Open-access Percepções sobre o plantão psicológico em uma Delegacia de Defesa da Mulher

Percepciones sobre el turno psicológico en una Estación de Defensa de la Mujer

Perceptions du soutien psychologique dans un Commissariat de défense de la Femme

Resumo

O plantão psicológico realizado em Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) é uma ferramenta no combate à violência contra a mulher. Entretanto as plantonistas estão inseridas em um ambiente de muita carga emocional. Objetivou-se analisar as percepções das plantonistas e agentes de uma DDM sobre a violência de gênero e seus impactos psíquicos no cotidiano pessoal e de trabalho dessas mulheres. Entrevistaram-se 23 mulheres com idade entre 19 e 56 anos (M=28, 26; DP=10, 15), e o material coletado foi analisado pelo software Iramuteq. Foram avaliados 1.304 segmentos de texto, gerando uma retenção de 98,27% do total, os quais conceberam seis classes, dentre as quais a de maior expressividade foi a classe 1 “impacto da violência”, com 21,55% dos segmentos de texto. Desgastes físicos e emocionais são desencadeados pelos atendimentos, porém as plantonistas e agentes da DDM não recebem apoio emocional para realizar suas funções, tendo assim que desenvolver estratégias de enfrentamento pessoal.

Palavras-chave: violência contra a mulher; plantão psicológico; Delegacia de Defesa da Mulher

Resumen

El turno psicológico realizado en Estación de Defensa de la Mujer (EDM) es una herramienta para combatir la violencia contra la mujer. Sin embargo, los oficiales de guardia se encuentran insertados en el ambiente de mucha carga emocional. Este estudio tuvo como objetivo analizar las percepciones de los oficiales de guardia y de agentes de EDM sobre la violencia de género y sus impactos psíquicos en la rutina personal y laboral de estas mujeres. Se entrevistó a 23 mujeres, de entre 19 y 56 años (M=28,26; DE=10,15), y para el análisis de datos se utilizó el software Iramuteq. Se analizaron 1.304 segmentos de texto, que generó retención del 98,27% del total, en seis clases, la más expresiva fue la clase 1 “impacto de la violencia”, con el 21,55% de segmentos de texto. El desgaste físico y emocional se desencadena por la asistencia, pero el personal de guardia y los agentes de EDM no reciben apoyo emocional para desempeño de sus funciones, por lo que se debe desarrollar estrategias de afrontamiento personal.

Palabras clave: violencia contra la mujer; turno psicológico; Estación de Defensa de la Mujer

Résumé

Le Soutien Psychologique tenu au Commissariat de défense de la femme (CDF) est un outil de lutte contre violence envers les femmes ; cependant, les femmes en service sont insérés dans un environnement à forte charge émotionnelle. L’objectif était d’analyser les perceptions des officiers et agents de service d’un CDF sur la violence de genre et ses impacts psychiques sur leurs quotidien personnelle et professionnelle. Nous avons interviewées 23 femmes âgées de 19 à 56 ans (M=28,26; ET=10,15), et les donnés ont été analysé par le logiciel Iramuteq. Au total, 1304 segments de texte ont été analysés, générant une rétention de 98,27% du total, qui engendrait six classes, parmi lesquelles la plus expressive était la classe 1 “impact de la violence”, avec 21,55% des segments de texte. L’usure physique et émotionnelle est déclenchée per le service, mais les officiers et les agents de service du CDF ne reçoivent pas de soutien émotionnel pour remplir leurs fonctions, et doivent donc développer des stratégies d’adaptation personnelle.

Mots-clés: violence contre les femmes; soutien psychologique; Commissariat de défense de la femme

Abstract

The emergency psychological service held at Women’s Police Stations (DDMs) is a tool in the combat against women violence. However, on-duty emergency workers are included in an emotionally intense environment. We aimed at analyzing the perceptions of DDM on-duty emergency workers and agents about gender violence, as well as its psychic impacts on their personal and work routines. We interviewed 23 women aged between 19 and 56 (M=28, 26; DP=10, 15), and analyzed the obtained data using IRAMUTEQ. We evaluated 1,304 text segments, retaining 98.27% of the total, which originated six classes. The most expressive among those was Class 1 “service impact”, with 21.55% of the text segments. Even though the emergency psychological service triggers physical and emotional wear and tear, DDM on-duty emergency workers and agents do not receive emotional support to perform their functions, thus developing personal coping strategies.

Keywords: violence against women; emergency psychological service; Women’s Police Station

Introdução

A violência contra a mulher é um fato histórico, construído social e culturalmente por meio de relações hierárquicas e de poder decorrentes de sociedades patriarcais, nas quais a figura da mulher se constitui no papel de subordinação e a figura do homem é marcada pela dominação sobre as condutas e corpos femininos, conforme Ceccon e Meneghel (2017). Para as autoras, a cultura patriarcal legitima os mecanismos de desigualdade entre homens e mulheres pela socialização de gênero que mascara a hierarquia entre os sexos.

Com os movimentos feministas, surgem os primeiros passos rumo às conquistas em prol dos direitos humanos das mulheres (Souza & Faria, 2017). Tais movimentos exigiam do Estado ações significativas no combate à violência doméstica nos âmbitos policial, jurídico e psicossocial (Oliveira & Moreira, 2016). A luta pelos direitos de cidadãs e contra a impunidade da violência doméstica resultou na criação da primeira Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) na cidade de São Paulo, em 1985, no reconhecimento da violência como crime e no direcionamento da responsabilidade ao Estado (Souza, Santana, & Martins, 2018).

No que tange à violência doméstica, destacam-se as Leis nº 10.886/2004, que cunha o crime de violência doméstica, e nº 10.714/2003, que autoriza, nacionalmente, a disponibilidade de um número de telefone com apenas três dígitos, destinado a atender denúncias de violência contra a mulher. Além disso, o serviço operacionalizado em Deams ou, na ausência delas, em Delegacias de Polícia Civil; e a Lei nº 10.455/2002, que estabelece o afastamento do autor da violência do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima (Rodrigues & Cortês, 2006). Em meio aos avanços alcançados e a tantos outros movimentos que contribuíram para o enfrentamento da violência, destaca-se o que vigora atualmente, a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, criada para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, fornecendo medidas de proteção e assistência às vítimas, punindo de forma mais rígida os agressores, especificando os tipos de violência e apontando ações à instituição policial, tais como deflagrar prisão preventiva ao agressor em caso de descumprimento de medida protetiva e autuar prisão em flagrante, e a eliminação de penas alternativas (Brasil, 2006).

Com o advento da Lei Maria da Penha, muitas mulheres passaram a se sentir empoderadas a buscar seus direitos de viver com dignidade uma vida sem violência. No entanto, muitas mulheres ainda não têm essa proteção, pois o acesso à Lei depende de fatores socioeconômicos, etnia, acesso às redes de comunicação e apoio, entre outros (Pasinato, 2015). Embora represente um grande avanço na luta pela erradicação da violência, a implementação da aplicabilidade efetiva da Lei Maria da Penha encontra desafios a serem superados, dentre eles, a formação de profissionais qualificados e a interlocução dos serviços psicossociais, de acesso à Justiça e à saúde, ligados à rede de enfrentamento na qual estão inseridas as Deams (Oliveira & Moreira, 2016).

Para Souza et al. (2018), os serviços desempenhados efetivamente nas Deams são de fundamental importância para a consolidação desses avanços, pois permitem ações de prevenção, registros de ocorrências, investigação e repressão de crimes ou infrações penais pautadas na Lei Maria da Penha. As vítimas que recorrem à Deam para formalizar o boletim de ocorrência buscam não só amparo jurídico, mas também apoio psíquico e social, visando assegurar seus direitos de cidadãs e também o acolhimento de dores e angústias (Farinha & Souza, 2016).

Atualmente, são mais de quatrocentas delegacias especializadas no Brasil, constituindo a principal política pública de enfrentamento da violência contra a mulher (Pasinato & Santos, 2008). Desde a sua criação, foram realizados diversos estudos sobre a realidade da violência, no entanto são escassos os estudos sobre a forma como as agentes da delegacia percebem a violência contra a mulher e quais os impactos que esta realidade representa em seu cotidiano pessoal e de trabalho.

Muitos estudos consideram a disponibilização de uma rede de atendimento e acolhimento imprescindíveis para o enfrentamento do problema, pois representam estratégias contra a violência. Entretanto a presença da psicologia no rol da equipe das Deams ainda não é obrigatória no Brasil, e a inserção dos psicólogos se dá pela realização de convênios e parcerias com os governos municipais e universidades, o que os torna relevantes dada sua importância (Souza & Faria, 2017).

Nesse sentido, dentre as formas de trabalho psicossocial, uma possibilidade é o plantão psicológico (PP) realizado por meio de parcerias entre a justiça e as universidades, a intervenção psicológica realizada por meio dele tem papel significativo para o desenvolvimento de novas políticas públicas, mas também representa um desafio por sua complexidade. Segundo Paparelli e Nogueira-Martins (2007), plantonistas em geral enfrentam dificuldades, tais como ansiedade, medo e insegurança. Para as autoras, a ansiedade ocorre pela expectativa do caso e pelo receio da crítica, caso não consiga circunscrever de maneira correta no momento da supervisão; o medo e a insegurança advêm do temor de não saber o que falar e se confundir por aquilo que é próprio e não ser capaz de discriminar o que é do paciente.

O PP exige do plantonista mais do que o conhecimento teórico e técnico do fenômeno psicológico, pois, nos atendimentos, o plantonista vivencia sentimentos de confusão e muita exigência daquilo que transitará na complexidade da sua subjetividade. Fato que torna o papel do supervisor primordial para que o plantonista compreenda o enquadre de sua tarefa e para o desenvolvimento da sua identidade profissional (Paparelli & Nogueira-Martins, 2007).

Dentro das possibilidades de um PP eficaz, é preciso que haja flexibilidade do plantonista em lidar com os obstáculos, desafios e falta de recursos. Nesses casos, muitas vezes, sentimento de impotência e desânimo são vivenciados pelos plantonistas (Paparelli & Nogueira-Martins, 2007). Para Azevedo e Alves (2016), permanecer na situação sem preparo emocional pode afetar a vida das vítimas e dos profissionais, dado o contexto e os elementos nos quais estão inseridos. Segundo Penso, Almeida, Brasil, Barros e Brandão (2010), a repercussão dessas experiências desgastantes na vida dos profissionais está ligada à subjetividade, singularidade e história de vida de cada indivíduo. Diante desses aspectos psíquicos relativos à função dos PP, para Souza, Ferreira e Santos (2009), é preciso sensibilizar, conscientizar e capacitar os alunos da área da saúde, desde o início do curso, sobre a violência intrafamiliar e outros tipos de violência, e as consequências físicas e mentais que elas podem gerar, pois muitos profissionais relatam não estar preparados para lidar com vítimas de violência.

Com isso, objetiva-se analisar as percepções das plantonistas e agentes de uma Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) sobre a violência de gênero e seus impactos psíquicos no cotidiano pessoal e de trabalho dessas mulheres; comparar, entre as estudantes de Psicologia e as agentes da delegacia, quem lida de forma mais funcional às demandas da delegacia; avaliar o que poderia ser feito para ajudar as mulheres da equipe, sobre como agir perante a tensão dos atendimentos e diante dos possíveis impactos em sua saúde mental; refletir, em conjunto com a equipe de atendimento, estratégias para a manutenção da saúde mental das plantonistas e agentes.

O estudo ampliará a compreensão da abrangência que a violência contra a mulher acomete. As respostas serão autoinformativas para as participantes, pois, ao responder o questionário, será possível identificar suas ações de autocuidado e, na ausência destas, poderão refletir sobre como providenciá-las para seu cotidiano. Serão relatados baixos níveis de atividades de autocuidado entre as agentes da delegacia e entre as plantonistas de Psicologia, comparando-se aos das agentes da delegacia. Ademais, haverá maior motivação para o desenvolvimento de autocuidado entre as participantes como um todo.

Métodos

Trata-se de uma pesquisa ex-post-facto, ou seja, depois que o fato ocorreu, e descritiva. Adotou-se uma metodologia mista, com análise de dados qualitativa - ou seja, análise das palavras utilizadas no discurso - e quantitativa - análise da frequência que elas ocorreram, pelo método estatístico inferencial qui-quadrado. As análises foram tratadas segundo a análise categorial de Bardin (2011). O procedimento é composto por três fases: pré-análise (composição do corpus da pesquisa e leitura flutuante); exploração do material (codificação dos dados); e tratamento dos resultados (recortes a serem analisados em categorias) - inferência (discussão das descrições com exemplos) e interpretação (com embasamento teórico).

Participantes

Foi entrevistada a equipe de atendimento da DDM de uma cidade do interior do estado de São Paulo, composta por dezesseis estagiárias de Psicologia, sendo cinco alunas egressas e formadas; dez alunas cursando a partir do quinto semestre; uma aluna do décimo semestre que, concomitantemente, realizava estágio de escrivã na delegacia e que foi autora participante do projeto de extensão vinculado a uma universidade do interior do estado de São Paulo, que incluiu o PP realizado por estagiárias de Psicologia na DDM; uma delegada; duas escrivãs; e quatro estagiárias de Direito, totalizando 23 participantes do sexo feminino com idade entre 19 e 56 anos (M=28,26; DP=10,15).

Os critérios de inclusão foram: ser agentes da delegacia e estagiárias de Psicologia participantes do Projeto de extensão de PP, que estivessem com 18 anos de idade ou mais no dia da entrevista. Como critérios de exclusão, por se tratar de um olhar voltado às mulheres, excluíram-se os homens e as pessoas que não concordaram com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e com a Autorização para uso de imagem e som.

Instrumentos

As informações foram coletadas mediante entrevista estruturada elaborada pelas pesquisadoras especificamente para esse estudo. Na entrevista, as participantes foram questionadas sobre a temática da violência contra a mulher e suas implicações em sua vida pessoal e social. Foram abordados os sentimentos vivenciados a partir dos atendimentos, focalizando nos impactos percebidos no cotidiano pessoal e de trabalho e na saúde mental, e quais estratégias utilizadas por elas para se preparar emocionalmente para os atendimentos. As questões foram elaboradas na tentativa de avaliar as percepções das participantes referentes à violência contra a mulher e como deveria ser feita a abordagem social e o cuidado com os profissionais que atuam nesse contexto. As perguntas foram abertas e as participantes puderam descrever suas percepções.

Procedimentos

Todos os processos éticos foram assegurados. A pesquisa teve aprovação do Comitê de Ética da instituição acolhedora da pesquisa, sob o número de registro 4.205.906, como previsto na Resolução CNS nº 510 de 2016, que são as normas aplicáveis às Ciências Humanas e Sociais. Só após a aprovação é que a coleta de dados foi iniciada.

O contato das participantes foi adquirido via projeto de extensão de PP realizado pela Universidade de Sorocaba em DDM de um município do interior do estado de São Paulo. Primeiramente, foi realizado um prévio contato com as participantes por telefone para o convite de participação e a explicação dos objetivos, benefícios e contribuição acadêmica da pesquisa. Em seguida, as entrevistas foram agendadas de acordo com a conveniência de data e horário das entrevistadas. As entrevistas das estagiárias de Psicologia ocorreram de forma on-line, na plataforma Skype, cujo link da reunião foi gerado e disponibilizado para as participantes individualmente. As entrevistas das agentes da delegacia foram presenciais, nas dependências da delegacia, com trinta minutos, em média, de duração. Cada participante foi entrevistada individualmente, assegurando-lhes o devido sigilo das informações.

Análise de dados

As respostas foram gravadas e transcritas na íntegra com prévia autorização das entrevistadas. A análise de dados foi dividida em dois grupos: o grupo 1, composto pelas estagiárias de Psicologia; e o grupo 2, composto pelas demais agentes de atendimento da delegacia. Utilizou-se a palavra “agente” para designar as demais funções exercidas que não sejam a de PP. Optou-se por usar o termo “entrevista” (E) e o respectivo número relacionado à ordem na tabulação dos dados (E01, E02, e assim por diante). A transcrição dos dados gerou um corpus textual monotemático que foi submetido ao Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires), um software livre ancorado no software R, que permite diferentes tipos de análises de corpus textuais com rigor estatístico. Para este estudo, adotou-se a classificação hierárquica descendente (CHD), a análise de similitude e a nuvem de palavras (Camargo & Justo, 2013).

Resultados e Discussão

O corpus analisado pelo software Iramuteq incluía 23 entrevistas sobre violência contra a mulher, em uma análise monotemática. Houve 46.630 ocorrências de palavras, difundidas em 3.954 formas. Conforme a CHD (Figura 1), foram analisados 1.304 segmentos de texto (ST) de 1.327 ST, gerando uma retenção de 98,27% do total, os quais conceberam seis classes. Primeiramente, o software separou essas classes em duas categorias, a de aspectos externos e outra categoria de aspectos internos, e, dentro de cada categoria, outras duas subcategorias também relacionadas a esses mesmos aspectos (Figura 1).

Figura 1
Resultados da Classificação Hierárquica Descendente; software Iramuteq.

A classe 6, “Abordagem da violência contra a mulher”, obteve 19,17% dos ST. As palavras que mais se destacaram foram: “violência contra a mulher”, “mudar”, “universidade”, “curso”, “satisfatório”, “tema”, “aluno”, “conhecimento”, “palestra”, “compreender”, entre outras. Tais palavras expressam como as estagiárias de Psicologia percebem a abordagem do tema violência contra a mulher pela universidade e pela sociedade, e consideraram que há muito a ser feito para chegar a um nível satisfatório:

Eu acho que no meu curso se fala mais sobre o tema violência contra a mulher, porque é Psicologia. Mas eu acho que os outros cursos não têm muita oportunidade de entrar em contato com esse tema. (E01 - estagiária de Psicologia)

Eu acho que o tema violência contra a mulher ainda é muito ocultado, as pessoas jogam pra debaixo do tapete esse tema e tentam camuflar. Dá impressão que as pessoas não querem ver aquilo que está na sua frente. (E16 - estagiária de Psicologia)

O PP evidenciou, para as estagiárias de Psicologia, a necessidade da psicoeducação nas escolas e universidades, como meio de enfrentamento da violência de gênero. Segundo elas, é fundamental avivar as discussões sobre a temática na universidade como um todo, não só no curso de Psicologia. Não consideram que o tema é abordado como deveria. Souza et al. (2009) confirmam que é preciso que estudantes sejam incentivados a desenvolver uma consciência social e reconhecer seu papel de cidadão, com posicionamento contra a violência e, para isso, deve-se inserir o tema nos diversos níveis de ensino devido à magnitude e ao impacto na saúde da sociedade.

Na classe 3, “Suporte psicológico para profissionais e vítimas”, com 12,12% dos ST, tiveram destaque as palavras: “suporte”, “trabalho”, “questão”, “psicológico”, “terapia”, “profissional”, “envolver”, “resolver”, “procurar”, “grupo”, entre outras. O conteúdo trata da importância do apoio psicológico para as vítimas e para os integrantes da equipe que atua na DDM, demonstrada nas seguintes frases:

Acho que o suporte emocional é importante pra qualquer pessoa, independentemente de onde a pessoa trabalha, nunca ela vai saber quando alguma coisa vai fazer mal. (E20 - agente da delegacia)

Na delegacia da mulher, é uma carga emocional muito grande que as profissionais vivenciam diariamente, e é de extrema importância que elas tenham esse suporte. (E16 - estagiária de Psicologia)

Com base nas falas das entrevistadas, a DDM é um ambiente de carga emocional, e a exposição às demandas trazidas para a delegacia traz a necessidade de um suporte emocional não só para as vítimas de violência, como também para os profissionais que lá atuam. Os relatos indicam que esse suporte emocional contribuiria para a atuação mais humanizada e para o bem-estar das agentes, sugerindo a importância de cuidar de quem cuida. Souza et al. (2018) confirmam que a humanização do atendimento não deve ser característica apenas das psicólogas, mas da equipe toda, que nem sempre tem um treinamento ou supervisão no trabalho, o que pode levar a um agir inadequado.

Indicar que a equipe da delegacia necessita de humanização nos atendimentos não se trata de criticar o trabalho da equipe, mas de ressaltar que as vítimas têm o direito de ser esclarecidas sobre os trâmites legais, ao mesmo tempo em que as informações disponibilizadas contribuam para encorajar e engajar tais mulheres no processo, e que, para isso, é preciso amparo e acolhimento para possibilitar que elas tomem melhores decisões. Diante isso, a presença do psicólogo no ambiente da DDM é essencial para acolher as vítimas e mediar, sensibilizar e cuidar da equipe.

A classe 2, “Expectativas do projeto”, gerou 21,01% dos ST. Os elementos mais relevantes foram: “gente”, “delegacia da mulher”, “projeto”, “supervisor”, “estagiário”, “diferença”, “sala”, “atuação”, “acolher”, “continuidade”, entre outros. Os relatos expressam a importância social do projeto de PP realizado na DDM e as expectativas sobre os frutos que ele possa gerar:

Eu espero que seja um momento que as vítimas se sintam acolhidas, não julgadas, que elas se sintam apoiadas em um momento tão tenso da vida delas. (E01 - estagiária de Psicologia)

Espero que esse projeto dissemine a importância de cuidarmos da nossa saúde mental, além de produzir o acolhimento psicológico ali na delegacia da mulher. (E10 - estagiária de Psicologia)

O PP é importante porque acolhe pessoas em situação de vulnerabilidade que procuram por ajuda. Farinha e Souza (2016) ressaltam que o serviço de PP desenvolvido nas DEAMs proporciona um espaço de escuta e acolhimento, busca assegurar, principalmente, os direitos humanos e sociais da vítima e revela-se como importante instrumento de enfrentamento contra a violência. Para as autoras, o PP promove redes comunitárias e sociais e aproxima a psicologia dos serviços de saúde, de assistência social e jurídica, e promove espaços para ressignificação de experiências emocionais advindas da violência.

A classe 5, “Superação pessoal da violência”, responsável por 13,42% dos ST, tem como elementos mais relevantes: “sofrer”, “perceber”, “violência psicológica”, “polícia”, “superar”, “exemplo”, “interferir”, “identificação”, “relacionamento”, “horrível”, entre outros. Notou-se que 69,56% das entrevistadas sofreram algum tipo de violência durante a vida, e o conteúdo dessa classe retrata sobre como elas compreendem a violência sofrida impactando nos atendimentos:

Ter sofrido violência me motivou muito a participar do projeto, porque, quando a gente passa por uma situação parecida, a gente acaba tendo mais empatia pela situação. (E04 - estagiária de Psicologia)

Consegui superar depois de algum tempo de terapia, e acho que interferiu, mas de uma forma positiva, porque quando você sofreu aquilo, você entende mais o sentimento, fica mais fácil de sentir empatia. (E09 - estagiária de Psicologia)

As estagiárias relataram sentimentos de empatia diante de atendimentos que apresentassem alguma semelhança com aspectos de suas experiências pessoais com a violência. Todas as participantes disseram que o acolhimento é muito importante para o atendimento humanizado e, para tanto, a empatia pela dor e sofrimento do outro é um facilitador no atendimento. Para Penso et al. (2010) essa relação entre a mulher que cuida e a que é cuidada não é neutra, uma vez que ambas carregam marcas sociais e psíquicas pela posição em relação ao gênero e à violência, suscitando em identificações e projeções que interferem no acolhimento por parte das atendentes, uma vez que entendem que seu trabalho possa fazer a diferença, mas que ao mesmo tempo as mobiliza intensamente, revelando implicações subjetivas que requerem apoio emocional.

A classe 1, “Impacto do atendimento”, foi a de maior expressividade, com 21,55% dos ST. Os principais léxicos foram: “ficar”, “atendimento”, “sentir”, “acontecer”, “tentar”, “pesado”, “identificar”, “chorar”, “medo”, “abalado”, entre outros. O conteúdo revela como os atendimentos realizados na DDM têm implicações na vida pessoal das estagiárias e agentes:

Eu fiquei muito mal, quando saí do atendimento eu tive dor de estômago, tive várias coisas físicas, chorei um monte, depois do atendimento mandei mensagem pra supervisora... na supervisão chorei horrores. (E15 - estagiária de Psicologia)

Não me senti abalada nos atendimentos, abalada emocionalmente não, o que eu senti é que quando eu venho pra casa, não sei se isso pode ser considerado abalo, eu trago a pessoa junto, eu fico pensando nela, eu fico preocupada com ela. (E06 - estagiária de Psicologia)

As dores no corpo podem sugerir implicações subjetivas advindas do atendimento de vítimas de violência e seus agressores, havendo uma demanda por apoio emocional para a realização de tais funções. Evidenciam que o contexto de violência gera afetos físicos e emocionais e que as agentes e estagiárias estão sujeitas aos efeitos maléficos da violência.

É relevante salientar que não há, por parte do Estado, uma proposta de cuidado com a saúde biopsicossocial dessas profissionais para ajudá-las a reconhecer e dar novos destinos a essas implicações subjetivas. A falta dessa intervenção estruturada de cuidado que amenize as emoções causadas pelo atendimento foi assinalada pela agente da delegacia:

O ideal seria que o Estado fornecesse terapia, acompanhamento profissional, o que não acontece. Já busquei, sim, ajuda profissional com terapia... com os anos. Se você não souber administrar os problemas que você vê no trabalho, isso pode te afetar, então eu percebi que eu precisava de um auxílio. (E17 - agente da delegacia)

Diante da atividade desgastante da qual desempenham, as estagiárias de Direito e as agentes revelaram ter desenvolvido estratégias de enfrentamento para amenizar o desgaste emocional. Relataram manter um distanciamento do caso, não se envolvendo emocionalmente, buscando não se afetar com o sofrimento da vítima e deixando para pensar no caso apenas na delegacia, não o levando para a vida pessoal, desenvolvendo, assim, certo tipo de “couraça”, exemplificado por elas. Observa-se a racionalização da violência e das dores atendidas como forma de proteção para amenizar os impactos emocionais a que estão submetidas e a tentativa de ser possível a realização do trabalho sem danos psíquicos, observado nas seguintes falas:

No começo as ocorrências impactavam, sim. Só que, logo que eu iniciei o trabalho aqui, o primeiro contato que eu tive foi com um autor de estupro de vulnerável, e eu fiquei pensando, a escrivã falou pra eu não ficar carregando isso. (E23 - estagiária de Direito)

Normalmente não me sinto abalada emocionalmente, eu tenho realmente isso, o meu cérebro funciona, desde que eu entrei na polícia eu percebi isso, tem um botãozinho de proteção. (E21 - agente da delegacia)

E muitos (agentes da delegacia) falavam que não precisam se cuidar porque não os afeta, mas dava pra perceber, eles sempre traziam algum caso que tinha impactado. (E15 - estagiária de Psicologia)

Ademais, os atendimentos não são apenas desgastantes e penosos. Deles também emergem sentimentos de satisfação profissional e pessoal quando se percebe que houve uma ajuda efetiva para as vítimas. Para Dejours (1992), o trabalho vai além das recompensas monetárias, sendo também um propulsor de subjetividades e uma ocasião para se realizar. No entanto o contrário também acontece. O sentimento de frustração aparece quando a vítima não prossegue com o processo e reata o relacionamento com o agressor, o que se demonstra nos seguintes relatos:

Majoritariamente, eu me sinto bem, sinto útil. Porém tem alguns momentos que eu não me sinto útil, o que eu fiz ali não ajudou muito, porque, no final das contas, a escolha sempre é do outro. (E02 - estagiária de Psicologia)

Quando eu consigo ajudar algumas dessas mulheres, eu me sinto realizada, e o contrário acontece também, muitas vezes eu me sinto frustrada. (E21 - agente da delegacia)

Na classe 4, “Influência familiar”, com 12,73% dos ST, as palavras em destaque foram: “casa”, “vida”, “mãe”, “irmão”, “filho”, “pai”, “história”, “tocar”, “inseguro”, “vulnerável”, entre outras. Observa-se influência expressiva da família na vida das pessoas, indicando uma forma de identificação ou deslocamento de afetos pessoais nos atendimentos:

Eu lembro que ela [vítima] falou pra mãe que queria que ele mudasse pra ficar junto com ele, e eu lembrei que, quando eu estava grávida da minha filha, eu queria que ele mudasse pra gente poder ficar junto. (E22 - estagiária de Direito)

Fez relembrar o que eu também vivo em casa, porque tem essa questão que ela não tinha tempo pra ela, ela tinha que fazer tudo pelos outros, ela era muito criticada. E isso, de certa forma, me relembrou o que eu vivo. (E16 - estagiária de Psicologia)

Segundo Penso et al. (2010), a atuação de profissionais com vítimas de violência é permeada pela preocupação ética decorrente da emoção, e não da razão, não havendo neutralidade ao desempenharem o cuidado, e, para elaborar esses conteúdos, carregam para a vida familiar os sentimentos vivenciados nos atendimentos. Isso é observado na fala da estagiária de Psicologia E11, que deseja compartilhar com seu marido suas angústias geradas pelos atendimentos, mesmo a contragosto dele: “Muitas vezes eu chegava em casa e tinha que desabafar, eu contava pro meu marido, eu preciso contar pra alguém. Quando eu contava, ele falava que não gostava que eu trabalhava lá” (E11 - estagiária de Psicologia).

Pode-se pensar, então, que há uma extensão das tensões e dificuldades da atuação para a vida pessoal, e uma extensão das preocupações com a vida pessoal para o trabalho. As barreiras entre as dimensões são tênues, conforme apontam Penso et al. (2010), pois as relações carregam sistemas simbólicos que facilitam projeções e fantasias de um lado para o outro.

Nos resultados gerados alusivos à análise de similitude pelo software Iramuteq (Figura 2), as interconexões entre as palavras indicam a ocorrência e a relação entre elas, variando entre maior e menor conectividade. De acordo com a análise léxica, pode-se associar com as classes obtidas pela CHD (teste do qui-quadrado).

Figura 2
Análise de similitude do software Iramuteq.

Verifica-se que os termos de maior destaque são: “gente”, “achar” e “delegacia da mulher”, que, localizados no núcleo mais central, demonstram que as participantes apresentaram suas percepções sobre suas experiências na DDM. O léxico central “gente”, utilizado para descrever a si próprias, está associado às palavras: “ficar”, “pensar”, “lembrar”, “chorar”, “impactar”, “abalado”, “acontecer”, “difícil”, entre outras que demonstram como elas se sentem diante dos atendimentos, e fazem alusão à classe 1 “Impacto do atendimento” da CHD (Figura 1), já abordados anteriormente.

As ligações do léxico “gente” com as palavras: “atender”, “ajudar”, “vítima”, “pandemia” e “parar” demonstram que, devido à interrupção acarretada pela pandemia da Covid-19, as vítimas usuárias da DDM têm sentido falta do acolhimento psicológico prestado pelas estagiárias de Psicologia, que, apesar da interrupção do projeto, mostrou atender às expectativas da equipe:

O projeto é muito importante. Com a pandemia estamos sentindo muita falta, vem vítima perguntando quase todo dia se tem a psicóloga, se tem o acolhimento, quando vai voltar com essa pandemia, aí querem que a gente faça e não tem como. (E22 - estagiária de Direito)

Nessa fase de pandemia, muitas (vítimas) vieram aqui não pra registrar boletim de ocorrência, só pra conversar com a psicóloga, então é um trabalho muito importante e principalmente, não só aqui na delegacia da mulher, mas também no campus da universidade. (E17 - agente da delegacia)

O PP realizado na DDM tem se mostrado importante para as vítimas, conforme os relatos das entrevistadas. No entanto, apesar de previsto em Lei, no Brasil ainda não é obrigatória a presença do profissional de Psicologia nas equipes das Deams, o que faz que esse serviço ocorra apenas a partir de parcerias com universidades. Apesar da importância do atendimento realizado pelas universidades, o serviço é insuficiente diante da vasta demanda, além de não ser permanente, pois acompanha o calendário escolar, as intervenções são de caráter pontual, as estagiárias realizam o atendimento e não há, sobretudo, acompanhamento para um fenômeno mais crônico. Isso indica que, além das parcerias com as universidades, é importante que haja concursos para a inserção de psicólogos em período integral nas Deams.

O léxico “achar”, ligado aos termos “precisar”, “forma”, “abordar”, “violência contra a mulher”, “falta”, “melhorar”, “universidade”, “projeto”, “satisfatório”, “tema” e “falado” representam a classe 6 da CHD (Figura 1), demonstrando as percepções das estagiárias de Psicologia em relação à abordagem social e acadêmica sobre o tema violência contra a mulher, discutido anteriormente. Aludem também à falta do desenvolvimento de práticas e experiências no decorrer do curso e que se almejava o contato com a temática e com a prática desde o início do curso:

A gente já podia ter um treinamento,, desde o começo do curso, não só agora no quarto ano. No último ano que a gente vai ter parte prática, falta um pouco pra gente saber lidar com isso. Poderia melhorar a forma de abordar o tema. (E08 - estagiária de Psicologia)

A prática demora muito... podiam ter colocado a gente aos poucos, ter exposto a gente mais, não precisava ter sido uma matéria, um semestre inteiro, mas podiam ter exposto mais a gente durante o curso. (E10 - estagiária de Psicologia)

Souza e Faria (2017) destacam a importância de discutir a temática nas universidades, mas que esses estudos têm sido marginalizados ou conduzidos de modo superficial. Nesse sentido, afirmam que uma parcela das profissionais não tem conhecimentos teóricos e metodológicos prévios, podendo levar a uma compreensão rasa do tema, mas que adquirem no decorrer da atuação.

Ainda ligados ao léxico “achar”, a conexão com os termos “importante”, “precisar”, “projeto”, “esperar”, “estágio”, “motivar”, “participar”, entre outros, diz respeito às motivações que levaram as participantes a exercerem suas funções na DDM. Os motivos apresentados abrangem duas dimensões: experiências pessoais e experiências profissionais. No que se refere às experiências pessoais, destaca-se que 69,56% das entrevistadas sofreram algum episódio de violência durante a vida e os motivos estão relacionados a esse histórico pregresso da violência, e percebem seu trabalho como uma causa social. Souza e Faria (2017) verificaram o envolvimento direto de profissionais de Psicologia com trabalhos que relacionam vítimas de violência e corroboram com a pesquisa. Segundo Badinter (1985), há uma estreita relação entre o amor e a identificação, pois não há amor senão no processo de identificação com o outro, que nos permite sofrer ou ser feliz com ele. Quanto às experiências profissionais, as participantes apontaram a oportunidade de maior conhecimento da temática, conforme citaram:

O que mais me motivou, na infância eu passei por situação de violência doméstica com minha mãe, ela sofria, então eu tive contato bem presente com isso, e pra mim é uma causa muito importante. (E14 - estagiária de Psicologia)

O que me motivou a participar do projeto, primeiro, foi a experiência, porque eu já tinha feito um semestre do plantão psicológico, e eu acreditava que seria um outro tipo de experiência, sabe, viria pra agregar. (E05 - estagiária de Psicologia)

Os termos “dificuldade”, “violência contra a mulher”, “delegacia da mulher”, “sala”, “experiência”, “boletim de ocorrência”, “terapia”, “psicológico”, “plantão psicológico”, entre outros, demonstram as dificuldades encontradas pelas estagiárias de Psicologia ao realizarem o PP:

A gente tem que ficar andando com a pessoa de lá pra cá, ou atender no corredor. Eu sei que plantão psicológico, tanto no hospital como na delegacia da mulher, é algo que você tem que criar o ambiente, mas, se tiver uma sala pra gente colocar aquela pessoa lá, dar um copo com água, e a pessoa ficar numa situação mais privada, melhora pra nós e pra pessoa que está sendo atendida. (E06 - estagiária de Psicologia)

A princípio, eu não levava nada para a delegacia da mulher, eu ia sem nada. E, quando não tinha nada pra fazer, eu ficava um pouco entediada, então eu senti um pouco de dificuldade de lidar. Como é plantão psicológico, você tem que lidar ou com muitos atendimentos ou com nenhum atendimento, de lidar com o nada. (E10 - estagiária de Psicologia)

As dificuldades apontadas pelas participantes são referentes à estrutura física e aos fatos inesperados que podem ocorrer nos atendimentos, ou até mesmo a falta deles. Verificou-se que a falta de uma sala para o atendimento psicológico dificulta o acolhimento, a realização dos atendimentos e a garantia do sigilo da pessoa atendida. As participantes relataram realizar os atendimentos no corredor, na copa ou na sala de espera, fato que corrobora com os relatos obtidos por Souza e Faria (2017) e Souza et al. (2018). Em relação ao inesperado, os dados coincidem com os de Paparelli e Nogueira-Martins (2007), que revelam a ansiedade de seus entrevistados pela expectativa do elemento surpresa, pelo desconhecido e pelo medo de errar e de ser avaliado, pois o processo exige mais do que conhecimentos teóricos.

A conexão entre os termos “violência doméstica”, “situação”, “mulher”, “marido”, “escola”, “conhecimento”, entre outros, retrata que a falta de conhecimento e o mal-uso da Lei Maria da Penha podem ser prejudiciais para as próprias mulheres e para a sociedade. De modo geral, as pessoas já ouviram falar sobre a Lei Maria da Penha, mas ainda falta muito conhecimento sobre esse dispositivo legal. As entrevistadas consideram que muitas mulheres vão até a delegacia para ameaçar seus parceiros e, muitas vezes, não há o enquadre na Lei Maria da Penha, mas elas querem utilizar o mecanismo para obter privilégios em relação ao divórcio, à guarda dos filhos etc., o que pode ser observado nas seguintes frases:

Tem pessoas, tem mulheres que estão utilizando da Lei Maria da Penha pra fins não corretos. Às vezes ela não é vítima de violência doméstica, pode até ter tido uma discussão em casa ou a separação, que está meio truncada... mas elas vêm pra cá e elas querem utilizar desse instrumento [Lei Maria da Penha], e isso, de certa forma, acaba prejudicando. (E21 - agente da delegacia)

Acho que muitas mulheres também se aproveitam da delegacia da mulher contra os maridos, contra os parceiros. (E10 - estagiária de Psicologia)

Oliveira e Moreira (2016) também encontraram esses dados em sua pesquisa e relatam que o boletim de ocorrência é utilizado por muitas mulheres como instrumento de barganha, e ressaltam que, mesmo desviados de sua finalidade, mostram uma tentativa de fortalecimento por meio da autoridade policial. Nesse sentido, a DDM é entendida como um local para acolher e dar voz a essas mulheres, não apenas um para realizar a denúncia.

Diante desse problema, as agentes acreditam que intervenções interdisciplinares oferecidas na DDM são importantes para o enfrentamento da violência para melhor atender a vítima. Porém não há estrutura física para disponibilizar esse tipo de atendimento integral na DDM, mesmo se houvessem profissionais para realizá-lo. O ambiente físico é o reflexo do que é socialmente valorizado, tem sala quem é reconhecido como necessário e tem destaque no processo.

A nuvem de palavras (Figura 3), utilizada como outra forma de análise lexical, possibilita que as palavras sejam organizadas e agrupadas de acordo com sua ocorrência de forma mais visível. São os termos com maior destaque “gente”, “achar”, “saber”, “delegacia da mulher”, “falar”, “ficar”, “atendimento”, “trabalho”, “terapia”, “ajudar”, “violência”, “mulher”, “pensar”, “sentir”, “entender”, “supervisão”, “acolhimento”, “outro”, “momento”, “acontecer”, “caso”, entre outros.

Figura 3
Nuvem de palavras do software Iramuteq.

Ao relacionar esses termos centrais, além do que já foi discutido, verifica-se que as estagiárias de Psicologia consideram a supervisão, a rede de apoio e a terapia como maiores fontes de autocuidado e cuidado do outro. A supervisão, além de representar um autocuidado, minimiza os sentimentos gerados pelos atendimentos e representa um guia para a atuação, pois as trocas ampliam a visão do caso, preparando-as para os próximos atendimentos. Isso se demonstra nas seguintes citações:

Acho que a rede de apoio ajudou bastante, as supervisões, as minhas amigas que já estavam na delegacia da mulher. (E01 - estagiária de Psicologia)

A saúde mental é de extrema importância pra realizar os atendimentos, porque, se você não está bem, você não pode ajudar outra pessoa. Então eu procurava sempre, nas supervisões, ter o máximo de orientação que eu pudesse sobre cada caso, sobre como agir, e fazia terapia também. (E16 - estagiária de Psicologia)

A supervisão foi citada majoritariamente pelas estagiárias de Psicologia como componente de ajuda pessoal e profissional, oferecendo aparato teórico e prático para a atuação, e forte rede de apoio entre as estagiárias, que percebem o papel da supervisora como primordial para o desenvolvimento do projeto, atendendo às expectativas, angústias e ansiedades para a maioria das entrevistadas. A presença do supervisor, segundo Paparelli e Nogueira-Martins, (2007), viabiliza a reflexão ética, compreende o erro e administra os acertos. Assim, tais ações podem ser consideradas eficientes e geradoras de resultados adequados, fazendo que as estagiárias permaneçam exercendo suas funções e preservando sua saúde mental.

Considerações finais

Este estudo objetivou analisar as percepções das plantonistas e agentes de uma DDM sobre a violência de gênero e os impactos dos atendimentos e dessas percepções no cotidiano pessoal e de trabalho dessas mulheres. A pesquisa sinalizou que existem lacunas e limitações no trabalho de combate à violência contra a mulher: a questão da escassez de atendimento psicológico nas Deams, que acontece apenas por meio de parcerias com universidades; a falta de estrutura física apropriada que contribua para um melhor atendimento, orientação e acolhimento das vítimas; e falta de uma equipe multidisciplinar para que a vítima tenha todos os atendimentos e orientações necessárias para os trâmites legais, tendo em vista o momento de sofrimento e vulnerabilidade.

No que tange aos impactos emocionais dos atendimentos e aos desgastes físico e mental, elas demostraram ter desenvolvido estratégias de enfrentamento para diminuí-los. As agentes da delegacia utilizam-se da racionalização como proteção, criando uma espécie de couraça que as impede de se envolver. As estagiárias têm a supervisão como forte aliada para expressar os sentimentos oriundos dos atendimentos, a psicoterapia e a rede de apoio como principal fonte de autocuidado.

O estudo indicou baixa importância aos cuidados em saúde mental na sociedade. Tendo em vista que o psicólogo não faz parte do rol da equipe das delegacias, tampouco os profissionais recebem suporte psicológico para auxiliar em seu trabalho, que é emocionalmente desgastante. Contudo o apoio psicológico e as intervenções em saúde mental parecem ser necessários para os profissionais que atuam em casos de violência, considerando o desgaste físico e emocional do ambiente que estão inseridos e as demandas que recebem.

Evidenciou-se também a importância da responsabilidade social das universidades no movimento de discussões das temáticas sociais, no desenvolvimento de pesquisas que tragam luz às necessidades da sociedade e na formação de profissionais que não sejam alienados, mas sujeitos éticos e políticos, dispostos a uma mudança social. Espera-se dela a produção de maiores conhecimentos, criação de espaços de discussão e dispositivos de intervenção mais eficazes.

A psicoeducação nas escolas foi veementemente apontada como um meio de enfrentamento e combate à violência de gênero e um instrumento para a mudança das discriminações e iniquidades sociais, mas que ainda não é abordada de forma satisfatória, diante da amplitude do problema. Uma educação que não aborde de forma crítica situações que desconsideram os direitos humanos acaba por ser uma “contraeducação”, sendo favorável apenas para a parte dominante de um sistema de poder que deprime um indivíduo em detrimento de outro.

Este estudo apresenta limitações. Apesar de não ter o intuito de generalizar, os relatos foram obtidos em apenas uma delegacia e são fruto de uma entrevista. Entretanto utilizaram-se metodologias robustas, como o uso do software Iramuteq para diminuir o viés da pesquisa. Diante da complexidade da violência contra a mulher, destaca-se a relevância de novas pesquisas que contemplem outros alcances das consequências desse fenômeno.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2020
  • Aceito
    28 Mar 2021
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