Acessibilidade / Reportar erro

Percorrer as formas, curvar a força: concepções de sujeito em Foucault e em Lacan

Go through the shapes, bend the force: logic of the subject in Foucault and Lacan

Parcourir les formes, pliez la force : logique du sujet chez Foucault et Lacan

Atravesar las huellas, doblar la fuerza: concepciones de sujeto en Foucault y Lacan

Resumo:

A fim de responder à distinta questão que Foucault endereça à psicanálise em seu curso de 1982 – seria ela correspondente às exigências do cuidado de si ( epiméleia heautoû )? –, procedemos por uma aproximação teórica entre as estruturas de concepção do sujeito expostas em seu discurso, A hermenêutica do sujeito , e no discurso de Lacan, A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud . O propósito do manuscrito visa tanto continuar com uma problematização inacabada por parte do filósofo francês quanto fazer ressoar na psicanálise uma obra que ainda não conta com grande recepção no meio.

Palavras-chave:
cuidado de si; Foucault; psicanálise; subjetividade; linguística

Abstract:

To answer the distinct question that Foucault addresses to psychoanalysis in his 1982 course – would it correspond to the demands of the care of the self ( epiméleia heautoû )? –, we proceed by a logical approximation between the structures of the subject’s conception exposed in his speech, in The Hermeneutics of the Subject , and in the discourse of Lacan, in The Instance of the Letter in the Unconscious or Reason Since Freud . The purpose of the manuscript aims to continue with an unfinished problematization on the part of the French philosopher and to resonate in psychoanalysis a work that still does not have a great reception in the medium.

Keywords:
care of the self; Foucault; psychoanalysis; subjectivity; linguistics

Résumé :

Pour répondre à la question distincte que Foucault adresse à la psychanalyse dans son cours de 1982 – correspondrait-elle aux exigences du souci de soi ( epiméleia heautoû )? –, nous procédons par une approximation logique entre les structures de la conception du sujet exposées dans son discours, dans L’herméneutique du sujet , et dans le discours de Lacan, dans L’instance de la lettre dans l’inconscient ou la raison depuis Freud . Le but du manuscrit vise à la fois à poursuivre une problématisation inachevée de la part du philosophe Français et à faire résonner en psychanalyse une œuvre qui n’a toujours pas un grand accueil dans le médium.

Mots-clés :
souci de soi; Foucault; psychanalyse; subjectivité; linguistique

Resumen:

Para responder a la pregunta que Foucault dirige al psicoanálisis en su curso de 1982 –¿correspondería a las exigencias del cuidado de sí mismo ( epiméleia heautoû )?–, procedemos con una aproximación teórica entre las estructuras de la concepción del sujeto que se exponen en su discurso La hermenéutica del sujeto y en el de Lacan, en La instancia de la letra en el inconsciente o la razón desde Freud . El propósito de este trabajo es seguir con la problematización inconclusa por parte del filósofo francés y resonar en el psicoanálisis una obra que todavía no tiene una gran acogida en este medio.

Palabras clave:
cuidado de sí; Foucault; psicoanálisis; subjetividad; lingüística

Introdução

Em 1982, Foucault ( 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ) questiona o estatuto da psicanálise desde uma posição inédita nesse pensamento. Ele o faz de uma perspectiva filosófica, expondo sua interpretação da dinâmica histórica de dois preceitos antigos: o cuidado de si ( epiméleia heautoû ) e o conhecimento de si ( gnôthi seautón ). Este estudo tem como objetivo se situar no espectro de problematização dessas aulas, para tentar responder se a psicanálise lacaniana corresponde às exigências do cuidado de si. Esse exercício é importante para o campo foucaultiano, pois encara um problema proposto pelo filósofo que não pôde ser levado adiante, devido à proximidade com sua morte. Também é valioso para a psicanálise, pois o curso de 1982 não teve, até hoje, grande recepção nesse meio, o que não deixa de soar como certa resistência a possíveis reviravoltas conforme a opinião de alguns analistas (Allouch, 2014Allouch, J. (2014). A psicanálise é um exercício espiritual? Resposta a Michel Foucault. Campinas, SP: Editora Unicamp. ; Ayouch, 2015Ayouch, T. (2015) Foucault pour la psychanalyse : vérité, véridiction, pratiques de soi. In L. Laufer, & A. Squverer (Org.), Foucault et la psychanalyse: Quelques questions analytiques à Michel Foucault (p. 97-122). Paris: Hermann. ; 2016Ayouch, T. (2016) De L’Herméneutique au stratégique: Sexuations, sexualités, normes et psychanalyse. In S. Boehringer, & D. Lorenzini (Org.), Foucault, la sexualité, l’Antiquité (p. 167-186). Paris: Kime. ). Segundo Allouch ( 2014Allouch, J. (2014). A psicanálise é um exercício espiritual? Resposta a Michel Foucault. Campinas, SP: Editora Unicamp. ), o próprio Lacan permitiu ecoar as questões de Foucault em seu trabalho, ratificando o fato de que “. . . a psicanálise pudesse receber seu estatuto de alguém que não era da paróquia” (p. 30).

Foucault ( 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ) realiza uma espécie de diagnóstico do presente em seu curso (Han, 2016Han, B. (2016). Analítica da finitude e história da subjetividade. In G. Gutting (Org.), Foucault. São Paulo, SP: Ideias e Letras. ), pelo qual o filósofo analisa as vertentes do pensamento ocidental se baseando na relação que elas estabelecem com os dois preceitos antigos. Cada um destes se define como um modo de conceber a ligação entre as noções de sujeito e de verdade. Assim, tratamos de questionar a pertinência de se pensar a psicanálise dentro da herança específica do cuidado de si, ou, como diz Foucault ( 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ), “. . . a mais velha inquietude dessa epiméleia heautoû” (p. 29), a qual pode ser encontrada em Lacan por hipótese do filósofo. Esse questionamento se insere em um movimento no qual Foucault ( 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ) recoloca o cuidado de si na raiz da filosofia a despeito da centralidade histórica do preceito délfico, o famoso”conhece-te a ti mesmo”.

De modo esquemático, podemos dizer que o curso de 1982 apresenta a tese de que o cuidado de si seria anterior e imprescindível ao conhecimento, e que eles estariam, desde a figura de Sócrates n’ O Alcibíades de Platão, completamente relacionados. Essa correlação define a filosofia como uma espiritualidade (Foucault, 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ) ou, em outros termos, como a capacidade de transformar o sujeito que com ela se relaciona. No entanto, ocorreu um processo histórico de separação entre os preceitos e de esquecimento do cuidado de si, de modo que a filosofia se desprendeu da espiritualidade na modernidade e, por estar peremptoriamente determinada pelo conhecimento de si, tornou-se epistemologia.

Convém especificarmos alguns pontos dessa divisão entre espiritualidade e conhecimento de si. A posição da espiritualidade, predominante no período greco-latino com o epicurismo e o estoicismo, não concebe o sujeito como naturalmente orientado para o conhecimento da verdade. Para tanto, ele precisa se transformar por meio de técnicas ascéticas, não existindo nem um questionamento interno do sujeito sobre suas qualidades idiossincráticas nem uma noção de sujeito originário. A formação de si ocorre por uma espécie de alargamento, em oposição a uma individualização. Neste contexto, a verdade tem função de manter o processo de constituição de si em movimento, no sentido de que se relacionando com ela o sujeito se protege das vicissitudes causadas pela realidade. Por outro lado, quando há uma predominância do conhecimento de si, o sujeito é concebido como naturalmente orientado para a verdade por uma estrutura que lhe é própria e referente a um sujeito cognoscente e desapegado, o qual tem para si um domínio de objetos representáveis. Nesse sentido, Foucault ( 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ) afirma que na modernidade, a despeito de salvar o sujeito, a verdade produz apenas um movimento infinito de acúmulo de conhecimento.

Dentro desse horizonte, Foucault ( 1984Foucault, M. (1984). História da Sexualidade II: O uso dos prazeres. (14a. ed.). Rio de Janeiro, RJ: Edições Graal. ) deseja retomar o caráter experimental da filosofia, posicionando a si mesmo e a outros dentro dos saberes em que ainda resta algum resquício de espiritualidade. Pretendemos esboçar um lugar para a psicanálise ao percorrer essa clivagem do pensamento ocidental, sem a pretensão de responder por sua totalidade. Já que a caracterização da espiritualidade parte de um modo de definir e relacionar sujeito e verdade, este artigo pretende analisar as lógicas de concepção do sujeito nos pensamentos de Foucault e de Lacan. Da parte de Foucault ( 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ), escolhemos a categoria descritiva que melhor demonstra essa questão no curso de 1982: a conversão a si. Da parte de Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ), escolhemos o texto A instância da letra ou a razão desde Freud , dado seu esforço por definir a “verdade” da descoberta freudiana, circunscrevendo nela certa concepção de sujeito. Essa escolha também se baseia na opinião de que alguns pontos ali trabalhados permanecem centrais, atravessando as mudanças por que passa o pensamento lacaniano. A questão do sujeito, nos dois pensamentos, não se separa da questão da verdade, entre outros temas que perpassam essa relação e que serão trabalhados lateralmente, a fim de focarmos no plano da questão do sujeito.

A força sob a força

No discurso foucaultiano d’ A Hermenêutica do Sujeito (Foucault, 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ) predomina a análise de textos epicuristas e estoicos, considerados como o terreno propriamente dito de uma arte da existência ( tékhne toû bíou ). Essa estética filosófica consiste no exercício de moldar a vida prescindindo da centralidade de um código regulatório, algo necessário naquele tempo devido à derrocada do arranjo político e institucional vigente. Tal recorte histórico é caro a Foucault, como demonstra sua continuidade nos dois cursos posteriores (Foucault, 2010bFoucault, M. (2010b). O Governo de Si e dos Outros: Curso dado no Collège de France. São Paulo, SP: WMF Martins Fontes. ; 2011Foucault, M. (2011). A Coragem da Verdade: O Governo de Si e dos Outros II: Curso dado no Collège de France. São Paulo, SP: WMF Martins Fontes. ). Sua importância pode ser compreendida em relação ao posicionamento sobre a problemática da governamentalidade, com o qual Foucault pretende inserir de modo ativo a dimensão da relação consigo no processo de subjetivação a partir de um deslocamento no conceito de poder, ocorrido após 1980. Nesse sentido, a existência estética greco-latina corresponde a uma proliferação das técnicas de si, ou seja, a um contexto filosófico fértil para as análises pretendidas por Foucault.

Portanto, o eixo principal da discussão é o da relação consigo, encarada por Foucault ( 1984Foucault, M. (1984). História da Sexualidade II: O uso dos prazeres. (14a. ed.). Rio de Janeiro, RJ: Edições Graal. ) como uma superfície de refração para o tema da subjetividade. Em 1982, a relação consigo é exposta por uma análise da conversão a si ( se convertere ad se ), que consiste em um modo de aplicação a si predominante no período epicurista e estoico. Ela difere das conversões platônica ( epistrophé ) e cristã ( metánoia ) quanto ao modo de formação da verdade sobre si e quanto à forma de relação com o mestre. A conversão é definida, nessa ocasião, como uma “forma vazia” (Foucault, 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. , p. 115) que transita entre os tempos históricos e que determina, de maneiras diversas, a relação que o sujeito deve estabelecer com a verdade, o meio de se chegar até ela e aquilo que será possível conseguir a partir disso.

As conversões platônica e cristã, apesar de distintas, podem ser conjugadas quando se trata de cotejá-las à conversão greco-latina. Elas relacionam esquematicamente sujeito e verdade segundo as seguintes características:

A primeira, uma conversão do olhar que sai do mundo e de seus objetos turvos para encarar o ser em sua luz divina; movimento ontológico que funda o sujeito a partir do reconhecimento da ignorância de sua essência, e tende a retorná-lo a esta pátria ontológica por meio da reminiscência, libertadora com respeito ao corpo-prisão. A segunda, uma penitência e uma transformação radical, súbita, a qual secciona o sujeito convertido do sujeito antigo. Para que ela ocorra, é necessária uma exploração dos segredos internos, dos traços de concupiscência aparentes no pensamento e localizados na alma, com a finalidade de uma renúncia a si – diante deste Outro que, passando pelo sacerdote, é Deus. Juntas, elas delimitam aquilo que Foucault ( 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ) chama de “trans-subjetivação” (p. 193), uma reversão do sujeito.

Por outro lado, a conversão a si será descrita nos textos greco-latinos pela metáfora da navegação em uma jornada de retorno a si. O movimento instaurado por essa metáfora nunca leva a uma renúncia, mas a um encontro consigo. A única renúncia se refere a tudo que pode causar dependência e que está ao redor de si, nunca dentro. É apenas na superfície da experiência vivida sob a jornada que se forma a textura e a consistência de si mesmo. A navegação ocorre em um trajeto que vai de si a si, por isso a ideia de um retorno, de uma dobra, que no entanto não representa o reencontro com uma essência. Sua imagem é a do interstício entre um si mesmo que era e um si mesmo que ainda vai ser, caminho que se alarga na medida em que é percorrido, ou seja, que nunca se finaliza em uma interioridade. Segundo a prática epicurista e estoica, essa relação consigo ocorre por meio da ascese, definida como o conjunto de técnicas aplicadas sobre si.

A ascese pode ser apreendida por meio de exercícios, como a meditação sobre a morte (praemetitatio malorum) . Eles possibilitam uma dobra no sentido de um sujeito debruçado sobre si, mas também no sentido de que, engajado com o mundo e voltado para si, ele cria uma coextensão entre dentro e fora. A partir daí, destaca-se um sujeito, um forro ( doublure ), marcado por um estilo ( forma ) que não depende estritamente da vigência de um código ( regula ) interno. Por exemplo, a meditação sobre a morte, conforme interpreta Foucault ( 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ), trata-se de morrer “em” pensamento, e não em refletir sobre a morte. Esse exercício é praticado em conjunto às vicissitudes imprevisíveis do mundo, com a finalidade de criar um estado “subjetivo” inabalável. Nesse sentido, conforme a leitura de Deleuze ( 2005Deleuze, G. (2005) Foucault. São Paulo, SP: Brasiliense. ), a relação consigo consiste em um modo de fazer a força afetar a si mesma, diferente de uma relação de poder em que a força faz um corpo afetar outro. O lugar que o mestre ocupa é estrategicamente posicionado de modo a proporcionar a relação consigo, e não necessariamente a orientar a forma dessa relação. A direção tende a uma “autossubjetivação” (Foucault, 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. , p. 193), e a verdade aparece como componente dessa força que lança o sujeito em direção a uma ação (Foucault, 2013Foucault, M. (2013). L’origine de l’hermeneutique de soi: Conférences prononcés à Dartmouth College 1980. Paris: Vrin. ).

Os princípios transmitidos em uma relação filosófica, a qual pretende criar uma relação consigo, necessitam do momento propício ( kairós ) para gerarem o efeito desejado no discípulo. Eles não se configuram como um conhecimento repassado, mas como uma ferramenta que impulsiona o deslocamento necessário àquele que demanda a filosofia. Assim, a transmissão dos preceitos se orienta por uma técnica de transformação do lógos em êthos . Não existe, portanto, um conteúdo a ser descoberto pelo mestre e ofertado ao discípulo como possibilidade de identificação, mas sim uma forma de relação consigo, portadora de uma força ativada em conjunto e agindo no sujeito. Segundo descreve Foucault ( 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ), essa forma compõe uma sequência, uma “longa cadeia de exemplos vivos, transmitidos como que de mão em mão” (p. 365).

Foucault ( 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ) insiste em demonstrar como a relação greco-romana com o conhecimento ( máthesis ) não é determinada necessariamente pelo conteúdo, mas pelo modo de veiculação dos enunciados (enunciação). Nesse sentido, a filosofia pode falar sobre os homens, sobre os deuses, sobre o universo ou sobre a natureza, mas o que realmente valoriza o saber da espiritualidade é sua capacidade de transformar o sujeito. Essa dimensão fica particularmente evidente quando Foucault ( 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ) diferencia o uso retórico e o uso espiritual da palavra. A retórica tende ao convencimento com respeito à validade dos enunciados nessa perspectiva. Ao contrário, a espiritualidade lança mão, por exemplo, de mal-entendidos, uma coragem da verdade característica da técnica da parrhesía. Mais exatamente, ela é um modo de enunciação que tem como única finalidade deslocar o sujeito a quem se dirige, independentemente do risco que ela causa ao falante. Outros exemplos são o teor espiritual do saber de Epicuro sobre a physiologia , um saber da natureza que não se compõe como um setor do conhecimento, mas como um princípio de ação; ou mesmo a interpretação de Sêneca para os versos virgilianos que, invés de buscar analogias e associações de referências “verdadeiras” internas à obra de Virgílio, busca meditar com os versos para produzir sentidos que atinjam o nível de preceitos.

O recurso à discussão do campo da conversão a si greco-romana teve como objetivo estabelecer o eixo que servirá de guia para a investigação da psicanálise. De modo resumido, falamos de uma lógica para o processo de subjetivação, a qual engloba uma relação consigo, uma relação com a verdade e uma relação com o mestre. Todas as dimensões só adquirem sentido próprio dentro do cuidado de si se circunscritas em um trilho filosófico que tenha como norte um sentido de formas portadoras de uma força, a despeito de um conteúdo último originário e revelador. Agora, podemos passar para uma exposição acerca de uma psicanálise que se determina pela concepção do inconsciente estruturado pelas cadeias significantes, para então tentarmos correlacionar os dois campos teóricos em questão: foucaultiano e lacaniano.

A força significante

Na década de 1950, Jacques Lacan inicia um movimento de retorno a Freud, definindo-o do ponto de vista da lógica da estrutura de uma linguagem. O psicanalista francês defende, naquele contexto, que essa interpretação é o único caminho possível para a apreensão da estrutura do inconsciente, a despeito das interpretações que o coincidem com uma espécie de sede dos instintos (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ). Segundo nosso objetivo, é fundamental expormos essa estruturação do inconsciente, pois a primeira lógica de definição da noção de sujeito, em psicanálise, começa aí. Convém notar que essa fabricação lacaniana provém da influência específica que o pensamento de Ferdinand de Saussure teve em sua percepção da obra de Freud.

Esquematizaremos alguns pontos cruciais sobre Saussure para pensar, depois, a lógica do inconsciente. Apesar da centralidade da discussão sobre o algoritmo do significante e do significado, no pensamento lacaniano optamos por não adentrar no estatuto específico na linguística. Seu caráter indefinido na pena do verdadeiro Saussure ( 2004Saussure, F. (2004). Escritos de Linguística Geral. São Paulo, SP: Cultrix. ) não nos autoriza a cristalizá-lo em uma hierarquia da qual o significado se beneficiaria mais que o significante, ficando fixado no lado superior da barra do signo e sendo “subvertido” por Lacan – como costumamos pensar a partir da psicanálise. De qualquer forma, hoje sabemos (Arrivé, 2010) que o Saussure escrito por ele mesmo pode ressoar mais no Lacan leitor de linguística, do que aconteceria se eles fossem equiparados por meio do Curso de Linguística geral ( 1916Saussure, F. (1916/2006). Curso de Linguística Geral. (27a. ed.). São Paulo, SP: Cultrix. /2006), publicado pelos alunos de Saussure. Nesse sentido, deixamos a relação entre significado e significante para a própria abordagem lacaniana.

Passando para Saussure, primeiramente, a língua é metaforizada como um oceano de diferenças. Dito de outro modo, a língua não é uma matéria, pois seus elementos não são decomponíveis ao nível de uma individualização como seria um elemento químico, que pode ser apreendido em si. Cada característica das diferenças da língua é considerada como um termo matemático, ou seja, como uma parte necessariamente atrelada a uma relação. No entanto, essa rede de diferenças não tem um substrato que a sustente. Os termos não existem como entidades, já que remetem um ao outro de maneira circular para gerar sentido, justamente pela diferença entre eles. Por exemplo, nada se diz sobre uma palavra e apenas uma, isso fica muito evidente do ponto de vista fonético (como no francês champ e chant ). No lugar de uma substância unificante, segundo a leitura de Depecker ( 2011Depecker, L. (2011). Compreender Saussure a partir dos manuscritos. Rio de Janeiro, RJ: Vozes. ), Saussure estipula uma ilusão, uma suposição involuntária e necessária para que o espírito capte a língua. Trata-se do ponto de vista sintático adotado por alguém, o qual estipula as possibilidades para certa linguagem.

Os pontos de vista não são infinitos, mas determinados pelas dimensões sincrônica e diacrônica. Sincrônica, recortada de um momento do tempo, numa linha horizontal; diacrônica, recortada através do tempo, numa linha vertical. Uma entidade (traços, sílabas, palavras etc.) só se torna uma unidade linguística quando delimitada dentro desses dois eixos. Essa delimitação, segundo Depecker ( 2011Depecker, L. (2011). Compreender Saussure a partir dos manuscritos. Rio de Janeiro, RJ: Vozes. ), é a própria “significação”, ou “sentido”, no vocabulário saussureano. A significação conduz à noção de valor, pois ela se sustenta nele produzido pelas diferenças entre as unidades. Se a forma e o sentido são mutáveis, posto que existem várias línguas e que uma mesma língua se transforma, a única constante capaz de manter a coerência das transformações é a criação do valor enquanto representante algébrico. Os valores possíveis, tal como os pontos de vista, não são infinitos, já que dentro de uma delimitação de perspectiva a língua terá uma quantidade finita de unidades. Assim, a única expressão realmente apreensível da linguagem e a única constante é, para Saussure ( 2004Saussure, F. (2004). Escritos de Linguística Geral. São Paulo, SP: Cultrix. ), o valor, que delimita o fundamento da língua na relação entre, no mínimo, dois termos.

Conduzindo-nos, agora, pelas noções de diferença, de sequência de unidades e de valor, voltamos nosso olhar à obra de Freud. Cumpre dizer que a relação da psicanálise com a linguística se pauta em uma analogia lógico-estrutural, já que elas não tratam do mesmo objeto. Quanto a Freud ( 1901Freud, S. (1901/1996). Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro, RJ: Imago. /1996), restringimo-nos ao livro A psicopatologia da vida cotidiana. Ele compõe, segundo Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ), a tríade canônica do inconsciente estruturado como uma linguagem, junto com A interpretação dos sonhos e O chiste em suas relações com o inconsciente . Na obra em questão, Freud ( 1901Freud, S. (1901/1996). Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro, RJ: Imago. /1996) inicia um “inventário” do inconsciente manifesto em atos “banais”, escolhendo como ponto de partida o esquecimento dos nomes próprios, fenômeno importante para uma caracterização generalista do inconsciente.

O caso demonstrativo é o esquecimento do nome Signorelli, pintor dos afrescos das Quatro últimas coisas na catedral de Orvieto, Itália, ocorrido em um diálogo com um desconhecido, a caminho da Herzegovina. Na ocasião, junto ao esquecimento de Signorelli, surgiu a falsa memória de Botticelli e de Boltraffio. Para Freud ( 1901Freud, S. (1901/1996). Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro, RJ: Imago. /1996), a razão do esquecimento não se encontra em uma propriedade do nome esquecido, mas em sua relação com o assunto do diálogo anterior. No caso, os interlocutores se referiam a um chiste sobre os turcos da Bósnia e da Herzegovina, caracterizados por uma total confiança no médico, nomeado como Herr, e por uma conformação peremptória ao destino. Outra percepção consiste no fato de que o referido assunto atrapalhou o pensamento subsequente por ter sido propositalmente afastado da atenção de Freud e por se conectar, ainda, a um terceiro tema. Esse último dizia respeito a outra anedota sobre os turcos, a qual demonstra o paradoxo entre sua resignação perante a morte e seu notável desespero perante a impotência sexual. A anedota fora suprimida tanto por polidez, quanto porque a associação entre morte e sexualidade remetia Freud ao suicídio de um paciente que sofria de um distúrbio sexual, ocorrido em Trafoi. O assunto principal não era consciente no momento da confusão com o nome, porém, a semelhança entre Trafoi e Boltraffio leva Freud a colocá-lo na sequência de fatores determinantes. Outra observação é a da não causalidade do esquecimento, atrelado, portanto, a um motivo. Nesse momento, Freud ( 1901Freud, S. (1901/1996). Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro, RJ: Imago. /1996) está às voltas com uma estrutura e um mecanismo que produziram o seguinte acontecimento: a repulsa por uma memória surgiu na incapacidade de recordar outra que se queria lembrar, devido a um modo de “conexão associativa . . . .” (Freud, 1901Freud, S. (1901/1996). Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro, RJ: Imago. /1996, p. 9) que apresenta nomes substitutos, produzindo uma “espécie de compromisso” (Freud, 1901Freud, S. (1901/1996). Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro, RJ: Imago. /1996, p. 9) que, segundo Freud, “. . . lembram tanto aquilo que eu queria esquecer quanto o que queria recordar” (Freud, 1901Freud, S. (1901/1996). Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro, RJ: Imago. /1996, p. 9).

Por fim, o diagrama da “natureza do enlace” (Freud, 1901Freud, S. (1901/1996). Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro, RJ: Imago. /1996 p. 9) atestado por Freud pode ser descrito do seguinte modo: (1) o nome Singorelli se divide em Signor e elli ; (1) o segundo ( elli ) pedaço conseguiu transitar conscientemente nos nomes substitutos, enquanto o primeiro ( signor ), equivalente italiano ao Herr , permaneceu inconsciente devido a sua ligação com os temas recalcados (morte e sexualidade); (3) um dos nomes substitutos, Boltraffio, por conter o “traf”, de Trafoi, também enlaça a cadeia pela aproximação com o assunto do signor/herr recalcado. O deslocamento realizado pelo substituto de Signor , ocorrido entre Her- zegovina e Bós- nia é, como ressalta Freud, “. . . sem qualquer consideração ao sentido ou aos limites acústicos das sílabas” (Freud, 1901Freud, S. (1901/1996). Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro, RJ: Imago. /1996, p. 10). Portanto, esses nomes que contêm relações e pedaços figurados do Signor, formam uma espécie de “pictogramas” (Freud, 1901Freud, S. (1901/1996). Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro, RJ: Imago. /1996 p. 10) para uma sentença que acaba por se formar como um enigma, tal como um rébus. A relação entre o tema em que apareceria o Signorelli e o tema recalcado que o precedeu se deu apenas pela aproximação inconsciente de partes de palavras. Convém mencionar que esta dinâmica é caracterizada como uma “natureza típica” à “condição interna ligada ao material psíquico” (Freud, 1901Freud, S. (1901/1996). Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro, RJ: Imago. /1996 p. 11), o que nos direciona a uma perspectiva estrutural.

Outros tipos de esquecimento também atestam esse funcionamento do inconsciente. Tanto no esquecimento de palavras estrangeiras quanto no de sequências de palavras, bem como nos lapsos de leitura e de escrita, a constante é a existência de uma espécie de “corrente interna” (Freud, 1901Freud, S. (1901/1996). Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro, RJ: Imago. /1996, p. 21) de “auto-referência” (Freud, 1901Freud, S. (1901/1996). Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro, RJ: Imago. /1996, p. 22) que associa o elemento distorcido a algum pensamento inconsciente, este último carregado de “afetos intensos e quase sempre penosos” (Freud, 1901Freud, S. (1901/1996). Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro, RJ: Imago. /1996, p. 20). O teor autorreferente parece ocupar, inclusive, o entremeio de qualquer interlocução, fazendo das questões do outro uma referência contínua às nossas – algo como o discurso do Outro em Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ), que veremos.

O modus operandi dessa associação entre pensamento inconsciente e palavras esquecidas se caracteriza por certa superficialidade chistosa, procedendo por correlação entre a forma dos elementos da língua como ambiguidades verbais e homofonias. Ao mesmo tempo, nos casos em que uma falsa lembrança encobre aquela que se deseja lembrar, aquilo que surge pode ter uma relação de conteúdo com o que se esqueceu, mas, de todo modo, aparece por uma relação indireta da forma. Por exemplo, Freud ( 1901Freud, S. (1901/1996). Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro, RJ: Imago. /1996) fala de uma senhora que esqueceu o nome de Jung e, ao associar diversos nomes aleatórios na esperança de lembrar o nome dele, deparou-se com o ressentimento com relação a sua juventude ( young ), devido à morte do marido. Aqui, vislumbramos outro ponto a ser considerado: um nome esquecido frequentemente não é o núcleo do embaraço, mas sim um elemento que se liga a outro elemento mais próximo do referido núcleo, de modo que os mecanismos do recalcamento ficam ativados. O próprio conflito que acomete um termo, segundo descreve Freud ( 1901Freud, S. (1901/1996). Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro, RJ: Imago. /1996), “. . . salta de um nome para o outro, como que para provar a existência de um obstáculo que não é facilmente superável” (p. 34).

Dado esse arranjo apresentado por Freud, de uma corrente interna pela qual transitam elementos tão minuciosos quanto pedaços de palavras carregados de afeto, e estipulado também o mecanismo do recalque agindo na produção dos efeitos envolvidos, passamos agora para algumas considerações lacanianas sobre o inconsciente de Freud, pronunciadas n’ A instância da letra ou a razão desde Freud (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ).

O inconsciente, interpretado por Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ) na obra de Freud, configura-se diverso da noção de matriz instintual, que era tendência psicanalítica naquela época. Na verdade, seu elemento é a letra, advinda de um discurso que preexiste ao sujeito e ao seu posicionamento no mundo humano, como é o caso, por exemplo, do nome próprio na existência do infans nomeado por alguém antes de seu nascimento. Essa apreensão da instância da letra é resultado de algumas elaborações que Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ) realiza com a linguística. Trata-se da colocação do significante sobre o significado (S/s), termos pertencentes à lógica do algoritmo do signo e vislumbrada por Lacan na “corrente interna” freudiana. As primeiras considerações propriamente psicanalíticas sobre o significante, no caso d’ A instância da letra (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ), são: (1) o significante e o significado são separados por uma barreira que resiste à significação; (2) toda significação só pode ser sustentada por uma outra significação; (3) e ainda, o desprendimento da noção de que o significante está preso na função representativa do significado, largamente empregada por um positivismo lógico à procura do “sentido do sentidos” (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. p. 501), odisseia da qual se afasta o processo analítico. No caso lacaniano, o significante tem certa primazia na resolução da significação, a despeito do significado.

Para demonstrar seu argumento definindo o algoritmo, Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ) introduz a imagem de duas portas de banheiros, idênticas, cada uma denominada segundo os gêneros “homens” e “mulheres”. Assim, fica nítido a frouxidão do relacionamento entre significante/significado, pois as mesmas portas indicando ora homens e ora mulheres poderiam indicar, ainda, uma suposta estação à qual chegam os viajantes de trem, como no exemplo em que duas crianças brigam: “chegamos a Mulheres! Imbecil, não vês que estamos em Homens?” (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p.502). Esse exemplo ainda vai além ao demonstrar como os dois gêneros são igualmente significantes aos quais os indivíduos se agarram com maior ou menor fixidez em suas vidas, e que só têm valor por remissão e oposição de um ao outro.

Como em Saussure, o significante tem por estrutura a necessidade de ser articulado, e aqui é ele que puxa a direção da significação. O faz desde duas propriedades, a de ser estritamente um elemento diferencial e a de responder às leis de uma ordem específica. A definição para esse arranjo é a de cadeia significante, e seu desenho é descrito por Lacan como “. . . anéis cujo colar se fecha no anel de um outro colar feito de anéis” (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 505). Não é por se tratar de uma imagem aparentemente infinita que podemos dizer que o processo de significação é simplesmente “para-além” (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 505) dos limites da linguagem. Poderia ser o contrário, tendo em vista que o significante psicanalítico, anterior ao sentido, limita-o colocando para ele sua dimensão, ou seja, fechando um encadeamento de sentido. Nesse mesmo plano, podemos dizer que nenhum significante solo consiste na significação possível ao sentido, mas que é pela cadeia significante que o sentido insiste (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ). Em todo caso, esse sistema, de tendência hermética limitada por alguns significantes que se registram no infans , conta também com a possibilidade de furos de sentido, como veremos a seguir.

Na malha do discurso lacaniano de 1957, o eixo diacrônico tem um lugar privilegiado a despeito de uma suposta centralidade da sincronia na linguística. Está nele a possibilidade de novas significações. Ou seja, em cada termo de uma linha horizontal da língua se desenha uma vertical, que articula outras correntes balizadas pelo mesmo termo. Percebemos aí o “paralelismo do significante” (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 507), isto é, a existência de outras linhas significantes próximas a uma linha significante tomada como referência, e que podem de certo modo ser ligadas pela linha vertical de um significante só. O emaranhado das cadeias significantes tem por propriedade, então, a capacidade de expressar algo mais que o dito. Em certa perspectiva, podemos perceber a determinação paradoxal dessa estrutura, tão limitadora quanto criativa. São duas as funções significantes constituintes desse caráter. Uma delas é a metonímia, predominante na sincronia. No pensamento lacaniano, ela não é tomada apenas como “a parte pelo todo”, mas como movimento “de palavra em palavra” (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 509), em que um termo, por estar ausente devido a tal deslocamento, não cessa de afirmar sua presença. A outra função do significante é a metáfora, correndo pelo eixo diacrônico. Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ) vai estipular a metáfora um pouco além da simples conjugação de significantes. Para essa definição, sobretudo pela sua relação necessária com a metonímia, convém transcrever suas palavras:

A centelha criadora da metáfora não brota da presentificação de duas imagens, isto é, de dois significantes igualmente atualizados. Ela brota entre dois significantes dos quais um substituiu o outro, assumindo seu lugar na cadeia significante, enquanto o significante oculto permanece presente em sua conexão (metonímica) com o resto da cadeia . . . . Uma palavra por outra , eis a fórmula da metáfora. . . .

(Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 510)

O exemplo por excelência do poder da metáfora está no chiste, por vezes denominado como o dito espirituoso, o que, para Allouch ( 2014Allouch, J. (2014). A psicanálise é um exercício espiritual? Resposta a Michel Foucault. Campinas, SP: Editora Unicamp. ), representa o poder espiritual da palavra – em suma, seu poder de afecção, de transformação. Ou seja, o dito espirituoso, a piada, a bon mot , demonstra que a metáfora é capaz de fazer caminhar a significação, de produzir sentido novo por meio do inesperado, já que o joga sempre a outros planos de significação e cria também afecções, como a risada.

Ainda sobre a metáfora e a metonímia, a primeira também pode ser apreendida como a superposição de significantes, e a segunda como o transporte da significação entre significantes. Assim, Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ) coloca a metonímia como articuladora do desejo, já que, partindo da ligação entre significantes, ela instaura a falta do ser na relação com os objetos, fazendo com que o desejo seja investido pelo envio da significação, a qual visa justamente o objeto perdido. Para Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ), nesse caso, a barra da significação própria ao algoritmo S/s nunca é transposta, e o sentido caminha sempre no mesmo plano. Já a metáfora, atuando desde a substituição do significante por outro significante, transpõe a barra do algoritmo e produz significação devido a essa substituição/transposição. Essa concepção permite a Lacan atrelar a metáfora ao funcionamento do sintoma. Sua manifestação seria como um efeito de significação, dada pela relação entre o “significante enigmático” (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 522) do trauma e o termo (outro significante) que ele substitui em uma cadeia de significantes atuais. Para tanto, todos os elementos envolvidos no trauma são tomados como significantes. O ponto de resolução dessa significação fica inacessível ao eu consciente, resultando na série de inconvenientes que se desdobram de um sintoma. Quanto ao desejo ligado à estrutura metonímica, é de se considerar a pane que ele representa para um pensamento biológico do instinto, atestado pelo seu caráter de “abismo do infinito” (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 522) e pelo seu teor de “desejo de outra coisa” (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 522). A explicação dessas características é encontrada na “captação” do desejo pelos “trilhos” da metonímia, de tal modo que certa cadeia de significantes, ligadas à memória de um “desejo morto”, “insiste” (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 522) em seguir adiante. Nesse ponto, as duas funções do inconsciente aparecem misturadas, na medida em que a verdade (significação) desse desejo morto é aquilo que tenta aparecer pelo sintoma.

Ao tocar o nível do registro relacionado ao desejo e ao sintoma por meio de uma técnica que utiliza da cadeia significante, Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ) se posiciona mediante a história do pensamento ocidental quando afirma: “É também por isso que somente a psicanálise permite diferenciar, na memória, a função da rememoração. Enraizada no significante, ela resolve, pela ascendência da história no homem, as aporias platônicas da reminiscência” (p. 523), tendo em vista que a rememoração percorre um trilho de formas e de significantes balizados pelo registro de um significante inicial, sem significado algum, que sustenta o resto da cadeia. Conforme entende Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ), na tríade do significante encontramos a “via régia para o inconsciente” ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 513), a mensagem e a descoberta freudiana em sua totalidade. Tanto o sonho quanto a disposição dos atos-falhos e do sintoma são um rébus, ou seja, uma organização chamada de “literante” (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 513) ou fonemática, indicando a primazia dos pedaços de palavra como a forma mais elementar de seu conteúdo. A significação do sonho e dos lapsos só pode ser estipulada se suas imagens forem apreendidas como significantes que, soletrados, culminam na frase de conclusão do rébus. Essa técnica analítica não deve ser lida desde uma perspectiva em que, nas palavras de Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ), “. . . prevaleça o preconceito de um simbolismo que deriva da analogia natural, ou então da imagem redutora do instinto” (p. 514). A posição analítica é diferenciada daquela que supõe decodificar algo, enquanto com Freud o que se faz é decifrar algo. A diferença entre os dois verbos, do ponto de vista lacaniano, é sustentada pelo fato de que a decodificação parece remeter a uma língua hipostasiada, como a noção a-histórica do desenvolvimento natural do instinto humano, ao passo que a decifração se volta a criptogramas feitos por dimensões de uma língua perdida que precisa ser reconstruída, ou seja, o discurso do inconsciente.

Como dissemos, o manejo dos impasses dentro de uma experiência de si, quando é pela via do significante, só ocorre por um número limitado desses. Temos, portanto, a noção de que o caminho para a dissolução de um impasse neurótico segue a mesma lógica do caminho de seu sintoma. Seja qual for a neurose, ela é como um enigma colocado ao sujeito pelo “ser” (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 524), ao que entendemos que é posto pela cultura o lugar preexistente ao nascimento do sujeito. Ao mesmo tempo, não parece ser suficiente para uma cura chegar até o ponto de equação dos significantes causadores dos impasses, o que exige do processo analítico a abertura à possibilidade de uma nova significação gerada pela metáfora. Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ) se refere ao fato de que o inconsciente não é uma substância, nem metafísica nem natural, que seria conhecida apenas por algumas figuras e sobre a qual o saber nos seria injetado por seus especialistas. Abordar o inconsciente como uma linguagem é colocá-lo do lado daquele que fala sobre si, e não do lado daquele para quem se fala sobre si. De elementar, o inconsciente, em termos lacanianos, “conhece apenas os elementos do significante” (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 516).

Junto a essas considerações sobre a instância da letra no inconsciente, Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ) insere a questão da “função do sujeito” (p. 519). O sujeito está para o universo de Freud tal como estamos para o universo de Copérnico. Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ) afirma estar “. . . mais uma vez em pauta o lugar que o homem confere a si mesmo no centro de um universo” (ênfase adicionada, p. 520). Parece ser disso que se trata o sujeito inconsciente e sua relação com a verdade. Nesse ponto, Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ) lança a questão: o lugar do sujeito do significante é o mesmo que o lugar do sujeito do significado? Esses lugares convergem ou se afastam? Quando falamos de nós, somos semelhantes àquele de quem falamos? A metáfora e a metonímia podem demonstrar justamente que essa identificação é cindida, posto que os efeitos de significação advindos da enunciação de uma pessoa são efeito da referência a um significante esquecido.

Segundo Lacan, a “verdade freudiana” é pelos traços da letra que “ardemos em seu fogo” (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 512). Assim, essa verdade é o próprio sujeito do inconsciente, desdobrado de nossa relação com o significante e seus efeitos de significação. Para essa definição do sujeito entre significantes, convém retomar uma citação encontrada no texto Subversão do sujeito:

Nossa definição do significante (não existe outra) é: um significante é o que representa o sujeito para outro significante. Esse significante, portanto, será aquele para o qual todos os outros significantes representam o sujeito: ou seja, na falta desse significante, todos os demais não representariam nada.

(Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 833)

Em certo sentido a concepção de sujeito está determinada por um significante, mas não completamente, posto que aquilo que ele representa depende do outro significante que a ele se conecta, o qual é, de certo modo, imprevisível. Também importa a forma como eles estão relacionados, podendo gerar efeitos diversos e, portanto, diversas significações.

Desse modo, reconhecer o sujeito não designa um compromisso e uma reconciliação com o eu, ou a descoberta de um outro tipo de eu. Não se trata, também, de chegar em uma “personalidade total” (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 512). Essa descoberta freudiana revela, na verdade, uma heteronomia imanente a cada um inserido na linguagem. Lacan pergunta: “Qual é, pois, esse outro a quem sou mais apegado do que a mim?” (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 528), esse que faz a mediação entre minha relação comigo e minha relação com meus semelhantes? Essa heteronomia tem relação com o fato de o inconsciente ser resultado do discurso do Outro nesse grande oceano de significantes no qual nascemos, o “império da confusão” (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 530), sendo algo que nos constrange. Ela diz também que o sujeito do inconsciente nunca coincide com o discurso do Outro. No entanto, é entre significantes desse discurso que o sujeito emerge. O próprio discurso não é o Outro, mas aquilo que dele nos resta, ou seja, seus pedaços de palavras, o enxame de significantes, em que se aloca o movimento do desejo por metonímia e as intersecções criativas da metáfora.

Segundo essa estrutura, aquilo que chamamos de verdade aqui (em psicanálise essa noção é polissêmica) não poderá ser encontrada em um sentido absoluto, mas justamente nos efeitos de significação. O sujeito é, portanto, propriamente isso que aparece como diferenciação dentro de um plano de enunciação da verdade, ou mesmo isso que aparece como “falha” dentro do sentido de uma ação. Ele demonstra tanto o caminho para uma confusão, como no sintoma, quanto aponta para a possibilidade de algo que ultrapasse o discurso do Outro, justamente para a possibilidade de uma singularização de uma diferenciação.

Considerações finais

Estipulamos A Hermenêutica do Sujeito (Foucault, 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ) como terreno para a visada desse texto. Com isso abrimos um caminho específico, qual seja desenvolver a questão foucaultiana sobre a possibilidade da psicanálise corresponder às exigências do cuidado de si, encarada sobre a forma com que ela forja a noção de sujeito e sua consequente relação com a verdade. Para cumprir essa tarefa, procedemos pela exposição das lógicas de definição do sujeito, tanto no discurso de Foucault ( 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ) quanto no de Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ).

Do lado de Foucault ( 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ), o sujeito que se define só existe no entremeio de um percurso diferencial, e nunca como uma substância. Dentro da dobra instaurada pela conversão a si, é apenas por oposição e em relação ao si mesmo que era e ao si mesmo que será que o sujeito se forma. O mesmo ocorre com a lógica do sujeito do inconsciente, que só tem seu valor próprio quando aparece entre outros significantes existentes na cadeia de significação. Portanto, a analogia ocorre a partir da lógica diferencial e da criação de valor por relação e oposição, já que em ambos os pensamentos o desenho se forma por um termo entre dois outros. Evidentemente, essas noções não se definem no mesmo plano, tendo em vista que em Foucault ( 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ) o si mesmo não é problematizado desde uma alienação fundamental na linguagem e muito menos desde uma existência como infas , mas a partir de uma existência política inserida em um contexto especificamente filosófico. Outro fator também separa os dois pensamentos, pelo menos à primeira vista. Em Foucault ( 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ), aquilo que a conversão a si proporciona depende, de modo tanto inaugural quanto final, do ganho de um “algo a mais”, o qual se acopla ao sujeito para que se produza a possibilidade da relação consigo e com o outro. Ao contrário, em Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ) a subjetivação depende de uma morte do objeto instaurada justamente pelos significantes iniciais, perda esta responsável pelo movimento metonímico do desejo que tem sua significação direcionada àquele objeto. É nesse sentido que definimos uma analogia restrita ao desenho lógico da estrutura da subjetivação.

Outra analogia, secundária, pode ser vista na questão do uso da palavra que incide na subjetivação, pela qual, em ambos os pensamentos, a ênfase recai na primazia da enunciação. A parrhesía , tal como interpretada por Foucault ( 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ), faz de qualquer enunciado uma ferramenta de enunciação, com ênfase no modo de dizer que procura dar lugar à força do dito e não ao seu conteúdo, inserido em uma cadeia filosófica. Do mesmo modo, a técnica analítica não se dirige ao enunciado, mas intervém na enunciação, via pela qual a cadeia significante se desvela. O enunciado, ao contrário, é uma dimensão separada da enunciação pela barra do recalcamento que impede a coincidência entre os dois sentidos: o consciente e o inconsciente. Desde Freud, a técnica não consiste em tentar ajustar representação e conteúdo verdadeiro, mas em trabalhar com os efeitos afetivos que o processo enunciativo proporciona, sem saber exatamente qual a sua direção. Na interpretação de Foucault ( 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ), a relação espiritual antiga se fundamenta em um educere , ou seja, em uma mão estendida por alguém que exerce a função terapêutica de contribuir com a cura daquele que o procura. Ela se afasta, portanto, de um educare pedagógico, no qual prevalece o ensino de um conhecimento. Nesse ponto, o objetivo da psicanálise parece o mesmo, sendo a relação transferencial entre analista e analisante fundamentada não na necessidade de um aprendizado, mas de uma cura que, no caso lacaniano, ocorre pelos caminhos significantes, e nunca na exploração do sentido dos sentidos (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ). A imagem da dobra, uma afecção de si por si que ocorre pela palavra e passa por outrem, também parece coerente para representar os dois campos.

E o manejo da rememoração, tanto em um caso quanto em outro, procura deliberadamente se afastar de um platonismo e de um cristianismo cristalizados na reminiscência. Essa dimensão é largamente explicitada por Foucault ( 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ) no curso de 1982, já que o si mesmo nunca reencontra o si mesmo perdido, e só recorre à memória para encontrar a forma e a força da verdade contida nos preceitos que se inserem em uma “cadeia de exemplos vivos” (Foucault, 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ). E Lacan ( 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ) também afasta a psicanálise do preceito délfico, quando afirma que Freud toca “na conversão dos procedimentos da exegese” (p. 531), transformando-os. Isso diz respeito ao fato de que a rememoração psicanalítica já não é uma reminiscência, e sim uma rememoração do significante e de sua relação com a cadeia. Ou seja, não é uma busca metódica por um conteúdo único e determinante, muito menos uma “categorização psicológica” (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 532), mas a atenção a uma sequência de formas que deslizam e se condensam, gerando toda uma série de efeitos dos quais o desejo e o sintoma nos dão o testemunho.

A psicanálise corresponde, portanto, às exigências da espiritualidade? A princípio, sob o recorte feito por esse manuscrito, sim. Elas se aproximam tanto pela estrutura de definição do sujeito quanto pelos outros fatores correspondentes a ela, como a questão da técnica envolvida no uso da palavra e na rememoração em direção à verdade. No entanto, todas essas ressonâncias são ainda incipientes, tendo em vista justamente essa mesma pergunta: a psicanálise estaria mesmo alocada na predominância de uma ética do cuidado de si? Em nossa opinião, existe um fator que deixa o estado da questão ainda em aberto. O cuidado de si enquanto preceito é descrito historicamente por Foucault ( 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ) por meio de uma atualização, da qual o próprio conhecimento de si é um fruto. No entanto, em certos períodos o conhecimento de si ofuscou o cuidado de si, justamente nessa oposição entre um saber essencial que está perdido e um saber que nunca foi adquirido, e que depende de uma arte para ser criado. O enigma da inscrição da psicanálise no cuidado de si está no fato de que, para nós, ela parece se configurar como um palco vivo desse jogo de forças entre os dois preceitos, e não como um campo em que um deles se impõe.

Tendo em vista a heteronomia de sentido causada pelo registro de um significante primordial, podemos dizer que, até certo ponto, a psicanálise vai em direção a um saber já sabido, mas que estava esquecido. Evidentemente, ela conta com a possibilidade de ir além por meio da abertura de sentido proporcionada pela metáfora, ou seja, por um exercício criativo no manejo dos próprios significantes. De qualquer forma, o passo inicial se assemelha aos efeitos de um conhecimento de si concebido n’ A Hermenêutica do Sujeito (Foucault, 2010aFoucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes. ), e é relevante o fato de que coexistam esses dois trajetos dentro de um campo delimitado para técnica ética moderna. Ainda assim, quando respondemos que a psicanálise é sim um exercício espiritual, o ponto principal é demonstrar que, de Freud a Lacan, como em Foucault, aquilo de que se trata não está amarrado por um sentido último e definitivo, mas por uma forma que, isolada, não diz nada.

Referências

  • Allouch, J. (2014). A psicanálise é um exercício espiritual? Resposta a Michel Foucault. Campinas, SP: Editora Unicamp.
  • Ayouch, T. (2015) Foucault pour la psychanalyse : vérité, véridiction, pratiques de soi. In L. Laufer, & A. Squverer (Org.), Foucault et la psychanalyse: Quelques questions analytiques à Michel Foucault (p. 97-122). Paris: Hermann.
  • Ayouch, T. (2016) De L’Herméneutique au stratégique: Sexuations, sexualités, normes et psychanalyse. In S. Boehringer, & D. Lorenzini (Org.), Foucault, la sexualité, l’Antiquité (p. 167-186). Paris: Kime.
  • Deleuze, G. (2005) Foucault. São Paulo, SP: Brasiliense.
  • Depecker, L. (2011). Compreender Saussure a partir dos manuscritos. Rio de Janeiro, RJ: Vozes.
  • Foucault, M. (2013). L’origine de l’hermeneutique de soi: Conférences prononcés à Dartmouth College 1980. Paris: Vrin.
  • Foucault, M. (2010a). A hermenêutica do sujeito. (3ª. ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes.
  • Foucault, M. (1988). História da Sexualidade I: A vontade de saber. (10a. ed.) . Rio de Janeiro, RJ: Edições Graal.
  • Foucault, M. (1984). História da Sexualidade II: O uso dos prazeres. (14a. ed.). Rio de Janeiro, RJ: Edições Graal.
  • Foucault, M. (2010b). O Governo de Si e dos Outros: Curso dado no Collège de France. São Paulo, SP: WMF Martins Fontes.
  • Foucault, M. (2011). A Coragem da Verdade: O Governo de Si e dos Outros II: Curso dado no Collège de France. São Paulo, SP: WMF Martins Fontes.
  • Freud, S. (1901/1996). Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro, RJ: Imago.
  • Freud, S. (1900/1996). A Interpretação dos Sonhos (Vol. IV-V). Rio de Janeiro, RJ: Imago.
  • Freud, S. (1905/2017). O chiste e sua relação com o inconsciente. São Paulo, SP: Companhia das Letras.
  • Han, B. (2016). Analítica da finitude e história da subjetividade. In G. Gutting (Org.), Foucault. São Paulo, SP: Ideias e Letras.
  • Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
  • Saussure, F. (1916/2006). Curso de Linguística Geral. (27a. ed.). São Paulo, SP: Cultrix.
  • Saussure, F. (2004). Escritos de Linguística Geral. São Paulo, SP: Cultrix.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    10 Jan 2024
  • Aceito
    15 Fev 2024
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - Bloco A, sala 202, Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, 05508-900 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revpsico@usp.br