fundamento do narcisismo, não como princípio de conhecimento objetivo e, portanto, não está referido à função de conhecimento da realidade objetiva, mas à realidade da fantasia, que leva em conta sua dinâmica inconsciente.
A noção de um ego inato se distancia da psicanálise freudiana também. Para Freud, é através da representação que se instaura a pulsão no registro psíquico.
São os representantes pulsionais que sofrem o recalque, o que faz do recalque a vicissitude por excelência do pulsional. Para Freud, nada há de inato no que se refere ao psíquico. Não há inconsciente, não há representação pulsional e, portanto, como conclusão lógica, não há o isso; e como o eu deriva do isso, evidentemente não há o eu. Antes da operação do recalcamento nada há além do biológico, e não há qualquer atribuição subjetiva (Baratto & Aguiar, 2007, p. 324).
Encontra-se justamente no recalque o mecanismo pelo qual se originam os processos propriamente subjetivos, instituindo de uma vez só o consciente e o inconsciente. O recalque, concebido por Freud como pedra angular de sua teoria, demarca uma divisão psíquica que indica que o sujeito não está atrelado a um centro ordenador, mas, ao contrário, a um descentramento radical. O que a segunda tópica revela, e a psicologia do ego não reconhece, é que, com a introdução da pulsão de morte, a dinâmica inconsciente se sustenta em algo fugaz à representação e sua trama em cadeia (Baratto & Aguiar, 2007).
Na própria cadeia inconsciente, figura algo estranho às representações recalcadas; algo que, embora esteja em seu fundamento, escapa a sua dinâmica, só podendo então causá-la. Este terceiro inconsciente, introduzido por Freud, é causa da circulação e dos remanejamentos sucessivos das representações, mas delas se subtrai. É o modo pelo qual Freud nos aponta que nem tudo é passível de ser capturado pela trama das representações (Baratto & Aguiar, 2007, p. 323).
Posto isso, continuemos com o texto de Kris. É para demonstrar de que forma as interpretações da superfície são fundamentais que ele introduz o caso dos miolos frescos. O paciente em questão já havia feito análise antes, com Melitta Schmideberg, que discute o caso em seu livro Intellektuelle Hemmung und Ess-störung. Tendo em mãos a interpretação da primeira análise de seu paciente, Kris (1951) faz, então, uma comparação entre sua análise e a dela, de forma a sustentar seu ponto. Acompanhemos seu raciocínio.
O paciente é um jovem cientista, que chega a Kris com a queixa de que, após ocupar um cargo respeitável no meio acadêmico, não avança para um cargo superior pois não consegue publicar suas pesquisas. E não as publica porque está sob uma constante pressão de usar a ideia de outros, de plagiar.
Relata estar prestes a concretizar uma publicação, quando acha um tratado, publicado anos antes, com a mesma ideia desenvolvida por ele. A partir disso, passa a acreditar que seu trabalho caracteriza plágio. Kris o faz contar em detalhes o conteúdo do tratado, até ficar claro o fato de que a publicação contém material que poderia ser útil para sua tese, mas sem indícios da tese em si, e que o paciente “havia feito o autor dizer o que ele mesmo queria dizer” (Kris, 1951, p. 22). Dessa forma, ficou evidente que o paciente estava apenas sob a impressão de estar cometendo plágio, quando na realidade não estava - e foi na tentativa de demonstrar isso a ele que Kris focou.
Dentre os diversos fatores determinantes da inibição, pois foi enquanto inibição que tanto Schmideberg quanto Kris categorizaram a queixa do paciente, Kris (1951) aponta a identificação com o pai como fator determinante:
Ao contrário do avô, renomado cientista, o pai falhou em deixar sua marca em seu campo de atuação. O esforço do paciente para encontrar patrocinadores, para pegar ideias emprestadas, apenas para descobrir que essas eram inadequadas ou apenas podiam ser plagiadas, reproduzia conflitos de seu relacionamento anterior com o pai. A projeção de ideias nas figuras paternas foi em parte determinada pelo desejo de um pai excelente e bem-sucedido (p. 23).
Kris comunicou sua interpretação para o paciente, ao que este respondeu: “todo meio dia, quando saio daqui, antes do almoço, e antes de voltar para o escritório, eu ando pela rua X e olho os cardápios pelas janelas. Em um dos restaurantes eu geralmente acho meu prato preferido - miolos frescos” (Kris, 1951, p. 23).
Kris considerou esse dito sinal de uma feliz intervenção. Para ele, sua análise pôde esclarecer o mecanismo usado na inibição, através de um procedimento que não mirou em um acesso direto e rápido para o id através da interpretação: o procedimento de exploração da superfície (Kris, 1951). Segundo o autor, houve um período exploratório inicial, onde “vários aspectos comportamentais foram cuidadosamente estudados” (Kris, 1951, p. 24).
Primeiro foram observadas suas atitudes de crítica e admiração das ideias das outras pessoas; depois a relação dessas com suas próprias ideias e intuições. Nesse ponto, a comparação entre a produtividade do paciente e a dos outros precisou ser traçada em detalhes; então, o papel que essas comparações desempenharam no início de seu desenvolvimento pôde ser esclarecido. Finalmente, a distorção de impor aos outros suas próprias ideias pôde ser analisada, e o mecanismo de “dar e receber” se tornou consciente. A descrição exploratória visa, portanto, principalmente revelar um mecanismo de defesa e não um conteúdo do id (Kris, 1951, pp. 23-24).
Kris sustenta a ideia da supremacia da análise do ego em detrimento da análise do id a partir do texto “A análise finita e a infinita” (Freud, 1937/1970b).
Ao discorrer sobre as pré-condições para o sucesso do tratamento terapêutico, Freud (1937/1970a) fala sobre a existência de uma alteração no ego e afirma que esta é efeito da ação exercida pelos mecanismos de defesa. Estes servem, em suma, para evitar perigo, angústia e desprazer. Mais: sustenta que o decorrer do tratamento analítico depende essencialmente de quão forte e quão profundamente enraizadas estão essas resistências da alteração do ego (Freud, 1937/1970a).
Pois desde o princípio o ego precisa tentar cumprir a sua tarefa, fazer a mediação entre seu id e o mundo exterior a serviço do princípio de prazer, proteger o id contra os perigos do mundo exterior. Se ao longo desse esforço ele aprender a também adotar uma postura defensiva em relação ao próprio id e a tratar as reivindicações pulsionais desse id como perigos externos, isso pelo menos em parte se dá porque ele entende que a satisfação pulsional levaria a conflitos com o mundo exterior. Então, sob a influência da educação, o ego se acostuma a transferir o campo da batalha de fora para dentro, a dominar o perigo interior, antes que ele se transforme em exterior; na maioria das vezes, provavelmente é a melhor coisa a ser feita (Freud, 1937/1970a, p. 246).
Freud conclui afirmando que, na situação analítica, deve-se submeter porções não dominadas do id, de forma a incluí-las na síntese do ego. O esforço terapêutico consiste, portanto, na oscilação entre “um pedacinho de análise do id e um pedacinho de análise do ego. Num caso, queremos tornar consciente algo do id; no outro, corrigir algo no ego” (Freud, 1937/1970a, pp. 258-259).
Freud também diz que, apesar de o efeito terapêutico estar atrelado à conscientização do recalcado contido no id e de prepararmos o caminho para essa conscientização através de interpretações e construções, “interpretamos apenas para nós mesmos, não para o analisado, enquanto o ego se mantiver preso às defesas antigas e não desistir das resistências” (Freud, 1937/1970a, p. 249).
É possível verificar, em Freud, de onde Kris retira seus fundamentos, ele tem razão em querer que seu paciente tenha notícias do que reside em seu inconsciente, esse objetivo está claríssimo em Freud. Contudo, parece se equivocar na forma como o faz - o que não é pouco. “A técnica só se consolida na atividade analítica”, diz Freud (1937/1970a, p. 257), e o que fica evidente através dessa “descrição exploratória” feita por Kris no caso dos miolos frescos, é que o analista se apegou a alguns ditos dos textos técnicos freudianos e, como apontado por Baratto e Aguiar (2007), esqueceu de conceitos como recalque e inconsciente, sine qua non para a teoria psicanalítica. Ou seja, Kris e os demais teóricos da psicologia do ego têm os mecanismos de defesa como esteio de sua teoria, mas esquecem que o recalque foi o mecanismo de defesa sem o qual não teriam sido possíveis os estudos da neurose, como apontado por Freud (1937/1970a) em “A análise finita e a infinita”.
Outro texto que sustenta a condução do tratamento de Kris é “Construções em análise”, que, de acordo com ele, é onde Freud discute detalhadamente os critérios para confirmar se uma interpretação comunicada ao paciente está “correta”. É verdade, Freud introduz o artigo se referindo a isso, pois foi acusado de arbitrariedade quanto a esse tema. No entanto, o mais fundamental deste texto é notar que Freud está enfatizando a construção, termo que, segundo ele, é “infinitamente mais adequado” (Freud, 1937/1970b, p. 269) que interpretação. Se por um lado o paciente deve recordar, por outro, o analista deve construir o esquecido a partir dos sinais por ele deixados. Esses sinais são as manifestações do inconsciente que surgem quando o paciente “se entrega à associação livre” (Freud, 1937/1970b, p. 267), algo que Kris, ao se propor a traçar em detalhes tudo o que o paciente lhe diz de maneira a convencê-lo de que a sensação de plágio é uma distorção, não favoreceu, mas era fundamental para a condução do caso.
Ademais, Freud (1937/1970b) afirma que um “sim” do analisando diante de uma construção pode ser desprovido de sentido e até mesmo ser falso, “na medida em que é confortável para a sua resistência continuar ocultando a verdade não revelada através dessa aquiescência” (Freud, 1937/1970b, p. 271). Um sim só tem valor, segundo Freud (1937/1970a), se for seguido da produção de novas lembranças que complementam e ampliam a construção. Não é isso que indica o paciente de Kris quando afirma que toda vez que sai da análise se põe a admirar um prato de miolos frescos. Assim, como a intervenção de Kris constituiria uma construção não fica claro, e se encontra mais ao lado da sugestão, e quanto a isso Freud advertiu.
O perigo de levar o paciente pelo mau caminho através da sugestão, “convencendo-o” de determinadas coisas em que nós próprios acreditamos, mas que ele não deveria aceitar, certamente tem sido exagerado além da medida. O analista teria se comportado de forma muito incorreta se um infortúnio desses lhe acontecesse; principalmente, ele teria de fazer a autocrítica, reconhecendo que não deu voz ao paciente (Freud, 1937/1970b, p. 270).
De resto, em “A questão da análise leiga”, Freud é categórico: se o nosso paciente sofre de um sentimento de culpa, por exemplo, “não aconselhamos a ele que supere essa crise de consciência reforçando a sua indubitável ausência de culpa” (Freud, 1926/1970, p. 155), pois isso ele já tentou, e não conseguiu. A dissuasão está, portanto, distante da clínica. O que deve ser feito é alertá-lo da possibilidade de um sentimento tão forte se originar de algo real, que talvez possa ser encontrado, através de reais construções, ancoradas no inconsciente e não num suposto ego autônomo (Freud, 1926/1970). Autonomia essa que “não passa de um sonho que os teóricos do ego pretenderam sustentar” (Baratto, 2003, p. 64). O ego parece autônomo e unitário, mas não o é. Ele se prolonga para dentro, sem fronteira nítida, numa entidade psíquica inconsciente a que denominamos id, à qual serve como uma espécie de fachada. É isso que aprendemos com a experiência psicanalítica (Freud, 1930/1970).
Não se trata, portanto, de convencer quem chega em nossos consultórios de que suas neuroses não fazem sentido, isto eles já sabem, por isso procuraram um analista. Kris (1951) considera “terapeuticamente gratificante” (p. 25) isso que chama de mudança de ênfase dos conteúdos do id para os mecanismos de defesa, enquanto nós percebemos nessa mudança sinais de uma leitura que ignora a maior descoberta freudiana: o inconsciente. Isso está de acordo com Lacan, que, conforme veremos, propõe em sua releitura um retorno ao sentido de Freud.
A crítica de Lacan
Quem analisa hoje? Essa é a pergunta que introduz o texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, de 1958. Em uma nítida crítica aos pós-freudianos, Lacan (1958/1998) é claro: o psicanalista não deve dirigir o paciente, mas sim o tratamento, rejeitando veementemente a ideia de uma reeducação emocional e comparando a direção da consciência a um guia moral, que estaria mais para o lado da religião que da psicanálise.
Lacan (1958/1998) continua: aqueles que imputam à contratransferência o valor de bússola de tratamento - pois mesmo os que se extraviam experimentam a transferência - não fazem mais que renunciar à verdadeira natureza da transferência. O dever do analista é o de fazer o quarto jogador - o sujeito do inconsciente - advir, e o faz a partir do único lugar possível para ele: o de morto, deixando seu gozo de fora. Com isso, Lacan demarca uma das muitas oposições aos pós-freudianos: para ele, o analista deve situar-se em um des-ser, enquanto, para os segundos, em seu ser. Dessa forma, sustenta que “os psicanalistas de hoje, medem as defecções por parte do paciente com base no princípio autoritário dos educadores de sempre” (Lacan, 1958/1998, p. 596) e firmam esteio em um padrão de medida do real: o ego autônomo - “uma miragem surrada que a mais acadêmica psicologia da introspecção já havia rejeitado como insustentável” (Lacan, 1958/1998, p. 596).
Após discutir a função da resistência e da interpretação, Lacan traz o caso de Ernst Kris como um exemplo da confusão desses termos. O esforço de Kris em demonstrar ao paciente que ele não é um plagiário é um equívoco por duas razões. Primeiramente, porque supõe que defesa e pulsão são concêntricas, quando na realidade elas situam-se em campos diferentes, a segunda não é o nível mais profundo da primeira. Em segundo lugar, porque se ele rouba ou deixa de roubar não é o que importa, mas sim “que ele não… Sem ‘não’: é que ele rouba nada. E era isso que teria sido preciso fazê-lo ouvir” (Lacan, 1958/1998, p. 606).
Com isso, a declaração de que a saída do consultório de Kris é seguida pela vontade de comer miolos frescos não deve ser considerada confirmação de uma próspera intervenção, pois na realidade ela está advertindo o analista de que ele passou longe do ponto, levando o “valor corretivo do acting-out” (Lacan, 1958/1998, p. 606).
O acting-out, juntamente com a passagem ao ato, é considerado uma modalidade de resposta diante da angústia (Urbaj, 2013) e foi definida no seminário 10 por Lacan (2004) como um subir à cena do objeto; é um ato que tem destinatário.
O acting out é, em essência, a mostração, a mostragem, velada, sem dúvida, mas não velada em si. Ela só é velada para nós, como sujeito do acting-out, na medida em que isso fala, na medida em que poderia ser verdade. Ao contrário, ela é, antes, visível ao máximo, e é justamente por isso que, num certo registro, é invisível, mostrando sua causa. O essencial do que é mostrado é esse resto, é sua queda, é o que sobra dessa história (Lacan, 2004, pp. 138-139).
Trazendo exemplos de atos presentes nos casos de Freud, Lacan explica que a bofetada de Dora no Sr. K. e a tentativa de suicídio da jovem homossexual são passagens ao ato, enquanto o comportamento paradoxal da primeira na casa dos K. e as aventuras com a dama de reputação duvidosa na segunda são acting-out. Tudo o que é acting-out é o oposto da passagem ao ato (Lacan, 2004).
Peguemos o caso da jovem homossexual. Um homem rico de Viena procura Freud pois sua filha adolescente acaba de se jogar nos trilhos de um trem (aqui jaz, como vimos, a passagem ao ato). Antes disso, outra situação se apresentava ao pai: sua filha estava galanteando uma outra mulher. E a galanteava perto de seu trabalho. Eis aí o acting-out no interior dessa conduta que se exibe aos olhos de todos, que faz mostrar algo a outrem.
Pois bem, o acting-out do homem dos miolos frescos se apresenta em transferência. Kris, ao querer “reduzir seu paciente com os recursos da verdade” (Lacan, 2004, p. 139), demonstrando empiricamente que seu trabalho não caracteriza plágio, deixa seu paciente sem meios de contestá-lo. Kris não percebe, porém, que isso absolutamente não importa. Não é dessa verdade que se trata. Com efeito, o que o paciente faz é dizer ao seu analista que deseja comer miolos frescos. Com isso, “o paciente simplesmente faz um sinal para Ernst Kris: tudo o que o senhor diz é verdade, mas simplesmente não toca na questão; restam os miolos frescos. Para mostrá-lo ao senhor, vou comê-los ao sair, para lhe contar isso na próxima sessão” (Lacan, 2004, p. 139).
Trata-se de uma insurreição do sujeito em relação ao analista que saiu de seu lugar simbólico, demitindo-se de sua função (Calazans & Bastos, 2010). É uma “transferência selvagem” (Lacan, 2004, p. 140), um endereçamento ao analista que compareceu com seu ser, quando deveria ter “cadaverizado sua posição” (Lacan, 1955/1998, p. 431), ocupando o lugar do morto.
Não à toa, em “A coisa freudiana”, Lacan (1955/1998) afirma que o acting-out é consequência de uma paixão imaginária por parte do analista. Essa linguagem do ego, a qual preconiza os “dejetos automáticos do discurso comum” (p. 430) é corroborada por simulacros, ou seja, por representações imagéticas que enganam por não corresponderem à realidade. Como consequência desse desvirtuamento, temos o acting-out, “comumente num sentido de sinal contrário à sugestão” (p. 430).
Essas “interpretações excessivas, que transformam o processo analítico em uma prática hermenêutica e aplicações insensatas de um saber sobre a inesgotável melodia pulsional, são alguns dos efeitos da resistência do analista” (Fuks, 2001, p. 7). Isso está em Lacan, que, ainda em “A coisa freudiana”, em parte intitulada “A resistência aos resistentes”, afirma: a resistência é, justamente, dos analistas que preconizam a dita análise das resistências. O sujeito não é apenas alguém a ser observado, mas também é, ele mesmo, um observador (Lacan, 1955/1998).
Não é dele que vocês tem que falar com ele, pois ele basta para essa tarefa e, ao executá-la, nem sequer é com vocês que está falando: se é com ele que vocês têm que falar, é literalmente de outra coisa, isto é, de uma coisa diferente daquilo de que se trata quando ele fala de si, e que é a coisa que fala com vocês, coisa esta que, diga ele o que disser, lhe permanece para sempre inacessível se, por ser uma fala que se dirige a vocês, ela não puder evocar em vocês sua resposta, e se, apesar de terem ouvido sua mensagem sob essa forma invertida, vocês não puderem, ao devolvê-la a ele, dar-lhe a dupla satisfação de havê-la conhecido e de fazê-lo reconhecer sua verdade (Lacan, 1955/1998, pp. 420-421).
A análise, portanto, não se trata de agraciar o indivíduo com o seu saber iátrico, o procedimento de Kris foi tão exaustivo quanto inútil. O paciente queixa-se de ser um plagiário, e Kris escuta nisso uma falta de produtividade, colocando-se no lugar de curá-lo, de fazê-lo entender de uma vez por todas que o obstáculo posto por ele não é real e que, portanto, ele pode voltar a produzir e a ser um cientista de sucesso. “Melhorar sua potência” (Kris, 1951, p. 22), como, de acordo com o paciente, ocorreu após o tratamento com Schmideberg. São analistas “fascinados pelas sequelas da frustração que atêm-se tão-somente a uma postura de sugestão, que reduz o sujeito a repassar sua demanda” (Lacan, 1958/1998, p. 625).
E diz mais: não se deve querer o bem do sujeito, pois se o faz é porque julga saber que bem é esse e, dessa forma, “repete aquilo em que ele foi formado, e até, ocasionalmente, deformado” (Lacan, 1958/1998, p. 625). No seminário “A ética da psicanálise”, Lacan (1988) adverte contra “as vias vulgares do bem”, essa “falcatrua benéfica de querer-o-bem-do-sujeito” (p. 262), ao afirmar que o que opera em análise é um “não desejo de curar” do analista (p. 262), pois o desejo de curar serve meramente para nos desencaminhar. Não há como saber a priori os efeitos de uma análise.
Não é que Lacan negue a cura, diz inclusive que “não há dúvida de que isto é absolutamente inerente à nossa experiência, à nossa via, à nossa inspiração - curá-lo das ilusões que a retém na via de seu desejo” (Lacan, 1988, p. 262), mas coloca a questão - que mantemos: até onde poderemos ir nesse sentido?
A recusa de Lacan em circunscrever a função do desejo do analista em parâmetros da propedêutica médica ou terapêutica é clara, sobretudo porque esta função assume o desejo como excêntrico e traz à tona sua face mais esvaziada. Vê-se demonstrado aqui que o que está em jogo na finalidade da psicanálise, segundo as concepções de Freud e Lacan, não é a visada terapêutica, mesmo que ela se produza. Se as noções de inconsciente e desejo orientam a ação do analista, ainda que formalizadas, problematizando seus processos de conceitualização, elas esclarecem a diferenciação entre prática analítica e outras práticas psicoterápicas (Oliveira, 2011, p. 45).
Ao traduzir a máxima freudiana “Wo Es war soll Ich werden” para “where the id was, there the ego shall be”, os norte-americanos esquecem que, pela definição de 1923, o ego está, em partes, dominado pelo id. Com essa lógica invertida, parece que a psicologia do ego está, justamente, muito mais próxima de uma psicologia do que da psicanálise (Lacan, 1955/1998).
E eis o que faz a psicoterapia, de acordo com Lacan (2003): estanca. Em busca de um “sentido [sens] que se faz passar por bom senso [bon sens] e que, ainda por cima, é tido como senso comum [sens commun]” (p. 513). É o cúmulo do cômico, diz Lacan. E ainda privilegia o cômico ao sentido, pois o primeiro se dá sabendo da não relação que está na jogada. O bom senso representa a sugestão, e daí o estancamento, “não porque não exerça um certo bem, mas por ser um bem que leva ao pior” (p. 513).
O que faz o analista em uma análise, então? Permanece longe da tendência de se firmar em intervenções que buscam dar sentido a tudo que ocorre, do psicologismo e de interpretações subjetivistas. E assim o faz justamente por levar em conta o real, que se circunscreve fora do sentido. Não vale a pena terapeutizar o psíquico, e Freud também pensava assim (Lacan, 1977 citado em Aparício, 2016). O analista deve, portanto, manter-se aberto ao que está “por-vir”, diz Fuks (2001), pois é daí que surge o que Lacan chamou de desejo de saber, o desejo inconsciente - este sim, motor de análise.
Considerações finais
A advertência de Lacan faz pensar sobre os efeitos, na clínica, de os analistas se identificarem com determinados discursos e posições e trazerem isto para a cena transferencial. Ele denuncia o lugar ocupado por Kris, que em sua abordagem terapêutica acaba por trazer sua leitura da realidade ao analisante. Assim, Lacan demonstra que não cabe ao analista contestar, discutir ou argumentar determinado fato trazido pelo paciente. Quanto mais o analista o fizer, menos atento de sua função e mais distante da “verdade” do sujeito (do inconsciente) ele está.
Com efeito, temos no paciente de Kris o acting-out como resposta a essa intervenção na qual o analista compareceu com seu ser, esquecendo-se de sua função. Se não é a partir de seu ser, cabe a pergunta: como o analista opera? Sem detalhar esse complexo segmento da teoria lacaniana, pode-se dizer que é a partir do desejo do analista. Este aparece como um lugar vazio, oferecido pelo analista para que ali possa advir o sujeito do inconsciente, enquanto sujeito do desejo. Lacan resgata, por meio de sua crítica, o lugar ético estabelecido por Freud, quando este uniu a ética à técnica psicanalítica, com o objetivo de explicar a contraindicação do analista de responder à demanda do analisante. Nesse sentido, Freud faz referência a uma posição que deve situar-se além dos ideais narcísicos do analista e pode, assim, aproximar-se do que constitui fundamentalmente o sujeito enquanto desejante.
Em última instância, a crítica de Lacan a Kris remete à ética da psicanálise, pautada na falta-a-ser, orientando a análise em direção ao reconhecimento e à responsabilização pelo próprio desejo. Ora, numa sociedade que não cessa de fiar-se na confiança iluminista na razão como força que liberta o homem e que, consequentemente, está o tempo todo a buscar verdades e comprovações para suprir a distância do desejo - haja vista as alienações a designações diagnósticas, por exemplo - não há nada mais atual que lembrar aos analistas seu lugar na direção do tratamento.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Abr 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
09 Fev 2022 -
Revisado
21 Mar 2023 -
Aceito
05 Jul 2023