Open-access A imaginação ativa junguiana na Dança de Whitehouse: noções de corpo e movimento

L’imagination active junguienne dans la Danse de Whitehouse: notions de corps et de mouvement

La Imaginación Activa junguiana en la Danza de Whitehouse: nociones de cuerpo y movimento.

Resumo

Este estudo apresenta as noções de corpo e movimento presentes na dança de Mary Starks Whitehouse, conhecida como Authentic Movement - Movimento Autêntico. Ela foi pioneira dentro da construção do sentido terapêutico da dança a utilizar os princípios da teoria da psique de Carl Gustav Jung. A análise foi realizada a partir de textos originalmente escritos por Whitehouse, durante os anos de 1958 e 1979 e reeditados por Patrícia Pallaro em 1999. O resultado da pesquisa sinaliza que, para Whitehouse, o corpo é o aspecto físico da personalidade que, por sua vez, se faz visível no movimento. Este pode ser gerado num continuum entre o impulso inconsciente e o comando do Ego e possibilita a visibilidade da condição atual da psique, bem como gerar mudanças nela. Espera-se que este estudo traga contribuições no campo da Psicologia Analítica e da Arteterapia.

Palavras-chave: imaginação ativa; Jung; movimento autêntico

Résumé

Cette étude présente les notions de corps et de mouvement présentes dans la danse de Mary Starks Whitehouse, connue sous le nom de «Authentic Movement » (Mouvement Authentique). Dans la construction du sens thérapeutique de la danse, elle a été la pionnière à utiliser les principes de la théorie de la psyché de Carl Gustav Jung. L’analyse a été réalisée à partir de textes originellement écrits par Whitehouse pendant les années 1958 et 1979 et réédités par Patricia Pallaro en 1999. Le résultat de la recherche indique que, chez Whitehouse, le corps est l’aspect physique de la personnalité qui, à son tour, se fait visible dans le mouvement. Celui-ci peut être générée dans un continuum entre l’impulsion inconsciente et l’ordre du Moi et permet la visibilité de l’état actuel de la psyché, ainsi que d’y engendrer des changements. On espère qu’avec cette étude l’on puisse apporter des contributions dans le domaine de la Psychologie Analytique et de l’Art-térapie

Mots-clés: imagination active; Jung; mouvement authentique

Resumen

Este estudio presenta las nociones de cuerpo y movimiento presentes en la danza de Mary Starks Whitehouse, conocida como Authentic Movement - Movimiento Auténtico. Ella fue pionera dentro de la construcción del sentido terapéutico de la danza a utilizar los principios de la teoría de la psique de Carl Gustav Jung. El análisis fue realizado a partir de textos originalmente escritos durante los años de 1958 y 1979, reeditados por Patrícia Pallaro en 1999. El resultado de la pesquisa señaliza que, para Whitehouse, el cuerpo es el aspecto físico de la personalidad que, por su vez, se hace visible en el movimiento. Esto puede ser generado en un continuum entre el impulso inconsciente y el comando del Ego y posibilita la visibilidad de la condición actual de la psique, bien como generar mudanzas en ella. Se espera con este estudio traer contribuciones en el campo de la Psicología Analítica y de la Arteterapia.

Palabras clave: imaginación activa; Jung; movimiento auténtico

Abstract

This study presents the notions of body and movement found in Mary Starks Whitehouse’s dance, known as Authentic Movement. Whitehouse was a pioneer in the construction of therapeutic meaning of dance for using Carl Gustav Jung psyche theory. The analysis has been carried out after Whitehouse texts written between 1958 and 1979 and re-edited by Patrícia Pallaro in 1999. These research findings suggest that, in Whitehouse’s view, the body is the physical aspect of the personality, becoming visible through its movement. This may be generated in a continuum between subconscious impulse and Ego control, not only to make the visibility of the current state of psyche possible, but also to generate changes in it. It is expected that this study brings contributions to both the Analytical Psychology and the Art Therapy field.

Keywords: active imagination; Jung; authentic movement

Introdução

Carl Gustav Jung (1875-1961), um dos grandes intelectuais de sua época, trouxe questionamentos importantes para o pensamento humano, não se reduzindo à área da Psicologia. Ele se distanciou da teoria de Sigmund Freud e foi criando sua própria teoria de funcionamento da psique, presenteando-nos com a Psicologia Analítica.

As pesquisas que ele realizou no cenário clínico, com seus pacientes e consigo mesmo, foram extensas e profundas, levando-o a considerar, num determinado momento de sua vida profissional, que a estrutura e o processo de uma determinada produção artística - desenho, pintura, escrita, entre outras - poderiam ser instrumentos terapêuticos que possibilitariam dar forma às imagens simbólicas surgidas durante o tratamento.

A construção de uma teoria de funcionamento da psique e sua proposta de intervenção terapêutica por meio da arte, da qual ele denominou de “imaginação ativa”, permitiram a outros profissionais realizarem pontes epistemológicas para seus trabalhos e dentre os quais inclui-se o recurso terapêutico pela dança. Esta, por sua vez, permite nos aproximarmos de dois elementos fundamentais nesse processo, o corpo e o movimento.

A dança como recurso terapêutico reafirma a nossa condição corpórea-motriz e a necessidade de nos mantermos em movimento, seja para tratar dos processos corporais ou para tratar dos processos psíquicos, ou ainda, ambos simultaneamente no imbricamento de suas relações.

Mary Starks Whitehouse foi pioneira em utilizar os princípios da teoria junguiana na dança como processo terapêutico. Embora, ela mesma no começo tenha resistido ao termo terapêutico, Whitehouse trouxe uma enorme colaboração para os estudos que se seguiram nessa vertente, primeiramente denominada de Movement in deep e posteriormente como Authentic Movement.

Procedimentos analíticos

Serão destacadas aqui as noções de corpo e movimento presentes no trabalho de Whitehouse identificadas em oito capítulos pertencentes à coleção de ensaios editados por Patrizia Pallaro em 1999, na qual são apresentados os trabalhos de Whitehouse, Janet Adler e de Joan Chodorow, suas discípulas. Os escritos analisados compreendem os anos de 1956, 1958, 1963, 1969-70, 1972, 1977, 1978 e de 1979 (data original das publicações), e se constituem em: duas entrevistas feitas com Whitehouse e artigos apresentados por ela em encontros acadêmicos, publicados posteriormente em revistas acadêmicas como Dance/Movement Therapy, American Journal of Dance Therapy, Contact Quarterly e Impulse, em anos posteriores à escrita original.

A importância de identificar essas noções e possíveis campos de inserção se deve ao fato de que uma noção, uma ideia, são conhecimentos elementares daquilo que posteriormente se transformará em conceito. Deve-se atentar ao cuidado de entender que essas noções não podem ser consideradas dentro de uma perspectiva evolutiva, mas sempre descontínua.

Assim faz-se uma pequena explanação histórica destacando os elementos pertencentes a construção da Dança Moderna Ocidental que abriram trilhas para a dança em seu sentido terapêutico. O texto a seguir está dividido em quatro itens: 1. Corpos Dóceis e Fragmentados, no qual apresenta-se de forma breve o conceito de corpos dóceis de Michel Foucault, a fragmentação do corpo presente nas obras de arte e algumas rupturas realizadas pela dança artística; no item 2. A Dança em seu sentido terapêutico e a trajetória de Whitehouse, sinaliza os elementos da passagem da dança artística para a dança terapêutica e a trajetória profissional de Whitehouse; item 3. A imaginação ativa de Carl Gustav Jung, apresenta-se a explicação do método da imaginação ativa e suas implicações; e o item 4. Authentic Movement: noções de corpo e movimento, mostra-se o pensamento de Whitehouse sobre o corpo e o movimento. Por último traça-se as considerações finais sobre corpo e movimento.

Espera-se que este estudo colabore em pesquisas que tratam do corpo em movimento e trazer contribuições no campo da psicologia junguiana e da Arteterapia.

Corpos dóceis e fragmentados

As origens da dança como atividade terapêutica situa-se no seio da construção da Dança Moderna Ocidental, na primeira metade do século XX. Mas, o contexto político, econômico, cultural e tecnológico da primeira metade desse século não pode ser considerado sem a marca deixada pelas duas grandes guerras mundiais (de 1914 a 1918, e 1939 a 1945) e pelas transformações advindas da Revolução Industrial ocorrida no final do século XIX.

Os efeitos das guerras deram impulso ao desenvolvimento das áreas da Medicina, da Neurofisiologia e da Psicologia, entre outras. Os novos aparatos cirúrgicos, anestésicos e farmacêuticos, bem como as primeiras formas de visualização interna do corpo no campo da Medicina, as novas formas de tratamento psíquico no campo da Psicologia, as abordagens corporais terapêuticas e as terapias do movimento, tiveram seus desenvolvimentos concomitantes com os efeitos das guerras.

Nessa perspectiva é necessário contabilizar que as experiências vividas no processo de guerra, no combate ou fora dele são antes experiências do corpo. (Audoin-Rouzeau, 2008) diz:

Toda experiência de guerra é, antes de tudo, experiência do corpo. Na guerra, são os corpos que infligem à violência, mas também são os corpos que sofrem a violência. Esta face corporal da guerra se confunde tão intimamente com o próprio fenômeno bélico que é difícil separar a ‘história da guerra’ de uma antropologia histórica das experiências corporais induzidas pela atividade bélica. (p. 365)

Estabelecendo diferenças entre as duas guerras mundiais, esse mesmo autor aponta que é a partir do acontecimento das “baixas psíquicas” que pudemos chegar novamente ao somático, considerando que foram as agressões sensoriais sofridas pelos soldados durante a guerra que originaram os traumas de combate e os traumas físicos e psíquicos vivenciados por civis (fome, torturas, estupros).

A preparação dos soldados para o enfrentamento da guerra é realizada por um conjunto de exercícios físicos, de estratégias de fuga e de manobras (relação corpo-movimento-arma que se estabelece no constante exercício de prontidão para atirar), entre outros, que, por terem como princípio a disciplinarização dos corpos, podem ser entendidos na concepção de Michel Foucault, de docilidade dos corpos.

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, <<corpos dóceis>>. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo, faz dele por um lado uma <<aptidão>>, uma <<capacidade>> que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada. (Foucault, 1975/1996, p. 127, grifos do autor)

Tal docilidade dos corpos também pode ser entendida nos efeitos da Revolução Industrial, ocorrida no final século XIX, com suas novas formas de trabalho. Podemos ver que o corpo que se fragmenta para atender o novo tipo de produção também se constitui como um corpo dócil.

Com a industrialização houve a passagem da produção artesanal para uma produção por máquinas, impondo uma divisão na manufatura do produto. Nesse sistema de produção, aquilo que o trabalhador realiza é apenas uma parte do produto final, que gera sob seu corpo um tipo de “adestramento” - realiza sempre o mesmo movimento de modo eficaz e econômico - que a técnica de operacionalização com a máquina exige, de modo que ele mesmo se torna parte de uma grande engrenagem.

Na perspectiva das Artes é na relação com o antes e o pós-guerra que o movimento da Modernidade, completo de variantes e contradições entre os diferentes movimentos das diversas artes, pode ser visto. Mas a ideia de fragmentação que antes da guerra se mostrava como um elemento de criação do novo, no pós-guerra iria refletir a angústia do mundo em pedaços.

Vê-se nas produções de alguns artistas, a fragmentação do corpo como elemento expressivo resultante da experiência de desintegração do ser, seja em seu aspecto físico, psíquico ou social. Como exemplo, podemos ver como as produções de Salvador Dali, Pablo Picasso, René Magritte, Hans Bellmar entre outros, serão problematizadas no sentido de fragmentação, decomposição e dispersão: “o vocabulário que define a postura modernista é exatamente o mesmo que serve para designar a ideia de caos, supondo a desintegração de uma ordem existente, e implicando igualmente as noções de desprendimento e desligamento do todo”. (Moraes, 2002, p. 59)

Na dança, o momento no qual se inicia o processo de desconstrução com a ordem existente é quando ocorre de forma gradual uma resistência à prática rígida e disciplinadora do balé clássico estabelecida durante quatro séculos. Inicia-se a formação de dançarinos, coreógrafos e professores focados em novas abordagens do corpo, do movimento e de concepção de espetáculo.

A resistência ao trabalho disciplinador do balé clássico pode ser destacada por duas ocorrências: no trajeto da dançarina Isadora Duncan em 1920, cujo trabalho criativo se pautava nas emoções; e no desenvolvimento dos profissionais dos anos subsequentes a ela, que construíram a Dança Moderna Ocidental, buscando a integração, não só do corpo como um todo em movimento, mas também numa integração do corpo e psique em movimento.

Os artistas estavam sintonizados com os estudos da Neurofisiologia de Charles Scott Sherrington que, em 1906, reuniu um conjunto de comportamentos perceptivos do corpo sob o termo Propriocepção e pelos teóricos: François Delsarte (1811-1871), que estudou como o corpo pode traduzir os estados interiores; Èmile Jacques Dalcroze (1865-1950), criador de um método de educação rítmica-motora - Eurythmics; e Rudolf von Laban (1879-1958) que criou um sistema de Análise do Movimento - Laban Movement Analysis e um sistema de registro do movimento - Labanotation -; entre outras influências.

De outro lado, esses artistas se interessaram pelos estudos da Psicologia na fase inicial da Somática1, e nos posteriores desdobramentos desta dando origem à Educação Somática. Podemos citar: Moshe Feldenkrais, Ida Rolfing, Gerda Alexander, Imgard Barthnief, entre outros, que realizaram estudos com o próprio corpo. Essas influências são relevantes para entender o pensamento dos estudiosos da dança artística do período, bem como para a compreensão do encaminhamento da dança para o sentido terapêutico. Entre as diferentes vertentes da Psicologia adotadas naquele período, Mary Starks Whitehouse escolhe a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung.

A dança em seu sentido terapêutico e a trajetória de Mary Starks Whitehouse (1911-1979)

Em torno dos anos 1930, ex-dançarinos, professores e coreógrafos começam a explorar com mais rigorosidade os efeitos terapêuticos trazidos pela experiência de dançar.

(Chaiklin, 2009), membro fundadora da American Dance Therapy Association (ADTA) sinaliza que o público das pessoas interessadas por esses efeitos era a maioria constituído de mulheres, muitas delas advindas da psicanálise, que naquele momento era a principal forma de tratamento psíquico. Outras mulheres seguiram seus estudos sobre as teorias de Harry Stack Sullivan, Alfred Adler, Carl Gustav Jung, entre outros.

Pode-se dizer que a passagem da dança artística para a dança terapêutica se deu a partir de alguns elementos importantes: a experiência criativa do movimento com seus diferentes desdobramentos para fins artísticos, iniciada a partir da ruptura com o modelo coreográfico clássico; a improvisação como elemento chave da dança criativa; a autoria do dançarino na experiência criativa; a mudança de significado da própria dança para aquele que a realiza; e especialmente a ideia de que a experiência expressiva do sujeito dançante não seria dirigida para um fim artístico ou para o público, mas para si mesmo. Seriam, portanto, o processo, os efeitos do movimento criativo e a expressão psicomotora, os objetos a serem considerados no uso da dança como recurso terapêutico, tendo na relação corpo-mente seu ponto de sustentação. O conceito corpo-mente tornou-se o ponto de articulação entre as diferentes abordagens. (Chaiklin, 2009) assim o define:

O conceito corpo-mente realiza uma volta completa. Todos os elementos e componentes do humano são um conjunto de sistemas relacionados. A mente é parte necessária do corpo e o corpo afeta a mente. Muitas pesquisas estão sendo realizadas por neurofisiologistas e outros cientistas para examinar essas inter-relações. Quando falamos do corpo, nós não estamos apenas descrevendo os aspectos funcionais do movimento, mas como nossa psique e emoções são afetadas pelo nosso pensamento e como o movimento em si efetua mudança neles (p. 5).

Como veremos adiante, a imbrincada relação corpo-movimento-psique será trabalhada por Whitehouse no contexto terapêutico da dança, inaugurando nessa vertente os conceitos da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, utilizando especialmente a imaginação ativa para dar forma ao seu trabalho.

A trajetória artística de Whitehouse foi delineada entre grandes mestres da dança artística moderna e em diferentes e importantes escolas desse movimento na primeira metade do século XX. Ela participou dos cursos de Marta Graham School, da Bennington Summer School of Dance, diplomou-se na Wigman Central Institute, escola de Mary Wigman em Dresden, Alemanha e, da Joos Ballet School de Kurt Jooss, discípulo de Rudolf Laban e um dos fundadores da Dança-Teatro. Deve-se considerar que tanto Graham quanto Wigman foram duas grandes expoentes da Dança Moderna Ocidental americana e germânica, respectivamente, que se influenciaram mutuamente e que mudaram o cenário da dança.

A retirada de Whitehouse da dança artística profissional não foi somente pelas dificuldades que o tempo traz em relação às habilidades do corpo, mas por uma metamorfose, uma mudança de interesse gradual e pelas condições de vida pessoal como: seus filhos, um divórcio, a experiência da análise pessoal na vertente junguiana com Hilde Kirsch em Los Angeles e os estudos em Psicologia Analítica no Jung Institute em Zurique, relata (Whitehouse, 1963/1999c).

Como professora de dança ela iniciou seu trabalho na vertente terapêutica com os alunos, em seu próprio estúdio, que como muitas da época migraram da dança-espetáculo para a dança-terapia2. Durante o período em que Mary Starks desenvolvia seu trabalho, entrou em contato com Trudi Schoop, Jeri Salkin e Marian Chace, também grandes nomes na linha terapêutica da dança.

(Frantz, 1972/1999), em uma entrevista realizada com Whitehouse, relata que ela se graduou na Faculdade de Wellesley e depois como professora lecionou da costa leste a oeste na Dance Faculty na University of California em Los Angeles. Posteriormente como uma das pioneiras no campo da dança terapêutica ela se tornou membro-fundadora da ADTA.

Ela descobriu em suas aulas que aquilo que fazia, utilizando os elementos da psicologia junguiana, estava ajudando as pessoas a descobrirem e tratarem com suas questões pessoais. “Foi um dia importante quando eu descobri que eu não ensinava Dança, eu ensinava Pessoas” (Whitehouse, 1969-1970/1999d, p. 59).

A imaginação ativa de Carl Gustav Jung (1875-1961)

A imaginação ativa se constitui numa técnica ou abordagem terapêutica criada por Jung, desenvolvida nos anos subsequentes à sua separação profissional com Freud em 1913, momento no qual questionava as interpretações deste sobre o funcionamento da psique. Afetado profundamente com a separação, Jung dizia que se encontrava “num beco sem saída” e em meio a essa crise, ele realizou uma autoexperiência3, que durou até o ano de 1930. Ele a chamou primeiramente de “confronto com o inconsciente” e posteriormente de imaginação ativa.

Para Jung o inconsciente se comporta de maneira compensatória ou complementar em relação à consciência e vice-versa. Os seguintes pontos mostram essa relação:

1) os conteúdos do inconsciente possuem um valor liminar, de sorte que todos os elementos por demais débeis permanecem no inconsciente: 2) a consciência, devido a suas funções dirigidas, exerce uma inibição (que Freud chama de censura) sobre todo o material incompatível, em consequência do que, este material incompatível mergulha no inconsciente; 3) a consciência é um processo momentâneo de adaptação, ao passo que o inconsciente contém não só todo o material esquecido do passado individual, mas todos os traços funcionais herdados que constituem a estrutura do espírito humano e 4) o inconsciente contém todas as combinações da fantasia que ainda não ultrapassaram a intensidade liminar e, com o correr do tempo e em circunstâncias favoráveis, entrarão no campo luminoso da consciência. (Jung, 1938/2013, p. 13)

Nessa perspectiva interessava a ele saber o modo como nos confrontamos com o inconsciente e os meios de que dispomos para identificá-lo. (Jung, 1938/2013, p. 27) considerava que: “Quando não há produção de fantasias, precisamos apelar para a ajuda artificial”. É nesse sentido que a imaginação ativa seria utilizada.

O primeiro passo dessa experiência é “libertar os processos inconscientes que irrompem a consciência sob a forma de fantasias” (Jung, 1916/2008, p. 89), por meio de exercícios de eliminação da atenção crítica. Um abandono consciente ao impulso inconsciente cujos conteúdos podem aparecer por meio da lembrança de um sonho, de vozes, de fantasias etc.

Num segundo momento deve-se entrar em acordo com esses conteúdos para poder controlar a fantasia. Vivenciá-la dando-lhe forma por meio da escrita, do desenho, do entalhe em madeira, da pintura, da dança ou de outras formas de expressão, conforme a tendência de cada indivíduo em relação à produção de suas fantasias. É uma confrontação entre consciente e inconsciente, na qual as duas instâncias da psique mantêm seu papel no funcionamento geral.

A confrontação com o oposto é um fato muito sério do qual depende, às vezes tanta coisa. Um dos requisitos essenciais do processo de confrontação é que se leve a sério o lado oposto. Somente deste modo é que os fatores reguladores poderão ter alguma influência em nossas ações. Tomá-lo à sério não significa tomá-lo ao pé da letra, mas conceder um crédito de confiança ao inconsciente, proporcionando-lhe, assim, a possibilidade de cooperar com a consciência em vez de perturbá-la automaticamente. (Jung, 1938/2013, p. 35, grifos do autor)

Se os conteúdos do inconsciente estão sempre prontos a interferir em nossas ações, ao torná-los conscientes evitamos sua intromissão e suas consequências. O processo de confrontação entre o Ego como centro da consciência e o inconsciente pode ser comparado a um diálogo entre duas pessoas com direitos iguais de falar e apresentar seus argumentos e posições. Esse “alternar-se de argumentos e de afetos forma a função transcendente dos opostos” (Jung, 1938/2013, p. 36). Ambos devem ser considerados para que surja o terceiro elemento dessa relação, que não exclui os anteriores, mas dá uma nova possibilidade de enfrentamento das situações problemáticas e ampliação da consciência.

Jung percebeu que com essa experiência seus pensamentos ficavam mais claros, apreendia melhor as fantasias e que, ao dar forma às imagens interiores, ele readquiria uma paz interior. No entanto, as experiências vividas por ele com a imaginação ativa, também sinalizaram algumas questões importantes. A primeira foi a grande resistência e angústia que vivenciou pois, se de um lado há um “esforço de compreender o mundo dos arquétipos da psique; por outro, representa uma luta contra o perigo que ameaça a sanidade, a saber, o do fascínio com as incomensuráveis altitudes, profundezas e paradoxos da verdade psíquica” (Jung, 1941 em Palestra, citado por Hanna, 2003, p. 122).

Outra questão apontada por (Jung, 1938/2013) nessa experiência é o risco da supervalorização estética por parte do paciente, isto é, um sentimento de inferioridade ou de superioridade - com a possibilidade de alternar-se de um para outro - em relação aos produtos finais da fantasia (escrita, desenho, escultura, movimento etc.), podendo afastar a libido do objeto fundamental da função transcendente. Por outro lado, há o risco do conteúdo do produto final ser analisado por uma perspectiva estritamente intelectual, perdendo o seu valor simbólico, já que, para Jung, os símbolos numa visão amplificada são um dos elementos fundamentais na sua analítica, na qual a valoração e o significado são dados pelo sujeito que produz.

No outro extremo Jung sinaliza que, a partir de um estágio da evolução psíquica, ainda há o risco de que essas fantasias que foram anteriormente subvalorizadas sejam agora supervalorizadas desmedidamente.

Authentic Movement: noções de corpo e movimento

Para Whitehouse o movimento rege “a grande lei da vida”. Com tal pensamento e sua experiência com a análise junguiana, ela desenvolveu um trabalho e o denominou de Movement in deepth (Movimento em profundidade). O trabalho se constitui na experiência de uma pessoa, chamada de movedor, que realiza movimentos resultantes de um impulso interno e é assistida por outra pessoa, professor ou observador, que na origem era a própria Whitehouse. Depois foi esse papel foi desenvolvido por Janet Adler, sua discípula, passando a se chamar testemunha. A experiência é relatada a partir das sensações vividas pelo movedor e pela testemunha.

Embora Mary já discutisse a autenticidade do movimento quando esse advém de um impulso interno e torna-se inevitável, foi com Janet Adler que a abordagem passou a se chamar Authentic Movement (Movimento Autêntico).

De acordo com (Levy, 1988) há quatro aspectos fundamentais na teoria e prática de Whitehouse. Eles serão apresentados aqui porque nos possibilitam o entendimento das noções de corpo e de movimento, relatadas pela própria Whitehouse. O primeiro é a Consciência Cinestésica que se refere à consciência corporal em movimento e do movimento em si; o segundo se refere ao Authentic Movement, que está diretamente relacionado ao conceito de imaginação ativa de Jung e que possibilita entender o tipo de movimento do qual ela enfatiza; o terceiro aspecto abrange a polaridade, conceito também junguiano, que sinaliza os polos antagônicos dos conteúdos psíquicos e do qual Whitehouse utiliza para observar a polaridade contida no uso do corpo em movimento, e por último, a relação terapêutica na qual Mary nos apresenta sua noção do uso da intuição como professora, terapeuta ou ainda mediadora e que pode nos indicar a maneira pela qual o seu trabalho se desenvolveu alternando-se entre dirigir e não dirigir, sugerir e silenciar. Tais aspectos se relacionam continuamente.

As noções de corpo e de movimento, para Mary Starks, estavam diretamente relacionadas a uma consciência do corpo em movimento, bem como de uma consciência do movimento, ou seja, da consciência cinestésica ou senso cinestésico. Isso não significava dizer que o “não-movimento” dentro do ambiente terapêutico se refletiria numa “não-ação”, como veremos mais adiante.

Podemos ter consciência da direção do nosso corpo em movimento (para frente ou para trás) e simultaneamente consciência de como nos movimentamos (saltando, girando, torcendo os braços, lentamente, rapidamente etc.). No entanto, (Whitehouse, 1958/1999b) apontava que esse senso cinestésico nem sempre é consciente, ele precisa ser despertado.

O senso cinestésico pode estar conscientizado e desenvolvido no uso de todo e qualquer tipo de movimento, mas eu acredito que torna-se consciente somente quando a conexão interna - isto é, o subjetivo - é encontrada: a sensação do indivíduo de que se sente balançando, flexionando, girando, torcendo ou o que quer que seja. Pessoas podem aprender movimento em uma variedade de modos. Elas não estão necessariamente aptas a senti-lo quando elas o fazem. (p. 46)

Para Whitehouse o corpo nunca poderia ser considerado uma máquina, não importa se o tratamos como tal.

O corpo é o aspecto físico da personalidade e o movimento é a personalidade que se faz visível. As distorções, tensões e restrições são distorções, tensões e restrições dentro da personalidade. Elas são em algum momento, a condição da psique. E a descoberta de sua factual existência, sua existência física, é o começo do processo que pode ser chamado reconhecimento psicossomático, que para nós são entidades psicossomáticas... . Mas nós não estamos acostumados com a ideia de que a experiência consciente do movimento físico produz mudanças na psique... . O despertar da consciência, de como se move, de que maneira (lento ou rápido, pesado ou leve, restritamente ou facilmente) leva-nos a uma percepção que se transfere ao reconhecimento do caráter, mas também, do uso diário e habitual do corpo. (Whitehouse, 1963/1999c, p. 52)

Deve-se sinalizar que essa noção do senso ou sentido cinestésico vêm ao encontro das descobertas realizadas por Sherrington em 1906 sobre a propriocepção (como capacidade ou qualidade de percepção do corpo parado e em movimento), e da qual a Neurofisiologia atual denomina como uma das submodalidades sensoriais da Modalidade Somaestesia.

Essa perspectiva de corpo e psique podem ser entendidas também de forma sincrônica, ou seja, sem hierarquias temporais, pois a experiência corporal vivida em/no movimento pode trazer simultaneamente uma tomada de consciência no corpo-psique que somos.

De outro modo, podemos perceber que essas noções no âmbito terapêutico se aproximam intimamente da definição de corpo-mente anteriormente apresentada neste trabalho por (Chaiklin, 2009).

(Whitehouse, 1956/1999a) tinha muito claro de que a experiência do corpo em movimento a que se referia era diferente daquela vivida nos esportes e na ginástica. Ela dizia que estes “aumentam a circulação e melhoram a coordenação. Mas eles não nos conectam com nós mesmos porque eles ainda trazem um motivo externo dessa experiência” (p. 35), ou seja, nessas práticas movemos nosso corpo para um propósito. Nesse mesmo trabalho ela aponta que a concepção que temos de corpo como objeto, tal como temos de uma cadeira, é porque não temos consciência que aquilo que chamamos de ‘corpo’ ou ‘meu corpo’, somos nós mesmos.

Considerando que os trabalhos artístico e terapêutico da dança também foram influenciados pelos estudos de Rudolf von Laban, com sua extensa análise do movimento, e pelas diversas linhas da Psicologia, uma das questões que artistas e terapeutas buscavam responder era: como nos movemos? Para Whitehouse não foi diferente, no entanto, a influência da professora, bailarina e coreógrafa alemã Mary Wigman em seu trabalho, cujo ponto forte de seu interesse e estudo foi a improvisação, trouxe uma inquietação para Whitehouse que culminou em outra questão: onde começa o movimento?

Para Wigman a improvisação deveria ser trabalhada através da impulsão, da escuta interna de si mesmo na qual pudesse levar ao movimento. O aspecto importante a ser destacado é que o movimento gerado pela escuta interna traz a presentificação do corpo no espaço, em estados difíceis de apreensão. Nesse sentido, para Wigman a formação do bailarino deveria estar livre dos disciplinamentos técnicos para poder explorar de forma instintiva aquilo que necessitava ser expresso. Uma ruptura com a harmonia do corpo, “um equilíbrio entre os dois momentos: nem expressão pela expressão, nem forma pela forma, mas íntima fusão entre os dois termos” (Garaudy, 1980, p. 109).

Impulsão e improvisação foram os elementos que Whitehouse usou para interrogar a origem do movimento na relação com o conteúdo psíquico. Nessa direção, a pesquisa se dirigiu na busca pelo movimento espontâneo dos seus alunos, pacientes ou clientes. Ela pedia para que eles fechassem os olhos e escutassem o corpo:

uma escuta para o corpo, um vazio no qual a mudança pode acontecer. Seguir a sensação interna, permitindo o impulso tomar forma de ação física é a imaginação ativa em movimento, assim como seguir a imagem visual é a imaginação ativa em fantasia. (Whitehouse, 1963/1999c, p. 52)

Seguir as sensações internas priorizava uma atenção à formação das imagens mentais, cujo objetivo é acelerar o processo de formação de símbolos que, por sua vez, propicia uma confrontação do ego com o conteúdo do inconsciente.

Whitehouse alertava que o movimento, fruto da improvisação, jamais poderia ser repetido ou reproduzido por outros. Afastando-se da ideia de um movimento ideal, para ela, nessa experiência há dois tipos de movimentos efetuados pelo mesmo indivíduo, e que apresentam diferentes implicações. O primeiro é o movimento espontâneo no qual a sensação é que estamos sendo movidos (I am moved). Esse movimento tem uma carga emocional e advém do impulso que o gerou. Já no seu oposto, que ela chama de movimento invisível, há uma decisão para a ação (I move), seria aquele no qual há um controle do ego para sua realização. Isso significa que há ação muscular, no entanto, sob controle.

Whitehouse se preocupava com a descoberta do movimento profundo, autêntico - estou sendo movido! - mas entendia que havia um continuum entre as duas ações - eu estou sendo movido, e eu movo. Tal qual a dinâmica consciente-inconsciente, as duas formas de movimento poderiam surgir no processo terapêutico sinalizando o conjunto de experiências de movimento de cada pessoa.

É assustador o momento quando acontece o “estou sendo movido” tanto para dançarinos quanto para pessoas que não tem intenção de tornarem-se dançarinos. É o momento quando o ego renuncia o controle, para de escolher, para de exercer demandas concedendo ao Self assumir como o corpo físico irá se mover. (Whitehouse, 1979/1999e, p. 82)

Improvisação e impulso gerador foram também elementos de experiências da dança artística realizadas já no século XIX. Como é o caso do trabalho de Loïe Fuller, dançarina americana que em 1891 se apresentou no palco representando uma jovem mergulhada em sono hipnótico, no mesmo período em que na Europa a psicanálise fazia experiências com isso. Os artistas, encantados com as novas experimentações e possibilidades de acessar o psíquico por meio do movimento, buscavam o movimento involuntário. Esse seria um dos temas fundamentais a percorrer a história da dança moderna e contemporânea, no qual o corpo se apresenta como “revelador de mecanismos inconscientes, de natureza tanto psíquica como física”. (Suquet, 2008, p. 517)

A imaginação ativa no movimento poderia trazer “insights” promovendo efeitos na vida diária do indivíduo. Assim, ela estimulou seus alunos a incorporarem suas fantasias, e verificarem que os conteúdos inconscientes se movem inesperadamente de um para o outro e podem apresentar questões não somente em nível pessoal, mas também universal.

Não há limites e nem garantias de consistências. Imagens, vozes internas, movem-se subitamente de uma coisa para outra. Os níveis de onde essas imagens surgem não são sempre níveis pessoais; uma conexão universal com algo muito mais profundo daquele com o qual o ego está representado. (Whitehouse, 1979/1999e, p. 83)

O fato de termos uma herança de padrões de comportamentos, comum a toda a humanidade, implica que os conteúdos do inconsciente “não se manifestam apenas no material clínico, mas também no mitológico, no religioso, no artístico e em todas as atividades culturais por meio das quais o homem expressa” (Von Franz, 1964/2008, p. 419).

(Jung, 1938/2013) tinha uma preocupação de que a experiência expressiva deveria ser sempre registrada, para posterior reflexão. No entanto, aquilo que fica no corpo dificilmente se traduz pela linguagem oral ou escrita4, pelo desenho, escultura ou outras formas de expressão quando trabalhamos com o movimento espontâneo.

Nesse trabalho é o processo, e não o produto, o elemento com o qual se trabalha, pois aquilo que se experimenta ali não se materializa em nenhum objeto a não ser em si mesmo, no corpo que se é, ou, nas “sensações dos estados atuais do corpo”5.

O registro tecnológico das imagens nos possibilitam apenas uma visualização dos movimentos criados espontaneamente. E embora a experiência em si não se concretize numa coreografia com início, meio e fim, e nem possa ser repetida, os resultados do impulso interno podem providenciar uma ampliação do repertório motor jamais vivida ou imaginada pelo próprio executante e nessa mesma perspectiva uma ampliação da consciência.

Sobre o conceito junguiano de polaridades, Mary Starks fez um elo entre as polaridades presentes em vários aspectos da nossa vida. Desde os conteúdos psíquicos da consciência e do inconsciente passando pelos gêneros masculino e feminino, até chegar a toda ação muscular: músculos agonistas (ação principal do movimento) e antagonistas (ação oposta aos primeiros). Ela quis chamar atenção para a polaridade inerente ao padrão de movimento e observou que o impulso também poderia estar polarizado durante a execução do movimento.

Desse modo, ela trabalhou durante suas sessões com exercícios que pudessem promover a consciência e o equilíbrio dos pares de opostos do corpo: braços e pés (direito-esquerdo), bem como os pares de opostos do movimento na relação com o tempo, o espaço e o peso (lento-rápido, frente-atrás, leve-pesado etc.).

A intenção de Whitehouse era que o aluno pudesse se conscientizar dessa polarização e do material inconsciente contido naquele impulso polarizado. Exemplo: a partir do impulso podemos observar se estamos nos movimentando somente um lado do corpo; se estamos nos movimentando apenas no chão ou; realizando movimentos sempre no tempo rápido, entre outras possibilidades.

Nota-se aqui a influência dos estudos sobre o movimento realizados por Laban no trabalho de Whitehouse. A análise nos dá uma amplitude de possibilidades exploratórias do movimento no processo criativo, bem como de uma profunda observação dos movimentos executados.

Mas a polaridade também pode ser vista entre o mover-se e não mover-se:

Não-ação na ação; ação na não-ação. Ambos os pares estão em cada metade de um dizer total. Eles não podem se confrontarem; eles caminham juntos. Para mim isso significa que em nada feito, algo é feito. Ao aceitar a não-ação existe já alguma ação sendo realizada. A outra metade indica uma possibilidade paralela. No agir, na escolha, existe uma não ação - O Eu, o Ego não faz nada, ele não escolhe. (Whitehouse, 1979/1999e, p. 83)

Mover-se e não mover-se trazem na decisão do movedor um ato, uma decisão. É por isso que o “não mover-se” que se caracteriza como oposta à ação de se deslocar no espaço físico, é igualmente importante, pois ela é ativa no sentido psíquico. E embora a “não-ação” pareça passiva no sentido motor, o tono muscular se mantém continuamente em função para manter uma determinada posição do corpo. A experiência consciente dessas duas situações pode gerar mudanças na psique.

As ações do movedor em relação ao impulso trazem uma qualidade que diferencia o Movimento Autêntico de outras formas de trabalho com a imaginação ativa. No jogo entre a consciência do corpo, parado ou em movimento, a noção de peso e posição dos membros, bem como a produção motora que se torna visível no espaço físico, trazem a dinâmica entre dois sistemas em si já dinâmicos, que são o esquema corporal e a imagem corporal, assim como duas categorias da existência: tempo e espaço.

Ao trazer o movimento como lei da vida, Whitehouse vai ao encontro com (Sheets-Johnstone, 2005) que entende por esquema e imagem corporal como duas experiências cinéticas e transitórias. Diante da ação do inconsciente e da intencionalidade da consciência, imagem e esquema corporal são modos de estar/experimentar o mundo, assim como o tempo e o espaço. E se fazem visíveis dinamicamente na motricidade.

As categorias tempo e espaço apresentam características opostas quando pensadas na relação entre consciência e o inconsciente, ou seja, a consciência trabalha com a linearidade do tempo, a concretude e o limite do espaço, enquanto no inconsciente o espaço pode ser infinito e os acontecimentos podem ocorrer simultaneamente no tempo.

Por isso, a imaginação ativa no contexto do Movimento Autêntico pode trazer o risco do movedor ficar absorvido pelo excesso de conteúdo inconsciente. (Chodorow, 1978/1999, p. 241) aconselha que o trabalho seja realizado com indivíduos razoavelmente estáveis que possuam um Ego forte o suficiente para se confrontar com os conteúdos do inconsciente como iguais.

Whitehouse tinha uma grande preocupação com a relação terapêutica no seu trabalho, no qual considerava a intuição um requisito importante. Como aquela que lidera, ensina ou medeia as ações do outro, ela vai nos dizer que a primeira postura profissional diante dessa abordagem é considerar a partir de quem é, a pessoa que estamos atendendo. Isso implica uma suspensão de preconceitos e ideias próprias e um distanciamento de modelos ideais para aquelas pessoas e, portanto: “estar disposto ao seu próprio anonimato em favor de uma observação rápida e sem barreiras sobre o que está disponível para aquele indivíduo”. (Whitehouse, 1979/1999e, p. 86).

Na ausência de uma autonomia expressiva-motora do aluno/cliente, sua sessão poderia se desenvolver de forma semidirigida, a partir da sugestão de um tema, de metáforas, de imagens, ou, de perguntas que incitassem investigações nos movimentos.

Nesse sentido, (Whitehouse, 1979/1999e) aponta que a intuição do professor/terapeuta permitiria saber o que fazer e quando deveria ser feito, ou seja, em que momento era necessário oferecer algo como sugestão, caso não houvesse escolha alguma, mas sem imposição, de modo que, o indivíduo pudesse aceitar ou rejeitar a sugestão e criar suas próprias soluções para fazer do seu modo. Porém, ela sinaliza:

Há riscos em fazer desse modo. O primeiro é não ter conhecimento daquilo que poderá acontecer e ainda ser capaz de pará-lo- isto se aplica a ambos, professor e cliente. Um segundo risco é que longos silêncios são necessários para providenciar espera, quietude dentro da qual o movedor pode entranhar-se, encontrar a si mesmo e então mover. Esperas muito longas podem ser tão destrutivas quanto não esperar o suficiente. (Whitehouse, 1979/1999e, p. 86)

Vemos, portanto, que a intuição da qual Whitehouse fala se refere a duas atitudes: uma ação do terapeuta que direciona, sugere e interroga as ações dos seus clientes promovendo ajuda para que possam expressar seus sentimentos e pensamentos o mais livremente possível, seguindo suas necessidades e impulsos através do movimento; uma não-ação, mantendo uma relação de espera quieta por parte do terapeuta, que confia e aposta na tomada de decisão do cliente.

Posteriormente, esse “papel” desenvolvido e conceituado como “testemunha” - witness - por Janet Adler tem uma função importante, e não é mais o professor/terapeuta/mediador. A testemunha é alguém do grupo que assume a função de testemunhar o outro se mover, formando a dupla: movedor e testemunha. A testemunha “não está assistindo a pessoa se mover, ela está testemunhando, ouvindo, trazendo uma qualidade específica de atenção ou presença para a experiência do movedor” (Adler, 1987/1999, p. 142).

(Sarger, 2013) aponta que muito do trabalho e foco da escrita de Whitehouse se concentrou no desenvolvimento da consciência do movedor relacionado ao impulso, mas traz pequenas referências ao que, na prática atual do Movimento Autêntico, se chama de consciência da testemunha. Embora ela não tenha realizado um estudo sistematizado sobre o papel da testemunha interna, ela teve, naquele momento, um profundo entendimento desta no papel de observadora de seus alunos em movimento.

As seguidoras de Whitehouse - Janet Adler e Joan Chodorow - realizaram outros desdobramentos na abordagem do Authentic Movement, realizando estudos sobre a testemunha interna e externa e discutindo questões como a espiritualidade, a experiência mística, a sexualidade, a função transcendental da dança terapia, o trabalho individual, entre outros.

Mary Starks sempre se posicionou como professora de dança e resistiu a ideia de dizer que tinha um “modelo teórico” para caracterizar seu trabalho. Ela entendia que qualquer modelo teórico poderia ser adotado, mas não traduziria toda a experiência do processo vivido na prática, na relação com o outro.

Authentic Movement como um método ou uma abordagem como Whitehouse preferiu adotar, por fim se insere nos campos fundamentais da construção de toda dança que se pretende criativa no processo analítico: a improvisação, o impulso interno, a possibilidade de movimento para todos os sujeitos-corpos, mas especialmente o encontro com aquilo que realmente somos ou, o estado psicofísico em que nos encontramos.

É uma forma completamente autodirigida, na qual os indivíduos podem descobrir um caminho pelo movimento que oferece uma ponte entre consciência e inconsciente. Explora a relação entre um movedor e uma testemunha. Com os olhos fechados, o movedor escuta interiormente e encontra um movimento que surge de um estímulo oculto, um impulso celular. Gradualmente o invisível torna-se visível, o inaudível, audível e uma forma explícita é dada ao conteúdo direto da experiência. (Authentic Movement Institute, 2013, n.p.)

Uma das questões mais importantes para os profissionais interessados em trabalhar nesse campo é sua disponibilidade de vivenciar seu corpo em movimento, é despir-se do agente analítico e deixar-se mover nessa dinâmica dos conteúdos psíquicos, antes de formular sua prática para o outro.

Como todas as pioneiras no campo, Mary Whitehouse foi uma grande lutadora que trabalhou no final de sua vida sobre uma cadeira de rodas acometida pela esclerose múltipla6. Mas sua trajetória profissional a inseriu no cenário do desenvolvimento desse campo terapêutico, no qual suas discípulas mais conhecidas, Janet Adler, Joan Chodorow e Nancy Zenoff reafirmam sua grandiosidade em unir a improvisação e os conceitos junguianos ao corpo em movimento.

Considerações finais

Somos seres moventes, seja pelo movimento que executamos para uma tarefa ou para nos deslocarmos no espaço. Mas também somos seres movidos - no espaço e no tempo - por infinitas intencionalidades que podem nos impor uma determinada atitude numa situação dada e isso só é possível por uma motricidade que nos coloca em ação no mundo.

O corpo, mesmo em seu limite físico, se mantém vivo por movimentos quase imperceptíveis, de modo que por princípio “corpo faz par com a motricidade em uma relação que não se desfaz a não ser na morte” (Farah, 2010, p. 406).

Nossas experiências e processos de subjetivação se realizam nessa nossa unidade de existência, como uma porta giratória que possibilita o diálogo ininterrupto entre o dentro e o fora atualizando e confrontando as informações, os sentimentos e as emoções.

É um sujeito-corpo que fala. E se, a palavra trocada entre analisando e analistas pode tocar o corpo, o corpo em movimento pode impulsionar o verbo.

Assim, foi sobre uma sabedoria do/no corpo em movimento, um “salto em queda” e o poder de transformação que o movimento gerado por um impulso interno pode promover, que Mary Starks Whitehouse trabalhou exaustivamente.

Referências

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  • 1
    Ver especialmente (Cerchiari, 2000).
  • 2
    Dança-terapia (escrito com os termos separados) busca incluir todos os trabalhos referentes à terapêutica da dança. O termo Dançaterapia (escrito com os termos juntos) refere-se exclusivamente ao trabalho terapêutico de Maria Fux, conhecida pelo seu trabalho com crianças não ouvintes.
  • 3
    Jung registrou tais experiências em seus Livros Negros e, depois de revisados e acrescentados de reflexões, ele os transcreveu em escrita caligráfica, contendo inclusive suas pinturas num livro de título Liber Novus encadernado de couro vermelho, ficando conhecido como Livro Vermelho.
  • 4
    Atualmente, Soraia Jorge Rodrigues Filha (pesquisadora e introdutora do Movimento Autêntico no Brasil e em Lisboa, Criadora do Centro Internacional do Movimento Autêntico junto com Guto Macedo e do programa de Aprendizagem do Movimento Autêntico) tem trabalhado bastante para que o movedor e a testemunha, em seus momentos de reflexão, possam buscar a palavra que melhor defina sua experiência do corpo em movimento.
  • 5
    Sensações dos estados atuais do corpo. Ver especialmente em (Farah, 2011).
  • 6
    Esclerose Múltipla – Doença neurológica autoimune, desmielinizante, ou seja, o sistema imune ataca a mielina que é a camada de lipídeos que reveste os neurônios e que auxilia na condução os impulsos nervosos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2015
  • Revisado
    27 Out 2015
  • Aceito
    04 Nov 2015
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