UM MODELO DE COMPORTAMENTO ACADÊMICO
Marcello G. Tassara
Escola de Comunicações e Artes - USP
Nos dias que correm, em que a Academia ameaça submergir, como uma pequena Atlântida à deriva, na mundialização míope de nossos governantes - muitos deles, paradoxalmente, incubados na própria instituição - torna-se muito difícil oferecer aos noviços os modelos referenciais necessários à continuidade de sua existência.
No bojo desta modernidade desvairada em que vivemos, ciência, arte e filosofia - ou melhor, os profissionais que a elas dedicam suas vidas - parecem perdidos, assombrados pelos clones, internetes e outras realidades digitalizadas que emergem do mais estreito gargalo da história do conhecimento humano. Estes fantasmas, que nos impõem diariamente suadas reflexões, propõem-nos novos enigmas e desafiam antigos conceitos éticos, são parte de um contexto aberto no qual, mais do que nunca, se tornam indispensáveis os modelos positivos de comportamento científico e acadêmico. No entanto, outro paradoxo acusa um perigoso escassear desses modelos.
Quando o destino - ou a ingenuidade - depositou em minhas mãos a tarefa de traduzir a saga da fundação da USP em um filme de longa-metragem, os primeiros pensamentos - tanto da equipe como os meus - voltaram-se para as origens, para os velhos luminares que, efemeramente, emprestaram seu brilho à nossa instituição maior: um brilho que não se limitava à competência científica, mas que ia muito além, irradiando brio, força moral, dignidade. Muitos dos que vieram a reboque desses fundadores também brilharam, embora apenas refletindo respeitosamente as fontes primordiais. Mas, era claro que, se a instituição pretendesse subsistir, precisaria de luzes próprias, nascidas em seu interior. Quer a nossa antropofágica história, porém, que muitas destas luzes, sem chances de se expressarem, venham constantemente a bruxulear nos labirintos amorfos dos interesses menores, nas armadilhas insidiosas que se encontram esparsas dentro da Academia e em suas contigüidades. Assim, a iluminação global é pequena, insuficiente, muito aquém do mínimo necessário, Pior: tende a reduzir-se ainda mais.
Nos momentos em que o filme ainda estava em fase de concepção, alguns nomes apareceram em mais do que uma das várias hipóteses de roteiro. O nome de Carolina Bori apareceu em todas. Perde-se nos meandros de minha memória o primeiro momento em que ouvi falar seu nome. Mas a intuição do cineasta não se enganaria. Colhi suas palavras com o mesmo cuidado de quem colhe uma rara flor. Em seu depoimento, permeava claramente o rigor da ciência, a solidez da ética e a paixão do mais nobre humanismo. Tudo convivendo em uma única e íntegra personalidade que muito lembrava a dos velhos luminares.
Carolina sempre carrega consigo as componentes de um perfeito ser acadêmico, juntamente com o alto preço que essa carga representa; encarna um dos admiráveis pioneiros que atravessa incólume os labirintos e armadilhas, tornando-se, ela mesma, uma luz que, a um só tempo, alimenta as mentes sadias e ofusca as mesquinhas.
Na encruzilhada de futuro incerto em que todos nos encontramos - mundo, país, universidade - que se multiplique seu exemplo. Como espelho. Como história viva, aquela que permanece registrada para sempre. E, em que pesem as ameaças que recaem sobre a nossa pequena Atlântida, modestamente, presto minha homenagem à Cidadã Carolina Bori. Cidadã da Academia. Acima de qualquer suspeita.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Nov 1998 -
Data do Fascículo
1998