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Desenvolvimento moral, afetividade e complexidade: esgotamento das teorias morais racionalistas a partir de Carol Gilligan

Moral development, affectivity and complexity: depletion of rationalist moral theories as of Carol Gilligan

Desarrollo moral, afectividad y complejidad: agotamiento de las teorías morales racionalistas desde Carol Gilligan

Développement moral, affectivité et complexité: l’épuisement des théories morales rationalistes à partir de Carol Gilligan

Resumo

As teorias morais de Jean Piaget e Lawrence Kohlberg são acusadas de esgotamento. Esse esgotamento seria devido, principalmente, a suas limitações em contemplar a complexidade envolvida no desenvolvimento moral, como o papel da afetividade nesse processo. A partir do trabalho pioneiro de Carol Gilligan que se ateve a essa relação entre cognição e afetividade, diversas teorias surgiram com proposições próprias visando sanar as limitações de suas predecessoras, e que por isso poderiam se dizer pós-kohlberguianas. Este artigo tem o objetivo de discutir a questão da complexidade no desenvolvimento moral, sobretudo quanto à influência da afetividade nesse processo, desvelada inicialmente a partir de Gilligan. Conclui-se que, caso haja, de fato, tal esgotamento, as teorias pós-kohlberguianas que consideram a complexidade, em débito com o trabalho pioneiro de Gilligan que lhes serviu de referência, parecem ter renovado o campo de investigação para mais um ciclo de décadas de estudo sobre o desenvolvimento moral.

Palavras-chave:
desenvolvimento moral; complexidade; afetividade; racionalismo; Carol Gilligan

Abstract

The moral theories of Jean Piaget and Lawrence Kohlberg are accused of depletion. This depletion would be mainly due to its limitations in contemplating the complexity involved in moral development, such as the role of affectivity in this process. Based on the pioneering work of Carol Gilligan that stuck to this relationship between cognition and affectivity, several theories emerged with their own propositions aimed at remedying the limitations of their predecessors, which could therefore be said to be post-Kohlberguian. This article aims to discuss the issue of complexity in moral development, especially regarding the influence of affectivity in this process, initially unveiled from Gilligan. It is concluded that if there is, in fact, such depletion, the post-Kohlberguian theories that consider complexity, indebted to Gilligan’s pioneering work that served as a reference, seem to have renewed the field of investigation for another cycle of decades of study on moral development.

Keywords:
moral development; complexity; affectivity; rationalism; Carol Gilligan

Resumen

Las teorías morales de Jean Piaget y Lawrence Kohlberg están acusadas de agotamiento. Este agotamiento se debería a sus limitaciones para contemplar la complejidad del desarrollo moral, como el papel de la afectividad en este proceso. A partir del trabajo pionero de Carol Gilligan que se apegó a esta relación entre cognición y afectividad, surgieron varias teorías con propuestas propias destinadas a remediar las limitaciones de sus predecesoras, que podría decirse post-Kohlberguianas. Este artículo tiene como objetivo discutir el tema de la complejidad en el desarrollo moral, especialmente en lo que respecta a la influencia de la afectividad en este proceso, inicialmente desvelado por Gilligan. Se concluye que si existe tal agotamiento, las teorías post-Kohlberguianas que consideran la complejidad, en deuda con el trabajo pionero de Gilligan que sirvió de referencia, parecen haber renovado el campo de investigación para otro ciclo de décadas de estudio sobre el desarrollo moral.

Palabras-clave:
desarrollo moral; complejidad; afectividad; racionalismo; Carol Gilligan

Résumé

Les théories morales de Jean Piaget et Lawrence Kohlberg sont accusées d’épuisement. Cet épuisement serait dû à ses limites à envisager la complexité impliquée dans le développement moral, comme le rôle de l’affectivité dans ce processus. Sur la base des travaux pionniers de Carol Gilligan qui s’en tenaient à cette relation entre cognition et affectivité, plusieurs théories ont émergé avec leurs propres propositions visant à remédier aux limites de leurs prédécesseurs, alors appelé post-kohlberguiennes. L’objectif est discuter de la question de la complexité dans le développement moral, notamment en ce qui concerne l’influence de l’affectivité dans ce processus, initialement dévoilée de Gilligan. On en conclut que s’il y a, en fait, un tel épuisement, les théories post-kohlberguiennes qui considèrent la complexité, redevable au travail pionnier de Gilligan qui a servi de référence, semblent avoir renouvelé le champ d’investigation pour un autre cycle de décennies d’étude sur le développement moral.

Mots-clés:
développement moral; complexité; affectivité; rationalisme; Carol Gilligan

Introdução

Embora seja o epistemólogo suíço Jean Piaget (1896-1980) quem inaugura a abordagem cognitivo-evolutiva no estudo psicológico da moralidade, diversas(os) autoras(es) (Biaggio, 2006Biaggio, A. M. B. (2006). Lawrence Kohlberg: ética e educação moral. São Paulo, SP: Moderna.; Lepre, 2015Lepre, R. M. (2015). Por que estudar a moralidade humana e seus possíveis desdobramentos? In R. A. Martins & L. A. N. Cruz (Orgs.), Desenvolvimento sócio moral e condutas de risco em adolescentes (pp. 9-24). Campinas, SP: Mercado de Letras.; Franzi & Araújo, 2013Franzi, J., & Araújo, U. F. (2013). Novos aportes na psicologia moral: a perspectiva da teoria dos modelos organizadores do pensamento. Revista NUPEM, 5(8), 53-67, 2013. doi: 10.33871/nupem.v5i8.185
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) ressaltam que a psicologia do desenvolvimento moral se consolidou “como área nobre da Psicologia” (La Taille, 2007La Taille, Y. (2007). Desenvolvimento humano: contribuições da psicologia moral. Psicologia USP, 18(1), 11-36. doi: 10.1590/S0103-65642007000100002
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, p. 17) a partir dos estudos realizados pelo psicólogo estadunidense Lawrence Kohlberg (1927-1987) e da elaboração de sua teoria do desenvolvimento moral (Kohlberg, 1992Kohlberg, L. (1992). Psicologia del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brower.), despertando o interesse da comunidade acadêmica mundial para o estudo da moralidade desde o final da década de 1960.

Piaget (1932/1994Piaget, J. (1994). O juízo moral na criança. São Paulo, SP: Summus. (Trabalho original publicado em 1932)) forneceu apenas as primícias da abordagem cognitivo-evolutiva, a qual só foi constituída a partir dos estudos e da teoria de Kohlberg (1992Kohlberg, L. (1992). Psicologia del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brower.), que aprofundou os estudos de Piaget, sendo a teoria moral piagetiana considerada um projeto inacabado (Freitas, 2003Freitas, L. B. L. (2003). A moral na obra de Jean Piaget: um projeto inacabado. São Paulo, SP: Cortez.). Não obstante, enquanto para Piaget (1932/1994Piaget, J. (1994). O juízo moral na criança. São Paulo, SP: Summus. (Trabalho original publicado em 1932)) a justiça é a noção moral mais racional das relações de cooperação, Kohlberg (1992Kohlberg, L. (1992). Psicologia del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brower.) enfatiza a justiça como a virtude essencial para a racionalidade moral, fazendo-a central em sua teoria, cujo modelo de desenvolvimento que propõe está direcionado a um ideal de justiça.

Todavia, de acordo com La Taille (2010La Taille, Y. (2010). Moral e ética: uma leitura psicológica. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26(esp.), 105-114. doi: 10.1590/S0102-37722010000500009
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), “no final do século XX, assiste-se, como era de se esperar, a certo esgotamento do referido modelo teórico”, isto é, da referida abordagem cognitivo-evolutiva representada pelas teorias morais de Piaget e Kohlberg, “. . . porque não somente não oferecia grandes perspectivas de novos e relevantes achados empíricos e teóricos, como, centrado no aspecto racional da moralidade, relegava a uma zona obscura os motivos humanos da ação moral” (p. 105). Ainda assim, há décadas a possibilidade desse esgotamento já era apontada na literatura especializada.

Uma das críticas para a ocorrência desse esgotamento se deve, como mencionado por La Taille (2010La Taille, Y. (2010). Moral e ética: uma leitura psicológica. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26(esp.), 105-114. doi: 10.1590/S0102-37722010000500009
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) e também como encontrado na literatura em vários(as) autores(as) (Blum, 1988Blum, L. A.. (1988). Gilligan and Kohlberg: implications for moral theory. Ethics, 98(3), 472-491.; Vilarrasa & Marimón, 2000Vilarrasa, G. S., & Marimón, M. M. (2000). Nuevas perspectivas sobre el razionamiento moral. Educação e Pesquisa , 2(26), 123-135. doi: 10.1590/S1517-97022000000200009
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; Arantes, 2000Arantes, V. A. (2000). Cognição, afetividade e moralidade. Educação e Pesquisa, 26(2), 137-153. doi: 10.1590/S1517-97022000000200010
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; 2003; Braunstein, 2012Braunstein, H. R. (2012). Ética do cuidado: das instituições de cuidado e pseudo cuidado (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo). Recuperado de: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-21082012-160819/publico/braunstein_corrigida.pdf
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; Araújo, 2017Araújo, C. M. (2017). Uma crítica à feminilidade na Ética do Cuidado de Nel Noddings: o cuidado para além do gênero [Dissertação de Mestrado]. Universidade Federal de Pernambuco, PE, Brasil. Recuperado de: https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/33372/1/DISSERTA%c3%87%c3%83O%20Clarissa%20Moraes%20de%20Ara%c3%bajo.pdf
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), à ênfase no racionalismo dada por essas teorias. Diante da complexidade das relações e dos aspectos psicológicos envolvidos e que dão vazão ao desenvolvimento moral, a ênfase no racionalismo atribui uma visão fragmentada, linear e reducionista do desenvolvimento moral. O desenvolvimento moral, objeto de estudo da psicologia do desenvolvimento moral, é definido aqui como o processo psicológico em que o sujeito nasce sem princípios morais e os adquire, respeitando-os progressivamente de diferentes formas ao longo de sua vida. Um desses outros aspectos envolvidos no processo de desenvolvimento moral, e que será objeto de boa parte da discussão deste artigo, é a afetividade.

À medida que as pesquisas fundamentadas na teoria de Kohlberg (1992Kohlberg, L. (1992). Psicologia del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brower.) cresceram, a ponto de consolidar o campo da psicologia do desenvolvimento moral, as críticas também cresceram, em particular a crítica ao racionalismo de sua teoria. Surgiram, paulatinamente, outras teorias sobre o desenvolvimento moral partindo dessa mesma perspectiva cognitivo-evolutiva, tanto teorias mais críticas às ideias de Kohlberg e que propuseram outros caminhos de teorização a serem tomados quanto teorias que propuseram somente algumas mudanças às ideias de Kohlberg, teorias as quais poderiam se dizer pós-kohlberguianas. Uma teoria que se coloca entre esses dois grupos - um mais crítico e radical e outro mais sutil e que preserva a essência das ideias originais do autor - e que lhes foi seminal, é trazida pela psicóloga estadunidense Carol Gilligan (1936-atual).

Gilligan (1977Gilligan, C. (1977). In a different voice: women’s conceptions of self and of morality. Harvard Educational Review, 47(4), 481-517. doi: 10.17763/haer.47.4.g6167429416hg5l0
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; 1982Gilligan, C. (1982). Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.) é reconhecida na literatura (Arantes, 2000Arantes, V. A. (2000). Cognição, afetividade e moralidade. Educação e Pesquisa, 26(2), 137-153. doi: 10.1590/S1517-97022000000200010
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; 2003; Tognetta, 2009Tognetta, L. R. P. (2009). A formação da personalidade ética: estratégias de trabalho com afetividade na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras .; Lima, 2011Lima, V. A. A. (2011). A psicologia moral na obra de Jean Piaget. In Anais do Congresso de Epistemologia Genética da Região Amazônica (pp. 2-39). Porto Velho, RO. Recuperado de https://www.periodicos.unir.br/index.php/revistacegra/article/view/284/293
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; Franzi & Araújo, 2013Franzi, J., & Araújo, U. F. (2013). Novos aportes na psicologia moral: a perspectiva da teoria dos modelos organizadores do pensamento. Revista NUPEM, 5(8), 53-67, 2013. doi: 10.33871/nupem.v5i8.185
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) como pioneira na identificação desse e outros limites provenientes da teoria de Kohlberg, de seu modelo de desenvolvimento moral por níveis e estágios e da abordagem cognitivo-evolutiva que representa. A autora é responsável pela crítica de viés de gênero e da ênfase racionalista na teoria de Kohlberg, bem como pela proposição de um modelo de desenvolvimento alternativo ao kohlberguiano, a ética do cuidado. Embora suas próprias proposições também apresentem problemas e necessitem de revisões, o ponto de partida de Gilligan (1982Gilligan, C. (1982). Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.) foi e ainda é crucial para a contemplação de uma teoria moral mais integrativa, que dê conta da referida complexidade do desenvolvimento moral - por isso, reconhecida como pioneira e na vanguarda do movimento para expandir os horizontes da psicologia do desenvolvimento moral. Várias das teorias pós-kohlberguianas que também procuraram contemplar uma visão mais ampla da moralidade tiveram como referência a crítica e o trabalho pioneiro de Gilligan (1982Gilligan, C. (1982). Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.).

Constatada essa relevância do trabalho de Gilligan, mas dada sua pouca exploração na literatura nacional, conforme pontua Silva (2020Silva, M. E. F. da. (2020). Carol Gilligan e a ética do cuidado na produção de pesquisa em psicologia do desenvolvimento moral de três programas de pós-graduação stricto sensu (2008-2019). Schème: Revista Eletrônica de Psicologia e Epistemologia Genéticas, 12(1), 166-204. doi: 10.36311/1984-1655.2020.v12n1.p167-205
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, 2021Silva, M. E. F. da. (2021). Afinal, o que foi o debate Kohlberg-Gilligan?. Schème - Revista Eletrônica de Psicologia e Epistemologia Genéticas, 13(1), 4-40. doi: 10.36311/1984-1655.2021.v13n1.p4-40
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), este artigo tem o objetivo de discutir a questão da complexidade no desenvolvimento moral, sobretudo quanto à influência da afetividade nesse processo, que foi desvelada inicialmente a partir de Gilligan.

Por meio de revisão bibliográfica, utilizando-se de fontes primárias e secundárias, o texto do artigo organiza-se da seguinte forma: primeiro, discutem-se as teorias de Piaget e Kohlberg e sua abordagem cognitivo-evolutiva do desenvolvimento moral. Em seguida, expõe-se o trabalho de Gilligan e sua teoria subjacente de ética do cuidado, que se contrapõe principalmente ao modelo de Kohlberg. Na sequência, diante do problema da complexidade, evidencia-se a limitação das teorias cognitivo-evolutivas, evidenciada pioneiramente por Gilligan, em contemplar outros aspectos que interferem no desenvolvimento moral, especificamente a afetividade. Por último, argumenta-se sobre as teorias pós-kohlberguianas que se beneficiaram do trabalho pioneiro de Gilligan e que parecem ter renovado o campo para o estudo da moralidade no seu atual paradigma que considera a complexidade. O artigo encerra-se com as considerações finais.

As teorias de Jean Piaget e Lawrence Kohlberg na abordagem cognitivo-evolutiva

Lawrence Kohlberg, psicólogo estadunidense, nasceu em 1927 e veio a falecer precocemente em 1987, aos 59 anos. A teoria kohlberguiana sobre o desenvolvimento moral originou-se, ainda em estado inicial, com a pesquisa que ele desenvolveu em sua tese de doutorado defendida em 1958 na Universidade de Chicago (Kohlberg, 1958Kohlberg, L. (1958). The development of modes of moral thinking and choice in the years 10 to 16 (Tese de doutorado). The University of Chicago, Chicago, IL, United States.), que teve como título The development of modes of moral thinking and choice in the years 10 to 16 (O desenvolvimento de modos de pensamento e escolha moral dos 10 aos 16 anos, em tradução livre).

Foi no trabalho de Piaget, nos campos da cognição (Piaget, 1945/2010Piaget, J. (2010). A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representação (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: LTC. (Trabalho original publicado em 1945)) e, principalmente, da moralidade (1932/1994), que Kohlberg (1992Kohlberg, L. (1992). Psicologia del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brower.) proeminentemente se fundamentou para formular sua teoria.

Sendo a principal preocupação de Piaget (1945/2010Piaget, J. (2010). A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representação (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: LTC. (Trabalho original publicado em 1945)) a construção da inteligência, cuja maior contribuição foi a definição de seus estágios cognitivos, o aspecto cognitivo do desenvolvimento foi privilegiado em sua obra, ao passo que os aspectos social, moral e afetivo, embora também considerados, tiveram um espaço menor. No caso da moralidade, Freitas (2003Freitas, L. B. L. (2003). A moral na obra de Jean Piaget: um projeto inacabado. São Paulo, SP: Cortez.), no entanto, adverte que “quando consideramos o conjunto de sua obra, podemos constatar também que ele jamais deixou de escrever sobre a questão moral” (p. 33).

O juízo moral na criança é o principal livro em que Piaget (1932/1994Piaget, J. (1994). O juízo moral na criança. São Paulo, SP: Summus. (Trabalho original publicado em 1932)) trata da moralidade, e o único que a aborda em investigação empírica. Nessa obra, a despeito da ação e dos sentimentos morais, o autor investigou a gênese e o desenvolvimento do juízo moral em crianças: “. . . toda moral consiste num sistema de regras, e a essência de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo adquire por essas regras” (Piaget, 1932/1994Piaget, J. (1994). O juízo moral na criança. São Paulo, SP: Summus. (Trabalho original publicado em 1932), p. 23). O autor buscou responder como a criança, que nasce sem princípios morais, adquire esse respeito, reunindo no livro resultados de três estudos que enfocaram, respectivamente, a construção da prática e da consciência das regras do jogo infantil, a relação da criança com as regras morais e os princípios envolvidos nessas relações. Sua metodologia consistia na observação e numa série de entrevistas em que interrogava as crianças sobre as regras de jogos e sobre o desempenho de personagens em histórias-estímulo.

Dos resultados encontrados nesses estudos, Piaget identificou que a relação da criança com as regras do jogo “. . . se divide em dois fenômenos: a prática das regras e a consciência das regras. Ambos os fenômenos seguem um caminho psicogenético com tendências morais à heteronomia e à autonomia [ênfase adicionada]” (Lepre, 2015Lepre, R. M. (2015). Por que estudar a moralidade humana e seus possíveis desdobramentos? In R. A. Martins & L. A. N. Cruz (Orgs.), Desenvolvimento sócio moral e condutas de risco em adolescentes (pp. 9-24). Campinas, SP: Mercado de Letras., p. 14-15). A heteronomia é a primeira tendência1 1 Preferiu-se adotar o termo tendências em vez de estágios ou fases, uma vez que, para Piaget (1932/1994), ainda não é claro se o caminho psicogenético que traça corresponde a uma estrutura de moralidade, paralela às estruturas cognitivas, como é para Kohlberg (1992). moral vivenciada pela criança, que, apesar de perceber a existência de regras, não as compreende como necessárias para se viver em sociedade e lhes obedece mediante o poder que exercem sobre ela, com seus juízos caracterizados por fatores externos. Na autonomia, tendência moral seguinte, a criança passa a entender que as regras decorrem de um acordo mútuo entre as pessoas, com seus juízos caracterizados pela reciprocidade e sem vigilância externa. Quanto aos princípios envolvidos nas relações das crianças, Piaget (1932/1994Piaget, J. (1994). O juízo moral na criança. São Paulo, SP: Summus. (Trabalho original publicado em 1932)) se debruçou sobre a evolução da noção de justiça, construída simultaneamente à passagem pelas tendências morais da heteronomia à autonomia.

Embora Piaget propusesse ineditamente tal modelo psicogenético de desenvolvimento por tendências no caso da moralidade, suas ideias remontam ao paradigma filosófico kantiano, sendo o filósofo prussiano Immanuel Kant (1724-1804) a principal referência em sua obra. Para Kant (1785/2005Kant, I. (2005). Fundamentação da metafísica dos costumes (P. Quintela, trad.). Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1785)), as pessoas são os únicos seres dotados de liberdade para agir com base na razão, e não em inclinações ou vontades pessoais. Por exemplo, os animais só são capazes de agir por instinto, e não pela liberdade.

Opondo-se à determinação externa, Kant concebe como moral o comportamento que se baseia voluntariamente em um princípio universalmente válido, definindo como princípio um critério atestado pelo que chamou de imperativo categórico, formulado da seguinte forma: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas querer que ela se torne lei universal” (Kant, 1785/2005Kant, I. (2005). Fundamentação da metafísica dos costumes (P. Quintela, trad.). Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1785), p. 59). Assim, para uma ação ser moral ou o juízo que a determinou, ela deve obedecer a uma lei interna e se justificar a partir de um princípio válido para toda a humanidade (universalizável).

Do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo, Ramozzi-Chiarottino (1984Ramozzi-Chiarottino, Z. (1984). Em busca do sentido da obra de Jean Piaget. São Paulo, SP: Ática.) defende a tese de que a teoria de Piaget pode ser considerada uma espécie de kantismo evolutivo, em que as ideias kantianas sobre o conhecimento são colocadas em perspectiva evolucionista e registradas progressivamente ao longo no desenvolvimento humano. Para Freitas (2003Freitas, L. B. L. (2003). A moral na obra de Jean Piaget: um projeto inacabado. São Paulo, SP: Cortez.), a sua teoria sobre a moralidade também pode ser entendida como um kantismo evolutivo, sobretudo na passagem da heteronomia à autonomia, ou seja, das inclinações pessoais ao respeito por princípios morais universalizáveis.

Inspirado nesse trabalho seminal de Piaget, Kohlberg (1992Kohlberg, L. (1992). Psicologia del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brower.) interessou-se no seu método de entrevista, pois com ele se poderiam avaliar estruturas cognitivas mediante as produções verbais dos sujeitos. Em seu doutoramento, Kohlberg (1958Kohlberg, L. (1958). The development of modes of moral thinking and choice in the years 10 to 16 (Tese de doutorado). The University of Chicago, Chicago, IL, United States.) acompanhou longitudinalmente uma amostra de 84 meninos brancos de classe média de Chicago e entre 10, 13 e 16 anos, idades posteriores às das crianças que participaram dos estudos de Piaget (1932/1994Piaget, J. (1994). O juízo moral na criança. São Paulo, SP: Summus. (Trabalho original publicado em 1932)). Sua metodologia envolveu entrevistas e também teve somente o juízo moral como objeto de estudo, porém, diferentemente de Piaget, utilizou de dilemas morais. Essa pesquisa forneceu a definição dos estágios de desenvolvimento moral que deu origem a sua teoria.

Para a análise do desenvolvimento moral de um sujeito, Kohlberg (1992Kohlberg, L. (1992). Psicologia del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brower.) analisava a qualidade do raciocínio representado pelo juízo que esse sujeito emitia diante dos dilemas morais com que era confrontado na entrevista. Como constatou, esses raciocínios distribuem-se hierarquicamente de acordo com sua qualidade moral, como as tendências, na compreensão de Piaget, da heteronomia à autonomia. Contudo, Kohlberg (1992Kohlberg, L. (1992). Psicologia del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brower.) considerou os conceitos de heteronomia e autonomia insuficientes para classificar os tipos de raciocínio moral dos adolescentes.

Para ele, o caminho do desenvolvimento moral é mais longo e complexo, apresentando-se, da mesma forma que o modelo de desenvolvimento cognitivo piagetiano (Piaget, 1945/2010Piaget, J. (2010). A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representação (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: LTC. (Trabalho original publicado em 1945)), por meio da evolução em estágios. Kohlberg (1992Kohlberg, L. (1992). Psicologia del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brower.) propôs um modelo de desenvolvimento moral de três níveis - (1) pré-convencional (raciocínios autocêntricos); (2) convencional (raciocínios sociocêntricos); e (3) pós-convencional (raciocínios pautados em princípios morais universalizáveis) - e seis estágios, sendo dois estágios respectivos a cada nível. Kohlberg (1992Kohlberg, L. (1992). Psicologia del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brower.) identificou que os tipos de raciocínio respectivos aos seus estágios são raciocínios de justiça e, por isso, afirma que o desenvolvimento moral se centra em uma estrutura de justiça.

Enquanto professor da Universidade de Chicago entre os anos de 1962 e 1967, e depois contratado pela Universidade de Harvard em 1968 (onde atuou até sua morte, em 1987), Kohlberg deu continuidade às suas pesquisas, aprimorou a teoria e desenvolveu estudos em diferentes culturas, chegando a elaborar uma entrevista padronizada de avaliação do juízo moral, a Moral Judgment Interview (MJI) (Colby & Kohlberg, 1987Colby, A., & Kohlberg, L. (1987). The measurement of moral judgment: theoretical foundations and research validation. Cambridge: Cambridge University Press.), o que pôde sistematizar seu método de mensuração.

Entretanto, com a referida repercussão dessas teorias, diversas críticas surgiram. Este artigo enfoca a crítica referente à ênfase no racionalismo, que revela a limitação dessas teorias em considerar o papel da afetividade no desenvolvimento moral. A seguir, aborda-se o trabalho da autora considerada pioneira na evidenciação dessa limitação e responsável pela elaboração de uma teoria pós-kohlberguiana que teve, a princípio, a intenção de sanar essa e outras limitações: Carol Gilligan.

Carol Gilligan e a ética do cuidado: um trabalho de pesquisa pioneiro e revolucionário

Carol Gilligan é uma psicóloga estadunidense, atualmente aos 87 anos e professora da Universidade de Nova Iorque (2002-), tendo lecionado anteriormente na Universidade de Chicago (1965-1966) e na Universidade de Harvard (1969-1997), onde se aposentou. Gilligan foi colaboradora de Kohlberg em suas pesquisas durante a década de 1970 (Kohlberg & Gilligan, 1971Kohlberg, L., & Gilligan, C. (1971). The adolescent as a philosopher: the discovery of the self in a postconventional world. Daedalus, 100(4), 1051-1086. Recuperado de https://www.jstor.org/stable/20024046
https://doi.org/https://www.jstor.org/st...
; Gilligan & Kohlberg, 1978Gilligan, C., & Kohlberg, L. (1978). From adolescence to adulthood: the recovery of reality in a postconventional world. In B. Z. Presseisen, D. Goldstein, & M. H. Appel (Orgs.), Language and operational thought: topics in cognitive development (pp. 125-136). Boston: Plenum Press.). Durante esse período, em que foi contratada pela Universidade de Harvard, a autora passou a trabalhar com dilemas morais reais2 2 Dilemas podem ser hipotéticos, quando mais abstratos e difíceis de ocorrerem, ou reais, quando encontrados mais facilmente no cotidiano da vida real. As críticas de Gilligan (1977; 1982) quanto à metodologia kohlberguiana também se voltaram ao recorrente uso de dilemas hipotéticos em detrimento dos dilemas reais. em suas próprias pesquisas e, dado o contexto estadunidense do início dos anos 1970, utilizou o aborto como tema para esses dilemas.

Em 1977, Gilligan (1977Gilligan, C. (1977). In a different voice: women’s conceptions of self and of morality. Harvard Educational Review, 47(4), 481-517. doi: 10.17763/haer.47.4.g6167429416hg5l0
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) publicou os primeiros resultados dessas suas pesquisas, utilizando-se da teoria kohlberguiana e dos dilemas sobre o aborto, aplicando-os com mulheres grávidas em clínicas de aborto. Apesar de encontrar a progressão da moral pré-convencional à pós-convencional nas respostas das mulheres aos dilemas, seus raciocínios pareciam diferir em relação aos dos homens. Para Gilligan (1977Gilligan, C. (1977). In a different voice: women’s conceptions of self and of morality. Harvard Educational Review, 47(4), 481-517. doi: 10.17763/haer.47.4.g6167429416hg5l0
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), o dilema do aborto pôde revelar a existência “de uma linguagem moral distinta cuja evolução informa a sequência do desenvolvimento das mulheres. Essa linguagem . . . define o problema moral como uma obrigação de exercer cuidado e evitar danos [e que] diferencia as mulheres dos homens” (p. 492, tradução minha).

Em alguns de seus estudos que buscaram validar sua teoria, inclusive em diferentes culturas, Kohlberg encontrou um baixo desempenho das mulheres em relação aos homens (Kohlberg, Levine & Hewer, 1984Kohlberg, L., Levine, C., & Hewer, A. (1984). The current formulation of the theory. In L. Kohlberg (Org.), The psychology of moral development: the nature and validity of moral stages (pp. 212-319). San Francisco: Harper & Row.; Kohlberg, 1992Kohlberg, L. (1992). Psicologia del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brower.). Quando avaliadas pelo seu modelo desenvolvimental de níveis e estágios, as mulheres geralmente chegavam a alcançar somente até o estágio três, em que os raciocínios apresentam um caráter grupocêntrico e sociocêntrico, caracterizado pela necessidade de estar de acordo com o que pessoas próximas esperam, ao passo que os homens as transpassavam. Gilligan (1977Gilligan, C. (1977). In a different voice: women’s conceptions of self and of morality. Harvard Educational Review, 47(4), 481-517. doi: 10.17763/haer.47.4.g6167429416hg5l0
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) lançou um outro olhar a tais resultados, ressaltando que as diferenças entre homens e mulheres se dariam pela orientação moral distinta das mulheres em responder aos dilemas.

Gilligan (1977Gilligan, C. (1977). In a different voice: women’s conceptions of self and of morality. Harvard Educational Review, 47(4), 481-517. doi: 10.17763/haer.47.4.g6167429416hg5l0
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), inspirada inicialmente pelo método de entrevista de Kohlberg, antes de ele ser sistematizado e resultar na MJI, atribuiu um formato próprio ao método: como uma entrevista aberta, utilizando dilemas morais reais (real-life dilemmas) sobre o aborto com mulheres grávidas e não hipotéticos e de um sistema de pontuação alternativo, que permitia à entrevistada falar sobre seu raciocínio moral à sua maneira, e à pesquisadora, sondar mais esclarecimentos sobre ele de acordo com a necessidade que surgia.

Em 1982, a autora publicou seu livro best-seller Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta (Gilligan, 1982Gilligan, C. (1982). Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.), que trata de três das pesquisas que realizou: a primeira, sobre identidade e desenvolvimento moral, a segunda, com mulheres grávidas sobre a temática do aborto, e a terceira, sobre direitos e responsabilidades, cujos resultados reiteraram suas constatações anteriores (Gilligan, 1977Gilligan, C. (1977). In a different voice: women’s conceptions of self and of morality. Harvard Educational Review, 47(4), 481-517. doi: 10.17763/haer.47.4.g6167429416hg5l0
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) sobre o desenvolvimento moral das mulheres diferir dos homens.

Gilligan (1982Gilligan, C. (1982). Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.) considerou que o aparente déficit do desenvolvimento moral das mulheres resultaria de um problema na teoria de Kohlberg em dois aspectos: tanto de metodologia, considerando as amostras de pesquisa iniciais dele - em sua tese (Kohlberg, 1958Kohlberg, L. (1958). The development of modes of moral thinking and choice in the years 10 to 16 (Tese de doutorado). The University of Chicago, Chicago, IL, United States.), por exemplo, o público participante foi totalmente masculino, formado por 84 meninos brancos de classe média -, quanto, consequentemente, de teoria, com o desempenho inferior das mulheres, sendo que qualquer diferença que apareça entre as mulheres e os homens na trajetória do desenvolvimento que traçam é “em geral considerada como significando um problema no desenvolvimento das mulheres” (Gilligan, 1982Gilligan, C. (1982). Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos., p. 11).

Gilligan (1982Gilligan, C. (1982). Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.) conclui que a teoria de Kohlberg não estaria adequada para avaliar as mulheres, pois elas partem de uma estrutura de raciocínio moral distinta, que prioriza o cuidado e o bem-estar do outro, que chamou de ética do cuidado, subvalorizada na teoria de Kohlberg, ao passo que os homens partem da ética da justiça, à qual a teoria estaria exclusivamente voltada. Uma vez que essas orientações morais foram encontradas empiricamente relacionadas ao gênero dos sujeitos, Gilligan (1977Gilligan, C. (1977). In a different voice: women’s conceptions of self and of morality. Harvard Educational Review, 47(4), 481-517. doi: 10.17763/haer.47.4.g6167429416hg5l0
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; 1982Gilligan, C. (1982). Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.) ressalta que os homens, em sua ética da justiça, se veem separados dos outros e tendem a pensar abstratamente em termos de justiça, reciprocidade e direitos individuais, enquanto as mulheres, por meio da ética do cuidado, tendem a pensar contextualmente em termos de cuidado e responsabilidade para com os outros, de conexão e da preservação das relações.

Gilligan (1977Gilligan, C. (1977). In a different voice: women’s conceptions of self and of morality. Harvard Educational Review, 47(4), 481-517. doi: 10.17763/haer.47.4.g6167429416hg5l0
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; 1982Gilligan, C. (1982). Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.) propôs, então, seu modelo de desenvolvimento moral alternativo ao modelo kohlberguiano, a ética do cuidado, que se aplicaria melhor à perspectiva feminina - ainda embrionário em Uma voz diferente. Esse modelo, tal como em Kohlberg, também se daria pela progressão em três níveis - os níveis de (1) sobrevivência individual (raciocínios autocêntricos); (2) bondade como autossacrifício (raciocínios pautados na proteção de pessoas dependentes e desiguais); e (3) responsabilidade pelas consequências da escolha (raciocínios pautados na não-violência e na condenação à exploração e ao dano) -, porém, com cinco estágios respectivos, sendo dois estágios aos dois primeiros níveis e um estágio respectivo ao último nível. A definição mais recente desses níveis e estágios do modelo gilliguiniano foi proporcionada com a elaboração da Ethics of Care Interview (ECI) pela norueguesa Eva Skoe (1993Skoe, E. E. A. (1993). The ethic of care interview manual. Oslo: University of Oslo.), instrumento de medida que equivale ao MJI de Kohlberg (Colby & Kohlberg, 1987Colby, A., & Kohlberg, L. (1987). The measurement of moral judgment: theoretical foundations and research validation. Cambridge: Cambridge University Press.), mas que avalia o desenvolvimento moral a partir desse modelo alternativo.

As críticas de Gilligan tiveram importantes implicações para o campo da psicologia do desenvolvimento moral e reverberaram para outros campos da psicologia e até mesmo outras áreas do conhecimento. A teoria do cuidado, ou teoria da ética do cuidado, foi desdobrada dessas críticas pela própria Gilligan junto a outras(os) autoras(es), como a citada Skoe (1993Skoe, E. E. A. (1993). The ethic of care interview manual. Oslo: University of Oslo.), e outras, como Joan Tronto, Nel Noddings e Virginia Held.

Das várias contribuições fornecidas pelo trabalho de Gilligan e das várias potencialidades de seu modelo de desenvolvimento para correção das limitações do modelo de Kohlberg, interessam-nos aqui apenas duas delas: a primeira, referente à inclusão da afetividade entre os fatores que influenciam o desenvolvimento moral, e a segunda, à inclusão de outras virtudes, para além da justiça, como centrais ao desenvolvimento moral, especificamente a virtude do cuidado.

A questão da complexidade: o papel da afetividade no desenvolvimento moral a partir de Carol Gilligan

Quanto à inclusão da afetividade, são vários(as) os(as) autores(as) que consideram que “Gilligan constrói de forma pioneira, um caminho e que seria trilhado por muitos outros posteriormente” (Braunstein, 2012Braunstein, H. R. (2012). Ética do cuidado: das instituições de cuidado e pseudo cuidado (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo). Recuperado de: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-21082012-160819/publico/braunstein_corrigida.pdf
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, p. 83), como se segue: ela “resgata uma dimensão esquecida talvez por outras pesquisas, a importância e a necessidade de pensar o outro não só como sujeito de direitos, mas como sujeito também composto, enquanto totalidade, de aspectos afetivos” (Tognetta, 2003Tognetta, L. R. P. (2003). A construção da solidariedade e a educação do sentimento na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras ., p. 42); considera “a representação de valores sociais e as necessidades afetivas dos sujeitos, inerentes aos conflitos morais enfrentados no cotidiano” (Arantes, 2000Arantes, V. A. (2000). Cognição, afetividade e moralidade. Educação e Pesquisa, 26(2), 137-153. doi: 10.1590/S1517-97022000000200010
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, p. 139); e estabelece “uma relação entre o Eu e o desenvolvimento moral, sendo a Ética da Justiça relacionada a um Eu separado e autônomo e a Ética do Cuidado relacionada a um Eu interconectado e interdependente” (Franzi & Araújo, 2013Franzi, J., & Araújo, U. F. (2013). Novos aportes na psicologia moral: a perspectiva da teoria dos modelos organizadores do pensamento. Revista NUPEM, 5(8), 53-67, 2013. doi: 10.33871/nupem.v5i8.185
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, p. 57-58), sendo que esta última, a ética do cuidado, implica a consideração dos desejos, emoções e sentimentos “do Eu, ou self, apontadas pelas necessidades afetivas” (Lemos de Souza & Vasconcelos, 2009Lemos de Souza, L., & Vasconcelos, M. S. (2009). Juízo e ação moral: desafios teóricos em psicologia. Psicologia & Sociedade, 21(3), 343-352. doi: 10.1590/S0102-71822009000300007
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, p. 347, grifo do autor).

Em síntese, como ressaltam Tognetta e Assis (2006Tognetta, L. R. P., & Assis, O. Z. M. (2006). A construção da solidariedade na escola: as virtudes, a razão e a afetividade. Educação e Pesquisa , 32(1), 49-66. doi: 10.1590/S1517-97022006000100004
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, p. 53),

é preciso que nos atentemos a . . . evidência dos afetos como variáveis imprescindíveis para uma ação moral. Não obstante, o cotidiano nos dá mostras de que saber qual o dever a cumprir não impede um sujeito de agir mal. Há uma energia que move, uma necessidade de satisfação pessoal a ser considerada. As pesquisas de Gilligan evidenciam a existência desses últimos interferindo na formulação de um juízo ou na ação moral. Tal autora defende que será preciso enxergar as contribuições desse campo afetivo, que consolidam uma nova dimensão de pensar a moral: o cuidado.

Contudo, como relembra Vasconcelos (2004Vasconcelos, M. S. (2004). Afetividade na escola: alternativas teóricas e práticas [Resenha do livro Afetividade na escola: alternativas teóricas e práticas, de V. A. Arantes]. Educação e Sociedade, 25(87), 616-620. doi: 10.1590/S0101-73302004000200015
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), “não é recente a discussão sobre o papel da afetividade na constituição da subjetividade humana” (p. 616). O que é relativamente recente na literatura, desde a publicação dos primeiros trabalhos de pesquisa de Gilligan (1977Gilligan, C. (1977). In a different voice: women’s conceptions of self and of morality. Harvard Educational Review, 47(4), 481-517. doi: 10.17763/haer.47.4.g6167429416hg5l0
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, 1982Gilligan, C. (1982). Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.), é a discussão de aportes teóricos que igualmente considerem os aspectos cognitivo e afetivo no desenvolvimento moral.

Desde os grandes debates filosóficos, razão e afetividade são discutidos separadamente, ao mesmo tempo que se ressalta a superioridade de um aspecto, a razão, sobre o outro, a afetividade (Braunstein, 2012Braunstein, H. R. (2012). Ética do cuidado: das instituições de cuidado e pseudo cuidado (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo). Recuperado de: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-21082012-160819/publico/braunstein_corrigida.pdf
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
; Vasconcelos, 2004Vasconcelos, M. S. (2004). Afetividade na escola: alternativas teóricas e práticas [Resenha do livro Afetividade na escola: alternativas teóricas e práticas, de V. A. Arantes]. Educação e Sociedade, 25(87), 616-620. doi: 10.1590/S0101-73302004000200015
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). Também historicamente, “dentro de uma tradição positivista, experimentalista, universalista, mecanicista, sistêmica, funcionalista, individualista e atomista da ciência e na Psicologia”, conforme ressalta Braunstein (2012Braunstein, H. R. (2012). Ética do cuidado: das instituições de cuidado e pseudo cuidado (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo). Recuperado de: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-21082012-160819/publico/braunstein_corrigida.pdf
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), o “sentimento, um objeto subjetivo associado à dimensão afetiva, muitas vezes é visto, ou encarado, como um objeto de estudo inviável cientificamente, frente às demandas metodológicas cartesianas, quantificáveis e de mensuração” (p. 81).

Dessa forma, para a psicologia moderna, “a afetividade, os sentimentos e as emoções são incertezas e imprecisões científicas, subjetividades inconsistentes no campo de investigação psicológica” (Braunstein, 2012Braunstein, H. R. (2012). Ética do cuidado: das instituições de cuidado e pseudo cuidado (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo). Recuperado de: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-21082012-160819/publico/braunstein_corrigida.pdf
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
, p. 79), e Piaget e Kohlberg, contemporâneos a esse modelo de Ciência, seguiram nessa tradição ao elaborar suas teorias. Além disso, depois que “o comportamento humano foi considerado sujeito a princípios universais e que se admitiu a ciência psicológica como possível, alguns dos problemas filosóficos foram transferidos para a psicologia” (Vasconcelos, 2004Vasconcelos, M. S. (2004). Afetividade na escola: alternativas teóricas e práticas [Resenha do livro Afetividade na escola: alternativas teóricas e práticas, de V. A. Arantes]. Educação e Sociedade, 25(87), 616-620. doi: 10.1590/S0101-73302004000200015
https://doi.org/10.1590/S0101-7330200400...
, p. 616), como o paradigma kantiano que superestima a razão e menospreza a dimensão afetiva.

Fundamentação comum a ambos os autores, Kant, “destacando a supremacia da razão, construiu uma perspectiva negativa das emoções e dos sentimentos, chegando a afirmar que as paixões são a enfermidade da alma” (Vasconcelos, 2004Vasconcelos, M. S. (2004). Afetividade na escola: alternativas teóricas e práticas [Resenha do livro Afetividade na escola: alternativas teóricas e práticas, de V. A. Arantes]. Educação e Sociedade, 25(87), 616-620. doi: 10.1590/S0101-73302004000200015
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, p. 616). Assim, o filósofo defende como moral apenas os juízos ou ações justificadas por princípios racionais, o que se reflete nas teorias de Piaget (1932/1994Piaget, J. (1994). O juízo moral na criança. São Paulo, SP: Summus. (Trabalho original publicado em 1932)) e Kohlberg (1992Kohlberg, L. (1992). Psicologia del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brower.), “defensoras da racionalidade e da ‘justiça’ enquanto objeto e virtude moral prioritária no campo da psicologia moral” (Braunstein, 2012Braunstein, H. R. (2012). Ética do cuidado: das instituições de cuidado e pseudo cuidado (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo). Recuperado de: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-21082012-160819/publico/braunstein_corrigida.pdf
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, p. 68).

Contudo, essa visão dicotômica de razão/emoção, cognição/afetividade, em que o sujeito psicológico é pensado a partir de duas metades separadas, “pouco tem contribuído para o desenvolvimento científico, para o incremento de pesquisas socialmente relevantes, interventivas e transformadoras” (Braunstein, 2012Braunstein, H. R. (2012). Ética do cuidado: das instituições de cuidado e pseudo cuidado (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo). Recuperado de: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-21082012-160819/publico/braunstein_corrigida.pdf
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
, p. 80). Nesse sentido, o trabalho de Gilligan, sua crítica e teoria subjacentes chegaram em um momento oportuno da psicologia do desenvolvimento moral.

De acordo com Blum (1988Blum, L. A.. (1988). Gilligan and Kohlberg: implications for moral theory. Ethics, 98(3), 472-491., p. 476, tradução minha), para Gilligan, “a moralidade necessariamente envolve um entrelaçamento de emoção, cognição e ação, não facilmente separável”. Lind (2019Lind, G. (2019). How to teach moral competence. Berlin: Logos., p. 35, tradução minha), por exemplo, questiona cognição e afetividade serem conceituados “como se fossem ‘coisas’ separadas . . . parecem acreditar que ambos são objetos separáveis e que podem ser observados e medidos separadamente”. No caso de Gilligan e de sua proposta de ética do cuidado, “saber o que fazer envolve conhecer outras pessoas e estar conectado de maneiras que envolvem emoção e cognição. A ação atenciosa expressa emoção e compreensão” (Blum, 1988Blum, L. A.. (1988). Gilligan and Kohlberg: implications for moral theory. Ethics, 98(3), 472-491., p. 476).

Gilligan percebeu que a ênfase racionalista de Kohlberg e de sua abordagem cognitivo-evolutiva, centrada na justiça, limita a análise das variáveis envolvidas no desenvolvimento moral, quando, na verdade, uma decisão moral também abrange os sentimentos, o aspecto afetivo envolvido, e a materialidade do sujeito, o contexto em que o problema moral se apresenta, e isso só para ficar nesses. Como também comentam Dunkel, Gladden e Mathes (2016Dunkel, C. S., Gladden, P. R., & Mathes, E. W. (2016). Sex differences in moral reasoning: the role of intelligence and life history strategy. Human Ethology Bulletin, 31(2), 5-16. doi: 10.22330/heb/312/005-016
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, p. 8, tradução minha), Kohlberg “coloca incorretamente a tomada de decisão moral sob a jurisdição da razão . . . embora a razão possa ser aplicada a dilemas morais, na maioria das vezes não é. As decisões morais tendem a ser carregadas de emoção, e as reações instintivas conduzem as respostas aos dilemas morais”.

Das várias outras formas como a afetividade pode interferir ou influenciar o desenvolvimento moral, Lima (2011Lima, V. A. A. (2011). A psicologia moral na obra de Jean Piaget. In Anais do Congresso de Epistemologia Genética da Região Amazônica (pp. 2-39). Porto Velho, RO. Recuperado de https://www.periodicos.unir.br/index.php/revistacegra/article/view/284/293
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, p. 15) referencia uma série de estudos que as elenca:

ligações afetivas como parentesco, a exposição de sua intimidade, o sentimento de vergonha, a amizade, entre outros, são fatores de grande importância na determinação da moralidade, inclusive na diferenciação entre o juízo moral expresso e a ação correspondente realizada em determinadas condições.

Piaget (1932/1994Piaget, J. (1994). O juízo moral na criança. São Paulo, SP: Summus. (Trabalho original publicado em 1932)) e Kohlberg (1992Kohlberg, L. (1992). Psicologia del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brower.), fundamentados em Kant (1785/2005Kant, I. (2005). Fundamentação da metafísica dos costumes (P. Quintela, trad.). Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1785)), consideram que tudo que não for orientado pela racionalidade compreende uma moral inferior, heterônoma, oriunda dos níveis e estágios mais baixos do desenvolvimento moral. Ou seja, não há espaço para a análise do papel da afetividade em seus respectivos modelos, pois o juízo ou a ação moral ideal, elevado, é aquele feito exclusivamente pela razão, que se baseia em princípios morais universalizáveis. Ao contrário disso, Gilligan (1982Gilligan, C. (1982). Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.) propôs uma teoria e um modelo de desenvolvimento em que há espaço para a afetividade e para a realidade concreta em que ela se expressa, postulando que agir pelo cuidado é tão valioso quanto agir por princípios kantianos.

Kant . . . pregava que a única moral que merece este nome é a moral autônoma, não via como não baseá-la na razão, assim como o fariam Piaget e Kohlberg. A desconfiança de Kant em relação à afetividade decorria do fato de não podermos dominar nossos sentimentos, não podermos decidir quais experimentar, ou seja, de sermos prisioneiros de nossa vida afetiva. Dito de outra maneira, Kant via na afetividade uma fonte incontornável de dependência, logo, de heteronomia. E como a autonomia implica o usufruto da liberdade, sem a qual não há responsabilidade, ele rechaçava a participação da afetividade na vida moral. A razão seria a única fonte legítima dos deveres, a inspiração moral que nos faz agir. (La Taille, 2006La Taille, Y. (2006). Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas. Porto Alegre, RS: Artmed., p. 22-23)

Seria uma inverdade, porém, ressaltar que ambos os autores não consideram a afetividade em suas teorias. E alguns(mas) autores(as) da literatura (Tognetta, 2003Tognetta, L. R. P. (2003). A construção da solidariedade e a educação do sentimento na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras ., 2009; Lima, 2011Lima, V. A. A. (2011). A psicologia moral na obra de Jean Piaget. In Anais do Congresso de Epistemologia Genética da Região Amazônica (pp. 2-39). Porto Velho, RO. Recuperado de https://www.periodicos.unir.br/index.php/revistacegra/article/view/284/293
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), bem como os próprios Piaget e Kohlberg, vão em sua defesa.

Como mencionado anteriormente, o foco de Piaget (1932/1994Piaget, J. (1994). O juízo moral na criança. São Paulo, SP: Summus. (Trabalho original publicado em 1932)) foi o desenvolvimento cognitivo, enquanto a afetividade e outros aspectos, embora levados em consideração, ocupam um espaço menor, como é o caso da afetividade, tanto em seu modelo cognitivo quanto moral. Nesse sentido, Tognetta (2009Tognetta, L. R. P. (2009). A formação da personalidade ética: estratégias de trabalho com afetividade na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras ., p. 42) ressalta que “Piaget foi um autor que se preocupou com a presença de dois aspectos inseparáveis no psiquismo humano: razão e afetividade”, todavia, optou por investigar o primeiro em detrimento do segundo. Lind (2019Lind, G. (2019). How to teach moral competence. Berlin: Logos.) também referencia Piaget como um dos primeiros a elaborar o modelo que chama de duplo aspecto, ao qual sua teoria sobre o construto de competência moral se refere, que considera as dimensões cognitiva e afetiva como inseparáveis.

Ainda segundo Tognetta (2009Tognetta, L. R. P. (2009). A formação da personalidade ética: estratégias de trabalho com afetividade na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras ., p. 37), Piaget dedicou-se a investigar “a noção de justiça presente nos juízos, e não o aspecto afetivo”, pois não dispunha de “instrumentos suficientes para medir a influência dos afetos”. Isso está anunciado desde o seu livro de 1932:

se o aspecto afetivo da cooperação e da reciprocidade escapa ao interrogatório, há uma noção, a mais racional, sem dúvida das noções morais, que parece resultar diretamente da cooperação, cuja análise psicológica pode ser tentada sem muitas dificuldades: a noção de justiça. Portanto, é principalmente sobre este ponto que versará nosso esforço. (Piaget, 1932/1994Piaget, J. (1994). O juízo moral na criança. São Paulo, SP: Summus. (Trabalho original publicado em 1932), p. 156)

Da mesma forma que Piaget, Kohlberg também considerou a dimensão afetiva, isto é, reconheceu a interferência de outras variáveis na elaboração de juízos morais e na concretização da ação moral, porém, também só a anunciou e, conscientemente, posicionou-se sobre este não ser o foco de seu trabalho: “estamos de acordo de que sua construção está, muito provavelmente, influenciada por suas relações com a emoção, imaginação e sensibilidade moral, e alertamos a quem está interessado em fazê-lo, que investigue essas relações” (Kohlberg, 1989, citado por Tognetta, 2003Tognetta, L. R. P. (2003). A construção da solidariedade e a educação do sentimento na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras ., p. 42).

Ainda assim, por mais que tenham considerado a afetividade, como referido, suas teorias e modelos respectivos não permitem uma análise de sua relação com o aspecto cognitivo, sendo este sim elevadamente considerado e contemplado por eles. Como ressalta Blum (1988Blum, L. A.. (1988). Gilligan and Kohlberg: implications for moral theory. Ethics, 98(3), 472-491., p. 476), para Piaget e, principalmente, “para Kohlberg, o modo de raciocínio que gera princípios que governam a ação correta envolve apenas a racionalidade formal. As emoções desempenham, no máximo, um papel remotamente secundário, tanto na derivação quanto na motivação para a ação moral”.

Então, como Gilligan conseguiu considerar a dimensão afetiva de maneira mais significativa em detrimento de Piaget, que alegou não dispor de instrumentos suficientes para tal, e de Kohlberg, que assumiu não ser esse seu propósito? Para responder a esse questionamento, há de se considerar, sobretudo, o método original empregado por Gilligan (1977Gilligan, C. (1977). In a different voice: women’s conceptions of self and of morality. Harvard Educational Review, 47(4), 481-517. doi: 10.17763/haer.47.4.g6167429416hg5l0
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; 1982Gilligan, C. (1982). Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.) e sua postura no uso desse método.

Foi a revisão de Gilligan sobre o método de Kohlberg que possibilitou a emersão dos raciocínios orientados ao cuidado, quando o utilizou em um formato aberto. Em vez de ir ao encontro de sua amostra participante com um modelo pronto a ser avaliado, como faz Kohlberg (1992Kohlberg, L. (1992). Psicologia del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brower.), a autora deixou as respostas das mulheres de seu estudo aparecerem livremente, fez suas vozes serem ouvidas e não as incitou para que raciocinassem pela ética de justiça. Voz diferente foi uma inteligente metáfora utilizada por Gilligan (1982Gilligan, C. (1982). Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.) na ocasião, pois, tratando-se de um método de entrevista, as vozes das mulheres pareciam não ouvidas quando confrontadas com os dilemas de Kohlberg. E a não escuta dessas vozes implicou em serem consideradas com desenvolvimento deficitário.

Além disso, o uso de dilemas reais também foi muito pertinente, uma vez que os aspectos afetivos ficam mais evidentes em dilemas morais facilmente encontrados no cotidiano, que as pessoas têm um vínculo. Arantes (2000Arantes, V. A. (2000). Cognição, afetividade e moralidade. Educação e Pesquisa, 26(2), 137-153. doi: 10.1590/S1517-97022000000200010
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) aponta que “a representação de valores sociais e as necessidades afetivas dos sujeitos [são] inerentes aos conflitos morais enfrentados no cotidiano”, assim, nos dilemas hipotéticos utilizados por Kohlberg, “por causa de sua natureza abstrata, tenderão a suscitar considerações sobre direitos, enquanto dilemas da vida real, por causa de sua natureza contextualizada, suscitarão considerações sobre responsabilidade” (Walker, 1989Walker, L. J. (1989). A longitudinal study of moral reasoning. Child Development, 60(1), 157-166. doi: 10.2307/1131081
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, p. 158, tradução minha).

A outra contribuição e potencialidade da teoria de Gilligan (1982Gilligan, C. (1982). Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.), que pelo menos merece ser aqui mencionada, é a inclusão de outras virtudes, para além da justiça, como centrais ao desenvolvimento moral, potencialidade que posteriormente o próprio Kohlberg reconheceu: “a ênfase na virtude da justiça em meu trabalho não reflete totalmente tudo o que é reconhecido como parte do domínio moral . . . o princípio do altruísmo, cuidado ou amor responsável não tem sido adequadamente representado em nosso trabalho” (Kohlberg et al., 1984Kohlberg, L., Levine, C., & Hewer, A. (1984). The current formulation of the theory. In L. Kohlberg (Org.), The psychology of moral development: the nature and validity of moral stages (pp. 212-319). San Francisco: Harper & Row., p. 227, tradução minha). Essa potencialidade, embora diferente da anterior, remonta à crítica ao racionalismo das teorias em questão e que foi discutida até aqui.

O ponto de partida de Gilligan foi e ainda é crucial para a contemplar uma teoria moral mais integrativa, que dê conta da referida complexidade do desenvolvimento moral, e sanar várias outras das limitações trazidas pelas teorias cognitivo-evolutivas. Apesar disso, suas próprias proposições também apresentam problemas e necessitam de revisões, sendo também alvo de várias críticas. A despeito de todas elas, alguns dos limites aos quais seus críticos lhe chamaram a atenção concernem à criação de dualismos, entre “masculino” e o “feminino”, “emocional” e “racional”, e o princípio de “justiça” e o de “cuidado”, buscando valorizar o outro oposto que não era considerado, ao invés de, de fato, integrá-los (Arantes, 2000Arantes, V. A. (2000). Cognição, afetividade e moralidade. Educação e Pesquisa, 26(2), 137-153. doi: 10.1590/S1517-97022000000200010
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; 2003); e ao essencialismo identitário (Montenegro, 2003Montenegro, T. (2003). Diferenças de gênero e desenvolvimento moral das mulheres. Revista Estudos Feministas, 11(2), 493-508. doi: 10.1590/S0104-026X2003000200008
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), uma vez que seu modelo sugere diferenças inatas entre homens e mulheres, como a interpretação de que o ato de cuidar é uma atividade “natural” às mulheres.

Em suma, o papel da afetividade no desenvolvimento moral, seja em sua interferência na emissão do juízo moral, seja em seu papel na concretização da ação moral, foi colocado como nova (e necessária) perspectiva de pesquisa no campo da psicologia do desenvolvimento moral, resultando em uma mudança paradigmática do campo. Sendo muitas as variáveis que interferem no modo como um sujeito julga e age moralmente, em particular a variável afetiva, também muitas são as relações possíveis entre essas variáveis. Considerar essa complexidade do sujeito psicológico, que nesse contexto é definida pela quantidade de relações possíveis em um conjunto de sistemas, é atribuir uma visão mais integrativa e condizente com a realidade, o que não parece ser possível a partir das teorias morais em sua tradição cognitivo-evolutiva, como evidenciou Gilligan (1982Gilligan, C. (1982). Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.).

As teorias pós-kohlberguianas diante do novo paradigma da psicologia do desenvolvimento moral

“Para o bem ou para o mal, o campo da moralidade foi moldado pelas contribuições de Kohlberg”, como aponta Schrader (2015Schrader, D. E. (2015). Evolutionary paradigm shifting in moral psychology in Kohlberg’s penumbra. In B. Zizek, D. Garz, & E. Nowak (Orgs.), Kohlberg revisited (pp. 7-26). Rotterdam: Sense.), “com teorias e pesquisas subsequentes ou construídas sobre suas definições e métodos . . . ou que os contestaram e renovaram - mantendo alguns dos antigos insights [ênfase adicionada] kohlberguianos ao adicionar algo novo” (p. 11, tradução minha). Assim, tanto essas teorias mais críticas e radicais como as que propuseram apenas mudanças sutis às ideias originais do autor - mas todas que continuam dentro do enfoque cognitivo-evolutivo e, por isso, “pós-kohlberguianas” -, geraram uma “cacofonia de vozes na pesquisa em psicologia moral, que hoje ressalta a iminente evolução paradigmática da moral [no campo]” (p. 16).

Não obstante, Schrader (2015Schrader, D. E. (2015). Evolutionary paradigm shifting in moral psychology in Kohlberg’s penumbra. In B. Zizek, D. Garz, & E. Nowak (Orgs.), Kohlberg revisited (pp. 7-26). Rotterdam: Sense.) endossa a discussão feita até aqui, de que “a primeira grande abertura para uma nova ordem além do paradigma orquestrado por Kohlberg foi a introdução de Gilligan”, e inclusive de que ela serviu de referência para a elaboração das teorias pós-kohlberguianas, pois, para o autor, se em sua época Kohlberg tivesse atendido às demandas da complexidade do desenvolvimento moral, “Gilligan e Haidt teriam menos motivos para uma revolução, e o paradigma da psicologia moral poderia ter sido . . . menos necessitado de uma mudança interparadigmática” (p. 16).

Em sua revisão da história da psicologia do desenvolvimento moral, o psicólogo estadunidense Haidt (2013Haidt, J. (2013). Moral psychology for the twenty-first century. Journal of Moral Education, 42(3), 281-297. doi: 10.1080/03057240.2013.817327
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, p. 283, tradução minha) aponta seis tendências intelectuais que despontaram depois de Kohlberg, “seis ondas que vinham de direções diferentes, mas que desembarcaram e alteraram a paisagem no final da década de 1990. O racionalismo [de Kohlberg] não parecia mais tão plausível”. São elas: (1) a revolução afetiva, “que começou no início da década de 1980. Foi uma correção ou acréscimo à revolução cognitiva” (p. 283); (2) o renascimento da psicologia cultural, “em meados da década de 1980, liderada pelo antropólogo Richard Shweder” (p. 283); (3) a revolução da automaticidade, “liderada pelo psicólogo social John Bargh” (p. 283); (4) a pesquisa em neurociência, “possibilitada pelos avanços na tecnologia de imagem nas décadas de 1980 e 1990” (p. 283); (5) a primatologia, “particularmente o trabalho de Frans de Waal” (p. 283); e (6) o renascimento da sociobiologia, “renomeada como psicologia evolutiva” (p. 283).

Nem todas essas tendências, no entanto, surgiram para preencher a lacuna da afetividade dentro da questão da complexidade. Então, importam-nos, aqui, aquelas teorias, incluídas nessas tendências, que se beneficiam do movimento teórico iniciado por Gilligan e, logo, que vislumbram a contemplação da complexidade do desenvolvimento moral, sobretudo nesse aspecto (afetividade) que tanto nos interessa. E tais teorias estão mais ligadas às primeira, quarta e sexta tendências, revolução afetiva, pesquisa em neurociência e sociobiologia (psicologia evolutiva), respectivamente, da taxionomia de Haidt (2013Haidt, J. (2013). Moral psychology for the twenty-first century. Journal of Moral Education, 42(3), 281-297. doi: 10.1080/03057240.2013.817327
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).

Quanto à primeira tendência, o próprio Haidt (2013Haidt, J. (2013). Moral psychology for the twenty-first century. Journal of Moral Education, 42(3), 281-297. doi: 10.1080/03057240.2013.817327
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) a nomeia de “revolução afetiva”, em referência ao supracitado movimento teórico do qual Gilligan foi uma das precursoras. Essa tendência surgiu diretamente em contraposição à “revolução cognitiva” (Braunstein, 2012Braunstein, H. R. (2012). Ética do cuidado: das instituições de cuidado e pseudo cuidado (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo). Recuperado de: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-21082012-160819/publico/braunstein_corrigida.pdf
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
; Araújo, 2017Araújo, C. M. (2017). Uma crítica à feminilidade na Ética do Cuidado de Nel Noddings: o cuidado para além do gênero [Dissertação de Mestrado]. Universidade Federal de Pernambuco, PE, Brasil. Recuperado de: https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/33372/1/DISSERTA%c3%87%c3%83O%20Clarissa%20Moraes%20de%20Ara%c3%bajo.pdf
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) promovida por Kohlberg na década de 1960 no estudo psicológico da moralidade, que tanto marcou o campo, como já ressaltado.

Thoma e Bebeau (2000Thoma, S., & Bebeau, M. (2000). Obituary James Ronald Rest (1941-1999). Journal of Moral Education , 29(1), 119-121. doi: 10.1080/030572400102970
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), no entanto, ressaltam que o psicólogo estadunidense James Rest (1941-1999) também esteve na vanguarda desse movimento, sendo ele contemporâneo de Gilligan. Rest é mais conhecido por sua teoria pós-kohlberguiana, por ele chamada de abordagem neo-kohlberguiana - que, em síntese, critica a sequência invariável de estágios de Kohlberg e, em seu lugar, propõe esquemas morais -, mas que pouco se distancia da proposta original kohlberguiana, mantendo-se fiel à abordagem cognitivo-evolutiva que representa, e pelo desenvolvimento do teste psicométrico Defining Issues Test (DIT), em suas versões 1 (DIT-1) e 2 (DIT-2) (Rest, Narvaez, Bebeau e Thoma, 1999Rest, J., Narvaez, D., Bebeau, M. J., & Thoma, S. J. (1999). Postconventional moral thinking: a neo-kohlbergian approach. Mahwah: Lawrence Erlbaum Associates.).

Porém, uma última formulação de Rest foi o modelo dos quatro componentes (Rest et al., 1999Rest, J., Narvaez, D., Bebeau, M. J., & Thoma, S. J. (1999). Postconventional moral thinking: a neo-kohlbergian approach. Mahwah: Lawrence Erlbaum Associates.), cuja ideia central é a de que quatro processos psicológicos internos dão origem aos comportamentos morais: (1) sensibilidade moral, que é a capacidade de identificar e interpretar um problema moral; (2) julgamento moral, isto é, a avaliação das várias possibilidades de ação diante do problema moral; (3) comprometimento moral, que consiste no comprometimento com a possibilidade de ação escolhida e com seus resultados; e (4) o caráter moral, capacidade de implementar a possibilidade de ação escolhida.

Assim, para uma ação moral ocorrer, o sujeito deve “identificar o problema moral, desenvolver um resultado ideal, estar motivado para agir sobre a ação ideal e determinar como executá-la. . . . a falha na ação pode ser devido a deslizes em um ou mais desses componentes” (Bailey, Scott & Thoma, 2010Bailey, C. D., Scott, I., & Thoma, S. J. (2010). Revitalizing accounting ethics research in the neo-kohlbergian framework: putting the DIT into perspective. Behavioral Research in Accounting, 22(2), 1-26. doi: 10.2308/bria.2010.22.2.1
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, p. 6, tradução minha). Além disso, esse modelo evidencia uma limitação da própria teoria de Rest, que é a ênfase cognitiva. As duas versões do DIT mensuram o segundo componente de seu modelo, julgamento moral, sendo este isoladamente um aspecto cognitivo. Os demais componentes desse modelo não têm espaço na abordagem neo-kohlberguiana de Rest et al. (1999Rest, J., Narvaez, D., Bebeau, M. J., & Thoma, S. J. (1999). Postconventional moral thinking: a neo-kohlbergian approach. Mahwah: Lawrence Erlbaum Associates.).

Outro pesquisador que também fez parte dessa tendência foi o psicólogo alemão Georg Lind (1947-2021), que muito contribuiu para a teorização da relação entre os aspectos cognitivo e afetivo no desenvolvimento moral.

Embora o foco de Piaget e de Kohlberg tenha sido o juízo moral e dado pouca atenção à ação e aos sentimentos morais, Kohlberg (1992Kohlberg, L. (1992). Psicologia del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brower.) deixou anunciado em sua teoria o conceito de competência moral. Lind retomou esse conceito e, em pesquisas que realizou em mais de quatro décadas, desenvolveu-o e operacionalizou-o. Como ele afirma, a “definição de Kohlberg para a competência moral era a ‘capacidade de tomar decisões e emitir juízos que são morais (isto é, baseados em princípios internos) e agir de acordo com tais juízos’” (Kohlberg, 1964, citado por Lind, 2019Lind, G. (2019). How to teach moral competence. Berlin: Logos., p. 52, tradução minha). Assim, diante de situações que nos exigem uma resposta e em que os cursos de ação possíveis são conflitantes e mutuamente excludentes, mobilizando-nos afetivamente, a capacidade de agir de acordo com princípios, mesmo com a comoção envolvida, é definida como competência moral.

Em sua retomada e desenvolvimento do conceito de competência moral, Lind (2019Lind, G. (2019). How to teach moral competence. Berlin: Logos.) propôs a chamada teoria do duplo aspecto, cujo nome prenuncia a existência dos dois aspectos - afetivo e cognitivo - que, quando integrados, constituem a competência moral. Como argumenta Lind (2019Lind, G. (2019). How to teach moral competence. Berlin: Logos.), o modelo proveniente dessa teoria não é novo, mas há muito tem sido ignorado. Ele cita Piaget como um dos primeiros a propor um modelo que considerasse esses dois aspectos, apesar de seu foco no estudo do juízo moral e ênfase na cognição. O próprio Lind (2019Lind, G. (2019). How to teach moral competence. Berlin: Logos.) rechaçou o citado modelo dos quatro componentes de Rest et al. (1999Rest, J., Narvaez, D., Bebeau, M. J., & Thoma, S. J. (1999). Postconventional moral thinking: a neo-kohlbergian approach. Mahwah: Lawrence Erlbaum Associates.) quando questionou os componentes serem conceituados “como se fossem ‘coisas’ separadas . . . parecem acreditar que ambos são objetos separáveis e que podem ser observados e medidos separadamente” (p. 35). Para Lind (2019Lind, G. (2019). How to teach moral competence. Berlin: Logos.), cognição e afeto são dois aspectos distintos do comportamento moral, mas inseparáveis, que não podem ser separados nem um do outro nem do comportamento como componentes.

As pesquisadoras da Espanha Genoveva Sastre Vilarrasa e Montserrat Moreno Marimón (2000Vilarrasa, G. S., & Marimón, M. M. (2000). Nuevas perspectivas sobre el razionamiento moral. Educação e Pesquisa , 2(26), 123-135. doi: 10.1590/S1517-97022000000200009
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) foram responsáveis pela elaboração da teoria dos modelos organizadores do pensamento, uma teoria com pouca repercussão no contexto estadunidense, tampouco mencionada na revisão de Haidt (2013Haidt, J. (2013). Moral psychology for the twenty-first century. Journal of Moral Education, 42(3), 281-297. doi: 10.1080/03057240.2013.817327
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), porém, cujas suas autoras reconhecem a contribuição de Gilligan (1982Gilligan, C. (1982). Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.) e fazem menção expressiva ao quanto ela as subsidiou. Essa teoria também questiona a dicotomia histórica de razão e emoção, cognição e afetividade, tal como uma das autoras precursoras dessa teoria no Brasil comenta:

o sujeito elabora e organiza sínteses complexas de significados a partir de processos afetivos e cognitivos[, sendo] os modelos organizadores conjuntos de representações mentais que as pessoas realizam em situações específicas e que as levam a compreender a realidade e a elaborar seus juízos e suas ações. . . . Construídos não somente a partir da lógica subjacente às estruturas de pensamento, os modelos organizadores do pensamento comportam os desejos, sentimentos, afetos, representações sociais e valores de quem os constrói. Tal referencial teórico procura, pois, demonstrar como os aspectos cognitivos e afetivos se articulam de maneira dialética no funcionamento psíquico. (Arantes, 2003Arantes, V. A. (2003). Afetividade, cognição e moralidade na perspectiva dos modelos organizadores do pensamento. In V. A. Arantes & J. G. Aquino (Orgs.), Afetividade na escola: alternativas teóricas e práticas (pp. 109-151). São Paulo, SP: Summus., p. 115)

Ainda no que tange à “revolução afetiva”, os psicólogos estadunidenses Augusto Blasi (1983Blasi, A. (1983). Moral cognition and moral action: a theoretical perspective. Developmental Review, 3(2), 178-210. doi: 10.1016/0273-2297(83)90029-1
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), Anne Colby e Willian Damon (1992Colby, A., & Damon, W. (1992). Some do care. New York: Free Press.) propuseram suas teorias sobre identidade moral quando questionaram que a moralidade e o Self (Eu) se relacionam reciprocamente. Para essas teorias, de modo geral, a percepção acerca de si influencia o juízo e a ação moral, de modo que aquele para quem a moral ocupa lugar central nessa sua percepção de si (identidade moral) maiores chances terá de ser moral em situações que enfrentará, por querer preservar sua identidade e ser coerente com seus próprios princípios.

Nesse sentido, Blasi (1983Blasi, A. (1983). Moral cognition and moral action: a theoretical perspective. Developmental Review, 3(2), 178-210. doi: 10.1016/0273-2297(83)90029-1
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), especificamente, propõe um modelo teórico, self model of moral functioning, que coloca o raciocínio moral como primeiro determinante da ação moral, embora ressalte que dependa de escolhas pessoais, chamadas de julgamento de responsabilidade pessoal. A partir disso, identifica-se o quanto determinado conteúdo é moral e importante para o sujeito, no qual ocorre a integração da moral aos seus sistemas motivacionais e emocionais. Apesar disso, a concretização da ação moral não depende apenas dessa integração, ainda que a influencie.

Ademais, a relação entre a moralidade e o Eu já tinha sido apontada por Gilligan (1977Gilligan, C. (1977). In a different voice: women’s conceptions of self and of morality. Harvard Educational Review, 47(4), 481-517. doi: 10.17763/haer.47.4.g6167429416hg5l0
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; 1982Gilligan, C. (1982). Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.) desde seus trabalhos iniciais, quando conceitua a ética do cuidado e a diferencia da ética da justiça: na orientação para a justiça, o Eu é definido pela autonomia e separação dos outros, ao passo que na orientação para o cuidado a perspectiva é a de um Eu conectado, que se desenvolve em interdependência e preocupação com o bem-estar dos outros. E, por isso, na ética do cuidado as decisões morais estão vinculadas aos sentimentos de empatia e compaixão. Todavia, nem Blasi (1983Blasi, A. (1983). Moral cognition and moral action: a theoretical perspective. Developmental Review, 3(2), 178-210. doi: 10.1016/0273-2297(83)90029-1
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) nem Colby e Damon (1982) fazem menção direta à autora antecessora e pioneira nessa conceituação.

Apesar dessas e de outras teorias pós-kohlberguianas desenvolvidas no referido marco paradigmático (Haidt, 2013Haidt, J. (2013). Moral psychology for the twenty-first century. Journal of Moral Education, 42(3), 281-297. doi: 10.1080/03057240.2013.817327
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; Schrader, 2015Schrader, D. E. (2015). Evolutionary paradigm shifting in moral psychology in Kohlberg’s penumbra. In B. Zizek, D. Garz, & E. Nowak (Orgs.), Kohlberg revisited (pp. 7-26). Rotterdam: Sense.) da psicologia do desenvolvimento moral, Schrader (2015Schrader, D. E. (2015). Evolutionary paradigm shifting in moral psychology in Kohlberg’s penumbra. In B. Zizek, D. Garz, & E. Nowak (Orgs.), Kohlberg revisited (pp. 7-26). Rotterdam: Sense.) adverte que elas, embora tentem, não são suficientes no que procuram contemplar: “o trabalho sobre as emoções e outras qualidades do Eu e da autorreflexão nunca foram totalmente integrados às teorias de desenvolvimento e ação de Kohlberg tão diretamente quanto poderiam ter sido” (p. 17). Para ele, isso se deve ao fato de tais teorias estarem marcadas pelo cognitivismo/racionalismo de Piaget e, sobretudo, de Kohlberg. Em maior ou menor grau, elas ainda se encontram vinculadas ao paradigma anterior. Uma integração mais asseverada, portanto, seria necessária.

Algumas alternativas podem ser vistas, no entanto, na quarta e na sexta tendências descritas por Haidt (2013Haidt, J. (2013). Moral psychology for the twenty-first century. Journal of Moral Education, 42(3), 281-297. doi: 10.1080/03057240.2013.817327
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), sendo que o próprio Haidt faz parte de ambas. Em seu célebre artigo “The emotional dog and its rational tail: a social intuitionist approach to moral judgment” (“O cão emocional e sua cauda racional: uma abordagem intuicionista social do julgamento moral”, em tradução livre), Haidt (2001Haidt, J. (2001). The emotional dog and its rational tail: a social intuitionist approach to moral judgment. Psychological Review, 108(4), 814-834. doi: 10.1037/0033-295X.108.4.814
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) argumenta que o sistema cognitivo humano é evolutivamente mais novo e limitado e enfatiza o papel das intuições morais sobre o raciocínio moral. Intuição, para o autor, é mais ampla que emoção, refere-se a uma sensação afetiva automática, que não passa por qualquer processo de ponderação.

Assim, as respostas a eventos morais seriam principalmente afetivas, intuitivas e automáticas. Isso coloca Haidt (2001Haidt, J. (2001). The emotional dog and its rational tail: a social intuitionist approach to moral judgment. Psychological Review, 108(4), 814-834. doi: 10.1037/0033-295X.108.4.814
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) entre os autores das teorias pós-kohlberguianas mais radicais, pois inverte o paradigma racionalista: a relação entre razão e emoção continua desigual, mas agora com a emoção sendo superior à razão. Como ele mesmo admite, isso retoma à máxima do filósofo escocês David Hume (1711-1776) de que “a razão é e deve ser apenas escrava das paixões”, sendo o racionalismo kantiano, fundamentação comum de Piaget (1932/1994Piaget, J. (1994). O juízo moral na criança. São Paulo, SP: Summus. (Trabalho original publicado em 1932)) e Kohlberg (1992Kohlberg, L. (1992). Psicologia del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brower.), a sua antítese. A teoria que Haidt (2001Haidt, J. (2001). The emotional dog and its rational tail: a social intuitionist approach to moral judgment. Psychological Review, 108(4), 814-834. doi: 10.1037/0033-295X.108.4.814
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) propõe, da qual erige seu modelo social intuicionista, baseia-se tanto na psicologia evolutiva (sexta tendência) quanto na neurociência (quarta tendência): “quando publiquei o modelo pela primeira vez [em 2001], havia muitas evidências para ele . . . fora da psicologia moral” (Haidt, 2013Haidt, J. (2013). Moral psychology for the twenty-first century. Journal of Moral Education, 42(3), 281-297. doi: 10.1080/03057240.2013.817327
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, p. 287), como na neurociência.

Um marco do interesse da neurociência, campo científico multidisciplinar dedicado ao estudo do sistema nervoso, sobre a questão moral é o livro do médico neurologista e neurocientista português António Damásio (1996Damásio, A. R. (1996). O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. São Paulo, SP: Companhia das Letras.), O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. Nessa obra, o autor apresenta evidências de que pessoas com lesões cerebrais, sobretudo na região pré-frontal, apresentam redução das atividades emocionais, o que sugere a relação de determinadas áreas cerebrais com o raciocínio e as emoções. As pesquisas com psicopatas, por exemplo, por meio de ressonância magnética, apontam evidências de que certas partes de seu cérebro não mostram respostas ou se ativam quando são colocados diante de imagens que despertam respostas fortes em pessoas não danificadas (como nudez, mutilação etc.), especificamente o córtex pré-frontal ventromedial, relacionado aos sentimentos de empatia e culpa, e a amígdala, relacionada ao medo e à ansiedade.

Nesse sentido, o erro de Descartes, que Damásio (1996Damásio, A. R. (1996). O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. São Paulo, SP: Companhia das Letras.) toma emprestado para o título de seu livro, seria:

a separação abissal entre o corpo e a mente, entre a substância corporal, infinitamente divisível, com volume, com dimensões e com um funcionamento mecânico, de um lado, e a substância mental, indivisível, sem volume, sem dimensões e intangível, de outro; a sugestão de que o raciocínio, o juízo moral e o sofrimento adveniente da dor física ou agitação emocional poderiam existir independentemente do corpo. Especificamente: a separação das operações mais refinadas da mente, para um lado, e da estrutura ou funcionamento do organismo biológico para o outro. (p. 251)

Em entrevista que nos concedeu por ocasião do Dossiê “40 anos de ‘Uma voz diferente’: contribuições, desdobramentos e o legado das ideias de Carol Gilligan (1936-)”, quando confrontada sobre o atual paradigma da psicologia do desenvolvimento moral, a própria Gilligan reconheceu a importância dessas descobertas do campo neurocientífico e suas implicações no seu trabalho (Gilligan, 1977Gilligan, C. (1977). In a different voice: women’s conceptions of self and of morality. Harvard Educational Review, 47(4), 481-517. doi: 10.17763/haer.47.4.g6167429416hg5l0
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; 1982Gilligan, C. (1982). Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.):

Matheus Estevão Ferreira da Silva: O atual paradigma da Psicologia Moral que busca contemplar a complexidade do desenvolvimento moral, como considerar o aspecto afetivo enquanto considera o aspecto cognitivo, deve muito ao seu trabalho. . . . Como você vê esse reconhecimento do seu trabalho e qual a sua opinião sobre esse atual paradigma da Psicologia Moral?

Carol Gilligan: Eu vejo isso como uma correção importante e em consonância com o trabalho de Antonio Damásio e outros neurocientistas cujas pesquisas mostraram que a separação da razão ou pensamento da emoção, ao invés de significar o apogeu da racionalidade, é vista com mais precisão como uma manifestação do cérebro com lesão ou trauma (ver Damásio, Erro de Descartes). Na verdade, acho que os psicólogos confundiram trauma com desenvolvimento, e o atual paradigma da psicologia moral que integra cognição e afeto ou razão e emoção (junto com mente e corpo e self e relacionamentos) é uma correção importante e significa uma mudança de paradigma. Considero este um reconhecimento importante e preciso e muito gratificante do meu trabalho. (Silva & Gilligan, 2022Silva, M. E. F. da, & Gilligan, C. (2022). 40 anos de “Uma voz diferente”: entrevista com Carol Gilligan. Schème - Revista Eletrônica de Psicologia e Epistemologia Genéticas , 14(esp.), 352-380. doi: 10.36311/1984-1655.2022.v14.esp.p352-409
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, p. 368-369).

Em sua revisão, Haidt (2013Haidt, J. (2013). Moral psychology for the twenty-first century. Journal of Moral Education, 42(3), 281-297. doi: 10.1080/03057240.2013.817327
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) reitera a mudança paradigmática do campo: “a psicologia moral mudou radicalmente nos últimos 25 anos . . . foi retirada das mãos dos filósofos e biologicizada” (p. 294), com aumento de interesse no estudo dos “processos automáticos, intuitivos e afetivos. . . . O raciocínio moral desempenha muitos papéis importantes, mas esses papéis agora são vistos como [secundários]” (p. 294). Schrader (2015Schrader, D. E. (2015). Evolutionary paradigm shifting in moral psychology in Kohlberg’s penumbra. In B. Zizek, D. Garz, & E. Nowak (Orgs.), Kohlberg revisited (pp. 7-26). Rotterdam: Sense.) concorda em partes: de fato, “o paradigma psicológico moral construtivista, construtivista social e desenvolvimentista está sob ameaça de obsolescência. A pesquisa do cérebro e as teorias evolucionistas tentam suceder os paradigmas construtivistas” (p. 7). Entretanto, o autor tem suas ressalvas:

De fato, pesquisas atuais em psicologia moral conduzidas pelo grupo ‘The New Science of Morality’, incluindo Jonathan Haidt, Joshua Greene, David Pizarro e Paul Bloom focam em ‘uma nova síntese do pensamento evolutivo e biológico’ que inclui intuição e emoção, mas não a vincula à reconstrução racional de Kohlberg da ontogênese do raciocínio de justiça - isto é, a teoria moral psicológica de Kohlberg ou sua teoria de educação/ação. Em vez disso, esse grupo cai no mesmo dualismo epistêmico que o grupo de Gilligan antes deles: a ideia de que existem duas trajetórias morais ou duas psicologias morais. (Schrader, 2015Schrader, D. E. (2015). Evolutionary paradigm shifting in moral psychology in Kohlberg’s penumbra. In B. Zizek, D. Garz, & E. Nowak (Orgs.), Kohlberg revisited (pp. 7-26). Rotterdam: Sense., p. 17)

A teoria de Haidt (2001Haidt, J. (2001). The emotional dog and its rational tail: a social intuitionist approach to moral judgment. Psychological Review, 108(4), 814-834. doi: 10.1037/0033-295X.108.4.814
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), segundo a qual a emoção se sobrepõe à razão, na verdade, reitera os mesmos dualismos, já tanto criticados no que tange a Gilligan (Arantes, 2000Arantes, V. A. (2000). Cognição, afetividade e moralidade. Educação e Pesquisa, 26(2), 137-153. doi: 10.1590/S1517-97022000000200010
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; 2003Arantes, V. A. (2003). Afetividade, cognição e moralidade na perspectiva dos modelos organizadores do pensamento. In V. A. Arantes & J. G. Aquino (Orgs.), Afetividade na escola: alternativas teóricas e práticas (pp. 109-151). São Paulo, SP: Summus.), ao buscar valorizar o outro não considerado em vez de integrá-los. Ainda assim, sobre se a neurociência e a psicologia evolutiva são o futuro da pesquisa sobre moralidade, Haidt (2013Haidt, J. (2013). Moral psychology for the twenty-first century. Journal of Moral Education, 42(3), 281-297. doi: 10.1080/03057240.2013.817327
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) admite que a pesquisa científica interessada na contemplação da complexidade não deve se reduzir a elas:

a moralidade não é ‘apenas’ um fenômeno biológico, a ser estudado com técnicas de ressonância magnética . . . a moralidade é um aspecto da humanidade que é profundamente biológico, mas também profundamente cultural. Não pode ser estudada apenas por uma disciplina. (p. 294)

Considerações finais

Historicamente, a psicologia, junto de outras ciências, apresentou uma visão reducionista, linear e fragmentada sobre os processos e fenômenos que teve como objeto de estudo. No campo da psicologia do desenvolvimento moral, as teorias morais de Piaget e Kohlberg, em sua abordagem cognitivo-evolutiva, conservaram essa visão limitante, sobretudo no aspecto do juízo moral, também devido à adoção de um paradigma filosófico que superestimava um aspecto em detrimento de outro.

Sendo esse paradigma a filosofia kantiana e esse aspecto a razão, ambas as teorias partilharam de uma ênfase racionalista sobre o desenvolvimento moral. Considerando as variáveis que interferem no desenvolvimento moral, destacou-se o papel da afetividade, que não encontra espaço nos modelos de desenvolvimento subjacentes dessas teorias. Assim, ressaltou-se o trabalho de Gilligan, que pioneiramente trouxe à tona essa e outras limitações das teorias em questão.

Das diversas teorias pós-kohlberguianas que surgiram como subsídio para esse novo paradigma da psicologia do desenvolvimento moral, que considera a complexidade dos fenômenos que lhes são pertinentes, citaram-se três das principais tendências erigidas no campo, a revolução afetiva, a neurociência e a psicologia evolutiva (Haidt, 2013Haidt, J. (2013). Moral psychology for the twenty-first century. Journal of Moral Education, 42(3), 281-297. doi: 10.1080/03057240.2013.817327
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), assim como algumas das principais teorias vinculadas a cada tendência, como o modelo dos quatro componentes de Rest et al. (1999Rest, J., Narvaez, D., Bebeau, M. J., & Thoma, S. J. (1999). Postconventional moral thinking: a neo-kohlbergian approach. Mahwah: Lawrence Erlbaum Associates.), a teoria do duplo aspecto da competência moral de Georg Lind (2019Lind, G. (2019). How to teach moral competence. Berlin: Logos.), a teoria dos modelos organizadores do pensamento de Vilarrasa e Marimón (2000Vilarrasa, G. S., & Marimón, M. M. (2000). Nuevas perspectivas sobre el razionamiento moral. Educação e Pesquisa , 2(26), 123-135. doi: 10.1590/S1517-97022000000200009
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), as teorias de identidade moral de Blasi (1983Blasi, A. (1983). Moral cognition and moral action: a theoretical perspective. Developmental Review, 3(2), 178-210. doi: 10.1016/0273-2297(83)90029-1
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), Colby e Damon (1992Colby, A., & Damon, W. (1992). Some do care. New York: Free Press.), a teoria do modelo social intuicionista de Haidt (2001Haidt, J. (2001). The emotional dog and its rational tail: a social intuitionist approach to moral judgment. Psychological Review, 108(4), 814-834. doi: 10.1037/0033-295X.108.4.814
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) e as contribuições do campo neurocientífico (Damásio, 1996Damásio, A. R. (1996). O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. São Paulo, SP: Companhia das Letras.) - esta última também subsidiária do trabalho de Haidt (2001Haidt, J. (2001). The emotional dog and its rational tail: a social intuitionist approach to moral judgment. Psychological Review, 108(4), 814-834. doi: 10.1037/0033-295X.108.4.814
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).

Embora algumas dessas teorias não façam menção a Gilligan nem expressem reconhecimento ao seu pioneirismo (por exemplo, Lind, Blasi, Colby e Damon), enquanto outras o fazem (por exemplo, Rest, Haidt, Vilarrasa e Marimón), todas se beneficiam desse movimento de vanguarda trazido por Gilligan, tendo-a como uma poderosa referência, para expandir os horizontes da psicologia do desenvolvimento moral.

Portanto, se a psicologia do desenvolvimento moral se encontra de fato esgotada em seus aportes teóricos, os(as) pesquisadores(as) desse campo parecem estar cada vez mais ativos(as), à procura de aprimorar suas teorias e de sanar essa falta de perspectiva e inovação nas atuais investigações. Com as citadas teorias pós-kohlberguianas que consideram a complexidade em débito com o trabalho pioneiro de Gilligan que lhes serviu de referência, o campo parece ter se renovado, ou estar se renovando, para mais um ciclo de décadas de estudo sobre o desenvolvimento moral.

Como ensejo para uma próxima produção, cabe agora saber como cada uma dessas teorias pós-kohlberguianas contemplam ou são potenciais na contemplação da complexidade do desenvolvimento moral.

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  • 1
    Preferiu-se adotar o termo tendências em vez de estágios ou fases, uma vez que, para Piaget (1932/1994Piaget, J. (1994). O juízo moral na criança. São Paulo, SP: Summus. (Trabalho original publicado em 1932)), ainda não é claro se o caminho psicogenético que traça corresponde a uma estrutura de moralidade, paralela às estruturas cognitivas, como é para Kohlberg (1992Kohlberg, L. (1992). Psicologia del desarrollo moral. Bilbao: Desclée de Brower.).
  • 2
    Dilemas podem ser hipotéticos, quando mais abstratos e difíceis de ocorrerem, ou reais, quando encontrados mais facilmente no cotidiano da vida real. As críticas de Gilligan (1977Gilligan, C. (1977). In a different voice: women’s conceptions of self and of morality. Harvard Educational Review, 47(4), 481-517. doi: 10.17763/haer.47.4.g6167429416hg5l0
    https://doi.org/10.17763/haer.47.4.g6167...
    ; 1982Gilligan, C. (1982). Uma voz diferente: psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à idade adulta. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.) quanto à metodologia kohlberguiana também se voltaram ao recorrente uso de dilemas hipotéticos em detrimento dos dilemas reais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2022
  • Aceito
    07 Abr 2023
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