Open-access O arquivo como espaço aurático de imagens da loucura

L’Archive comme espace auratique des images de la folie

El archivo como espacio aurático de imágenes de la locura

Resumo

Neste artigo temos como objetivo problematizar a função do arquivista no trabalho de catalogação das obras expressivas da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, localizado em Porto Alegre, RS. Entendemos que, neste procedimento, é possível realizar um exercício de desmontagem do território a partir de escolha ética sobre o modo de narrar e analisar as criações daqueles que foram levados a viver na marginalidade da sociedade, asilados por longo tempo em hospital psiquiátrico. Nesse sentido, nossa intenção segue no contra fluxo dos discursos hegemônicos patologizantes, produzindo outros enunciados sobre o louco e suas linguagens destoantes. Como cartógrafos da memória e do esquecimento, os arquivistas da Oficina de Criatividade lançam-se à experimentação de novas sensibilidades em seu encontro com imagens auráticas. Com o acervo crescendo a cada dia, os arquivistas afirmam o caráter fragmentário da memória e a incompletude característica da contínua consignação de um arquivo inacabável.

Palavras-chave: arquivo; memória; loucura; imagem

Résumé

Dans cet article, nous cherchons à problématiser le rôle de l’archiviste dans le travail de catalogage des œuvres expressives de l’Atelier de Créativité de l’Hôpital Psychiatrique São Pedro, situé à la ville de Porto Alegre/RS, au Brésil. Nous comprenons que dans cette procédure, il y a la possibilité d’un exercice de démontage du territoire, soutenu par un choix éthique sur la façon de raconter et d’analyser les créations de ceux qui ont été marginalisés de la société, abrités pendant longtemps dans l’hôpital psychiatrique. En ce sens, notre intention est à contre-courant des discours hégémoniques pathologisants pour produire autres énoncés sur le fou et ses langages dissonants. Comme cartographes de la mémoire e de l’oubli, les archivistes de l’Atelier de Créativité se jettent à l’expérimentation des nouvelles sensibilités dans leur rencontre avec les images auratiques. À la mesure que la collection croît, les archivistes affirment le caractère fragmentaire de la mémoire et l‘incomplétude propre de la progressive consignation d’une archive interminable.

Mots-clés: archive; mémoire; folie; image

Resumen

En este artículo se pretende analizar el papel del archivero en el trabajo de catalogación de obras expresivas del Taller de Creatividad del Hospital Psiquiátrico São Pedro, ubicado en la ciudad de Porto Alegre, Río Grande do Sul (Brasil). Entendemos que en este procedimiento se puede realizar un ejercicio de desmantelamiento del territorio con base en una decisión ética acerca del modo de narrar y analizar las creaciones de los que fueron llevados a vivir a las márgenes de la sociedad, asilados durante mucho tiempo en un hospital psiquiátrico. En este sentido, nuestra intención se presenta en contraflujo de los discursos hegemónicos patologizantes, con el fin de producir otros enunciados sobre el loco y sus lenguajes disonantes. Como cartógrafos de la memoria y del olvido, los archiveros del Taller de Creatividad se lanzan a probar nuevas sensibilidades en el encuentro con las imágenes auráticas. A medida que la colección crece día a día, los archiveros afirman el carácter fragmentario de la memoria y la incompletud característica de la asignación continua de un archivo sin fin.

Palabras clave: archivo; memoria; locura; imagen

Abstract

In this article we seek to problematize the role of the archivist in the cataloging of creative works produced by the Creativity Atelier at the São Pedro Psychiatric Hospital in Porto Alegre, RS, Brazil. Within this undertaking, we deem it possible to conduct an exercise in the dismantling of a territory instituted on an ethical decision sustained by a mode of narration and analysis of creations produced by individuals relegated to the margins of society, namely those who are institutionalized for lengthy periods of time in a psychiatric hospital. In this sense, our intent goes against the grain of hegemonic pathologizing discourses in order to produce other propositions about the mentally ill and their discordant languages. As cartographers of memory and oblivion, the archivists of the Creativity Atelier invest themselves in experimenting with new sensibilities in their encounter with auratic images. As the number of studies grows every day, the archivists affirm the fragmentary nature of memory and the characteristic incompleteness of the continuous consignment to an interminable archive.

Keywords: archive; memory; insanity; image

O território

Diante do Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), situamo-nos ante um testemunho da história da loucura no estado do Rio Grande do Sul. Quer pela edificação centenária quer pelas vidas nela emaranhadas, suas histórias e obras, deparamo-nos com imenso acervo documental que opera um chamamento à nossa vontade de saber impregnada de crítica a respeito dos procedimentos manicomiais que asilaram e marginalizaram vidas de infames acometidos pela loucura. É desde o âmbito do acervo da Oficina de Criatividade, instalada desde 1990, que temos oportunidade de contato com inúmeras obras pintadas de linguagens bizarras e destoantes, que, somando mais de 100.000, atestam que, mesmo dentro de sua loucura, os sujeitos emitem vozes de resistência ao silenciamento, mantendo acesa sua opinião expressiva e narrativa através da produção de imagens.

Compondo e derivando das atividades da Oficina, constitui-se, desde 2001, o acervo, que reúne esforços do campo acadêmico, profissional, técnico e comunitário no sentido de salvar, organizar, catalogar e divulgar obras expressivas produzidas pelos pacientes. Tais incumbências são desenvolvidas por uma rede solidária que integra docentes, pesquisadores, estudantes de graduação e pós-graduação, estagiários e voluntários, como também membros do próprio quadro funcional do HPSP. Criamos, com essa rede, um modo de trabalhar marcado pelas características interinstitucional e interdisciplinar, que resulta na produção contínua de formação em pesquisa, ensino e extensão.

Passamos a denominar de acervo da memória da loucura do HPSP o território desses importantes arquivos, concedendo-lhe também olhar patrimonial, executando e repensando cuidados de preservação e armazenamento a fim de evitar a ameaça de sua extinção. Assim, empilhadas e guardadas, as mais de 100.000 obras envoltas em papel pardo, ordenadas em pacotes regularmente compostos e alinhados, olham-nos e aguardam como a nos convidar a tateá-las e abri-las, para que nos surpreendam com o que ainda guardam das vozes e dos gestos dessas e daquelas vidas silenciadas e enclausuradas. Portanto, na busca de silêncios e dos restos de vidas infames submetidas ao regime de longa internação, podemos, a par de ordenar as coleções do arquivo, remexer as matérias esquecidas.

O processo de catalogação das obras nos conduz, desta maneira, para além de ações museológicas e de conservação, levando-nos a percebê-las como matéria de criação e resistência, ou seja, como traçados da atividade psíquica em corpos que nos aparecem como inertes ao tempo e ao espaço. A montagem desses arquivos não só fornece condições necessárias para a produção de um centro de referência para estudos das relações entre arte, loucura e sociedade, como também funda um lugar para acolher histórias de vida esquecidas no manicômio chamado São Pedro.

O arquivo e o testemunho, neste caso, evidenciam outra memória e história da loucura no estado do Rio Grande do Sul, e nossa inserção em tal campo empírico de pesquisa permite que se empreenda, pelas imagens, uma travessia que possibilita outras legibilidades e visibilidades a ser colocadas na contramão das representações que firmam o louco em identidade fixa, imutável e negativa. Historicização pela evocação daquilo que foi esquecido, pelos rastros deixados por aqueles que, algum dia, foram tocados pela luz dos poderes psiquiátrico e jurídico, que os retirou do anonimato para torná-los para sempre infames, usando aqui expressão de Foucault (2003).

O processo de catalogação das obras da Oficina de Criatividade avança e disponibiliza condições para outro tracejar da história da loucura, agora dita em primeira pessoa, assumindo teor testemunhal daqueles que sofreram sua própria trajetória como trauma e alienação. Para além da catalogação e montagem de arquivo, nossa pesquisa se propõe à prática do testemunho como posição ativa na possibilidade de nova produção acerca da loucura. Contrastando com os diversos prontuários médicos que planam sobre as vidas desses sujeitos, as obras expressivas constituem narrativas variadas, próprias ao estilo de cada um, operando como linguagem cifrada que se oferece à tradução dos arquivistas-pesquisadores.

É por isso que nos vemos diante da necessidade de pôr em questão o arquivo que vem se consignando nos espaços da Oficina de Criatividade, apostando, com Barros e Passos (2009) em exercício de desmontagem de tal território a partir de escolha ética sobre determinado modo de narrá-lo. Não se pretendendo totalizante, esta experimentação carrega consigo a potência de confronto com arquivos oficiais de saberes sobre a loucura, como seu mal ou ruína, para usar aqui termo de Derrida (2001), pois agora trata-se de colocar em cena outros elementos experienciais e subjetivos que, mesmo não tendo a qualidade da completude, sendo imparciais e talvez titubeantes, ainda assim, tornam-se gesto cuja função histórica e clínica corresponde ao enfrentamento da infâmia da loucura como trauma existencial e histórico.

Potência clínica das memórias da loucura

Podemos afirmar que o interesse de nossa pesquisa é plural: do ponto de vista dos sujeitos-artistas-loucos, queremos dar a conhecer aquilo que resiste ao sufocamento de suas forças vitais; do ponto de vista do acúmulo de obras produzidas que se empilham dia a dia no acervo, queremos dizê-lo como espécie de arquivo da memória social, ou seja, de uma memória que fala de vidas infames muito mais do que de indivíduos isolados, povo provindo das camadas pobres e incultas e que se viu preso às malhas de um saber-poder “psicologizante” que os exilou e asilou em nome da higienização da cidade.

Reunindo a pluralização de nossas intenções, convergimos em um processo de pesquisa que aponta para a potência clínica das memórias da loucura, considerando-se clínico todo procedimento que produz crítica, crise e desvio das representações tradicionais, e abrindo, assim, possibilidades para nova sociabilidade na convivência com a diferença, bem como novas modalidades de atenção à saúde mental.

Atualmente, três coleções já foram catalogadas no acervo da Oficina de Criatividade, escolhidas especialmente por seu potencial estético. No momento, damos continuidade à catalogação da artista Natália Leite, uma das poucas pacientes que ainda residem no hospital psiquiátrico e frequentadora assídua da Oficina. Natália tem uma produção expressiva bastante significativa: até agora já foram catalogadas mais de 6.000 obras da artista compreendendo o período de 1990 a 2007. Estima-se que existam ainda mais de 5.000 obras a ser organizadas e catalogadas, já que Natália permanece produzindo regularmente na Oficina, ampliando a cada dia seu arquivo e o trabalho do grupo de arquivistas.

Catalogar para não esquecer: é diante dessa proposição que nossa prática arquivística e reflexiva se desenvolve; entretanto, é importante ressaltar que, quando falamos da necessidade de não esquecer, não estamos nos referindo ao desejo de tudo guardar, ao apego ressentido ao passado. Entendemos, com Benjamin (1994), que “o passado só se deixa capturar como imagem que relampeja irreversivelmente no momento de sua conhecibilidade” (p. 243), ou seja, articular historicamente o passado não significa conhecê-lo tal como foi de fato, mas apropriar-se de uma recordação no momento em que relampeja, ou seja, sempre no agora, tempo kairós, fonte de toda e qualquer origem.

Afirmamos, ao contrário de apego ao passado, uma construção histórica de nosso próprio presente, apontando para outras práticas clínicas e sociais que possam indicar pontos de ancoragem no seio do social para todos os desventurados pelo sofrimento mental, portadores da diferença radical que se contrapõe aos modernos princípios da capacidade de prometer e pagar dívidas sociais, de deixar-se domesticar pelos padrões da produção que regem a ordenação social. Aqui falamos de homens e mulheres da diferença, de vidas do fora que, por séculos, encontram obstáculos à cidadania e acolhimento no mundo. Falamos de sujeitos da diferença que estouram as fronteiras do pensamento normalizado devido ao seu irreversível funcionamento esquizo e esquizofrenizado. Falamos ainda de vidas minúsculas, infames e miseráveis, cujo único registro poder-se-ia encontrar nos prontuários lacônicos das polícias e ciências “psicopatologizantes” e normalizadoras, mas que, ao deixar suas marcas na Oficina dentro do velho hospital psiquiátrico, em que pesem obstáculos à sua expressão, não se reduzem mais ao silêncio, e sim tornam-se produtoras de expressões de si que podem fascinar nosso olhar e deslocá-lo. É a partir dessa tomada de posição do arquivista diante das obras, de certo deslocamento do olhar produzido em tal encontro, que lançamos a possibilidade de uma problematização da relação dos arquivistas com o território que habitam e com tal arquivo interminável, ressaltando a importância de abrir-se à experimentação de novas sensibilidades, ao atravessamento das forças que habitam o arquivo e a outras formas de narrar, tomando aqui movimentos da cartografia como aporte conceitual e metodológico.

Cartografias

Há coisas no velho manicômio que nunca mudaram, e há também coisas que mudam, como a grama que cresce, cobre o caminho e possibilita a refeitura de cada passo. O trajeto ziguezagueante que leva ao imponente prédio centenário inicia pela passagem obrigatória a qualquer um que entre ou saia. É possível seguir disciplinadamente os ângulos da calçada de concreto, ou então arriscar-se pela trilha que corta a grama transpassada pelo rastro de muitos pés, remarcando o caminho da memória de outros percursos, em que a curva era talvez mais suave. Em tal caminho, que nos permite encarar de frente a imensa construção, perguntamo-nos: o que resiste aqui são as paredes ou a vida que nasce no musgo, na erva daninha e na árvore inesperada no meio do cimento, que, ao mesmo tempo em que consomem o prédio, também o tomam como lar?

Nas paredes grossas que parecem ter sido feitas para durar para sempre, pequenas rachaduras suspiram, abrem passagem para coisas que vão criando vida por ali mesmo. Mas há algo além de musgo, planta e infiltração rachando as paredes imortais do São Pedro, algo que vai tomando vida no movimento sussurrante dos nossos passos, na errância entre as escadas e os corredores, nas nossas pequenas rotinas de mudar tudo de lugar, rearranjando lógicas temporais e espaciais que se impõem sobre o imenso arquivo em uma tentativa frustrada de organizá-lo.

O silêncio do arquivo grita um longo processo, são anos que se seguiram em acontecimentos produzidos com tintas, papéis e pessoas. Em cima de cada pasta, o nome do autor e a data de suas obras, e debaixo dessas informações os testemunhos de suas vidas. Observamos que em cada prateleira certa ordem foi estabelecida, mas antes de desvelá-la, perguntamo-nos: o que estamos buscando? A ignorância de não saber o que se esconde no interior de cada envelope nos transfere para a suspensão daquilo que nos olha: as pastas-envelopes dispõem-se como em um jogo entre espaço liso e espaço estriado. Este último corresponde às pinacotecas e prateleiras, são pilhas de envelopes de papéis. As estrias são as chaves nas portas, a ordem cronológica da organização museológica, as amarras que restam do manicômio. Já o liso é mar, são ondas que conectam toda a estrutura em fluidez, o conteúdo da obra, a intensidade com que os arquivistas são tocados em seu cotidiano. Lisa também é a subversão dos oficineiros ao transformar a Oficina de Criatividade em espaço de convivência - é liso permitir ser afetado. A partir do que nos indicam Deleuze e Guattari (1997) ao se referir às regras do jogo Go, no qual o campo se faz a cada posicionamento no território, entre o liso e o estriado, pensamos que o processo de catalogação também paradoxalmente entra em campo de disputa e composição, alternando as peças do tabuleiro ao buscar estratégias de ocupação político-ético-estéticas do território.

Enquanto arquivo vivo, as pastas nos convidam a remanejá-las, a ver o que há dentro, a entender os porquês de estarem ali, a mudá-las de lugar. Esse vagar desinteressado, sem trajeto já mapeado pelas metodologias existentes na caça de seus objetos iluminados, abre-nos um método sensível de percepção de nosso desterritório. A intensidade da produção do arquivista se dá sempre no nível molecular desses olhares-acontecimentos, fazendo convite ao que está despercebido ao olhar comum, ligeiro e passante. Das inúmeras salas e cantos, em infinitos esconderijos que a luz das grandes janelas não alcança, emergem constantemente novas pistas que rearranjam memórias e também nossa forma de as arquivar. A cada obra que surge inesperadamente, muda-se um tempo, uma letra, um março que vem depois de setembro, um 23 que vem depois de 42, um velho que nasce depois de um menino.

As obras produzidas na Oficina falam de vidas do fora, traduzem-se como suas expressões, impõem obstáculos à sua decifração, fazem recuar aqueles com inclinação fácil e apressada que buscam por explicações definitivas. Em tal acervo, cada caso torna-se um labirinto de possibilidades, e todos, enlaçados, perfilam-se como uma espécie de Babel muito análoga às irreconciliáveis simpatias entre homens e suas diferenças. A infinidade da biblioteca de Babel, descrita por Borges (1970) em um conto literário, aproxima-se aqui do exaustivo trabalho de catalogação que compõe o acervo como possibilidade de arquivo inarquivável.

O caos de signos, assim como na biblioteca imaginária de Borges, foge à tentativa de classificação, coloca o arquivista em um processo que, ao mesmo tempo em que junta e seleciona fragmentos, exclui possibilidades de promessas futuras. O número de possibilidades de linguagem disponíveis em Babel mescla-se às obras que dançam e se exprimem nas prateleiras: “é hora de gritar”, talvez seja dito; entretanto, aos berros de infinitos dialetos, a alegoria de possibilidades imagéticas espera, num tempo quase atemporal, para passar pelas mãos dos arquivistas, para ser, enfim, como que traduzida em braile, com seus signos incognoscíveis que não se oferecem à percepção para ser interpretados, mas sim para produzir desvios, ampliando a sensação de incompletude eterna e de constante movimento do arquivo que se consigna.

Reconhecemos que o arquivo implica relação direta com a memória devido justamente ao esquecimento: o próprio estatuto volátil das memórias e a incapacidade de capturá-las numa caixa ou gaveta trazem a necessidade do arquivo. Deste processo, paradoxalmente, surge o que Derrida (2001) conceitua como mal de arquivo, no qual o arconte que constitui, guarda e comanda o arquivo, aceita e afirma sua insuficiência de tudo guardar, pois, ao mesmo tempo em que seleciona e exclui, produz um dito e um não dito do presente sobre o passado, um tipo de consignação que, diferentemente do que podemos pensar em primeiro momento, não é voltada ao passado, mas ao futuro, posto que não se fecha jamais.

Derrida (2001) traz, dessa maneira, o arquivo como promessa, exaltando o arquivista como aquele que, escrevendo para lembrar, também escreve para poder esquecer, para que os arquivos sejam abertos por outros e para outros na durabilidade material das possibilidades virtuais. Entende-se, então, que o arquivo não é lembrança do passado, pois já não existe mais na condição de primeira instância, como suposto original a ser resguardado. Ao contrário, aponta para outro sentido na flecha do tempo, resta-lhe somente uma experiência do futuro, posto que guardamos como quem promete à existência sua duração no tempo e, consequentemente, um possível, um futuro por vir. Como novos arquivistas, para usar termo de Deleuze (1988) ao se referir ao trabalho arqueológico de Foucault, trazemos obras e pedaços de vidas da infâmia à virtualidade das possibilidades, para que possam ser abertas por outras mãos e sentidas por outros corpos.

As palavras, nesse sentido, nunca se manifestam em uma só verdade, mas contêm relações de contradição, de fluxo de partículas, de articulação, de estética, de memórias e de durações proeminentes de uma experiência, e é nessa incapacidade de ser uma única verdade que muitas histórias poderão ser contadas. Dessa maneira, nenhuma origem será preservada, a não ser a própria diferença do acontecimento, enunciando discursos ao avesso, desmembrados de sua materialidade, percorrendo cartografias sensíveis de afetos, no seio da própria potência da dialética do arquivo.

O arquivista como agenciador de proposições instituintes

O trabalho no acervo não é uma prática de todo mecânica, pois envolve a elaboração do arquivo com a observação de cada trabalho e com a implicação na continuidade da produção. Com essa articulação própria do ofício do arquivista, a etapa da catalogação se abre para outra: dar legibilidade ao que os olhos veem e ao que as mãos tocam. A materialidade sensível necessita ser tornada imaterial, imagens necessitam ser reveladas em linguagem, em visibilidades e legibilidades, procedimentos que implicam uma busca não pelas evidências, mas sim pelos detalhes, pelas insignificâncias, pelos restos que jazem em silêncio no plano de cada trabalho. Escavação da superfície para dar a ver e ler o que se fez arder em cada obra.

Em Didi-Huberman (2013a), encontramos que até mesmo tais escolhas se mostram perigosas, havendo, de um lado, o perigo do logocentrismo contemporâneo e, de outro, o de “um totalitarismo vazio no qual o passado atuaria como mestre absoluto. Entre os dois, a prática salutar: dialetizar” (p. 51). Para o autor, diante da imagem “certamente temos acesso às sutilezas de um tempo que nos esforçamos por compreender através de sua inteligibilidade própria” (p. 51), mas seria ainda preciso saber também quebrar o anel se quisermos compreender a própria inteligibilidade. E isso só se obtém ao preço de um olhar distanciado que flutua nos saberes do presente e os torna fecundos.

É ainda com Didi-Huberman (2010) que entendemos o que se pode definir como tomada de posição, atitude que se dá em dimensão crítica e política, quando um artista ou investigador, ou, em nossa leitura, o arquivista, escolhe imagens e as coloca em posição tal que se cria o que o autor chama de efeito de legibilidade. A partir de cada procedimento corriqueiro da catalogação, da feitura de pequenas escolhas até o modo como decidimos ver o arquivo e dizer dele, não só se criam enunciados sobre a loucura, o louco e sua arte, como também se afirmam outros sobre a própria noção de arquivo e memória. Da mesma forma que Didi-Huberman (2013b) arranca cascas das bétulas de antigos campos de concentração nazistas, transformando-as em memórias vivas que escapam à materialidade da madeira quando cruzam sua experiência, arrancamos objetos acumulados de um regime de saber e os montamos em outro lugar, em outros arranjos de imagens, para que fulgurem assim novos enunciados.

Podemos dizer que o cotidiano do antigo hospício mudou com a Oficina, e muda, agora, com os gestos dos arquivistas que têm a possibilidade de desarticular as verdades dos enunciados instituídos, desviando macrocortes e promovendo microrrasgaduras. Diante disso, o trabalho dos arquivistas no acervo da Oficina de Criatividade introduz novas visibilidades e dizibilidades a respeito do louco, da loucura, do hospício, da ordem hospitalar, do controle. No ato de tombamento de cada obra, através de seu registro catalográfico em seu verso, altera-se o estatuto de produto terapêutico para obra expressiva, fazendo que a noção de autoria também sofra deslocamento de usuário louco para artista. Essa mudança de estatuto, entretanto, não transforma visivelmente a condição daquilo e daquele de que se fala, mas produz transformações incorpóreas, atribui, compõe nas cadeias de significação a preposição “e” ao invés de “ou”, provocando o desvio da verdade única e utópica em direção à indeterminação, que na sua heterogeneidade possibilita o surgimento de outros discursos.

A função desse novo arquivista não se coloca aqui como a de historiador cronológico, mas como a de caçador de possíveis enunciados afundados no tempo. Esses, como entendem Foucault (2007) e Deleuze (1988), não são o que está no significado (palavras) nem no significante (coisas), mas o que toma por transversal a enunciação em uma cadeia de relações sobrepostas com outros signos/significantes. Por isso há sempre uma produção, uma enunciação sendo feita pela busca perspicaz de cada desenho, de cada escrita que tecemos, inferindo micropoliticamente nesses diversos axiomas que nos subjetivam, como se o que antes eram restos agora se transformasse em insistência, em vontade de potência.

O que esse novo arquivista faz é a transformação do arquivo em pura linguagem, patrimônio imaterial, pois se trata de trabalho com a memória social através das imagens. Ele se situa, dessa maneira, em espaço que carrega um vir a ser. O grande arquivo tem como acontecimento latente um desterritório convidando a ser conhecido, a ser cartografado, que se desvenda pelos trajetos do arquivista no limiar das experiências que o arquivo possibilita territorializar. O arquivo por si é um espaço, um sinal que reúne e organiza o passado, atualizando sua duração de vida no presente. Sua materialidade é a fortaleza do ocorrido, cujas fundações se estabelecem em organização de ordens cronológicas, mensuração dos documentos e outras tantas funções que transformam as estrias do material. O arquivo não é estático, seu alimento é o movimento dos arquivistas e seu predador é o tempo (fungos, traças, chuva, luminosidade e esquecimento).

É desse modo que a produção dos arquivos não se faz de todo maquinalmente, já que não se refere apenas ao plano empírico dos materiais colecionados, mas consiste em experiência de abertura, em que pistas, restos e faltas convidam-nos para uma cartografia da memória e do esquecimento. A produção de um arquivo torna o cotidiano em acontecimento quando constitui uma descontinuidade no curso da história dita. Abrir o arquivo corresponde, pois, a injetar uma violência no cotidiano e no pensamento, constituindo-se em ato acontecimental que profana os enunciados que marcaram a vida desses homens e mulheres infames.

Dessa forma, o trabalho dos arquivistas no acervo compõe-se com os pressupostos da cartografia como estratégia de produção de conhecimento. Trata-se disso, de uma espécie de “(des)arquivamento” que se apresenta como mapeamento de passagens fragmentárias, e não como tentativa de recuperação de um passado total. Sair da tentativa de classificação se coloca como necessário no deserto infinito de obras, fugir do que está dado, daquilo que é visível, desarquivar para, também, recolocar-se, ao mesmo tempo diferentes diante da mesma obra que já não é mais a mesma. Nesta perspectiva, diante das obras expressivas, pela segunda, terceira ou quarta vez, por milhares de vezes, o arquivista observa a ramificação de enunciados que conferem inusitados e inúmeros lugares aos autores. São posições que derivam do próprio enunciado, pois, por exemplo, diante das obras de Natália, o que olha o arquivista já se traduz não mais como aquilo que vê como evidência sensível, ou seja, o plano figurativo da percepção. Agora é a aura que envolve o conjunto e orienta o interesse e o compromisso de dar a ver, imaginar e redescobrir.

Entre história e memória viva

Diante do território que se cria a partir do acervo da Oficina de Criatividade, algumas questões surgem como problemáticas deste espaço enquanto arquivo, acúmulo de objetos, coleções de obras, bordados e telas. Pierre Nora (1993), ao conceituar o que intitula de Lugares de Memória, diz sobre a necessidade de registrar e guardar a totalidade daquilo que não se quer esquecer, do arquivamento de imagens e objetos como sintoma atual de nosso tempo. Dos registros cotidianos de cada segundo fugaz de vidas pessoais às coleções em grandes museus e outros espaços, criam-se diversos modos de apreensão de um tempo que inevitavelmente escapa. Pela segurança da história e pela insegurança do que se perde com o tempo, constituímos esses lugares de memória; entretanto, quais os efeitos dessa prática?

Nora (1993) afirma que se a memória em si fosse vivida na possibilidade de rememoração, ou seja, aceitando que o que passou não tem como ser guardado exatamente como foi, não se faria necessária a construção de tais locais de memória e, possivelmente, estaríamos lidando com a memória enquanto matéria viva de transmissão. Ao tratar de locais de memória e seus objetos, estamos sempre lidando com restos de uma história, com as lacunas e as cinzas daquilo que sobrou, e é nessa falta que Nora nos apresenta como antídoto para a compulsão de construção desses locais à necessidade de viver a memória para além do material que está guardado, de reinventá-la, rememorá-la.

Vivemos, na verdade, a história, e não a verdadeira memória, pois onde há rastro, mediação e distância a partir dos locais e objetos de um passado, não tratamos mais da memória viva, e sim de uma história dita. Então, qual o sentido de guardar, se tudo é uma ilusão de totalidade do passado? Diante dessa problemática de nosso campo, fazemo-nos algumas perguntas: como habitar lugares de memória? Como tornar a memória viva, e não apenas arquivá-la para poder esquecê-la? Qual o papel de um acervo de obras expressivas e imagéticas produzidas por loucos, no recinto de Hospital Psiquiátrico, quanto à preservação da memória, como luta contra o esquecimento?

Na oposição que Nora (1993) faz entre memória e história, são oferecidas possibilidades de como olhar para nosso arquivo, de como a prática arquivística está operando nesse território e com objetos de um passado. O que será dito desses arquivos e que atribuições concedemos a eles diante dos dois conceitos que implicam escolha e posicionamento éticos no espaço do acervo? Arquivo para a história ou para a memória? Segundo Nora (1993), memória é a vida, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, enquanto “a história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais” (p. 9). Parece-nos, neste excerto, que a distinção se baseia na intencionalidade, na escolha do que se pretende com aquilo que é matéria do passado.

A história carrega a tentativa de reconstruir aquilo que não existe mais, enquanto a memória traz, dessa relação de descontinuidade do tempo, a potência da falta como possibilidade de invenção. Diante do arquivo que ocupa, hoje, nosso esforço de catalogá-lo e abri-lo, ou seja, de conservá-lo, descrevê-lo e fazê-lo falar desde os seus silêncios e enigmas, simultaneamente o profanamos, consignamos-lhe seu próprio mal, aceitando a insuficiência de alcançarmos uma memória totalizante. Permitir-se fazer dos arquivos e objetos do passado uma narrativa de reinvenção do presente afirma a potência de transmissão de memória, que abarca afetos e intensidades que só podem ser acessados no agora. Assim, mal de arquivo e vontade de memória dialogam em imaginação e rememorações, tornando-se cúmplices na formulação de novas visualidades e legibilidades.

A alegoria aurática

A cidade de Natália estava animada, era lugar-algum feito de guache, tingido por pinceladas contínuas e grossas. O cenário tão comum de um arquivista estava agora em movimento, cada trabalho em diálogo com outro, quase um presépio montado, combinando personagens num passear despassado e alegre. Emprestado, o corpo deitado como passagem à memória em movimento traz obras como experiência que quebra o cotidiano de um arquivista.

O sonho em forma de agenciamento coletivo, ressignificação de imagens vistas dia a dia: repetição que pode até expressar certo congelamento, paradoxalmente, em ação. Agenciamento entre devires: devir-criança de um arquivista, devir-memória de Natália, devir-animal-do-tipo-boi, devir-artista-de-um-arquivista da autora. Um transbordamento de agenciamentos em plena linha de fuga, a fuga de um arquivista que sonha com uma história que não sabe, a fuga em forma de curiosidade, construindo potência e cinema, cinética e estética, construindo experiência.

Qual a história do animal, vaca ou boi? O que compõe com a igreja central cor de barro e as casinhas coloridas postas em vizinhança? O que contam as plantas cabeças de medusas e algumas árvores que brotam brincos de verão? Em linhas de fuga, a procura de uma história se mescla com o acordar, pois o despertar manteve símbolos inesquecíveis, entretanto, trouxe o esquecimento, cuidadosamente desfez a história e quaisquer interpretações de um passado longínquo. Será, porém, que esse sonho contava algo? O que de conto um arquivista queria?

Transitar pelas obras de Natália torna-se uma experiência inquietante, porque em seu repertório de expressões e memórias temos mesmo do mesmo, mas também mesmo do diferente. Cada desenho, cada papel transporta uma memória que se transforma, olhamos com os olhos do presente para esse passado curioso e inapreensível. Contudo, talvez, curioso seja o arquivista que, ao mergulhar em desenhos de vermelho maquinado - cor favorita de Natália, vermelho-barro forte e expressivo, nomeada pela própria artista - quase cria uma máquina do tempo, essa incessante vontade de voltar para esse lugar-alhures, de sentir o inimaginável de sua realidade passada.

Diante das imagens produzidas por Natália, situamo-nos em uma espécie de limiar do arquivo, em uma soleira da imaginação para a contemplação de uma memória ainda possível. Diante da ilustração e sua aura, uma vez que imagens auráticas são aquelas que, ao nos olhar de volta, remetem nosso olhar a um longínquo, conforme afirma Didi-Huberman (1998), deslocamo-nos em uma trama de espaço-tempo, vemo-nos capturados por uma história que apenas deixou rastros e que já não pode vir a ser recuperada pela consciência e lembranças que ainda se fazem como parte de nosso presente. Diante das imagens auratizadas, buscamos preencher as lacunas produzidas pelo esquecimento. Nossa narrativa se torna ficcional, extraindo daquilo que se ausenta novos possíveis imaginados e, contudo, ainda suportados pela história acontecida. Situamo-nos em um ir e vir incessante, pois aquilo que nos olha naquilo que vemos se ausenta sempre que julgamos tê-lo apreendido, joga conosco o poder da distância, revelando-se distante quando próximo e próximo quando mais distante.

É por isso que, como arquivistas sucateiros, adaptando aqui termo usado por Gagnebin (2009), resgatamos os restos, os fragmentos, os cacos, elevando-os a outra posição, na qual um deslocamento do olhar os abre para outras composições. O sucateiro, como nos fala a autora de inspiração benjaminiana, não tem por alvo recolher grandes feitos, mas apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação, algo com o qual a história oficial não soube o que fazer. Tais rastros, presença-ausência não intencional, deixados para trás ou esquecidos, podem ser tomados então como signos a ser decifrados, porém sem que tenham sido deixados com a intenção de significar. É, enfim, como sucateiros que reviram memórias, que recolhemos, guardamos e cuidamos de tais fragmentos, que os remontamos em outro regime de valor, reinventando assim sua história e seus possíveis.

A memória fragmentária e a prática arquivística como potência

O júbilo de ser fragmentário, de ter uma escrita que corresponda à função do arquivo - dar condições à experimentação da memória - se faz de incompletudes que inquietam nosso olhar. Enquanto arquivistas compondo-se em constelação, fluímos nos mistérios que rondam e assombram o território manicomial, buscando linhas de fuga ao panoptismo induzido pelos agenciamentos anticorpos-sem-órgãos. Tal estado de controle está presente nos diversos diagramas de nossos espaços. Estamos sempre em territórios marcados por dizeres históricos e forças enunciativas de saber, de poder, de individualização da matéria pelo que é de direito. Subjetivamo-nos às leis, às arquiteturas de uma cidade, às posições hierárquicas das diretrizes, em um jogo de guerrear e competir o tempo inteiro. Ainda assim, somos parte de uma força enunciativa, e, em nosso devir ético, pensamos que o arquivo precisa ser lido de forma a afirmar a potência que a memória ocupa, ou seja, potência que se faz afirmativa à medida em que vai a contrapelo do que se tem pensado e crido.

O arquivista se liga ao arquivo de tal maneira que coleciona testemunhos de uma cartografia de sua ignorância, ou melhor, da ignorância da própria loucura e dos signos que vetorializam esse território, como diagnósticos a respeito do traço da singularidade. Esse novo arquivista, categoria na qual gostaríamos de nos incluir, acolhe o traço que pulsa e vibra dentro de cada interno no hospital psiquiátrico, traço errante e desviante. Não é uma qualidade da loucura que começamos a perceber quando entramos em contato com esses materiais, mas qualidade da vida que mostra sua potência infinita de afetar e compor com novos corpos. Ao cercar as forças que provocam o surgimento do arquivo, damo-nos conta de que não se trata mais de olhar para as obras, as pastas, as estantes ou as organizações, mas de sentir que existe afeto e percepto novo a ser criados, uma força que pulsa vida e faz surgir, mesmo nas fissuras do concreto, uma planta, um rastro da história, uma nova visibilidade.

Diante do arquivo, precisamos ver sem saber, necessitamos despojar de representações que aprisionam as imagens em interpretações antecipatórias. Diante do arquivo temos, pois, oportunidades infinitas de uma aprendizagem de signos, de uma apreensão de temporalidades em coexistência, enfim, de uma situação sintomática que nos revela estarmos sempre em aberturas sígnicas para o que o mundo nos mostra como sua aparência. Rasga aparências para adentrar no fogo que as urdiu, ir em busca de um tempo perdido para interpretá-lo nas lentes de nossa atualidade, transfigurar o presente pela infeção de novos enunciados naquilo que a simples visão não revela.

É na luta sobre as estrias marcantes da loucura, sobre o que se tornou instituído e acreditado sobre loucos e a própria loucura, que abrimos um espaço aurático para ver tanto vidas como obras a partir de outros possíveis. Jardineiros de vidas passadas, aguadores em terras calcinadas pelo calor das palavras de ordem, situamo-nos tanto perto quanto longe daquilo que se coloca diante de nós, buscamos seu longínquo murmúrio, seu rumor, para que se venha introduzir estranhamentos naquilo que nos é tão repetido e familiar. Dizer de outro modo, pensar de outra maneira, a partir não de repetições cansadas e monocentradas, o que caracteriza a grande noite do próprio homem, sua dimensão abissal e involuntária, inconsciente e enigmática. Dizer o Outro do homem pelo gesto sustentado em uma crença no futuro, pelo olhar revestido de um dom de visibilidade, envolvido, como nos diz Benjamin (1994), em paradigma visual que se apresenta antes de tudo como poder da distância. Aura, como trama singular de espaço e tempo,

como um sutil tecido ou como um acontecimento único, estranho, que nos cercaria, nos pegaria, nos prenderia em sua rede. E acabaria por dar origem . . . a algo como uma metamorfose visual específica que emerge desse tecido mesmo, desse casulo de tempo e espaço. (Didi-Huberman, 1998, p. 147)

Sob nossos olhos, mas fora de nossa visão: algo que nos fala de uma ausência na presença, de um distante na proximidade, de um estranho no familiar. O próprio objeto torna-se, assim, índice de uma perda que se sustenta através de um movimento de vai e vem, pois somente se mostra para afirmar sua lonjura, por mais próxima que seja sua aparição. O objeto aurático supõe um ir e vir incessantes em torno de uma memória involuntária que o cerca e o desdobra em suas imagens, abrindo-o tanto em seu aspecto quanto em sua significação.

No encontro com as imagens auráticas, é como se o arquivista estivesse constantemente fazendo microcortes, agenciamentos que mudam a legitimidade de uma obra, elevando-a a outro regime de valor. Incisões na superfície que a comunicam com sua própria profundidade, com sua espessura temporal. Rasgaduras que mudam as constelações de sentido que dão estrutura à chuva de estrelas que dispara na direção de nosso olhar. O valor de rasgar, de martelar para romper a unidade da crosta, valor de um gesto incisivo articula-se e mesmo provém do que nos impele a dizer e a escrever a respeito do que emerge diante de nossos olhos apenas como ininteligível e tresloucado. A ideia de uma memória carnal nas imagens do passado não nos é estranha e tampouco desprezada. O objeto que observamos é colocado em perspectiva e tem sua fisionomia visível colocada em opacidade. Suspeitamos que o que está representado na imagem não está simplesmente “em representação”, mas se configura como sintoma no corpo, como memória encarnada. Dizer encarnação para a memória significa trazer toda uma história contraída em um único corpo que, por sua expressão plástica e formal, nos permite abrir o visível ao trabalho do visual e o legível ao trabalho da exegese ou da proliferação do sentido. Entre uma vida e sua obra existe uma economia encarnacional que se expõe tanto como o que foi realizado e concretizado, como o que ainda há de por vir. Isto nos sugere algo como uma contra história tanto das ciências médicas e psi quanto das artes.

Estamos situados, portanto, em uma zona em que a imagem é, de certa maneira, milagrosa, por se fazer “ela mesma virtus e potência de encarnação” (Didi-Huberman, 2013a, p. 244). O desafio torna-se extrair do vivido no corpo as condições históricas que constituíram sua expressão. Tirar a imagem de si, realizar uma metafísica que se revela também como transmissão daquilo que aquele corpo captou e acreditou como seu destino. Colocar a expressão como sintoma de um tempo embaralhado e fora dos eixos, como intrusão e catástrofe em um corpo vivo e localizado espacial e temporalmente, significa colocarmo-nos diante de um limiar que concede que nossa rede de pescadores apenas capture peixes bem formados, deixando escoar o próprio mar (Didi-Huberman, 2013a). Nossa rede de pesca, dirigida pelo desejo de saber, deixa-nos sempre a constatar que o mar se retirou, deixando-nos apenas poucos vestígios de sua presença. O mar recuado guardou mistérios, seus peixes estão bem ali, mas apenas podemos vislumbrar em suas beiradas um opaco brilho úmido. O que pensam as imagens que vemos e que nos olham? Seu pensamento, como podemos atestar em nossas experimentações, é feito de buracos, de rasgaduras, de extensões difíceis de situar, de deformações.

O mar que recua e nos deixa somente com seus peixes úmidos, continuando desconhecido e longínquo, é como o passado que, sempre obscuro em sua totalidade, recua toda vez em que é escavado pela rememoração, à qual restam somente rastros e imagens a ser desenvelopadas de sua origem em transformação incessante. Reconhecemos, com Gagnebin (2009), que mesmo no momento de lembrança mais pura - como acontece na memória involuntária de Proust - o passado sempre se mostra ainda obscuro e inapreensível. Longínquo, poder-se-ia dizer mais uma vez, em relação a sua pertença, aura como potencialidade de interpretação ao infinito. Nesse sentido, falamos também de aceitação de tudo o que há de morte no passado, do seu caráter inevitável de perda, não no sentido de aceitação resignada, mas sim de afirmação de tal característica fragmentária, pois é a partir desses fragmentos que vêm à tona, de desvio realizado no encontro do arquivista com tais fragmentos, que podemos criar outras histórias.

O que existe é, então, muito mais o trabalho da travessia, de “exploração tateante de um imenso território desconhecido . . . . Não há reencontro imediato com o passado, mas sim sua lenta procura, cheia de desvios, de meandros, de perdas” (Gagnebin, 2009, p. 159-160). Quando falamos então de outra história da loucura, falamos de elaboração que não envolve apenas busca, resgate, mas criação, produção sempre ativa. Se o acervo cresce a cada dia, e com ele o trabalho incansável dos arquivistas, resta-nos seguir no fluxo das constantes reinvenções, dos encontros intempestivos, das pequenas ressurreições do dia a dia, ao mesmo tempo em que afirmamos, retomando o caráter fragmentário do passado, a incompletude do arquivo e a experiência que lhe corresponde: a do inarquivável.

Referências

  • Barros, R. B., & Passos, E. (2009). Por uma política da narratividade. In E. Passos, V. Kastrup & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 150-171). Porto Alegre, RS: Sulina.
  • Benjamin, W. (1994). Magia e técnica, arte e política (Obras escolhidas vol. 1). São Paulo, SP: Brasiliense.
  • Borges, J. L. (1970). Ficções. Porto Alegre, RS: Globo.
  • Deleuze, G. (1988). Foucault. São Paulo, SP: Brasiliense.
  • Deleuze, G., & Guattari, F. (1997). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. v. 5. São Paulo, SP: Editora 34.
  • Derrida, J. (2001) Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumará.
  • Didi-Huberman, G. (1998). O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34.
  • Didi-Huberman, G. (2010) O que torna o tempo legível é a imagem. Cinema: Revista de Filosofia e da Imagem em Movimento, (1), 14-28.
  • Didi-Huberman, G. (2013a). Diante da imagem. São Paulo, SP: Editora 34.
  • Didi-Huberman, G. (2013b). Cascas. Revista Serrote, (13), 99-133.
  • Foucault, M. (2003). Estratégia, poder-saber (Ditos e escritos 4). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária.
  • Foucault, M. (2007). As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo, SP: Martins Fontes.
  • Gagnebin, J. M. (2009). Lembrar escrever esquecer. São Paulo, SP: Editora 34.
  • Nora, P. (1993). Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, 10, 7-28.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2016
  • Aceito
    05 Out 2016
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